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Pedagógica Professor Conteudista Leandro Rodrigues de Oliveira Revisão de Linguagem Lucirene Ferreira Lopes Designer de Linguagem Clecia Assunção Silva Designer Pedagógica Suelen SantosFalcão de Sousa Projeto Gráfico e Diagramação Josimar de Jesus Costa Almeida Capa Yuri Almeida UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO - UEMA Oliveira, Leandro Rodrigues de Filosofia [e-Book]. Leandro Rodrigues de Oliveira. – São Luís: UEMA; UEMAnet, 2019. 44 f. ISBN: 1. Surgimento. 2. Natureza. 3. Objeto. 4. Fenômeno do conhecimento. 5. Gnosiológicos. 6. Epistemológicos. I. Título. CDU: 16 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 1 2 APRESENTAÇÃO A FILOSOFIA E O PROCESSO DO FILOSOFAR: surgimento, natureza e objeto 1.1 Introdução 1.2 O mito e a consciência mítica 1.2.1 O mito na civilização grega 1.3 Origem e características da Filosofia 1.3.1 Filosofia: significado e a experiência filosófica RESUMO REFERÊNCIAS A FILOSOFIA E O FENÔMENO DO CONHECIMENTO: os grandes paradigmas gnosiológicos e epistemológicos 2.1 Introdução 2.2 O conhecimento e os primeiros filósofos 2.2.1 Heráclito e o eterno fluir 2.2.2 Parmênides e o imobilismo do Ser 2.3 Sócrates e os sofistas 2.3.1 Sofistas: a linguagem e o relativismo 2.3.2 Sócrates e o conceito 2.4 Platão e o mundo das ideias C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 2.5 O conhecimento em Aristóteles 2.6 Os filósofos modernos e o surgimento da teoria do conhecimento 2.6.1 O racionalismo de Descartes 2.6.2 O empirismo de John Locke 2.6.3 Kant e o criticismo RESUMO REFERÊNCIAS O HOMEM E A RELAÇÃO COM O MUNDO: ética, sociedade e educação 3.1 Introdução 3.2 Ética e Educação do mundo grego 3.3 Ética e moral: genealogia e definições conceituais 3.3.1 Ética: individualidade, coletividade e educação 3.4 Sentido e alcance da educação como prática social RESUMO REFERÊNCIAS 3 Caro (a) estudante, F ilosofi a é uma área do conhecimento que implica refl exões e análises tendo como instrumento exclusivo, o raciocínio lógico. Os estudos anteriores de Filosofi a apresentados a você, na etapa de Ensino Médio, deram conhecimentos propedêuticos sobre a origem da Filosofi a. A partir desta disciplina, teremos a oportunidade de ampliar o diálogo fi losófi co dentro de um processo refl exivo como: compreensão, interpretação e análise crítica. Levando em consideração os conhecimentos previamente já adquiridos, convidamos você a mergulhar nos pressupostos básicos da Filosofi a, pois estes o levarão a desenvolver atitudes refl exivas e críticas frente à realidade. Assim, este e-Book de estudos está organizado em três Unidades: Unidade 1 - A Filosofi a e o processo do fi losofar: o surgimento, a natureza e o objeto; Unidade 2 - A fi losofi a e o fenômeno do conhecimento: os grandes paradigmas gnosiológicos e epistemológicos; Unidade 3 - O homem e a relação com o mundo: ética, sociedade e educação. Os conteúdos pressupõem constantes possibilidades para a indagação. Problematizar e investigar são prerrogativas das relações fi losófi cas presentes na metodologia da disciplina. Assim, a excelência no processo de aquisição do saber, pelo exercício do pensar e de assumir a atitude fi losófi ca será o nosso maior compromisso. Sempre com você e por você desejamos que seja signifi cativa nossa parceria. Bons estudos! “O homem é a medida de todas as coisas” (Protágoras) APRESENTAÇÃO A FILOSOFIA E O PROCESSO DO FILOSOFAR: surgimento, natureza e objeto A FILOSOFIA E O PROCESSO DO FILOSOFAR: surgimento, natureza e objeto Identifi car as principais características da natureza e do objeto da refl exão fi losófi ca a partir do seu surgimento na Antiguidade. OBJETIVO Figura 1 – A Filosofi a Fonte: https://www.dm.com.br/wp-content/uploads/2018/08/Brasig_is-Fel_cio.jpg 7 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 1.1 Introdução Diferentemente dos antigos povos da Antiguidade – os chineses e indianos, egípcios, persas e hebreus –, que também tiveram suas visões próprias da natureza e maneiras diversas de explicar os fenômenos e processos naturais, só os gregos, entretanto, fizeram ciência. E isso é o que possibilita dizer que é na cultura grega que podemos identificar o princípio deste tipo de pensamento que denominamos de filosófico, conforme veremos. Quando dizemos que o pensamento filosófico surge na Grécia antiga, estamos caracterizando-o como uma forma específica de o homem tentar entender os fenômenos do mundo que o rodeia, bem como sua origem e sua existência. Mas que forma seria esta, afinal? Através da definição de Aristóteles, de que Tales de Mileto é o iniciador do pensamento filosófico-científico, podemos considerar que a filosofia nasce basicamente de uma insatisfação com o tipo de explicação do real que encontramos no pensamento mítico. É nesse sentido que pretendemos compreender a filosofia como um movimento de ruptura com o mito, a partir da tentativa dos primeiros filósofos da escola jônica, que forjaram as primeiras explicações do mundo natural (a physis) baseadas essencialmente em causas naturais. Por isso, será importante compreender em que consiste o mito, ou a consciência mítica para, em seguida, demonstrar em que consiste o pensamento filosófico, sua natureza e seu objeto. 1.2 O mito e a consciência mítica Tomando como ponto de partida o significado do termo segundo o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano (2007), mito, do grego mythos, significa “narrativa” e designa um tipo de verdade como compreensão da realidade. Nesse sentido, o mito não pode apenas ser compreendido como pura lenda ou pura fantasia, mas deve ser também classificado como um tipo de verdade sustentado sob um conjunto de narrativas, estórias e ensinamentos que estabelecem uma compreensão da realidade de cada sociedade e cultura. 8 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Nos estudos introdutórios de Danilo Marcondes, em Introdução à história da filosofia (2001), o pensamento mítico consiste numa forma pela qual um povo explica aspectos essenciais da realidade em que vive como, por exemplo, a origem do mundo, o funcionamento da natureza e dos processos naturais e as origens deste povo, bem como seus valores básicos. Nessa perspectiva, o mito caracteriza-se, sobretudo, pelo modo como estas explicações são dadas, ou seja, pelo tipo de discurso que constitui. Nas civilizações antigas, os mitos nos remetem a povos tribais, cujas relações permanecem igualitárias. Nas sociedades mais complexas, como aquelas em que se acentuam as novas técnicas e ofícios especializados, por exemplo, no desenvolvimento da agricultura, do pastoreio e do comércio, os mitos se estabeleceram através de hierarquias entre segmentos sociais que introduzem, inclusive, a escravidão. Por ser parte de uma tradição cultural, o mito configura a própria visão de mundo dos indivíduos a sua maneira de vivenciar esta realidade. Assim, o pensamento mítico pressupõe a adesão, a aceitação dos indivíduos, na medida em que constituidetermina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade (CHAUÍ, 2000, p.89). Considerando esse cenário, é fundamental que as políticas públicas definidas para a educação, no país, invistam, cada vez mais, em ações que estabeleçam e consolidem a relação educação e cidadania, bem como em outros temas a ela relacionados como democracia, justiça, solidariedade e autonomia. Mas o que é cidadania? Como formar um cidadão? Para a primeira pergunta, podemos sinalizar, ainda que provisoriamente, que cidadania é algo complexo, que vai além da mera formalidade: trata-se, na Figura 14 – Ética e Educação Fonte: https://escolascritique.com.br/kritike/wp-content/ uploads/2018/09/michal-parzuchowski-224092-unsplash- 1024x680.jpg 41 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia verdade, de um processo político. Quanto à segunda pergunta, Coutinho (1994, p. 2) nos esclarece que, para formar um cidadão, a educação precisa atualizar “[...] todas as possibilidades de realização humanas abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado”. No Brasil, do ponto de vista legal, a formação para a cidadania é um dos princípios e fins da educação nacional. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96 – trata a questão nos seguintes termos: Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. No mundo moderno, a educação formal tem ficado sob a responsabilidade social de uma instituição específica – a escola. Devido à amplitude do seu trabalho, essa instituição tem exercido um papel fundamental na vida individual e coletiva das pessoas. Portanto, numa visão emancipatória e crítica do saber, a escola precisa constituir-se em um espaço social que crie oportunidades visando permitir a ampliação e consolidação da cidadania dos atores que a vivenciam. A escola, de fato, institui a cidadania. É ela o lugar onde as crianças deixam de pertencer exclusivamente à família para integrarem-se numa comunidade mais ampla em que os indivíduos estão reunidos não por vínculos de parentesco ou de afinidade, mas pela obrigação de viver em comum. A escola institui, em outras palavras, a coabitação de seres diferentes sob a autoridade de uma mesma regra (CANIVEZ, 1991, p.33). Nessa mesma perspectiva, a escola tem a importante função de contribuir para fortalecer a democracia. É o compromisso com a democratização de suas práticas que contribui para que ela seja, de fato, um espaço público, e a configura como um local que reconhece a necessidade do respeito à percepção do outro, “[...] num mundo social intersubjetivamente partilhado” (HABERMAS, 2004, p. 109). Trata-se de defender, portanto, uma educação escolar que efetivamente contribua para ajudar os indivíduos a reconhecer o outro, respeitando suas diferenças. Para tanto, é preciso que os professores tenham como preocupação básica a formação integral dos seus alunos, articulando duas grandes dimensões – moral e intelectual – com vistas ao desenvolvimento da autonomia do indivíduo. 42 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Na perspectiva filosófica de Kant (1985), a autonomia dos sujeitos corresponde à conquista da sua maioridade intelectual e moral. É por meio de uma consciência autônoma, que os indivíduos sabem resolver problemas diversos, desenvolvendo uma reflexão própria. Para tanto, é preciso utilizar conhecimentos e não apenas informações, e apoiar-se em princípios éticos e não apenas em vivências que, muitas vezes, podem não traduzir os valores morais do coletivo. Sem dúvida, toda educação exige, em alguma medida, o diálogo entre os sujeitos que realizam. Assim, a ética torna-se indispensável, sobretudo, porque pode contribuir para o processo de humanização dos homens, considerando os valores que norteiam suas condutas. SOUSA, José Vieira de. Ética e Educação: que relação é esta?. Disponível em: http:// docplayer.com.br/18907445-Etica-e-educacao-que-relacao-e-esta.html. Acesso em: 3 dez. 2019. Embora possamos tratar de Ética, Educação e Sociedade como temas distintos, até mesmo pela natureza específica dos problemas com que poderiam abordar, importa observar a relação fundamental que as desenvolvem em vista do processo de formação do ser humano de modo geral. Sem dúvida alguma, a ética, desde o seu nascimento, torna-se um importante componente para a educação humana, com foco na vida social. Atuando junto ao campo da moral, como conjunto de normas, princípios e valores, que determinam as condutas sociais dos indivíduos, mais do que isso, à ética pode proporcionar uma reflexão sobre as próprias normas, e determinar aquilo que será considerado o bom e o melhor para todos, em uma sociedade cujos princípios orientam à vida justa. Em sociedades como as nossas, em constantes transições de valores, dominadas pela era tecnológica e assombradas pela violência, mais do que nunca, a educação, seja ela Para refletir O que significa educar? Que valores éticos devem ser defendidos em um mundo que, de repente, ficou pequeno e globalizado, considerando o avanço do conhecimento e suas repercussões sobre a vida das pessoas? 43 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia do ponto de vista institucional ou intrafamiliar, deve manter um foco na formação ética, da qual, se deverá buscar o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos, valorizando bens como a liberdade, a democracia, a política, a justiça e, preparando os indivíduos para a vida coletiva, por onde brotam grande parte dos problemas sociais. A educação é ponto de partida para que todos os indivíduos alcancem e desenvolvam suas potencialidades de seres humanos, cuja liberdade é a vitória da consciência bem formada e instruída, sobretudo em sociedades em constante transição, como as nossas. A ética, nesse sentido, torna-se uma importante aliada da educação, pois são imprescindíveis suas contribuições para o desenvolvimento da consciência dos sujeitos, que não só aprendem a se situar no tempo e no espaço, como também se tornam sensíveis às necessidades do outro. A reflexão ética deve priorizar, portanto, a construção de valores que preservem a igualdade e, sobretudo a justiça nas relações humanas, de modo a reger a vida em sociedade observando o sentido comum nas práticas e ações humanas. RESUMO Nesta Unidade, apresentamos alguns elementos da reflexão sobre a ética e sobre a educação, buscando demonstrar como ambas se articulam no plano da sociedade. Foi pontuado um estudo introdutório da ética, enquanto reflexão filosófica, abordando como ela pode contribuir para pensar a educação a partir dos seus problemas dentro de nossa sociedade. Neste sentido, verificou-se que, se, a educação cumpre a função de formar os indivíduos para a vida em sociedade, a ética se apresenta como fundamental e indispensável para a educação, na medida em que ela tem por objetivo refletir sobre as questões ligadas ao comportamento humano, buscando compreender que tipo de sujeitos e de sociedade que desejamos. Viu-se, assim, que, entre ética e educação há, portanto, uma relação de convergência natural. 44 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Antônio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bossi e Ivone Castilho. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,2007. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 38. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. COUTINHO, Carlos Nelson. Cidadania e modernidade. Palestra proferida na Embratel, Rio de Janeiro, 20 maio 1994, Mimeo. CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? São Paulo: Papirus, 1991. GALLO, Sílvio (coord.). Ética e cidadania: caminhos da filosofia: elementos para o ensino de filosofia. 11. ed. Capinas, SP: Papirus, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. JAEGER, W. W. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1985. SOUSA, José Vieira de. Ética e Educação: que relação é esta?. Disponível em: http:// docplayer.com.br/18907445-Etica-e-educacao-que-relacao-e-esta.html. Acesso em: 3 dez. 2019. VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia II. Ética e cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1993. VAZQUÉZ, Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. 34. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.as formas de experiência do real. O mito não se justifica e não se fundamenta, portanto, nem se presta ao questionamento, à crítica ou à correção. Deste modo, não há discussão do mito porque ele constitui a própria visão de mundo. 1.2.1 O mito na civilização grega Segundo Aranha e Martins em Filosofando: introdução à filosofia (2009), na tradição grega os mitos surgiram quando ainda não havia escrita e eram transmitidos por poetas ambulantes chamados de aedos e rapsodos. Homero em Ilíada e Odisseia e Hesíodo em Teogonia são as principais fontes de nosso conhecimento dos mitos gregos, embora muitas das narrativas não tenham sido criadas por eles. A Ilíada, por exemplo, trata da guerra de Troia, e a Odisseia, do retorno de Ítaca, terra natal de Ulisses. Atenção Cosmogonia é a especulação sobre a origem e formação do mundo que se encontra em muitos mitos religiosos e na filosofia dos pré-socráticos, principalmente Tales de Mileto, o primeiro a buscar a origem de todas as coisas, acreditando encontrá-la na água, considerada por ele como a substância primordial do universo. 9 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Já em Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta dos séculos VIII e VII a.C., suas obras são marcadas pela tentativa de superar a poesia impessoal e coletiva das epopeias, mesmo que ainda refletem o interesse pela crença dos mitos. Em Teogonia, Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, em que as forças emergentes da natureza vão se transformando nas próprias divindades. Por isso, a teogonia é também uma cosmogonia, na medida em que narra como todas as coisas surgiram do Caos para compor a ordem do Cosmo. Na vida dos gregos, os mitos e epopeias desempenharam um papel pedagógico significativo: elas descreviam a história grega – o período da civilização micênica – e transmitiam os valores culturais mediante o relato das realizações dos deuses e dos antepassados. Os seus elementos centrais da forma que se baseia para explicar a realidade é o apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado, à magia. As causas dos fenômenos naturais, aquilo que acontece entre os homens, tudo é governado por uma realidade exterior ao mundo humano e natural, superior, misteriosa, divina, a qual só os sacerdotes, os magos, os iniciados, são capazes de interpretar, ainda que apenas parcialmente. Por isso, mesmo com o nascimento da Filosofia, os mitos continuaram a existir, mas ocupando um papel diferente com que representara até então. Figura 2 – Tykhe ou Tique. Mitologia grega. Divindade tutelar responsável pela sorte de uma cidade Fonte: http://eventosmitologiagrega.blogspot.com/ 10 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 1.3 Origem e características da Filosofia Se, por um lado, o pensamento mítico pretende fornecer uma explicação da realidade, por outro lado, recorre ao mistério e o sobrenatural, ou seja, exatamente àquilo que não se pode explicar, nem se pode compreender por estar fora do plano da compreensão humana. Por isso, a explicação dada pelo pensamento mítico esbarra, assim, no inexplicável, na impossibilidade do conhecimento. E esse será o pressuposto fundamental pelo qual a Filosofia se estabelecerá. Surgindo pouco a pouco em substituição aos mitos e às crenças religiosas com a tentativa de conhecer e compreender o mundo e os seres que nele habitam. O conhecimento filosófico se dá, a partir dos pré-socráticos, como uma experiência de busca pelo conhecimento, essencialmente fundado na razão (logos) como principal ferramenta para a compreensão do mundo, diferentemente da visão teogônica do mundo. Com o passar do tempo à Filosofia se formou como uma atividade que visa refletir sobre a realidade, qualquer que seja ela, descobrindo seus significados mais profundos. É importante observar que, em Filosofia refletir é pensar cuidadosamente o que já foi pensado. Como um espelho que reflete a nossa imagem, a reflexão do filósofo deixa ver, revela, traduz os valores envolvidos nos acontecimentos e nas ações humanas. Segundo Demerval Saviani (1996), a reflexão filosófica possui três características fundamentais: (i) É radical, ou seja, visa chegar até a raiz dos acontecimentos, isto é, aos seus fundamentos; a sua origem; (ii) É rigorosa, pois visa seguir um método de investigação adequado e rigoroso a fim de não deixar escapar nada da realidade que se pretende, colocando em questão as respostas mais superficiais às mais profundas e gerais; (iii) É de conjunto, pois considera que os problemas não estão isolados, mas dentro de um conjunto de fatos, fatores e valores relacionados entre si. A palavra refletir deriva do verbo latino refletere, que significa “voltar atrás”. Na Filosofia, refletir é o mesmo que retornar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, examinar detidamente, prestar atenção ou analisar com cuidado o objeto que está sendo pensado. ABC 11 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 1.3.1 Filosofia: o significado e a experiência filosófica Originando-se nas colônias gregas por volta do século VI a.C., por uma atitude diferente diante da realidade, inicialmente por homens conhecidos como “físicos”, porque se dedicavam sobretudo a observar a natureza (physis), a Filosofia (philos= amigo; sophia= sabedoria), cujo significado literal é “amigo da sabedoria”, é o nome designada por Pitágoras ao reconhecer na busca daqueles primeiros físicos sua incrível atitude de conhecer a realidade. Como atesta Diógenes Laércio, Pitágoras teria sido o primeiro a usar esse termo e a chamar-se de filósofo, porque, segundo ele, homem nenhum é sábio, mas somente Deus, de modo que o estudioso da sabedoria, não deve receber o nome de sábio, mas de filósofo, que é aquele que anseia pelo conhecimento (PERINE, 2007). De acordo com Marcelo Perine em Ensaio de iniciação ao filosofar (2007), Platão e Aristóteles indicaram com precisão a experiência que, segundo eles, dá origem ao pensar filosófico. A mais antiga resposta sobre a origem do filosofar foi dada por Platão. A partir de uma análise cuidadosa da nova atitude diante da realidade, o filósofo grego em um texto conhecido com o título “sobre o conhecimento” num diálogo do Teeteto, afirmou que a origem do filosofar era um estado de espírito que pode ser definido com os termos admiração, espanto e perplexidade (em grego, thauma). A Filosofia nascente foi também chamada de cosmologia, isto é, o estudo sobre a ordem do universo, justamente porque os primeiros filósofos se interessavam por compreender a origem e o fundamento de todas as coisas. Saiba Mais! Aristóteles, na mesma linha de Platão, também vai encontrar na admiração a origem dessa atitude originária da filosofia. O livro primeiro da Metafísica é dedicado a uma espécie de introdução ao estudo da Filosofia, entendida como “filosofia primeira”, e de sua justificação não só como ciência, mas como a mais elevada entre elas, porque tem por objeto o conhecimento das causas primeiras e dos princípios primeiros de toda O termo thauma deriva da palavra grega thaumázein que significa admirar, maravilhar-se, ficar estupefato. ABC 12 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia a realidade. Aristóteles se empenha por mostrar que o conhecimento pelas causas primeiras e pelos primeiros princípios é superior a qualquer outro tipo de conhecimento e é de competência dessa ciência, que não é produtiva nem prática, mas teórica e especulativa (PERINE, 2007, p.26). Essa primeira experiência do filosofar, descrita por Platão e Aristóteles, começa com os pré-socráticos, cuja atenção se centrava na natureza e elaboraram diversas concepções de cosmologia, procurando explicar como, diante da mudança (do devir), podemos encontrar a estabilidade; como diante do múltiplo, descobrimos o uno. Ao perguntarem como poderia emergir o cosmo do caos – ou seja, como da confusão inicial surge o mundo ordenado –, os pré-socráticos buscam o princípio (aarkhé) de todas as coisas, entendido como fundamento do ser. Assim, buscar a arkhé é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas, da realidade natural (physis). As respostas dos filósofos à questão do fundamento de todas as coisas foram diversas. A começar por Tales de Mileto, astrônomo, matemático e primeiro filósofo, a água (hydor) é o elemento primordial que dá unidade à natureza. Em sua visão, o mundo teria sua origem na evaporação, uma vez que água está presente em todos os elementos. Os seus sucessores, Anaxímenes e Anaximandro, por sua vez, adotaram respectivamente o ar e o apeíron. O primeiro, pelo princípio da rarefação; o segundo, por um princípio abstrato significando algo de ilimitado, indefinido, subjacente à própria natureza. Heráclito de Éfeso, um dos mais importantes pensadores daquele tempo, dizia que o mundo era regido por um constante movimento, tudo flui, tudo está em constante devir, e o fogo seria o princípio explicativo. Por outro lado, Demócrito apostava no átomo como o princípio explicativo de todas as coisas, enquanto que, Empédocles, com sua doutrina dos quatro elementos, sintetiza essas diferentes posições afirmando a existência de quatro elementos primordiais – terra, água, ar e fogo, tese que mais tarde foi retomada por Platão no Timeu e bastante difundida em toda Antiguidade, chegando mesmo ao período moderno, presente nas especulações da alquimia do período do Renascimento até o surgimento da química moderna. Atenção Os filósofos pré-socráticos fazem parte do primeiro período da filosofia grega. Eles desenvolveram suas teorias do século VII ao V a.C., e recebem esse nome, pois são os filósofos que antecederam Sócrates. Esses pensadores buscavam nos elementos da natureza as respostas sobre a origem do ser e do mundo. 13 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Reflexão! Na visão dos pré-socráticos destacam-se, sobretudo, a importância da noção de arqué, exatamente na tentativa por parte desses filósofos de apresentar uma explicação da realidade em um sentido mais profundo, estabelecendo um princípio básico que permeie toda a realidade, que de certa forma a unifique, e que ao mesmo tempo seja um elemento natural. Entretanto, a reflexão filosófica por eles iniciada possui outras características essenciais, como, a noção de physis, de causalidade, de cosmo. Assim, que essas noções são fundamentais para entender o processo de transição com o pensamento mítico, justamente porque mostram como elas constituem o ponto de partida de uma visão de mundo que, apesar das profundas transformações ocorridas, permanece parte de nossa maneira de compreender a realidade ainda hoje. Isso significa dizer que podemos reconhecer nesses pensadores as raízes de conceitos constitutivos de nossa tradição filosófico-científica. Enfim, como afirma Luckesi (1990, p. 22): A filosofia é um corpo de conhecimento, constituído a partir de um esforço que o ser humano vem fazendo de compreender o seu mundo e dar-lhe um sentido, um significado compreensivo. Corpo de conhecimentos, em Filosofia, significa um conjunto coerente e organizado de entendimentos sobre a realidade. Conhecimentos estes que expressam o entendimento que se tem do mundo, a partir de desejos, anseios e aspirações. RESUMO Esta Unidade apresentou algumas das características fundamentais da reflexão filosófica desde o surgimento da Filosofia na Antiguidade. Ao situar o contexto que proporcionou a passagem do pensamento mítico ao pensamento racional, foram apresentados os elementos fundamentais que constituíram a experiência do filosofar, baseada na razão. Foi assim que os primeiros pensadores, os pré-socráticos, iniciaram Para refletir Como a filosofia passou a ser vista no mundo atual? Ainda existe relevância para a reflexão filosófica? 14 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia a Filosofia promovendo várias reflexões sobre a origem de todas as coisas, e o princípio fundamental que rege o funcionamento do universo. A Filosofia deste período surgiu como uma cosmologia, isto é, uma reflexão sobre a ordem e fundamento da realidade. ARANHA, Maria. L. A.; MARTINS, Maria H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2009. CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.vol.1. RESENDE, Antonio (org.). Curso de filosofia: para professores e alunos dos cursos de segundo grau e de graduação. 12. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1990. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. ___________. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. PERINE, Marcelo. Ensaio de iniciação ao filosofar. São Paulo: Loyola, 2007. SAVIANI, Demerval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 11. ed. São Paulo: Cortez, 1999. OBJETIVO A FILOSOFIA E O FENÔMENO DO CONHECIMENTO: os grandes paradigmas gnosiológicos e epistemológicos Compreender os problemas centrais ligados ao debate gnosiológico e epistemológico na Filosofi a da Antiguidade e Modernidade. 16 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 2.1 Introdução A questão sobre o conhecimento sempre ocupou na Filosofia lugar central. Desde que o pensamento sistemático começou a ser gestado na Antiguidade, a busca pelo conhecimento foi concebida relativamente ao processo de busca pela compreensão da realidade (cosmos), e mais tarde veio a se tornar o objetivo essencial da busca filosófica. Entretanto, a preocupação com o conhecimento, enquanto conhecimento passou apenas a ser central na Filosofia a partir de Platão e Aristóteles. Mas é somente com a modernidade que se tornou uma disciplina filosófica voltada ao próprio conhecer, com a finalidade de investigar as condições do conhecimento verdadeiro, dando origem a diversas teorias do conhecimento. Assim sendo, nosso objetivo para esta Unidade será o de apontar as condições em que o fenômeno do conhecimento surge e se desenvolve na história do pensamento filosófico, analisando como surgiram as principais indagações relativas ao tema entre os pensadores gregos e os modernos. 2.2 O conhecimento e os primeiros filósofos O fenômeno do conhecimento surge, na Filosofia, atrelado ao próprio movimento de busca pela compreensão do mundo. Quando olhamos para a atitude dos primeiros filósofos na Grécia antiga, por volta do século VI a.C., que se dedicaram a compreender a ordem do mundo e os princípios que regem a natureza, entendemos aí as primeiras atitudes relativas ao fenômeno do conhecimento. Com as primeiras indagações que questionavam “por que e como as coisas existem?”; “o que é o mundo (cosmos)?”; “qual a origem da Natureza (physis)?”; e, “quais as causas de sua transformação (devir)?”, a filosofia nascente surge como uma cosmologia, na qual, o próprio cosmos, isto é, o mundo visto por uma ordem harmoniosa, era o objeto de indagação, a fim de se encontrar o princípio (arkhé) eterno que ordenava todas as coisas e que, mesmo com a multiplicidade e transformação do real, permanecia imutável. Esse princípio (arché) era concebido como o fundo imperecível presente em todas as coisas, fazendo-as existir como são. Esse fundo presente em todas as coisas era o Ser – palavra em português que traduz a expressão grega “tò on”, que passou a ser usado para designar “aquilo que é”, ou aquilo que subjaz a todos os seres –. Assim, a filosofia nascente coloca no centro de suas indagações o questionamento sobre “o que é o Ser?”, tornando assim, uma ontologia, isto é, conhecimento ou saber sobre o ser. 17 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Por esse motivo, alguns historiadores consideram que os primeiros filósofos não tinham uma preocupação com o conhecimentoenquanto conhecimento, porque não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser, mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer, pois a verdade, sendo aletheia, isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto e presente para nós e, portanto, nós o podemos conhecer. Mas mesmo que os primeiros filósofos não tivessem a preocupação do conhecimento pelo conhecimento, já que se podemos ou não conhecer o ser, todavia, a ideia que eles não se preocupavam com nossa capacidade e possibilidade de conhecimento não são exatas, se levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade é racional e que a podemos conhecer porque também somos racionais. Esse argumento, por si, já seria um pressuposto para mostrar que desde sempre houve preocupação para com o conhecimento. Alguns exemplos, inclusive, indicam a existência dessa preocupação por parte dos primeiros filósofos, como veremos. 2.2.1 Heráclito e o eterno fluir Com base na leitura de Pré-socráticos, da coleção os pensadores (2000), o pensamento de Heráclito de Éfeso, ou os fragmentos do seu pensamento que nos restaram, é possível observar um filósofo conhecido por formular a concepção de que o mundo todo é um fluxo constante de transformações, onde só permanece estável e inalterável a lei (logos) que rege a inevitável transformação de todas as coisas. Esta concepção torna-se perceptível no famoso fragmento descrito nos diálogos de Platão em o Crático, onde comparava as coisas a corrente de um rio – que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente, pois o rio corre, toca outras águas e não permanece mais o mesmo. Daí também se poderia afirmar a concepção de que tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo (2000, p.103). Figura 3 – Heráclito de Éfeso Fonte: https://revistaculturae.com. br/a-classica-polemica-entre-heracli- to-e-parmenides-parte-1/ 18 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Essa máxima põe em destaque a concepção de devir (vir-a-ser) como princípio de tudo, que a contradição, como o movimento de sua própria harmonia. Por isso, Heráclito comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar e transforma a cera em fogo, o fogo se torna fumaça e a fumaça em ar. Por esse mesmo movimento, também o dia se torna noite, o verão se torna outono, o novo fica velho, o quente esfria, o úmido seca. Assim, tudo se transforma no seu contrário. Na doutrina do mobilismo de Heráclito, a realidade é, portanto para Heráclito, regida por um movimento de harmonia dos contrários que não cessam de se transformar uns nos outros. Nessa doutrina, o fenômeno do conhecimento ganha destaque no momento em que o filósofo afirma, no entanto, que é preciso distinguir o conhecimento que nossos sentidos nos oferecem do conhecimento que nosso pensamento alcança, pois nossos sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como mudança contínua.1 2.2.2 Parmênides e o imobilismo do Ser Contrariamente à doutrina do mobilismo de Heráclito, Parmênides afirmará a unidade e a imobilidade do ser. No poema “As duas vias” (no fragmento Sobre a Natureza) onde expõe seu pensamento, dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, de modo que o pensamento não alcança aquilo que não é, que não existe, o não-ser. Com a fórmula o “ser é e o não-ser não é”, Parmênides delineia a questão do conhecimento, na medida em que acredita que não é possível pensar o que é e o que não é ao mesmo tempo. Daí o princípio lógico da não contradição, na medida em que não é possível pensar o instável, o oposto, ou aquilo que é contrário a si mesmo, pois, pensar é apreender um ser em sua identidade profunda e permanente (PARMÊNIDES, 2000, p. 121). 1 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 138. Figura 4 – Parmênides Fonte: https://miro.medium.com/max /1280/1*5zEvfEj-be8YKKFBh-t_NA.jpeg 19 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Esses dois exemplos nos mostram que, desde os seus começos, a Filosofia preocupou- se com o problema do conhecimento, pois sempre esteve voltada para a questão do verdadeiro. Desde o início, os filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar. 2.3 Sócrates e os sofistas Embora as questões cosmológicas ainda fossem importantes, a partir do período socrático, as questões filosóficas foram ampliadas para a antropologia, a moral e a política. Assim, preocupação com os problemas do conhecimento tornaram-se ainda mais centrais, surgindo até, sob as oposições de Sócrates e os Sofistas, que também eram do período clássico. 2.3.1 Sofistas: a linguagem e o relativismo Por um lado, motivados pela pluralidade e pelo antagonismo das filosofias anteriores, e por outro, pelos conflitos entre as várias ontologias, os Sofistas partiam da ideia de que não podemos conhecer o Ser, mas só podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade. Na visão sofista, a linguagem era mais importante do que a percepção e o pensamento, e a verdade nada mais é do que uma questão de opinião e de persuasão. Portanto, para eles, os homens deveriam se valer da linguagem (da retórica, enquanto capacidade de persuasão e convencimento) para persuadir os outros de suas próprias ideias e opiniões. Na Grécia Antiga, havia professores itinerantes que percorriam as cidades ensinando, mediante pagamento, a arte da retórica às pessoas interessadas. A principal finalidade de seus ensinamentos era introduzir o cidadão na vida política. Tudo o que temos desses professores são fragmentos e citações e, por isso, não podemos saber profundamente sobre o que eles pensavam. Aquilo que temos de mais importante a respeito deles foi aquilo que disseram seus principais adversários teóricos, Platão e Aristóteles. Fonte: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/filosofia/sofistas.htm Saiba Mais! 20 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Embora fossem constantemente criticados por Sócrates e seus discípulos, que os acusavam de não ter compromisso com a verdade e de condenar a arte retórica de persuadir reduzir os seus discursos a opiniões relativistas, devemos dizer, no entanto, que o relativismo ou a valorização da linguagem por parte dos sofistas estão ligados à questão do conhecimento. Se tomarmos a formulação máxima de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas”, presentes nos diálogos do Teeteto de Platão, portanto observaremos que o pensamento do sofista pode ser entendido como a exaltação da capacidade humana de construir a verdade, isto é, pode ser compreendido que o logos não é divino, mas decorre do exercício da razão humana, a quem cabe confrontar as diversas concepções possíveis da verdade. A utilização da linguagem por meio dos sofistas demonstra que a questão do conhecimento está subentendida na discussão filosófica como meio para aquilo que se pode argumentar, a fim de demonstrar e convencer. 2.3.2 Sócrates e o conceito Distanciando-se dos primeiros filósofos, cujo interesse se concentrava na busca pelos princípios ordenadores da natureza, Sócrates propõe uma filosofia com foco na autorreflexão, conforme concebe em sua famosa máxima “conhece-te a ti mesmo”. Embora não deixasse nada escrito, e o que se sabe a seu respeito é fruto dos escritos de seus discípulos, Platão e Xenofonte, o pensamento socrático é caracterizado pela forte oposição aos sofistas que, contrariamente a esses, concebia que a verdade poderia ser alcançada desde que possamos compreender que precisamos nos afastar das ilusões dos sentidos, das imposições das palavras e da multiplicidade de opiniões. Figura 5 – Estátua de Sócrates Fonte: Renata Sedmakova / Shutter- stock.com 21 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Com base numa filosofiabaseada na premissa “só sei que nada sei”, Sócrates cria seu próprio método de investigação da verdade, que consistia justamente na sabedoria de reconhecer a própria ignorância, mas como ponto de partida para a busca do saber. O seu método era divido basicamente em duas etapas: a primeira que começava pela fase da “ironia”, que consistia em perguntar algo a seu interlocutor, fingindo nada saber. Diante do oponente, Sócrates, com hábeis perguntas, desmonta as certezas até que o outro reconheça a própria ignorância. A segunda etapa, a maiêutica, consistia em dar à luz a novas ideias. Ou seja, após destruir o saber meramente opinativo (a dóxa) em diálogo com seu interlocutor, dava início à procura da definição do conceito, de modo que o conhecimento se manifestasse “de dentro” de cada um. A filosofia de Sócrates tinha como objetivo filtrar as opiniões do senso comum, conduzindo o indivíduo a encontrar e produzir conceitos universais utilizando-se unicamente da razão. 2.4 Platão e o mundo das ideias A partir de Platão, o fenômeno do conhecimento assume novo patamar, como teoria do conheci- mento, embora o filósofo não usasse essa termino- logia, que só foi criada na modernidade. Discípulo de Sócrates, esse filósofo grego construiu o edifí- cio de sua filosofia com base na chamada teoria das ideias, onde sistematiza as formas e os graus de conhecer e as diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão. Tomando como ponto de partida o seu mais famoso texto de A República, livro VII, em que é relatada a Ao proferir a frase "Só sei que nada sei", Sócrates reconhece a sua própria ignorância. Através do paradoxo socrático, o filósofo negava categoricamente o posto de professor ou grande sabedor de qualquer conhecimento. A lógica é simples: ao afirmar que nada sabe, ratifica o fato de que também nada tem para ensinar. Outro filósofo, Nicolau de Cusa, anos mais tarde, durante o Renascimento, reconhece o gesto de humildade intelectual e o denomina de douta ignorância. Saiba Mais! Figura 6 – Platão Fonte: https://static.mundoeduca- cao.bol.uol.com.br/mundoeduca- cao/conteudo_legenda/e0eb9c8f- c33d8750939a00adf9381ba9.jpg 22 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia famosa “alegoria da caverna”, veremos como Platão propõe o seu famoso dualismo, a partir da distinção das quatro formas do conhecimento, que vão do grau inferior a superior: crença, opinião, raciocínio, e intuição intelectiva. Os dois primeiros formam o que ele chamou de conhecimento sensível; os dois últimos, o conhecimento inteligível. O mundo sensível são os primeiros graus do conhecimento, pois eles nos dão a conhecer somente as coisas perceptíveis pelas faculdades humanas: tato, paladar, olfato, audição e visão. É a fase do conhecimento falho, já que os sentidos só nos dão a conhecer as aparências e as imagens das coisas, e não a essência delas. Por outro lado, o conhecimento inteligível, que será para Platão o grau máximo do conhecimento, representa o conhecimento verdadeiro, a essência das coisas, a ideia universal. É importante observar, no entanto, que o conhecimento inteligível, para Platão, só pode ser alcançado pela dialética ascendente, que fará a alma se elevar das coisas múltiplas e multáveis as ideias unas e imutáveis. Essa dialética se daria exatamente pelo exercício do filosofar, do exercício da razão. Nesse processo, as ideias gerais são hierarquizadas, e no topo está à ideia do Bem, a mais alta perfeição e a mais universal de todas. A dialética consiste, nesse sentido, no trabalho de examinar as teses contrárias sobre um mesmo assunto, a fim de purificar as ideias e se elevar ao mais alto conhecimento. A partir dela, deve-se abandonar as teses falsas e conservar a verdadeira. 2.5 O Conhecimento em Aristóteles Diferentemente de Platão, que concebia o conhecimento como abandono de um grau inferior por um grau superior (conforme vimos em sua teoria das ideias), para Aristóteles nosso conhecimento é formado por acúmulo das informações trazidas por todos os graus do conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição, de modo que, em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o intelectual, há uma continuidade entre eles. Para Aristóteles, o dualismo platônico entre mundo sensível e mundo das ideias era um artifício dispensável para responder à pergunta sobre o conhecimento verdadeiro. Nossos pensamentos não surgem do contato de nossa alma com o mundo das ideias, mas da experiência sensível. “Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos”, dizia o filósofo. 23 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Isso significa que não posso ter ideia de um cavalo sem ter observado um diretamente ou por meio de uma pesquisa científica. Sem isso, “cavalo” é apenas uma palavra vazia de significado. Igualmente vazio ficaria nosso intelecto se não fosse preenchido pelas informações que os sentidos nos trazem. Mas nossa razão não é apenas receptora de informações. Aliás, o que nos distingue como seres racionais é a capacidade de conhecer. E conhecer está ligado à capacidade de entender o que a coisa é no que ela tem de essencial. Por exemplo, se digo que “todos os cavalos são brancos”, vou deixar de fora um grande número de animais que poderiam ser considerados cavalos, mas que não são brancos. Por isso, ser branco não é algo essencial em um cavalo, mas você nunca encontrará um cavalo que não seja mamífero, quadrúpede e herbívoro. O conhecimento verdadeiro para Aristóteles é a ciência, ou seja, o conhecimento pelas causas. Para ele, é este conhecimento que torna possível superar os enganos da opinião e compreender a natureza da mudança, do movimento. O filósofo aponta três distinções básicas – substância, essência e acidente – como pressupostos necessários e fundamentais para a formação do conhecimento. A substância é “aquilo que é por si mesmo” e o suporte dos atributos. Os atributos podem ser essenciais ou acidentais: a essência é o atributo que torna a substância o que ela é; o acidente é o atributo que a substância pode ter ou não, sem deixar de ser o que é. Por exemplo, a essência de uma flor não está na sua cor, mas na sua essência, ou seja, naquilo que a sua existência foi destinada. A cor, neste sentido, seria um acidente que não mudaria sua essência se ela fosse vermelha ou rosa. Além disso, conhecer para Aristóteles é conhecer o ser enquanto matéria e forma, já que todos eles são dotados dessas suas propriedades. A matéria é o princípio indeterminado de que o mundo físico é composto, é aquilo de que é feito algo, enquanto a matéria é pura passividade e contém a forma em potência; a forma é o princípio inteligível, a essência comum aos indivíduos da mesma espécie pela qual todos são o que são. Figura 7 – Aristóteles Fonte: https://s1.static.brasilescola. uol.com.br/be/conteudo/images/ar- istoteles.jpg 24 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia A teoria do conhecimento em Aristóteles se encontra, portanto, na compreensão do que ele designou por substância, essência, acidente, matéria e forma uma vez que aí seria o meio pelo qual nós podemos formar nossa compreensão sobre a realidade material. Figura 8 – Platão e Aristóteles em recorte do plano central da Escola de Atenas, pintura renascentista, de Rafael Sanzio Fonte: https://voyager1.net/wp-content/uploads/2017/09/Escola-de-Atenas-de-Rafael.jpg Atenção Na imagem a cima, a “Escola de Atenas”, observe no plano central, Aristóteles, do lado direito do espectador, e Platão, do lado esquerdo. A atitude dos dois pensadores na pintura é emblemática. Ela apresenta as diferenças entre suas ideias quanto ao conhecimento empírico e metafísico, pois Platão aponta o dedo para cima, como quem quer dizer que o conhecimento está no mundo das ideias, enquanto segura o seu diálogo Timeu, que fala da formação da natureza no plano ideal e no plano material (imperfeito).Aristóteles, por sua vez, com sua mão espalmada para baixo e segurando a sua Ética (livro de filosofia prática), parece sinalizar que se deve olhar também para o mundo prático, sensorial e material. 25 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 2.6 Os filósofos modernos e o surgimento da teoria do conhecimento Como disciplina filosófica independente, não se pode falar de uma teoria do conhecimento nem na Antiguidade nem na Idade Média, embora já tenhamos encontrado numerosas reflexões epistemológicas na filosofia antiga, especialmente em Platão e em Aristóteles. São, porém, investigações epistemológicas que ainda estão completamente embutidas no contexto ontológico. Entretanto, é só na Idade Moderna que a teoria do conhecimento aparece como disciplina independente, tendo como fundador o filósofo inglês John Locke, a partir do seu Ensaio sobre entendimento humano. Mas são vários os aspectos a se considerar a culminância da teoria do conhecimento na modernidade. Poderíamos começar destacando a revolução científica que quebrou o modelo de inteligibilidade do aristotelismo e, a filosofia passando a se constituir com bases científicas, valorizando, acima de tudo, o racionalismo e a confiança no poder da razão para o alcance do conhecimento verdadeiro. Além disso, a questão do método passa a ser uma das expressões mais claras desse racionalismo e de toda a modernidade. Diferentemente dos filósofos que partiam do problema do ser, a modernidade volta- se para as questões do conhecer. O foco agora é desviado para a consciência da consciência. Se antes era perguntado se “existe alguma coisa?”, na modernidade o foco passa da pergunta sobre o que as coisas são, para, sobre como nós podemos eventualmente conhecê-las. Portanto, as perguntas agora são outras: “O que é possível conhecer?”; “Qual o critério de certeza?”. Segundo Johannes Hessen em Teoria do conhecimento (2000), o campo de investigação da teoria do conhecimento, na modernidade, trata propriamente do modo pelo qual o sujeito se apropria intelectualmente do objeto. Assim, o lugar central é o do sujeito na relação com o objeto. Daí que se pode caracterizar o conhecimento pelo ato ou o produto: o primeiro diz respeito à relação que se estabelece entre sujeito cognoscente Sugestão de vídeo Para auxiliá-lo na compreensão da temática sobre o conhecimento na Filosofia, assista à videoaula Teoria do conhecimento – uma introdução que está no material básico. Acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=FLmXYm8oVsY 26 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia e o objeto cognoscível. O objeto e algo fora da mente, mas também a própria mente, quando nos apropriamos intelectualmente dele. O produto, por sua vez, é o resultado do ato de conhecer, ou seja, o conjunto de saberes acumuladores que adquiridos nessa relação. A filosofia moderna se torna, desse modo, marcada pela visão antropocêntrica, exatamente por colocar o sujeito e sua consciência no centro da investigação e não mais o objeto ou Deus, como foi na Idade Média em que conhecemos por iluminação divina. As soluções apresentadas a esse problema deram origem a duas grandes correntes filosóficas, uma com ênfase na razão, e outra nos sentidos. Dessas correntes vários pensadores como, Francis Bacon, René Descartes, John Locke, David Hume, e mais tarde Immanuel Kant ficaram conhecidos pelas discussões em torno do processo de aquisição do conhecimento. Dentre esses, destacaremos o pensamento de Descartes, Locke e Kant, o qual tornará possível apresentar alguns dos principais paradigmas epistemológicos desenvolvidos no período moderno da Filosofia. 2.6.1 O racionalismo de Descartes René Descartes e considerado o pai da filosofia moderna, porque, entre outras razões, foi o pensador que torna a consciência o ponto de partida ao enfatizar a capacidade humana de construir o próprio conhecimento. Pode-se dizer que seu pensamento se assenta basicamente, em três pilares centrais: a na visão racionalista, que coloca a razão como principal ferramenta para a aquisição do conhecimento verdadeiro; no princípio da dúvida metódica, como ponto de partida para se livrar de todo conhecimento que não seja indubitável; e estabelece o método científico como princípio para bem conduzir a razão, evitar o erro e alcançar o conhecimento seguro e indubitável. O propósito do pensamento cartesiano pode ser resumido de modo muito sucinto em encontrar um método tão seguro que o conduzisse à verdade indubitável. Conforme Figura 9 – René Descartes Fonte: https://static.todamateria.com.br/up- load/de/sc/descartes3.gif Saiba Mais! Racionalismo pode ser definido como a doutrina que, por oposição ao ceticismo, atribui à razão humana a capacidade exclusiva de conhecer e de estabelecer a Verdade. 27 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia nos mostra em Discurso do método, Descartes procura no ideal matemático, isto é, em uma ciência que seja racional e universal, os princípios de sustentação racional para o método. Com o auxílio do tipo de conhecimento utilizado na matemática (como sabemos, a matemática é um conhecimento inteiramente dominado pela inteligência, e não pelos sentidos), o filósofo moderno estabelece quatro regras básicas: a da evidência; da análise; da ordem e da enumeração. Com tais regras, o objetivo é buscar uma verdade primeira que não possa se posta em dúvida. Primeiramente, procede duvidando de tudo: do testemunho dos sentidos, das afirmações do senso comum, dos argumentos da autoridade, das informações da consciência, das verdades deduzidas pelo raciocínio, da realidade do mundo exterior, da realidade do seu próprio corpo, enfim, de tudo que havia aprendido até então. Com isso, estabelece a dúvida metódica, como meio de averiguação técnica, para avaliar se não restaria algo que fosse duvidoso.2 Após ter colocado em suspensão até mesmo a própria existência, Descartes chega, então, à primeira certeza que servirá, também, como ponto de partida para as demais investigações: o “cogito ergo sum” (penso, logo existo). Esse é o momento em que o filósofo interrompe a cadeia de dúvidas, já que o limite é o próprio ser que dúvida. Ou seja, a certeza de que se pode duvidar de tudo, mas não se pode duvidar da própria dúvida. Eis o raciocínio hipotético e dedutivo: se, portanto, existe a dúvida, é porque existe alguém que está duvidando. Aí se encontra a primeira intuição: “penso, logo existo”, que confere a primeira certeza admitida por ele. Com isso Descartes julga estar diante de ter encontrado uma ideia que seja clara e distinta, a partir da qual seria reconstruído todo o saber. Estabelece, assim, o edifício que embasará a busca pelo conhecimento verdadeiro. 2.6.2 O empirismo de John Locke 2 Exatamente por isso, não se pode caracterizar Descartes como um cético, já que o objetivo da dúvida metódica é inteiramente técnica, isto é, se estabelece como um meio de averiguação para aquilo que não se pode duvidar. Saiba Mais! O empirismo é, juntamente com o racionalismo, uma das grandes correntes formadoras da filosofia moderna. Se por um lado o racionalismo de Descartes explicava a conhecimento humano a partir da existência de ideias inatas, presente no indivíduo, por outro lado, os empiristas pretendiam dar uma explicação do conhecimento a partir da experiência, eliminando, portanto, a noção de ideias inatas. 28 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Locke foi o primeiro pensador a elaborar uma teoria do conhecimento como disciplina filosófica na obra Ensaio sobre o entendimento humano, cujo objetivo é saber “qual é a essência, qual a origem, qual o alcance do conhecimento humano”. Mas pode-se dizer que a centralidade do seu pensamento se assenta sob a ideia de que a mente é como uma tábula rasa, que é a partir da experiência humana no mundo que começa a ser construído todos os nossos conhecimentos e saberes. Nesse sentido, pode-seafirmar que, para Locke, o conhecimento começa apenas a partir da experiência sensível. Daí a sua crítica a doutrina inatista de Descartes afirmando que não existe conhecimento na mente humana anterior a experiência. Ao investigar as origens das ideias, ao contrário dos racionalistas, que privilegiam as verdades da razão, Locke afirma que duas são as fontes possíveis para nossas ideias: a sensação e a reflexão. A primeira é tudo aquilo que percebemos pelos sentidos, pelas faculdades sensíveis. A segunda é a nossa capacidade intelectual de processar, internamente, os dados da percepção. Para Locke, a razão reúne as ideias, as coordena, compara, distingue, compõe, e as põe em conexão formando conhecimentos e novas ideias, simples e complexas. As ideias simples (as que vêm da sensação), combinadas entre si, formam as ideias complexas, que são, por exemplo, as da identidade, dos conceitos, da existência, substância, causalidade etc. Assim se dá, portanto, a construção do conhecimento. É o intelecto que constrói as ideias que são provenientes da sensibilidade. 2.6.3 Kant e o criticismo Outro pensador que a tradição costuma atribuir grande relevância em relação à teoria do conhecimento é o filósofo alemão, Immanuel Kant. Pensador tardo moderno, considerado um dos principais difusores do Iluminismo, Kant é também um que se encarregou de pensar o fenômeno de como é possível conhecer. Situado no embate Figura 10 – Retrato de John Locke por Godfrey Kneller (1697) Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Fichei- ro:JohnLocke.png 29 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia entre racionalismo e empirismo, e influenciado pela ciência de Newton, Kant estava atento às dificuldades relativas à natureza do nosso conhecimento, por isso debruçou- se intensamente sobre o assunto em sua obra Crítica da razão pura. Figura 11 – Kant Fonte: https://nova-acropole.org.br/wp-content/uploads/2019/02/im- manuel-kant.jpg Com uma Filosofia que mais tarde ficou caracterizada pelo criticismo, justamente por ter colocado a pergunta “Qual é o valor dos nossos conhecimentos e o que é conhecimento?”, a Crítica da razão pura é onde defende a proposta de uma Filosofia crítica, visando superar a dicotomia entre racionalismo e empirismo, entre Descartes e Locke, e examinar as condições de possibilidade da experiência humana do real e fundamentar nossas pretensões ao conhecimento (MARCONDES, 2007). A partir da tentativa de superar esta dicotomia, Kant explica que o conhecimento é construído de algo que recebemos de fora, da experiência (a posteriori), e algo que já existe em nós mesmos (a priori) e, portanto, anterior a qualquer experiência. Ao contrário do que propunha a filosofia tradicional, que os objetos de nosso conhecimento devem conformar à natureza à nossa estrutura cognitiva, e não o conhecimento à natureza do objeto, Kant propõe que o conhecimento é proveniente de duas categorias: matéria e forma. A primeira é o que nos vem de fora; a segunda é o que já está em nós. 30 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia O essencial em Kant é compreender, enfim, que em sua teoria do conhecimento a sensibilidade é a faculdade receptiva, pela qual obtemos as representações exteriores, enquanto o entendimento é a faculdade de pensar ou produzir conceitos. Isso significa que para conhecer as coisas, precisamos da experiência sensível (proveniente da matéria), mas também das formas do entendimento, que, por sua vez, são a priori e condição da própria existência, por onde serão organizadas as ideias. Assim, o conhecimento em Kant não se dá por adequação entre sujeito e objeto, mas por construção, fruto da mediação entre sensibilidade e entendimento, fruto da matéria e forma. Reflexão! Para refletir Como distinguir o conhecimento filosófico de outras formas de conhecimento como, por exemplo, conhecimento mítico, senso comum, conhecimento religioso e conhecimento científico? Na sociedade atual, como informação e conhecimento interagem? Como podemos observar, a questão do conhecimento se apresenta na filosofia desde que suas primeiras questões foram colocadas, mas apenas no período da modernidade é que ela se tornou uma disciplina específica na filosofia, e também em outras áreas do conhecimento humano. Ainda hoje quando pensamos nestas questões: “o que é o conhecimento?”; “quais as tipos de conhecimento?”; “o que é possível conhecer?” etc., nos encontramos diante de temáticas que fazem parte do desenvolvimento do ser humano, uma vez que é por meio destas questões e a interação do homem com a realidade que formamos nossa compreensão de mundo, produzindo e acumulando conhecimentos e saber. Conhecer é, portanto, elucidar, dar luz, clarear a realidade por meio de nossas capacidades especificamente humanas, os sentidos e principalmente a razão. Assim, seja por meio de questões ontológicas ou epistemológicas, o conhecimento se tornou a grande busca do ser humano tanto na Antiguidade, quanto na Modernidade e até mesmo no presente. 31 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia RESUMO Esta Unidade abordou como a questão do conhecimento surgiu na história do pensamento filosófico como um problema que foi sendo abordado de diferentes modos. Assim, buscou-se compreender as diferenças fundamentais da abordagem dos pensadores na Antiguidade e na Modernidade. Verificou-se, deste modo, que as discussões relativas ao conhecimento, foram desenvolvidas a partir de importantes áreas da filosofia que ficaram conhecidas como o estudo da metafísica, da ontologia e da teoria do conhecimento. Tais discussões foram importantes para o desenvolvimento das várias correntes e paradigmas científicos. CASSIRER, E. El problema del conocimiento. México: FCE, 1974. REZENDE, Antonio (org.). Curso de filosofia: para professores e alunos dos cursos de segundo grau e de graduação. 12. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. DURANT, Will. A história da filosofia. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores). HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. João Virgílio Gallerani Cuter. São Paulo: Martins fontes, 2000. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. PRÉ-SOCRÁTICOS, Col. “Os Pensadores”. Seleção de textos e supervisão do prof. Dr. José Cavalcante de Souza, São Paulo: Abril Cultural, 1978. Vol.1. PERINE, Marcelo. Ensaio de iniciação ao filosofar. São Paulo: Loyola, 2007. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges. São Paulo: Difel, 2002. O HOMEM E A RELAÇÃO COM O MUNDO: ética, sociedade e educação O HOMEM E A RELAÇÃO COM O MUNDO: ética, sociedade e educação Discutir as dimensões das diversas relações entre homem e sociedade na perspectiva da antropologia fi losófi ca. OBJETIVO Figura 12 – Ética, Sociedade e Educação Fonte: https://www.ghc.com.br/fi les/img.ptg.2.1.01.11504.jpg 33 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia 3.1 Introdução Desde os gregos da Antiguidade o convívio em sociedade sempre exigiu uma educação para as regras e normas estabelecidas. Por isso, tanto a ética quanto a moral surgem como parte integrante ao processo de educação (Paideia) grega, cujo objetivo era a formação dos indivíduos para a vida política, consoante à vida em sociedade. Hoje podemos dizer que a instituição educacional é uma das mais importantes e responsáveis pela formação ética do indivíduo, para exercer o papel de cidadão membro da sociedade. Mas, será que a instituição educacional tem conseguido desempenhar seu papel na formação integral do indivíduo como um membro da sociedade? Nos últimos anos muito se tem discutido sobre a importância da ética no processo formativo dos indivíduos para vida em sociedade, que tem sido objeto de discussão de muitos filósofos, educadores e teóricos de diversas áreas do conhecimento. Particularmente,esse debate tem se intensificado por vários motivos, merecendo aqui destacar, entre vários outros, o desafio da educação formar indivíduos que sejam, ao mesmo tempo, reflexivos e autônomos, porém sem a perda dos laços de solidariedade social. Esse fator tem concorrido para ampliar a reflexão sobre a relação entre ética e educação com vistas para o caráter social de ambas, considerando-as como um processo por meio do qual se dá o próprio processo de constituição dos humanos. Nessa perspectiva, partimos da ideia de que a educação contribui para que os homens construam suas relações buscando referência nos valores defendidos na vida social, os quais ganham consistência em contextos sócio-históricos específicos. Nesse sentido, o objetivo desta aula é desenvolver alguns aspectos da relação entre ética e educação, como elementos que concorrem para a educação concebida como prática social. 3.2 Ética e Educação no mundo grego A ética na educação, além de formar, também constrói o indivíduo, permitindo que o mesmo se compreenda como um membro da sociedade, assumindo, dessa forma, as responsabilidades que lhe cabem como cidadão. A ética não é apenas uma teorização 34 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia do agir moral, ela é uma prática, sobretudo reflexão, que está vinculada diretamente à ação humana na sociedade. Logo, ela é vivenciada em contextos diferentes na sociedade, como por exemplo, no político, no social, no econômico e no educacional. Assim, contribui de uma forma abrangente no que se refere a uma perspectiva coletiva e não puramente individual. Desde os gregos aprendemos que a ética inserida na educação desenvolve no indivíduo a capacidade de estabelecer relações entre esses conhecimentos e habilidades, orientando-o para a prática da cidadania, que será o elemento fundamental para o equilíbrio social, em vista de uma sociedade justa. 3.3 Ética e moral: genealogias e definições conceituais Etimologicamente, a palavra ética vem da palavra grega ethos, cuja grafia é concebia de dois modos em uso: no primeiro, ethos era usado para designar o “modo de ser” ou “caráter” do indivíduo; no segundo, referia-se aos “costumes” ou “hábitos” comuns praticados. Criada pelos filósofos gregos no século VI a.C, o ethos representava o lugar que abrigava os indivíduos cidadãos responsáveis pelo destino da polis. Nessa morada, os homens sentiam-se em segurança. Isso significa que, vivendo de acordo com as leis e os costumes, os indivíduos poderiam tornar a sociedade melhor e encontrar nela sua proteção, seu abrigo seguro. A ética aparece, assim, como resultado das leis determinadas pelos costumes e das virtudes e hábitos gerados pelo caráter dos indivíduos. Os costumes representam, então, o conjunto de normas e regras adquiridas por hábito, enquanto a permanência destes define a caráter virtuoso da ação do sujeito. A excelência moral seria não apenas determinada pelas leis da cidade, mas também pelas decisões pessoais que geram as virtudes e os bons hábitos. Saiba Mais! Os gregos utilizavam a palavra polis para se referir a cidade ou ao Estado. Antenas ficou muito famosa por ter sido a principal cidade grega a desenvolver a Filosofia e junto com e ela a política. É interessante, ainda observar, o termo política também foi gerado da palavra polis. A política para os gregos era uma atividade muito importante e deveria ser exercida por todas os cidadãos. Assim, o conceito de cidadania, além de estar ligado ao conceito de ética, também se refere a atividade política. 35 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia O ethos grego, mais tarde traduzido pelos romanos, passou a corresponder ao termo latino mos (mores), do qual deriva o termo moral. Ética e moral são palavras que significam, em sua origem, a mesma coisa, pois dizem respeito ao modo como os indivíduos devem agir em relação ao outro no espaço em que vivem. Entretanto, hoje podemos estabelecer uma diferença entre ambas, pois a ética se constitui como uma parte da filosofia que trata da reflexão sobre a moral em geral, ou da moralidade de cada ser humano, em particular. A ética é para muitos, definida como a “ciência da moral” (VÁSQUEZ, 2011). Isso significa que a moral aparece atualmente como um objeto de reflexão da ética. Desse modo, enquanto à ética compete estudar os elementos teóricos que nos permitem entender a moralidade do sujeito, a moral diz respeito à esfera da conduta, do agir concreto de cada um. Podem-se resumir tais diferenças da seguinte forma: a ética revela-se como reflexão (theoria), já a moral diz respeito à ação (práxis). 3.3.1 Ética: individualidade, coletividade e educação O mundo do ethos envolve a individualidade (subjetividade) e a coletividade (intersubjetividade) dos seres humanos dotados de sentimento (pathos) e razão (logos). Nesse sentido, a prática do bem ou da justiça estaria ligada ao respeito às leis da polis (heteronomia) e à intenção individual (autonomia) de cada sujeito. Isso significa que existem fatores externos (a lei, os costumes) e internos (as convicções, os hábitos) que determinam o comportamento dos cidadãos. Nesse sentido, a moral, definida como um conjunto de regras, princípios e valores que determinam a conduta do indivíduo, teria sua origem nas virtudes ou ainda na obrigação de o sujeito seguir as normas que disciplinam o seu comportamento. Saiba Mais! Na Filosofia grega, o termo virtude assume um papel muito importante, pois designa um tipo de qualidade que exige dos indivíduos a capacidade de realizar uma ação ou atividade com excelência. Na ética, na política e na educação a virtude é o que deferência a atividade nobre de uma atividade qualquer. Uma ação é considerada virtuosa quando é praticada com excelência, quando expressa a máxima qualidade do indivíduo que a desenvolve, ligado à noção de cumprimento do propósito ou da função a que o indivíduo se destina. 36 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia A necessidade que impõe a cada ser humano o dever de respeitar os costumes e as normas da sociedade revela a importância que o ethos, ou aquilo que hoje chamamos de moral, assume em nossas vidas. Como o homem, em seu agir moral, é, ao mesmo tempo, produto da natureza e da cultura, o ethos (ou moral), segundo alguns pensadores gregos (Platão, Aristóteles, Epicuro), serviria para regular os apetites humanos e controlar as suas inclinações e instintos mediante o uso da razão (logos). Eis porque ela surge quando o homem supera sua natureza instintiva e se torna membro de uma coletividade regida por leis racionais. Ora, para tais filósofos, nenhuma comunidade humana pode sobreviver sem o mínimo de regras ou padrões de comportamento, ou seja, sem um código de condutas. O referido código normativo representa os ensinamentos que orientam nossas ações diante do mundo e, sobretudo, em face do outro. A ética, com efeito, trata do comportamento do homem, da relação entre a sua vontade e a obrigação de seguir uma norma, do bem e do mal, do que é justo e injusto, da liberdade e da necessidade de respeitar o próximo. A ética, enquanto campo de estudo e reflexão, revela que nossas ações têm efeitos na sociedade e que cada homem deve ser livre e responsável por suas atitudes. Todavia, no mundo grego a boa conduta poderia também ser determinada pela educação (Paideia), na medida em que o processo educacional forneceria as regras e ensinamentos capazes de orientar os julgamentos e decisões dos indivíduos no seio de sua comunidade. Com os gregos, a educação se configura como um Saiba Mais! É comum considerar que há dois períodos na história da educação grega: o período antigo, que compreende a educação homérica e a educação antiga de Atenas e de Esparta, a Paideia, e o novo período, o da educação do "Século de Péricles". Período áureo da cultura grega, ele inicia-se com os sofistas e desenvolve-se com os filósofos/ educadores Sócrates, Platão e Aristóteles. Seguir-se-ádepois o período helenístico, de decadência política, em que a Grécia é conquistada, primeiro pelos Macedónios e depois pelos Romanos. Atenas perde, então, a sua posição de centro cultural do mundo em favor de Alexandria. O modelo educativo que existia em Atenas antes do aparecimento dos sofistas, por volta do séc. V a.C., era a Paideia. O seu ideal residia numa educação humanista, não especializada nem marcadamente técnica. A Paideia era entendida como cultura geral, ou formação geral que convinha ao homem, enquanto homem livre e cidadão. Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/sofistas/ educativo.htm 37 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia elemento fundamental para a constituição da sociabilidade. Assim, enquanto os costumes determinam as normas e valores a serem seguidas e transmitidas pelos sujeitos morais, à educação se impõe como um importante instrumento para o desenvolvimento moral do indivíduo. Isso porque, no universo da polis, as virtudes que determinam a excelência moral dos agentes sociais poderiam ser transmitidas pelos ensinamentos. A educação estaria, por conseguinte, na base do esforço para fazer do indivíduo um homem bom e do sujeito um cidadão exemplar. A formação moral serve também de auxílio à formação do indivíduo em sua dimensão política. Assim, o ethos não apenas representa o instrumento fundamental para a instauração de um viver em conjunto, serve também de alicerce à construção do espaço da política. Disso se conclui que ética e política são atividades que se relacionam e se complementam, mas também a educação e sociedade, à medida que o foco da educação é a prática social, como veremos. 3.4 Sentido e alcance da educação como prática social Tão importante quanto à ética para os gregos antigos, a educação ocupa lugar central no que diz respeito ao processo de formação integral dos indivíduos. Mas hoje podemos dizer que a instituição educacional é uma das e, talvez, a mais importante responsável pela formação ética do indivíduo para exercer o papel de cidadão membro da sociedade. Mas, será que a instituição educacional tem conseguido desempenhar seu papel na formação integral do indivíduo como um membro da sociedade? E o que seria educação, nesse processo? Qual o papel eminente da educação para a sociedade? Do ponto de vista etimológico, a palavra latina educare é a raiz do vocábulo educação (como hoje o entendemos), e significa o ato de alimentar ou criar. Nesse sentido, Figura 13 – Educação grega Fonte: https://1.bp.blogspot.com/-KjsWdWkU- 8VA/XI1FR7n96PI/AAAAAAAAOLQ/539seafV- v9A_1GUV1OB0q2zuz20QZEz-wCLcBGAs/ s1600/paideia.jpg 38 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia educação pode ser compreendida apenas como instrução ou mera aquisição de informações (alimentar o outro com informações), sem uma reflexão crítica do conhecimento acumulado. Em uma segunda acepção, educação significa a formação integral do ser humano (educere) sendo, assim, o processo que indicaria o pleno desenvolvimento das potencialidades do homem. Esse outro sentido implica considerar o educando como um sujeito ativo que faz parte de determinado grupo social, e que acumula, sistematiza e reelabora conhecimentos, levando em conta as relações que estabelece com os demais membros desse mesmo grupo. Nessa perspectiva, a educação pode ser concebida como uma prática social que ocorre em um contexto histórico, de forma relacionada à maneira como os homens produzem sua própria existência, possuindo múltiplos sentidos e alcances para o indivíduo e a coletividade. De fato, em sentido amplo nenhum indivíduo escapa da educação, pois ela ocorre em todos os espaços sociais, sendo um deles o escolar. Assumindo um real significado para os grupos humanos que o vivenciam, a educação revela um caráter eminentemente social, considerando o contexto no qual se realiza. Nessa lógica, segundo Rodrigues Brandão em O que é educação (1996, p. 23), ela “[…] é um dos principais meios de realização de mudança social ou, pelo menos um dos recursos de adaptações das pessoas, em um mundo em mudança […]”. Também é relevante destacar que, como prática social, a educação sempre está fundada em uma visão de mundo, de conhecimento, e de homem. Essa visão assume um caráter de transformar ou não frente à realidade social, o que acaba por influenciar diretamente o processo formativo dos indivíduos. Assim, sempre há uma intencionalidade na prática pedagógica, bem como nas ações de professores e alunos. Essas ações são orientadas por concepções que se originam em função de determinados condicionantes de natureza política, econômica, social, cultural etc. Mergulhada em avanços tecnológicos e científicos de grande alcance, a sociedade contemporânea é marcada por perplexidades e incertezas diversas. Todavia, paradoxalmente, essa mesma sociedade convive com um expressivo crescimento de problemas graves, que assustadoramente assombram o viver comum da grande maioria das pessoas. Cotidianamente, deparamo-nos com manchetes sobre violência, 39 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia incluindo violência física, intrafamiliar, moral, psicológica, sexual, sem falar nos constantes números de homicídios, e outros tantos acontecimentos que nos fazem crer que vivemos em tempos difíceis e assustadores. Além disso, os tempos não são apenas difíceis no que corresponde ao aumento exponencial da violência. São tempos difíceis também pelo agravamento das desigualdades sociais, pela deterioração de nosso sistema ecológico, pelas relações confusas que constituem um mundo globalizado e individualista. Enfim, pela ditadura do prazer regida pelo consumismo desenfreado da idolatria do mercado. Dentre estes problemas, podemos mencionar ainda questões diversas, como: as discussões sobre justiça social tanto no âmbito nacional quanto no mundial; as políticas relativas aos direitos dos grupos particulares ou marginalizados; questões acerca das leis da imigração, dos asilos para idosos e dos direitos dos estrangeiros; a permissão ou não permissão da eutanásia; os direitos dos animais; os avanços da ciência e da tecnologia, entre outras que, efetivamente, assolam o mundo de hoje. Neste contexto, cabe-nos perguntar: O que significa educar? Que valores éticos devem ser defendidos em um mundo que, de repente, ficou pequeno e globalizado, considerando o avanço do conhecimento e suas repercussões sobre a vida das pessoas? Para refletir Propor analisar a relação entre Ética e Educação em um encontro de escolas, de educadores e educadoras traz interrogações como: • A formação ética da infância, da adolescência, da juventude faz parte da formação humana? Faz parte da Educação? • De quem é a responsabilidade social, política, pedagógica da formação ética? Das famílias, das escolas, da docência, da sociedade ou do Estado? • A função das escolas, dos currículos, dos docentes seria apenas instruir, capacitar no domínio das competências necessárias ao domínio dos conhecimentos, das ciências…? Perguntas como essas reforçam a convicção de que, no mundo atual, a educação vê-se diante de diversos problemas, frente aos quais precisa se posicionar de forma crítica. Dentre esses problemas, merecem destaque a formação para a cidadania plena, a necessidade do respeito à diversidade cultural, a democratização tanto da sociedade quanto do próprio espaço escolar e o combate à violência. 40 C ur so d e Li ce nc ia tu ra e m F ilo so fia Particularmente, em relação ao último item, Marilena Chauí (2000) enfatiza que os atos de violência cometidos contra os homens se caracterizam como ações que retiram dos indivíduos sua autonomia, coisificando-os, desumanizando-os. Situando o debate no âmbito da formação cultural brasileira, a autora ressalta que nossa sociedade revela também diversas formas de violência simbólica que, [...] marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que