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Disciplina | Introdução Importância do Estudo da Hermenêutica| 1 DISCIPLINA HERMENÊUTICA BÍBLICA CONTEÚDO Abordagens Hermenêuticas Hermenêutica Bíblica | Sumário Importância do Estudo da Hermenêutica| 2 A Faculdade Focus se responsabiliza pelos vícios do produto no que concerne à sua edição (apresentação a fim de possibilitar ao consumidor bem manuseá-lo e lê-lo). Nem a instituição nem os autores assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas, a pessoa ou bens, decorrentes do uso da presente obra. É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos xerográficos, fotocópia e gravação, sem permissão por escrito do autor e do editor. 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CDD 121 ed.: 121.6 http://www.faculdadefocus.com.br/ mailto:tutoria@faculdadefocus.com.br http://www.faculdadefocus.com.br/ Hermenêutica Bíblica | Sumário Importância do Estudo da Hermenêutica| 3 Sumário Sumário ----------------------------------------------------------------------------------------------------- 3 Introdução -------------------------------------------------------------------------------------------------- 4 1 A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas 4 1.1 Importância do Estudo da Hermenêutica ---------------------------------------------------------------- 10 2 A Hermenêutica Moderna ------------------------------------------------------------------------ 13 2.1 Fundamentos de Schleiermacher--------------------------------------------------------------------------- 14 3 A Hermenêutica do Discurso -------------------------------------------------------------------- 17 3.1 Fundamentos de Paul Ricoeur ------------------------------------------------------------------------------ 17 4 A Hermenêutica Histórico-Crítica -------------------------------------------------------------- 19 4.1 O Dilema do Método Histórico-Crítico -------------------------------------------------------------------- 21 4.2 Um Método Alternativo -------------------------------------------------------------------------------------- 24 5 A Hermenêutica Feminista ----------------------------------------------------------------------- 25 5.1 A Mulher na Igreja ---------------------------------------------------------------------------------------------- 27 Conclusão -------------------------------------------------------------------------------------------------- 28 Referências ------------------------------------------------------------------------------------------------ 28 Hermenêutica Bíblica | Introdução Importância do Estudo da Hermenêutica| 4 Introdução A interpretação das Escrituras Sagradas tem sido uma jornada fascinante ao longo da história, moldada por diferentes correntes hermenêuticas que surgiram em épocas distintas. Desde os primórdios da teologia até os debates contemporâneos, a hermenêutica ganhou destaque na compreensão e na aplicação dos textos sagrados. Nesta unidade, exploramos a importância do estudo da hermenêutica, destacando algumas das principais correntes hermenêuticas ao longo dos séculos, incluindo a hermenêutica moderna, o discurso de Paul Ricoeur, o método histórico-crítico e a hermenêutica feminista. 1 A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Iniciamos o entendimento das escrituras sagradas tomando como base o estudo de Terry (2009) e Baptista (2022). Todo texto inteligível é fundamentado em princípios gerais de pensamento e linguagem. Quando alguém quer compartilhar suas ideias, normalmente recorre a meios de comunicação convencionais que são entendidos por ambas as partes. As palavras, com significados e usos definidos, desempenham esse papel em todos os idiomas, exigindo que os leitores compreendam seu significado para entenderem os pensamentos escritos dos outros. Defendemos que a Bíblia, como qualquer outro livro, deve ser interpretada dentro das operações lógicas da mente humana. A compreensão do propósito principal do autor ao escrever é essencial, pois isso muitas vezes esclarece os detalhes de sua composição. Além disso, é importante estudar a estrutura do texto e discernir a relação lógica entre suas partes, frequentemente comparando-o com outras passagens similares para obter maior clareza. É crucial para o exegeta considerar o contexto histórico e cultural do escritor ao interpretar um texto antigo, permitindo uma compreensão mais profunda do mesmo. Aqui é importante um adendo para esclarecer sobre o termo "exegese", que deriva do grego "ex", traduzido como "fora", e "agein", tendo o sentido "guiar". Essencialmente, denota "guiar para fora", isto é, extrair a intenção das palavras de um texto. Quando aplicado à Bíblia, exegese bíblica refere-se à explicação e interpretação de um ou mais textos bíblicos. O exegeta reformado Uwe Wegner (1998 apud BAPTISTA, 2022) sustenta que a exegese visa ajudar na compreensão dos textos bíblicos, afirmação a qual é corroborada pelos teólogos pentecostais, que Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 5 acrescentam que o objetivo da exegese é permitir que as Escrituras revelem a intenção original do Espírito Santo dentro do seu contexto original. Diante dessas definições e com o objetivo de evitar interpretações superficiais ou equivocadas da Bíblia, evidencia-se que tanto a hermenêutica quanto a exegese oferecem ferramentas que auxiliam na interpretação e aplicação corretas dos textos sagrados. Assim, para que não se atribua ao texto significados que Deus não pretendeu, é fundamental realizar um exame minucioso das Escrituras. Por exemplo, o estudo das línguas bíblicas, dos eventos históricos, das questões sociopolíticas, das peculiaridades culturais e dos recursos literários utilizados no texto sagrado colabora para um entendimento mais preciso do verdadeiro significado das palavras. O objetivo primordial de um autor ao escrever é que seu trabalho seja examinado minuciosamente, pois isso frequentemente esclarece os detalhes da composição. Além disso, é necessário estudar a estrutura do textoe discernir as relações lógicas entre suas partes, muitas vezes através de comparações entre passagens relacionadas. Para o exegeta, é essencial entender o contexto histórico e cultural do escritor para uma interpretação precisa. O estilo e a organização das ideias nos escritos bíblicos refletem o ambiente histórico, geográfico e educacional dos autores. Portanto, compreender seus modismos peculiares de expressão requer conhecimento das instituições e influências que moldaram suas mentes. É importante observar as definições e construções que os autores dão aos seus termos, sem presumir que tentam confundir os leitores. Além disso, é importante analisar a estrutura gramatical das frases, incluindo sujeito, predicado e cláusulas subordinadas, considerando o contexto histórico do autor sempre que possível. Um princípio fundamental na interpretação histórico-gramatical é que as palavras ou sentenças têm um único significado em uma determinada conexão. Ignorar isso leva a incertezas e conjecturas. Geralmente, o significado mais óbvio e claro de uma frase é o verdadeiro. Por exemplo, as narrativas bíblicas devem ser aceitas como registros confiáveis de fatos. Isso se aplica também aos relatos de milagres, que são descritos como eventos reais. Por exemplo, em Josué 5:13 a 6:5, é mais plausível interpretar a aparição a Josué como um evento real, em vez de um sonho ou visão. Assim, por exemplo, em Josué 5:13 a 6:5, somos informados de que um “homem” apareceu a Josué, com uma espada na mão, anunciando-se Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 6 como príncipe dos exércitos do Senhor" (v. 14) e dando instruções para a captura de Jericó. É possível que isso tenha acontecido em um sonho. Também poderia ter sido uma visão sem que Josué estivesse dormindo. Poderia ter sido qualquer uma dessas duas coisas, sem dúvida; mas tal suposição não está em estrita harmonia com os fatos, uma vez que também envolveria a suposição de que Josué sonhou que ela caiu em seu rosto e que ele removeu os sapatos de seus pés, assim como ele olhou e ouviu. As revelações de Jeová geralmente chegam através de visões e sonhos (Números 12:6), mas a interpretação mais simples desta passagem é que o anjo de Jeová apareceu abertamente a Josué e que as ocorrências mencionadas foram todos os atos externos e reais, em vez de visões ou sonhos. (TERRY, 2009, p. 16, tradução nossa). Os relatos da ressurreição de Jesus não podem ser explicados racionalmente fora do contexto histórico-gramatical. Os discípulos inicialmente não compreenderam as previsões de Jesus sobre sua morte e ressurreição, mas depois afirmaram ter visto o Senhor ressuscitado. Eles testemunharam sua ascensão e começaram a pregar sobre Jesus em várias regiões. Paulo corroborou esses relatos, mencionando uma aparição de Jesus a mais de quinhentos irmãos, argumentando que a ressurreição de Cristo é fundamental para a fé cristã. Diante dos fatos apresentados, somos confrontados com uma escolha entre aceitar as declarações dos evangelistas como verdadeiras ou acreditar que eles mentiram deliberadamente, pregando essa falsidade pelo mundo, mesmo enfrentando perseguições e sacrifícios. Observamos que a segunda opção parece irracional diante da sinceridade e do sacrifício dos evangelistas. Ademais, os relatos dos evangelhos fornecem uma base histórica sólida para o surgimento e a expansão do Cristianismo. O método histórico-gramatical também se desenvolve através do estudo do contexto e do objetivo do autor. O contexto refere-se à conexão de pensamento dentro de um documento, tanto imediato quanto remoto. O objetivo é o propósito que o autor tinha em mente ao escrever, que geralmente é declarado explicitamente ou se torna evidente ao longo do texto. O plano de um trabalho é a organização de suas partes, isto é, a sequência de pensamentos sugeridas pelo autor, logo, este plano está intrinsicamente ligado ao seu objetivo. Portanto, demonstra-se a importância de estudar o contexto, o objetivo e o plano de um texto em conjunto. Talvez seja lógico determinar o objetivo primeiro, pois compreender o propósito geral da obra pode ajudar a entender o significado de partes específicas. Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 7 Diversos livros bíblicos têm seus objetivos formalmente declarados pelos autores. Mencionamos, na sequência, alguns exemplos relatados por Terry (2009). Os profetas do Antigo Testamento e outros escritores apresentam claramente os propósitos de seus escritos, o Evangelho de João, por exemplo, declara seu propósito de promover a fé em Jesus como o Filho de Deus. Às vezes, o objetivo de um livro é discernido através de seu conteúdo, como no caso de Gênesis, que inicia com a criação e traça a história humana desde então. Essa análise revela a intenção do autor de registrar a criação e o subsequente desenvolvimento humano. O livro do Êxodo, ao dividir-se em duas partes principais, capítulos 1-18 e 19- 40, narra a saída de Israel do Egito e a legislação no Monte Sinai. A obra inicia com uma descrição intensa da escravidão dos israelitas, destacando as dificuldades enfrentadas sob o faraó e as pragas que devastaram o Egito. Segue-se a redenção de Israel, simbolizada pela Páscoa e evidenciada pelos eventos da fuga e travessia do Mar Vermelho, culminando no cântico de Moisés. Uma terceira parte foca na consagração de Israel, detalhando desde a jornada após o Mar Vermelho até as interações com povos pagãos, a recepção das leis no Sinai, a ordenação do sacerdócio aarônico, a resposta às apostasias, e finalmente a construção do Tabernáculo, marcada pela presença da glória divina. Tendo determinado o objetivo e o plano geral de um livro, estamos mais bem preparados para rastrear o contexto e o aspecto de suas principais partes. O contexto pode ser imediato ou remoto, a depender de uma conexão imediata ou mais distante, como também pode se estender por alguns versículos ou por toda uma seção. Os últimos 27 capítulos de Isaías exibem uma notável unidade de pensamento e estilo; embora sejam suscetíveis a várias divisões. Nos capítulos 52:13 a 53:12, a ilustre profecia messiânica é um período completo em si, apesar de truncada de um modo lamentável pela divisão dos capítulos. Mas, embora esses versículos integrem uma seção claramente definida, não devem ser separados do contexto ou tratados como se não tivessem uma conexão com o que os precede e o que os segue. O livro de Isaías tem suas divisões mais ou menos claramente definidas, mas elas aderem uns aos outros e estão entrelaçados entre si, formando um todo vivo. Observou lindamente Nagelsbach, que "os capítulos 4.9- 57 são como uma guirlanda de flores gloriosas entrelaçadas com fita preta; ou como uma canção de triunfo por cujos tons abafados corre a melodia de um canto fúnebre, mas isso de tal forma que, gradualmente, as cordas sombrias se fundem na melodia da canção triunfal. E ao mesmo tempo, o discurso do profeta é tão organizado com tanta arte Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 8 que a fita de luto passa a formar um grande laço exatamente no seu centro, já que o capítulo 53 constitui o centro de todo o ciclo profético dos capítulos 4-0-56” (TERRY, 2009, p. 20, tradução nossa). Evidentemente, a conexão de pensamento de uma dada passagem depende de uma variedade de considerações; pode ser uma conexão histórica, na qual os fatos ou eventos registrados se conectam em uma série cronológica; pode ser histórico- dogmática, na qual um discurso doutrinal se relaciona com algum fato ou circunstância histórica; pode seruma conexão lógica, na qual os pensamentos ou argumentos se apresentam em ordem lógica; pode ser psicológica, porque dependa de alguma associação de ideias. Não se deve insistir demais sobre a importância de estudar cuidadosamente o contexto, o objeto e o plano, isso porque é completamente impossível a compreensão de muitas passagens da Bíblia sem a ajuda do contexto, já que muitas sentenças derivam toda sua expressão e força da conexão em que se encontram. Assim também, a correta exposição de toda uma seção pode depender da compreensão acerca do objeto e do plano do argumento do escritor. Há partes da Bíblia, como os Provérbios e partes do Eclesiastes, que consistem em aforismos ou provérbios isolados, aparentemente desconectados entre si. Mesmo nos evangelhos, há passagens que parecem não ter relação com o contexto circundante. A comparação com passagens paralelas geralmente lança luz sobre esses textos isolados, tornando palavras e declarações mais compreensíveis. Porém, sem a ajuda de passagens paralelas, certas partes das Escrituras seriam difíceis de entender. Terry também lembra que as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos configuram-se em um mundo em si mesmas. Embora escritas em grande variedade de épocas e dedicadas a muitos temas, tomadas em conjunto constituem um livro que se interpreta a si mesmo. Consequentemente, a antiga regra de que "as Escrituras devem ser interpretadas pelas Escrituras" (TERRY, 2009, p. 21, tradução nossa) é um importantíssimo princípio da hermenêutica sagrada. As passagens paralelas têm sido frequentemente classificadas em duas classes, verbal e real, dependendo se o que constitui o paralelismo consiste em palavras ou em material análogo. Quando uma mesma palavra ocorre em conexões similares ou em referência ao mesmo assunto geral, denomina-se o paralelismo de verbal. Os paralelos reais se referem aquelas passagens semelhantes, nas quais a semelhança ou identidade consiste não em palavras ou frases, mas em fatos, assuntos, sentimentos ou doutrinas. Por vezes, ocorrem subclassificações nos paralelismos desta classe, em Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 9 históricos e didáticos, dependendo se a matéria do assunto consiste em eventos históricos ou em assuntos de doutrina. Mas é possível que essas subclassificações não sejam mais do que refinamentos desnecessários. O intérprete cuidadoso consultará todas as passagens paralelas, mas ao interpretar terá pouca oportunidade de discernir formalmente entre estas diversas classes. Em cada caso, é importante verificar se existe verdadeiro paralelismo entre as passagens citadas. Por exemplo, um paralelo verbal pode ser tão real quanto aquele que incorpora muitos sentimentos correspondentes, porque uma única palavra, muitas vezes, decide um fato ou uma doutrina. De outro modo, pode existir semelhança de sentimento sem que haja verdadeiro paralelismo. Para ilustrar tal contexto, Terry menciona que a verdadeira interpretação das palavras de Jesus a Pedro, em Mateus 16:18, só pode ser plenamente apreciada por uma comparação e um estudo cuidadoso de todos os textos paralelos. Jesus diz a Pedro: "[...] tu és Pedro [Petros] e sobre esta pedra [petra] edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". Como é possível decidir apenas a partir desta passagem se a rocha (petra) se refere a Cristo (como eles afirmam Santo Agostinho e Wordsworth) ou à confissão de Pedro (Lutero e muitos teólogos protestantes) ou ao próprio Pedro? É digno de nota que nas passagens paralelas de Marcos 8:27-30 e Lucas 9:18-21 estas palavras de Cristo a Pedro não aparecem. O contexto imediato nos apresenta Simão Pedro falando e representando os discípulos, respondendo à pergunta de Jesus com a confissão ousada e confiante: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo." Evidentemente, Jesus ficou comovido ao ouvir as palavras fervorosas de Pedro e disse-lhe disse: Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque a carne e o sangue não te revelaram, mas o meu Pai que está nos céus." Qualquer conhecimento e convicções que ele tivesse sobre o messianismo e a divindade de Jesus, os discípulos teriam alcançado antes desta ocasião, é um fato que esta nova confissão de Pedro possuía a novidade e a glória de uma revelação especial. Não deveu sua origem à “carne e sangue”, ou seja, não foi uma declaração de origem natural ou humana, mas [...] uma inspiração divina vinda do céu. Naquele momento Pedro estava possuído pelo Espírito de Deus e no fervor ardente de tal inspiração falou as mesmas palavras que o Pai inspirou nele. É por isso que Jesus declarou-o "abençoado" ou feliz [...] (TERRY, 2009, p. 23, tradução nossa). Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 10 Ao fazer comparações com partes da Escritura, o autor cita 1 Pedro 2:4-5, "Chegando-vos para ele, a pedra que vive, rejeitada, sim, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa, também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual [...]”. Aqui o próprio Senhor é apresentado como a pedra angular escolhida e preciosa e, ao mesmo tempo, os crentes são representados como pedras vivas, fazendo parte do mesmo templo espiritual. De acordo com o autor, a mudança do masculino Petros para o feminino petra sinaliza adequadamente que não tanto sobre Pedro, o homem, o indivíduo simples e isolado, mas sobre Pedro considerado como o confessor, tipo e representante dos demais confessores cristãos, que devem ser "juntamente edificados para morada de Deus em Espírito" (Efésios 2:22). Embora existam outras comparações, de modo geral, segundo Terry, é evidente a inadequação em interpretar que petra ou rocha é a confissão de Pedro. Para esclarecer, o autor defende que a Igreja é constituída por seres vivos e seu fundamento não pode ser uma mera verdade ou doutrina abstrata. Tal fundamento corresponde com toda a linguagem do Novo Testamento, no qual não às doutrinas nem às confissões, mas aos homens, são chamados, invariavelmente, colunas ou fundamentos do edifício espiritual. 1.1 Importância do Estudo da Hermenêutica Lund e Nelson (1968) pontuam algumas razões para justificar a relevância do estudo da hermenêutica, as quais apresentamos em seguida. 1. A hermenêutica é fundamental para os pregadores, uma vez que se trata da arte de interpretar textos, especialmente dentro da teologia exegética, focada na compreensão correta das Escrituras bíblicas. Entretanto, muitos pregadores desconhecem até mesmo o próprio nome dessa ciência (hermenêutica: do grego hermenevein, interpretar). 2. O apóstolo Pedro reconhece que existem passagens difíceis nas Escrituras do Novo Testamento que, se mal interpretadas por pessoas ignorantes e instáveis, podem levar a distorções e até a destruição espiritual. E para gravar a situação, quando estes ignorantes se apresentam como doutores, distorcendo as Escrituras para provar seus erros, arrastam consigo multidões à perdição. Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 11 3. A ignorância em hermenêutica tem sido a causa de muitos enganos ao longo da história, desde falsos profetas antigos até erros modernos. Pregadores que não dominam esta ciência estão sujeitos a confusões e erros. A Bíblia é a principal ferramenta do pregador, e desconhecê-la é falhar em sua missão. 4. A Bíblia é frequentemente mal interpretada, tanto por seus inimigos quanto por seus seguidores, em razão da falta de conhecimento sobre as regras corretas de interpretação. É essencial respeitar a intenção original do texto bíblico, evitando interpretações distorcidasque possam levar ao erro ou à perdição. 5. É fundamental lembrar que as diversas circunstâncias envolvidas na criação da Bíblia exigem que o estudo do expositor seja meticuloso e sempre alinhado com os princípios hermenêuticos. Os autores bíblicos incluem uma ampla variedade de figuras, desde sacerdotes e poetas até guerreiros e pescadores, cada um contribuindo com diferentes formas de escrita, como leis, poemas e cartas. Moisés, por exemplo, viveu séculos antes de figuras históricas como Pitágoras e Confúcio, enquanto João escreveu aproximadamente 1500 anos após Moisés. Os textos bíblicos foram compostos em locais variados, desde desertos até palácios, e refletem as culturas e contextos de suas respectivas épocas e lugares. Essa diversidade não afeta a verdade divina dos textos, mas influencia a linguagem usada, o que torna essencial a compreensão hermenêutica para quem deseja interpretar corretamente as Escrituras. 6. A necessidade de um conhecimento sólido em hermenêutica torna-se ainda mais evidente ao considerarmos a linguagem utilizada nas Escrituras. Alguns estudiosos, que permanecem isolados em relação ao idioma bíblico, encontram dificuldades com sua natureza figurada e simbólica, que para eles pode parecer chocante ou incompatível com a noção de uma revelação divina. Entretanto, um entendimento adequado de hermenêutica, além de resolver essas dificuldades, também revela que tal linguagem é considerada divina e extremamente rica, tanto científica quanto literariamente. 7. Um renomado cientista insistia que seus colaboradores deveriam "encarnar o invisível" para conceber a interação do invisível com o visível. Essa noção, embora moderna, é mais antiga que a própria Bíblia, pois foi Deus quem primeiro manifestou seus pensamentos invisíveis através dos objetos visíveis do Universo, revelando-se assim a si mesmo. Conforme expresso em Romanos 1:20, os atributos invisíveis de Deus, incluindo seu eterno poder e divindade, são Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas Importância do Estudo da Hermenêutica| 12 percebidos através das criações. Desse modo, o Universo, repleto de objetos que funcionam como palavras em um vasto dicionário divino, serve de meio para que as Escrituras inspirem a transição do visível ao invisível, do concreto ao abstrato, e do conhecido ao espiritual. 8. A necessidade de utilizar linguagem baseada em objetos visíveis é vital, pois termos puramente espirituais ou abstratos muitas vezes não ressoam com o homem natural. Este método de comunicação considera nossa condição humana, permitindo que concepções complexas como o céu ou a própria divindade de Deus sejam acessíveis por meio de analogias com elementos terrenos conhecidos. Isso não é apenas uma estratégia pedagógica, mas uma necessidade intrínseca para elevar nossa compreensão espiritual, exigindo meditação e estudo aprofundado para uma interpretação correta. 9. Ademais, a escolha por expressões figurativas e simbólicas não se deve somente à natureza abstrata da verdade espiritual, mas também porque tais expressões são mais belas e expressivas, transmitindo ideias com mais vivacidade, capturando a imaginação enquanto educam a alma e gravam verdades na memória de maneira prazerosa. Aqueles que criticam esse estilo, esperando que a Bíblia adote uma abordagem seca e formal, falham em reconhecer que a sabedoria divina frequentemente desafia e transcende as convenções humanas de racionalidade. Por fim, Lund e Nelson (1968) ressaltam a complexidade das Escrituras, que abordam desde questões terrenas até espirituais, escritas por autores diversos em diferentes épocas e locais. Devido a essa variedade e ao uso de linguagem simbólica, a hermenêutica é essencial para uma correta compreensão do texto bíblico. Exploramos, em seguida, algumas abordagens hermenêuticas, de modo a possibilitar não apenas o discernimento do significado explícito dos textos, mas também a interpretação das intenções, do contexto histórico-social e das subjetividades que permeiam a comunicação humana. Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Moderna Importância do Estudo da Hermenêutica| 13 2 A Hermenêutica Moderna A Hermenêutica Moderna, um campo de estudo crucial para a interpretação das Escrituras Sagradas, desponta como uma abordagem que busca desvendar o significado profundo dos textos bíblicos. Descrevemos esta abordagem segundo as ideias de Friedrich Schleiermacher, descritas por Ruedell (2012). Considerando a seguinte citação: Como todo discurso tem uma dupla relação, com a totalidade da linguagem e com o pensar geral de seu autor: assim também toda compreensão consiste em dois momentos, compreender o discurso enquanto extraído da linguagem e compreendê-lo enquanto fato naquele que pensa. (SCHLEIERMACHER, 2005, p. 95). Ruedell (2012) esclarece que, enquanto arte de compreensão e interpretação, essa citação fornece uma certa chave de leitura da hermenêutica. Sua perspectiva indica o quanto ela é produto da modernidade e que, sobretudo, pode ser considerada tendência ou movimento para sua superação. O autor faz referência a Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Moderna Fundamentos de Schleiermacher| 14 Kant, que inaugurou um novo método filosófico questionando suas próprias condições de possibilidade, e essa abordagem também influenciou a hermenêutica, que se viu desafiada a incorporar a transcendentalidade no contexto da linguagem. Isso marca uma mudança significativa, alinhada ao giro linguístico da filosofia, transformando a crítica da razão em uma crítica do sentido, segundo Frank. Na hermenêutica, a busca pela verdade ocorre sem a clareza da modernidade ou a certeza do cogito cartesiano, não competindo em resultados com as ciências modernas, mas mantendo rigor na investigação. A natureza fragmentária do conhecimento e a limitação da compreensão humana instigam uma incessante busca conjunta, não permitindo uma complacência com verdades presumidas. Em seu estudo, Ruedell (2012) examina conceitos e expressões que se encontram em Friedrich Schleiermacher, e que possivelmente poderiam ser designados por "indícios" ou "indicações formais". Na sequência, apresentamos os pontos abordados pelo autor. 2.1 Fundamentos de Schleiermacher A hermenêutica é descrita por Schleiermacher como a “arte da compreensão e da interpretação”, tarefa semelhante a uma obra de arte pelo rigor metodológico exigido, e não por ser literalmente uma obra artística. Ele enfatiza a necessidade de uma prática rigorosa (strengere práxis), que pressupõe que os mal-entendidos são inerentes e a compreensão deve ser buscada ativamente, diferentemente de uma prática mais frouxa (laxere práxis), que interpreta apenas quando surgem problemas de compreensão. Para Schleiermacher, a hermenêutica eleva-se a um método autônomo, visando evitar mal-entendidos e exigindo um compromisso constante com a interpretação ativa. Ele argumenta que interpretar e compreender textos envolve navegar entre o finito das construções particulares e o infinito das possibilidades linguísticas e humanas, confiando mais na habilidade e no esforço do intérprete do que em regras metodicamente aplicadas. Além disso, menciona a necessidade de um duplo talento no intérprete, tanto linguístico quanto de profundo entendimento das peculiaridades humanas. Segundo Schleiermacher, a hermenêutica é entendida como a arte de compreender o discurso do outro, centrada no papel fundamental da linguagem, que é vista como essência de toda manifestação e pensamento humano. O pensamento é em si um “falar interior”, um discurso silencioso moldado pelo paradigma linguístico comum entre o autor e o seu público original. O discurso emerge da gramática da Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Moderna Fundamentos de Schleiermacher|15 linguagem, que é histórica e reflete a interpretação coletiva de uma sociedade em um momento específico sobre suas relações internas e visão de mundo. Schleiermacher exemplifica isso em sua obra “A Vida de Jesus”, destacando que Cristo estava inextricavelmente ligado à linguagem e aos costumes de seu tempo e de seu povo, e só poderia se expressar e influenciar usando termos e expressões então em uso. Esta ciência — hermenêutica — aborda o desafio de compreender a linguagem e o pensamento por trás do discurso, concentrando-se não apenas no que é dito explicitamente, mas também no que é meramente sugerido ou evocado. Esta disciplina difere das ciências por focar no particular e no histórico, ao invés do universal e comum. Aristóteles já apontava que não existe ciência do particular, e é nesse espaço que atua a hermenêutica, tratando da compreensão do estranho e dos mal-entendidos como experiências universais. Schleiermacher enfatiza que a estranheza e a possibilidade de mal-entendidos são inerentes à comunicação e que todo esforço para superar completamente essa distância entre os indivíduos é, em última análise, insuficiente. A hermenêutica, portanto, não tenta eliminar essas diferenças, mas as aceita e trabalha com elas, buscando compreender e comunicar o que é único e muitas vezes considerado incomunicável. Esta tarefa de tornar inteligível o ininteligível e de revelar o oculto é vista como uma “hermenêutica do silêncio”, um conceito que vai além da razão histórica ou supra-histórica e abrange uma interpretação mais profunda e processual da realidade. Schleiermacher, por meio de seu trabalho, sugere que mesmo diante das dificuldades é possível e necessário buscar uma compreensão mais profunda, que considere tanto o contexto quanto a singularidade de cada situação comunicacional. A arte hermenêutica, segundo Schleiermacher, não aspira à comunicação completa ou à compreensão definitiva, mas é vista como um processo gradual de aproximação à verdade do texto, navegando por vários níveis de compreensão e relações cada vez mais profundas. Ele concebe o discurso como produto da imaginação e do arranjo criativo do autor, uma força de transformação e inovação. Como exemplo, Schleiermacher reflete sobre os discursos de Jesus em "Das Leben Jesu", observando que embora a língua nativa fosse essencial para Jesus transmitir a sua mensagem, não era o único determinante dessa transmissão. Ele argumenta que a mera existência da linguagem não teria sido suficiente para a disseminação do conhecimento sobre Deus, pois a linguagem exige que alguém a transforme e desenvolva para que novas ideias surjam. Portanto, Jesus não só usou a linguagem do Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Moderna Fundamentos de Schleiermacher| 16 seu tempo, mas também a desafiou e transformou, causando uma mudança semântica significativa na visão de mundo através da sua mensagem. A hermenêutica de Schleiermacher enfatiza a necessidade de uma abordagem singular na interpretação do discurso, chamando esse processo de “adivinhação”. Ao contrário das interpretações que simplesmente associam a adivinhação a um sentimento ou a uma misteriosa compreensão interior, Schleiermacher a vê como uma imersão na produtividade estilística do autor. Gadamer, por outro lado, sugere que a adivinhação envolve uma identificação entre autor e intérprete, superando barreiras históricas e linguísticas, mas esta visão é criticada por ignorar a ligação essencial entre linguagem e pensamento. Na hermenêutica de Schleiermacher, a adivinhação é a tentativa do intérprete de apreender a singularidade e a originalidade do estilo do autor, reconhecendo que não existem padrões ou regras fixas que garantam uma interpretação precisa. É um processo que envolve imaginação e criatividade, tanto na criação quanto na interpretação de uma obra. Schleiermacher enfatiza que, embora a adivinhação busque aproximar-se do pensamento e da intenção do autor, a distância entre o intérprete e o autor nunca pode ser completamente eliminada. Assim, a hermenêutica é vista como um processo contínuo e interminável de busca de compreensão, sempre aberto a novas interpretações e refinamentos. Schleiermacher apresenta uma visão de hermenêutica que integra individualidade e racionalidade, propondo uma concepção de linguagem e racionalidade que transcende as definições lógico-semânticas tradicionais. Ele substitui o conceito de razão, muitas vezes visto como supratemporal, pelo conceito de linguagem, argumentando que o pensamento e a dinâmica da linguagem contêm elementos lógico-semânticos e interpretativos. A linguagem, segundo ele, não é uma estrutura fixa, mas uma interação entre o histórico-subjetivo e o sistemático-universal, constantemente influenciada por mudanças semânticas e usos metafóricos. Schleiermacher utiliza a teoria dos esquemas de Kant para explicar essa relação dinâmica, enfatizando que a linguagem deve ser vista como um sistema historicamente aberto e instável, sujeito a constantes mudanças pela atividade criativa dos falantes. Esta perspectiva reconhece a linguagem como um “universal singular”, sempre em fluxo e reformulação, refletindo a complexidade e flexibilidade inerentes à comunicação humana. O projeto hermenêutico de Schleiermacher destaca a interdependência da subjetividade e da linguagem, destacando a linguagem como fundamento da Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica do Discurso Fundamentos de Paul Ricoeur| 17 legitimidade filosófica e não como o sujeito. Ele argumenta que o sujeito sempre surge em relação, não como uma unidade independente. A identidade do sujeito é reconhecida através da autoconsciência, que é sempre acompanhada pela consciência objetiva – consciência de algo. Esta autoconsciência não pode ser puramente objetivada; está inerentemente ligado a uma consciência de dependência e limitações. Na opinião de Schleiermacher, a hermenêutica deixa de focar no transcendentalismo e passa a enfatizar a linguagem. Esta abordagem pode ser vista como uma versão da filosofia da linguagem, onde a linguagem e a crítica da primazia do sujeito andam de mãos dadas. Para Schleiermacher, a linguagem e o sujeito são indissociáveis, mas a primazia metodológica recai sobre a linguagem devido à inerente fragilidade e relatividade do sujeito. O sujeito não é uma fonte solitária de verdade, mas parte de uma “comunidade de pensamento” intersubjetiva, estruturada pela linguagem. Esta comunidade linguística incorpora características histórico- empíricas e especulativas, incorporando o seu consenso dialético na sua gramática. A linguagem é, portanto, vista tanto como condição quanto como produto do pensamento e da ação humanos, continuamente moldados por projetos individuais de significado. 3 A Hermenêutica do Discurso Em seu estudo, Tavares (2018) aborda o projeto de Paul Ricoeur, que propõe uma abordagem revolucionária ao estudo do discurso, caracterizando-o como um acontecimento da linguagem. Ricoeur distingue a linguística do discurso da linguística da língua; enquanto a última foca nos signos, a primeira concentra-se nas frases, que são vistas como as unidades fundamentais do discurso. Essas frases servem de base para a interação dialética entre o acontecimento de falar e o sentido que esse discurso transmite. 3.1 Fundamentos de Paul Ricoeur O discurso, como um evento linguístico, é moldado por critérios de textualidade que o diferenciam da estrutura da língua e permitem distinguir entre linguagem escrita e oral. Ele ocorre no tempo presente, sendo caracterizado pela sua natureza intencional e subjetiva, geralmente marcada pelo uso de pronomes pessoais que apontam para um locutor. Esse locutor se dirige a um interlocutor, criando um contexto de troca de mensagens. Em contraste, o sistema da língua opera como uma entidade virtual e atemporal, sem requererum sujeito concreto para sua operação. Os Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica do Discurso Fundamentos de Paul Ricoeur| 18 signos dentro do sistema linguístico apenas referenciam outros signos, estabelecendo a base para a comunicação ao fornecer os códigos necessários para que ela ocorra. Ricoeur articula uma relação dialética entre o acontecimento da linguagem e o seu significado duradouro, superando a fugacidade do discurso ao capturar o seu significado duradouro. Esta transição do discurso oral para o escrito exemplifica o “distanciamento” que é central para a hermenêutica, transformando o discurso efêmero em texto, um repositório de significado atemporal. Portanto, o foco passa do autor para a interpretação, assumindo que, ao ler um texto, tratamos o autor como figurativamente morto e a obra como autônoma. A escrita, ao fixar o discurso, separa o significado textual do mental, onde o texto pode transcender as intenções originais do autor e abrir-se a múltiplas interpretações e significados. Isso permite que o texto sirva de ponte para “mundos possíveis”, ampliando os horizontes interpretativos dos leitores. A distância criada pelo texto facilita uma apropriação mais rica, estabelecendo uma relação não só entre o texto e um leitor específico, mas com todos os potenciais leitores. Assim, o texto atua como um conjunto de símbolos com múltiplos significados referentes a realidades além da linguagem, cada um dos quais pode ser explorado por meio de diversas abordagens hermenêuticas. A noção de discurso como acontecimento adquire profundidade significativa quando é fixado pela escrita, tornando-se suscetível a variadas interpretações. O processo de transformação do discurso inicia com a língua que se materializa em palavras faladas, avançando para a escrita que estabiliza e preserva essas palavras. Ao ser escrito, o discurso transcende sua condição efêmera e se transforma em um artefato capaz de ser revisado e reinterpretado continuamente. Assim, a significação do discurso é ampliada pela escrita, que possibilita que o texto transcenda o contexto original e seu significado inicial. A interpretação de um texto, então, se torna um novo acontecimento discursivo que não busca recuperar a intenção original do autor, mas sim criar um significado distinto do evento discursivo inicial. Desse modo, a leitura e interpretação de um texto são vistas como uma produção contínua e dinâmica de sentido, em que cada ato de interpretação é em si um acontecimento discursivo único. O texto narrativo é uma história autônoma, fixada na escrita, que se torna independente do autor e pode ser compreendida por qualquer leitor, transcendendo sua situação original e abrindo-se para um mundo possível. “A narrativa é um discurso que pode abrir-se a diversos seres humanos na sua respectiva experiência solitária no mundo.” (TAVARES, 2018, p. 454). Cada texto narrativo forma um mundo revelador, Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Histórico-Crítica Fundamentos de Paul Ricoeur| 19 sujeito a diversas interpretações dos leitores. No entanto, nem todas as interpretações são válidas, e algumas devem ser anuladas através da análise da estrutura textual, seguindo o princípio popperiano. Isso requer uma relação dialética entre explicação e compreensão, resultando em interpretações defensáveis em relação a outras. Para o hermeneuta, é o texto que possui um múltiplo sentido; [...]. Ora, este problema do múltiplo sentido não é já hoje só o problema da exegese, no sentido bíblico ou inclusivamente profano da palavra; é em si mesmo um problema interdisciplinar que eu quero em primeiro lugar considerar num único nível estratégico, num plano homogéneo, o do texto. [...] Na hermenêutica não há clausura do universo dos signos. (RICOEUR, 1969, p. 66-67 apud TAVARES, 2018). A multiplicidade de interpretações é viável em razão da natureza aberta da linguagem e dos textos, que transcendem as referências situacionais específicas. A linguagem não se limita somente a situações concretas, mas abre-se para o mundo em geral. Assim, os textos, sejam poéticos, míticos ou de outra natureza, contribuem para a constituição do mundo humano ao proporcionar uma variedade de referências. Embora Ricoeur valorize a interpretação dos mitos respeitando seu simbolismo original, sua própria teoria textual reconhece a pluralidade de significados que essas narrativas oferecem, expandindo a compreensão humana do mundo. Os eventos só adquirem significado ao serem incorporados à história da humanidade e, em última instância, à experiência humana concreta. O tempo retratado nas narrativas míticas, embora atemporal, pode ser interpretado e contextualizado dentro do tempo histórico. Através da hermenêutica, o tempo histórico e o tempo mítico podem se entrelaçar, originando um tempo de significado. É nessa interseção temporal que pode surgir o significado da existência humana. 4 A Hermenêutica Histórico-Crítica O surgimento do método histórico-crítico tem raízes complexas e vive um dilema causado pelo amadurecimento dos princípios assumidos por ocasião de seu nascimento, como filho legítimo do Iluminismo e do racionalismo. Em seu estudo, Lopes (2005) nos esclarece a respeito desse dilema, exposto na sequência. A inspiração central desse método é representada pela afirmação de J. Solomo Semler: “A raiz de todos os males (na teologia) é usar os termos ‘Palavra de Deus’ e Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Histórico-Crítica Fundamentos de Paul Ricoeur| 20 ‘Escritura’ como se fossem idênticos” (SEMLER, J. S., [s/d] apud LOPES, 2005, p. 121). Esta distinção doutrinária reflete a crença de que a Escritura contém tanto palavras divinas como erros, mas também os pressupostos racionalistas do Iluminismo. Os críticos iluministas buscaram separar a Palavra de Deus dos elementos humanos na Escritura, originando o método histórico-crítico para realizar essa distinção "científica" e encontrar o cânon normativo dentro do cânon formal da Bíblia. O cânon formal é composto pelos sessenta e seis livros da Bíblia, formalmente reconhecidos pela Igreja antiga como a Escritura da Igreja Cristã. O cânon normativo consiste nas partes destes livros que são realmente a Palavra de Deus. O termo normativo é em razão daquilo que é autoritativo para o cristão e para a Igreja. Os críticos do método histórico-crítico se veem como herdeiros legítimos da Reforma Protestante e de sua abordagem interpretativa. Para Bultmann, por exemplo, a justificação é somente pela fé e não pela história. Essa dicotomia entre fé e história permite que eles critiquem e desmitologizem o cânon bíblico. A preocupação dos evangélicos e conservadores com este método não é tanto com o aspecto "histórico" do método, mas com o "crítico", que questiona a confiabilidade da Bíblia. Para críticos como Käsemann, render-se à Escritura de forma acrítica leva a uma confusão entre fé e superstição, e eles desejam se distanciar disso. A desconfiança na total confiabilidade da Bíblia tornou-se um princípio operacional do método histórico-crítico. Esta visão central e dominadora da interpretação fez com que surgisse algumas abordagens críticas da Bíblia — das fontes, da forma e da redação —, todas elas em busca do cânon normativo dentro do cânon formal. Com base em Lopes (2005), descrevemos cada crítica. A crítica das fontes analisa os diversos componentes do texto bíblico, supostamente originados em períodos históricos diferentes e refletindo diferentes teologias. Os autores antigos não tinham preocupações com direitos autorais, agregando várias fontes para formar o texto completo. O método busca identificar essas fontes, estudar sua teologia e contexto histórico, e então interpretar o texto completo à luz desses resultados, para encontrar a Palavra de Deus nas Escrituras. Isso é feito primeiro procurando anomalias textuais,como inconsistências e repetições, e depois analisando temas e identificando o período histórico de cada parte do texto. A crítica das fontes sugere que as fontes literárias passaram por extensas edições, o que refletiu tradições e teologias diversas e, às vezes, conflitantes. Isso enfraquece a autoridade das Escrituras, pois a autoria profética e apostólica é cada vez mais distanciada do cânon formal. Apesar de serem ensinadas em instituições teológicas, essas teorias documentárias permanecem hipotéticas e debatidas, sem Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Histórico-Crítica O Dilema do Método Histórico-Crítico| 21 reconhecimento unânime. A erudição conservadora critica metodologias e fraquezas dessas abordagens. A crítica da forma busca separar o essencial do acessório, um objetivo refletido no programa de desmitologização de Bultmann para o Novo Testamento. Utilizando o critério da antiguidade das formas, como expresso por Werner Kümmel, essa metodologia visa identificar as formas originais dos textos bíblicos antes de sua transmissão escrita e as alterações introduzidas pelas comunidades que os receberam. Para Kümmel, quanto mais um texto se relaciona com a revelação histórica de Cristo e menos foi influenciado por ideias externas ou pelo desenvolvimento posterior do cristianismo, mais provável é que ele faça parte do cânon normativo. A crítica da redação, surgida após a crítica das fontes e da forma, concentra-se nos redatores que deram a forma final aos textos bíblicos. Seu critério consiste em descobrir os materiais originais e eliminar as alterações feitas pelos redatores ao editar os textos sagrados. Conforme as críticas das fontes e da forma, muitos livros do Velho e do Novo Testamentos foram coleções editadas de tradições antigas, refletindo a teologia das comunidades através de redatores que moldaram o material de acordo com seus próprios pontos de vista e contexto social e religioso. A crítica da redação visa descobrir a teologia desses redatores e os princípios teológicos que guiaram sua edição das fontes e tradições, resultando na atual forma final dos textos bíblicos. 4.1 O Dilema do Método Histórico-Crítico Na época em que o método emergiu, vários estudiosos levantaram críticas contra suas limitações. Na Alemanha, surgiram os biblistas e fundamentalistas, que se opuseram aos críticos, fornecendo uma análise histórica da Bíblia de modo consistente. Gehrard Maier demonstrou, através da análise das contribuições de críticos proeminentes, que o método histórico-crítico falhou em produzir resultados objetivos e reconhecidos. Ele examinou artigos de críticos destacados publicados em uma obra editada por Käsemann, concluindo que eles não consideram o Novo Testamento como uma unidade e não conseguiram identificar claramente a Palavra de Deus dentro dele. Maier criticou o subjetivismo inerente dos críticos e sua tendência a apelar para diferentes critérios de validação, como a experiência espiritual das comunidades ou o ensino oficial da Igreja Católica. Ele acusou esses críticos de obscurecer o sentido das Escrituras, em contraste com a doutrina reformada de sua clareza e suficiência. Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Histórico-Crítica O Dilema do Método Histórico-Crítico| 22 Peter Stuhlmacher, um renomado hermeneuta contemporâneo e sucessor de Ernest Käsemann em Tübingen, expressou reservas significativas em relação ao método histórico-crítico, embora sua posição seja menos crítica do que a de Maier. Em sua obra "Historical Criticism and Theological Interpretation of Scripture", ele propõe uma "hermenêutica de aceitação" que, embora utilize ferramentas críticas, mantém-se aberta à transcendência e à ação de Deus na história. Stuhlmacher reconhece a necessidade do método histórico-crítico na teologia, mas questiona sua adequação para lidar com a Bíblia, destacando a falta de consideração pela ação divina na história e pela tradição da Igreja. Essas ideias são endossadas por John Piper, um proeminente pastor batista reformado dos Estados Unidos, e estudioso respeitado. Brevard Childs, através da crítica canônica, ataca o método histórico-crítico por ignorar o cânon e fragmentá-lo. Ele enfatiza o cânon como o principal contexto para a interpretação bíblica, destacando que a forma canônica é fundamental para o significado e autoridade das Escrituras. Childs argumenta que o objetivo do exegeta não se limita a descobrir a pré-história do texto, mas entender como ele funcionava para a comunidade em sua forma final, permitindo assim a teologia bíblica relevante para a Igreja atual. Embora Childs não rejeite completamente as ferramentas histórico- críticas, ele ressalta que elas podem não produzir os resultados desejados. As hermenêuticas pós-modernas atacaram o método histórico-crítico, questionando sua suposta neutralidade e objetividade. Entretanto, embora tenham diminuído a influência do método histórico-crítico nos estudos bíblicos, não ofereceram uma alternativa completa e adequada. Em vez disso, carregam ainda alguns pressupostos do método histórico-crítico. Tal situação cria um dilema sobre a adequação do método histórico-crítico como uma ferramenta de interpretação bíblica, sugerindo a necessidade de substituí-lo por um método mais apropriado às Escrituras. Lopes (2005) menciona algumas das razões para o dilema, as quais expomos abaixo. • O método histórico-crítico assumiu, desde o início, pressupostos dogmáticos que representam rejeição da autoridade e infalibilidade das Escrituras: o método histórico-crítico é geralmente apresentado como científico e neutro, sugerindo uma exegese imparcial e confiável. Contudo, é tendencioso, influenciado por pressupostos racionalistas que questionam elementos como a encarnação e os milagres. A conclusão de que a Bíblia não é a Palavra de Deus, apenas a contém, é estabelecida previamente, representando Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Histórico-Crítica O Dilema do Método Histórico-Crítico| 23 uma orientação filosófica e ideológica. A distinção entre o divino e o humano na exegese é uma questão teológica, não exegética, refletindo os pressupostos do crítico ao longo de seu trabalho. • É impossível alcançar o alvo do método histórico-crítico: como dito, os críticos buscam identificar o cânon normativo dentro do cânon formal, discernindo a Palavra de Deus dentro das Escrituras, a verdade em meio ao erro, o divino em meio ao humano. Entretanto, apesar de dois séculos de esforços, eles não conseguiram separar esses elementos. A própria Bíblia não oferece pistas sobre um suposto cânon normativo dentro dela, o que torna os critérios inerentemente subjetivos. Logo, os críticos, por diversas vezes, recorrem ao misticismo, à experiência religiosa ou ao existencialismo como paradigma do divino. Resultante disso, cada crítico baseia sua pesquisa no que considera como Palavra de Deus ou cânon normativo, levando a resultados divergentes. Reconhecer a Palavra de Deus dentro das Escrituras somente com base em critérios metodológicos e históricos torna-se uma tarefa desafiadora. • Não é possível dividir o cânon bíblico entre normativo e formal: as tentativas histórico-críticas de estabelecer diferentes níveis dentro da Escritura, através da crítica das fontes e da crítica da forma, são problemáticas. Como distinguir o que é original e primitivo, se não há indicações claras fora das próprias Escrituras? As Escrituras se apresentam como a Palavra de Deus em sua totalidade, sem sinalizar partes menos normativas ou inspiradas. Embora muitos cristãos pratiquem um cânon dentro do cânon, escolhendo doutrinas e práticas centrais, isso vai contra o ensino bíblico de que toda a Escritura é divinamente inspirada. O método histórico-crítico, ao tentar discernir o divino por trás dos mitos e erros, acaba por exceder seus limites. • O método histórico-crítico,por sua própria natureza, abriu um caminho entre a academia e a Igreja: muitos críticos eclesiásticos, apesar de adotarem o método histórico-crítico, raramente pregam suas crenças nas igrejas onde atuam como pastores, padres ou oficiais. Isso se deve a determinadas razões: primeiro, eles temem a rejeição das teorias críticas pelos membros da igreja; segundo, não possuem uma plataforma comum para lançar um novo movimento, pois estão divididos quanto aos resultados de suas investigações. Portanto, muitos evitam praticar o que aceitam academicamente, pois as dúvidas e incertezas geradas pelo método histórico-crítico não são facilmente pregadas nos púlpitos. • A razão natural é incapaz de reagir adequadamente à revelação divina: o dilema do método histórico-crítico pode ser profundamente enraizado na Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Histórico-Crítica Um Método Alternativo| 24 confiança do Iluminismo na razão natural para discernir verdades divinas. Essa confiança levou à rejeição da depravação total do homem, ignorando a natureza limitada e falível do intelecto humano. Os conservadores argumentam que a verdadeira compreensão das Escrituras requer a iluminação do Espírito Santo, evidenciando a necessidade de submissão à autoridade divina em vez de confiar somente na razão crítica humana. 4.2 Um Método Alternativo Conforme descreve Lopes, o método histórico-crítico parece estar em um impasse há mais de 200 anos, e isso não se deve à incompetência dos estudiosos que o adotaram, mas sim à inadequação do próprio método. Os pressupostos dogmáticos que o controlam tornam-no inadequado e até mesmo contrário ao estudo das Escrituras. Nota-se que a escolha de um método influencia diretamente os resultados da pesquisa, e um método fundamentado em convicções críticas sobre a natureza da Bíblia só poderia levar a conclusões críticas e incerteza. Exegetas modernos têm proposto algumas soluções para o dilema enfrentado pelo método histórico-crítico. Maier propõe uma hermenêutica bíblico-histórica, enquanto Stuhlmacher sugere uma hermenêutica teológica. Os evangélicos tendem a seguir as alternativas apresentadas por Maier e Stuhlmacher, representando as duas principais abordagens para quem visa manter a infalibilidade e a autoridade das Escrituras. A primeira opção é rejeitar por completo o uso da crítica bíblica, enquanto a segunda requer uma versão adaptada do método histórico-crítico, excluindo seus pressupostos iluministas e racionalistas. Isso implica em manter o aspecto histórico do método, enquanto rejeita sua abordagem crítica arrogante. Essa última opção se assemelha ao método gramático-histórico, incorporando novas perspectivas hermenêuticas que destacam o papel do leitor no processo interpretativo. Em resumo, a necessidade de um método teológico é fundamental. Especificamente, na tradição reformada, isso implica em adotar um método de interpretação relacionado ao gramático-histórico, defendido pelos reformadores. Esse método deve pressupor a inspiração e a veracidade das Escrituras, além de reconhecer a unidade do cânon formal. Além disso, deve estar aberto às contribuições das ciências correlatas modernas para auxiliar na interpretação do texto bíblico. Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Feminista Um Método Alternativo| 25 5 A Hermenêutica Feminista De acordo com Toldy (2009, p. 145), A teologia feminista considera-se a si mesma como uma teologia “de mulheres para mulheres”, porém, “mulheres de orientação feminista”. Significa isto que não se concentra tanto em fenómenos [sic] individuais, ou numa busca da “natureza feminina”, como, sobretudo, numa perspectiva colectiva [sic], social, comunitária, proveniente dos movimentos das mulheres, mais concretamente, dos movimentos feministas, organizados para reivindicar os seus direitos individuais, políticos e sociais. Ao focar nos contributos da hermenêutica feminista para a(s) teologia(s), Toldy nos apresenta suas áreas de aplicação, sendo uma delas a do discurso teológico acerca de Deus. A hermenêutica feminista aborda o discurso teológico sobre Deus, especialmente em relação à analogia da maternidade para descrever o cuidado divino. Isso levanta críticas à identificação de Deus como masculino e destaca os debates em torno das imagens paternas ou maternas de Deus. Considera-se como isso afeta a compreensão de Deus em uma sociedade influenciada pela psicanálise e marcada por traumas e desafios na relação com figuras parentais. São Tomás de Aquino enfatizava que conhecemos mais sobre o que Deus não é do que sobre o que Ele é, destacando a "douta ignorância" para evitar discursos teológicos que sejam meras projeções humanas. Isso nos lembra da transcendência de Deus, que está além de nossos pensamentos e palavras, conforme expresso por São Anselmo. “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos [...]”. (Is. 55:8-9). A autora questiona, então, sobre a necessidade de introduzir a questão da linguagem do feminino no discurso teológico sobre Deus. Respondendo ao próprio questionamento, Toldy evidencia a conhecida a frase de Mary Daly: if God is male, than male is God (se Deus é homem, então o homem é Deus). Explica, em seguida, que o problema não se limita ao uso de linguagem e imagens masculinas para descrever Deus, mas sim na unilateralidade dessa abordagem. Se a teologia tivesse historicamente insistido apenas em imagens femininas para Deus, enfrentaríamos um problema semelhante de exclusão. Autores como John McKenzie e Garret Green Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Feminista Um Método Alternativo| 26 argumentam que embora Deus seja descrito com uma linguagem masculina, isso não implica um sentido sexuado, mas sim uma linguagem culturalmente apropriada. A partir da seguinte citação, que procura fundamentar a Carta Encíclica Humanae Vitae numa teologia trinitária, Balthasar fundamenta a impossibilidade de acesso das mulheres ao ministério ordenado. Na representação cristã de Deus, a origem está, antes de mais, no Pai que gera, que é incomparavelmente superior a toda a paternidade terrena, já que, enquanto hipóstase divina, é eternamente idêntico ao seu acto [sic] de gerar e do qual, na Criação, só existe Uma imagem verdadeira: Jesus Cristo, que cria a Igreja, a partir da sua substância plenamente divino-humana, que ele oferece na cruz. [...] Cristo não oferece um pouco da sua substância, como o homem, no acto [sic] fisiológico, mas sim toda a sua substância, tal como o Pai eterno, quando gera o Seu Filho, também transmite ao Filho toda a substância divina e ambos, num amor de comunhão, indiviso, a transmitem ao Espírito Santo. Numa analogia, certamente remota, mas nem por isso menos exacta [sic], pode estabelecer-se uma comparação entre o acontecimento trinitário e cristológico e o papel do homem na procriação, desde que se pressuponha que o homem reconhece a sua submissão à norma de Cristo, ele próprio sujeito à norma do Pai: O Pai é maior do que eu (Jo. 14,28) (BALTHASAR, 1979, grifos do autor, apud TOLDY, 2009, p. 152). Balthasar evidencia que a hierarquia descendente também fundamenta a associação da representação de Cristo ao ministério sacerdotal masculino, “Quero, entretanto, que saibais ser Cristo [a] cabeça de todo homem, e o homem, [a] cabeça da mulher, e Deus, [a] cabeça de Cristo. (1 Cor. 11:3). As imagens femininas de Deus têm sido presentes ao longo da história da teologia, como evidenciado pelo 11º Sínodo de Toledo em 676, que descreveu o Filho de Deus como nascido do útero do Pai para afirmar sua igualdade com Deus Pai. No entanto, essas imagens femininas não têm recebido o mesmo destaque que as masculinas. Uma análise sobre os agentes predominantes na formulação do discurso teológico, pastoral, litúrgico e espiritual poderia explicaressa disparidade quantitativa. A questão de usar imagens femininas para falar de Deus não é trivial, pois reflete a tendência humana para a idolatria e a necessidade de classificar e nomear realidades que não podem ser totalmente compreendidas. Isso ressalta a importância de Hermenêutica Bíblica | A Hermenêutica Feminista A Mulher na Igreja| 27 reconhecer que as metáforas, tanto femininas quanto masculinas, não definem limitadamente a natureza de Deus, mas evocam sua totalidade. Enquanto não pudermos dizer que Deus é tanto pai quanto mãe, reconhecendo sua transcendência em relação às categorias humanas, não podemos restringi-lo a nenhuma atribuição específica. “[...] não será possível dizer que Deus não é nem pai, nem mãe, uma vez que Ele não se esgota em nenhum atributo da linguagem humana!” (TOLDY, 2009, p. 154). Desse modo, a diversidade de imagens para falar de Deus desafia a tendência humana de identificar uma única metáfora com a totalidade da realidade divina. Portanto, tanto a concepção de que as imagens procuram abarcar a totalidade da realidade — evitando atribuir, por exemplo, dimensões masculinas ou femininas a Deus — quanto a noção de que Deus transcende todas essas representações têm implicações pastorais significativas. 5.1 A Mulher na Igreja Toldy (2009) também discorre sobre a consciência da necessidade de abordar a questão da mulher dentro da reflexão da Igreja, que já foi destacada até mesmo em uma carta apostólica. No entanto, ainda persistem formas de exclusão e subjugação das mulheres. Tentar atribuir todas essas expressões de desvalorização feminina a uma única causa, seja cultural, psicológica, sociológica ou eclesial, é difícil e talvez inadequado, pois essas diversas facetas da existência humana estão entrelaçadas. A influência cultural externa é insuficiente para explicar completamente os mecanismos de exclusão das mulheres na tradição da Igreja, que muitas vezes fundamentou práticas em visões masculinas de Deus. Para compreender a realidade da Igreja, é necessário percebê-la tanto como um sub-sistema de uma cultura androcêntrica quanto um sistema que historicamente tem sido predominantemente masculino, especialmente em sua hierarquia de poder. A hermenêutica feminista cristã destaca a importância de recuperar a história das mulheres excluídas da interpretação canônica da fé, desafiando a ideia de que apenas a história dos vencedores é relevante. Negar às mulheres um lugar pleno na experiência da Igreja é contraditório com a noção de que o Povo de Deus é a própria Igreja. Se faz todo o sentido afirmar que o Povo de Deus não só também é Igreja como é, ele próprio, a Igreja, também não faz sentido dizer que existe experiência plena de Igreja quando uma parte substancial do Povo de Deus é discriminada pelo facto de ter nascido mulher. (TOLDY, 2009, p. 155). Hermenêutica Bíblica | Conclusão A Mulher na Igreja| 28 Portanto, a autora enfatiza que a questão das mulheres na Igreja não é apenas pastoral, mas essencial para a reflexão teológica, uma vez que questiona os fundamentos teológicos, antropológicos, soteriológicos, cristológicos e eclesiológicos da fé. A teologia feminista não é apenas uma aplicação de ideias preexistentes, mas uma abordagem que reestrutura o pensamento teológico ao levantar importantes questões sobre a participação das mulheres na vida da Igreja. Conclusão Ao longo desta unidade, evidenciamos a importância de reconhecer o estudo da hermenêutica e da aplicação de seus princípios na interpretação dos textos sagrados, sempre buscando uma compreensão mais profunda e fiel da mensagem divina. Exploramos diferentes abordagens da Hermenêutica que enriquecem nossa compreensão das Escrituras Sagradas. Desde os fundamentos estabelecidos por Schleiermacher até as noções contemporâneas da hermenêutica feminista, cada corrente contribui para o nosso discernimento do significado explícito dos textos, assim como para a nossa interpretação das intenções, do contexto histórico-social e das subjetividades que permeiam a comunicação humana. Referências BALTHASAR, H. U. von. Ein Wort zu “Humanae Vitae”. In: Neue Klarstellungen, Einsiedeln, p. 123-124, 1979. BAPTISTA, D. A supremacia das Escrituras: a Inspirada, Inerrante e Infalível Palavra de Deus. Rio de Janeiro: CPAD, 2022. LOPES, A. N. ‘O dilema do método histórico-crítico na interpretação bíblica’, Fides Reformata X, n. 1, p. 115-138, 2005. LUND, E.; NELSON, P.C. Hermenêutica: princípios de interpretação das sagradas escrituras. Trad. por Etuvino Adiers. [s.l.]: Editora Vida, 1968. RUEDELL, A. Hermenêutica e linguagem em Schleiermacher. Nat. hum. [online], v. 14, n. 2, p. 1-13, 2012. SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermenêutica e crítica; com um anexo de textos de Schleiermacher sobre filosofia da linguagem – I. Trad. P. R. Schneider, rev. Ijuí, RS: Hermenêutica Bíblica | Referências A Mulher na Igreja| 29 Unijuí, 2005. TAVARES, M. Paul Ricoeur e um novo conceito de interpretação: da hermenêutica dos símbolos à hermenêutica do discurso. Veritas, Porto Alegre, v. 63, n. 2, p. 436-457, 2018. TERRY, M. S. Hermenéutica. [s.l.]: Editorial Clie, 2009. TOLDY, T. M. Contributos da hermenêutica feminista para a(s) teologia(s). Didaskalia XXXIX, v. 39, n. 2, p. 145-156, 2009. Hermenêutica Bíblica | Referências A Mulher na Igreja| 30 Sumário Introdução 1 A Hermenêutica Bíblica: Uma Jornada na Compreensão das Escrituras Sagradas 1.1 Importância do Estudo da Hermenêutica 2 A Hermenêutica Moderna 2.1 Fundamentos de Schleiermacher 3 A Hermenêutica do Discurso 3.1 Fundamentos de Paul Ricoeur 4 A Hermenêutica Histórico-Crítica 4.1 O Dilema do Método Histórico-Crítico 4.2 Um Método Alternativo 5 A Hermenêutica Feminista 5.1 A Mulher na Igreja Conclusão Referências