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CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPÉCIE I Prof. Wilian Sapito Jr. Aula 09 e 10 – Temas abordados: • Feminicídio; VI – Contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: (...) § 2o – A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – Violência doméstica e familiar; II – Menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (...) § 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015) I – Durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015); II – Contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou com doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; (Redação dada pela Lei nº 14.344, de 2022); III – Na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; (Redação dada pela Lei nº 13.771, de 2018); IV – Em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. (Incluído pela Lei nº 13.771, de 2018); CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III 8.1 Homicídio Qualificado pelo Feminicídio – Introdução: O feminicídio foi incluído no art. 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal pela Lei nº. 13.104/2015. Cuida-se de figura qualificada do homicídio doloso, de competência do Tribunal do Júri e expressamente rotulado como crime hediondo, a teor da regra contida no art. 1°, inciso I, da Lei 8.072/1990. 8.2 Conceito: Feminicídio é o homicídio doloso cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. O legislador não foi feliz na redação do tipo penal. No lugar de "razões da condição de sexo feminino" deveria ter utilizado a expressão "razões de gênero", seguindo o exemplo bem-sucedido da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. A propósito, o Projeto de Lei nº. 8.305/2014, que culminou na Lei 13.104/2015, adotava a terminologia "razões de gênero", mas esta foi substituída em decorrência de manobras políticas da bancada "conservadora" do Congresso Nacional, com a finalidade de excluir os transexuais da tutela do feminicídio. E o que são "razões da condição de sexo feminino"? O § 2° – A do art. 121 do Código Penal contém uma norma penal explicativa, assim redigida: § 2° – A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – Violência doméstica e familiar; II – Menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Portanto, somente nessas duas hipóteses é que o homicídio doloso pode configurar o feminicídio. Nesse ponto, é importante destacar que feminicídio e femicídio não se CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III confundem. Ambos caracterizam homicídio, mas, enquanto aquele se baseia em razões da condição de sexo feminino, este consiste em qualquer homicídio contra a mulher. Exemplificativamente, se uma mulher matar outra mulher no contexto de uma briga de trânsito, estará configurado o femicídio, mas não o feminicídio. 8.3 Inciso I – Violência Doméstica e Familiar: Inicialmente, é preciso consignar que o feminicídio não era abrangido pela Lei 11.340/2006 - Lei Maria da Penha, muito embora a mulher que empresta seu nome a essa lei, a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, tenha sido vítima, em duas oportunidades, de tentativa de homicídio hoje classificado como feminicídio. De fato, a Lei nº. 11.340/2006 não criou novos delitos. No campo penal, limitou-se a definir um tratamento mais rigoroso à lesão corporal leve (CP, art. 129, §§ 9° e 11). As grandes inovações dessa lei foram as regras investigatórias e procedimentais, bem como as medidas protetivas em prol da mulher atingida por violência doméstica ou familiar. E aqui cabe destacar que os institutos da Lei Maria da Penha podem e devem ser aplicados à vítima de feminicídio (na forma tentada, evidentemente). A violência doméstica e familiar contra a mulher, indiscutivelmente, é uma violação dos direitos humanos, encontra-se definida no art. 5° da Lei 11.340/2006: Art. 5° Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III Il – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. A Lei nº. 13.104/2015, ao prever o feminicídio, poderia ter sanado uma falha técnica da Lei Maria da Penha. Com efeito, não se exige a violência doméstica e familiar. Basta a violência doméstica ou familiar. Vejamos dois exemplos: a) o pai de família mata uma amiga da sua filha, que estava passando férias em sua casa, por considerá-la excessivamente sedutora e um péssimo exemplo. Há violência doméstica, embora não exista violência familiar; b) o pai coincidentemente encontra em uma viagem a sua filha, que havia saído de casa há vários anos, e vem a matá-la por não aceitar a sua orientação sexual. Está presente a violência familiar, mesmo sem a violência doméstica. Entretanto, o reconhecimento da violência doméstica ou familiar contra a mulher não é suficiente para a configuração do feminicídio. O inciso I do § 2° – A deve ser interpretado em sintonia com o inciso VI do § 2°, ambos do art. 121 do Código Penal. Em outras palavras, o feminicídio reclama que a motivação do homicídio tenha sido as "razões da condição do sexo feminino”, e daí resulte a violência doméstica ou familiar. Vale a pena imaginarmos dois exemplos: CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III a) Durante uma conversa na cama, antes de dormir, o marido mata a esposa simplesmente por não concordar com a recusa desta à relação sexual naquela noite sob a alegação de dores na região vaginal. Está caracterizado o feminicídio: há violência doméstica e familiar, e o crime foi baseado em razões da condição do sexo feminino, pois o agente não se conformou e tampouco respeitou a íntima opção da vítima enquanto mulher. b) O irmão mata a irmã, dentro de casa, para ficar com a totalidade da herança dos pais. Embora nítida a violência doméstica e familiar, não há que se falar em feminicídio, pois estão ausentes as "razões da condição do sexo feminino". E indiscutível o homicídio qualificado, mas pelo motivo torpe (ganância, ambição desmedida, cupidez). Aliás, tamanha a sua cobiça, certamente o agente mataria, se tivesse, outro irmão. Percebam que, neste caso, não foi o sexo da sua irmã que motivou o homicídio, e sim a busca desenfreada pela riqueza. 8.4 Inciso II – Menosprezo ou discriminação à condição de mulher: Aqui não se exige a violência doméstica ou familiar. As "razões de condição do sexo feminino" se contentam com o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A pessoa que mata a mulher nela enxerga um ser inferior, com menos direitos. Exemplo: o aluno de uma prestigiada universidade mata a colega de sala que está prestes a concluir o curso com as melhores notas da turma, por não aceitar ser superado por uma mulher. 8.5 Natureza da qualificadora: O feminicídio constitui-se em circunstância pessoal ou subjetiva, poisdiz respeito à motivação do agente. Não há nenhuma ligação com os meios ou modos de execução do delito. O homicídio é cometido por razões (ou motivos) de condição de sexo feminino. A mulher é morta em face da sua inferiorização pelo sujeito ativo. Em outras palavras, o CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III agente vem a matá-la pelo fato de a vítima ser mulher ("razões de condição do sexo feminino"), ou seja, o crime não seria igualmente praticado contra um homem. A propósito, um dos fundamentos da criação dessa qualificadora foi o entendimento clássico do Direito Penal brasileiro no sentido de que o ciúme não podia ser enquadrado como motivo torpe nem como motivo fútil. Como nos tempos atuais não mais se aceita o homicídio de algum modo ligado ao ciúme, à dominação da vítima pelo agente, como simples (CP, art. 121, caput), o legislador optou por instituir a qualificadora do feminicídio. O Superior Tribunal de Justiça, contudo, tem decidido pela natureza objetiva dessa qualificadora: “Não caracteriza bis in idem o reconhecimento das qualificadoras de motivo torpe e de feminicídio no crime de homicídio praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar. Observe-se, inicialmente, que, conforme determina o art. 121, § 2°- A, I, do CP, a qualificadora do feminicídio deve ser reconhecida nos casos em que o delito é cometido em face de mulher em violência doméstica e familiar. Assim, considerando as circunstâncias subjetivas e objetivas, temos a possibilidade de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio. Isso porque a natureza do motivo torpe é subjetiva, porquanto de caráter pessoal, enquanto o feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de análise.” CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III 8.6 Sujeitos do delito: Trata-se de crime comum ou geral: pode ser cometido por qualquer pessoa. Em princípio, não se admite o concurso de pessoas, pois o feminicídio é circunstância pessoal ou subjetiva (CP, art. 30). A única exceção verifica-se quando o coautor ou partícipe igualmente atuar impulsionado por razões de condição de sexo feminino. Em regra, o sujeito ativo é homem, mas nada impede seja também uma mulher, desde que o delito seja cometido por razões de condições de sexo feminino. E o que se dá, exemplificativamente, quando uma mulher mata a sua namorada em uma discussão, por considerar que esta última não tinha o direito de desejar o rompimento do relacionamento amoroso. O sujeito passivo, por seu turno, deve ser uma mulher, independentemente da sua idade (criança, adolescente, adulta ou idosa) e da sua orientação sexual. Nunca poderá ser homem, pois o tipo penal fala expressamente em "sexo feminino". E aqui surge uma interessante indagação. O transexual pode ser vítima de feminicídio? Vamos à explicação do Prof. Cleber Masson, Promotor de Justiça: “Inicialmente, cumpre destacar que a transexualidade não se confunde com a homossexualidade, é dizer, a atração sexual por pessoa do mesmo sexo. A transexualidade, por seu turno, é classificada pela Organização Mundial de Saúde como uma espécie de incongruência de gênero, condição relativa à saúde sexual em que o indivíduo tem o desejo de viver e de ser aceito como do sexo oposto ao do seu nascimento. Atualmente é comum a transgenitalização, ou seja, a cirurgia de redesignação sexual. Nesse terreno, duas situações podem ocorrer. Em primeiro lugar, admite-se a "neocolpovulvoplastia", consistente na alteração do órgão sexual masculino para o feminino, com a construção de uma neovagina CURSO DE DIREITO Direito Processual Penal III (vaginoplastina). Nessa hipótese, não há falar em feminicídio na morte do transexual, pois a vítima biologicamente não ostenta o sexo feminino, tanto que jamais poderá reproduzir-se, pela ausência dos órgãos internos. Essa situação é mantida ainda que a pessoa tenha sido beneficiada pela alteração do registro civil (mudança de nome). Com efeito, entendimento diverso seria prejudicial ao agente, constituindo-se em inquestionável analogia in malam partem, repudiada pelo moderno Direito Penal. Contudo, também pode ocorrer de uma mulher ser submetida a cirurgia para readequação ao sexo masculino. Nesse caso, se essa pessoa for vítima de homicídio, e o crime for praticado por razões de condição de sexo feminino, será cabível a qualificadora prevista no art. 121, § 2°, inc. VI, do Código Penal. Em síntese, admite-se o feminicídio, pois biologicamente a vítima continua ostentando o sexo feminino.” Ressalto que, apesar da opinião do Mestre Cleber Masson, ainda não existem decisões consolidadas sobre a possibilidade de uma mulher trans poder ser considerada como vítima de feminicídio. No entanto, pela linha jurisprudencial que nossos Tribunais Superiores têm adotado, inclusive com o já reconhecimento da aplicação da Lei Maria da Penha para as mulheres trans, acredito que logo será consolidada tal possibilidade. 8.7 Feminicídio Político: Feminicídio político é o homicídio cometido contra a mulher – por razões de condição do sexo feminino – que conquistou uma relevante parcela de poder, e tal posição de destaque é decisiva para a prática do delito. Essa expressão foi inclusive utilizada pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, no voto proferido no julgamento do IDC - Incidente de Deslocamento de Competência 24/DF, envolvendo os homicídios praticados contra Marielle Franco, então vereadora no Rio de Janeiro, e Anderson Gomes: “Daí por que parece mais apropriado afirmar que se tratou, em verdade, de um verdadeiro feminicídio político, o assassinato de uma mulher que, nesta condição e como vereadora, lutava contra as desigualdades de gênero, de raça e classe”.