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1 Distinções Da Dimensão Histórica Da análise* De Marie-Louise von Franz Sigmund Freud deve receber o mérito por ser o primeiro a apontar a importância das experiências infantis na etiologia das neuroses. Depois que pesquisas comportamentais provaram a susceptibilidade dos animais às influências externas nos primórdios da juventude, essa visão sobre as experiências infantis do ser humano foi ainda mais reforçada. No entanto, muitas tendências psíquicas tanto saudáveis quanto patológicas não podem ser rastreadas até as experiências do início da infância. Este fato tem atra- ído muitos pesquisadores para buscar as causas mesmo em experiências pré-natais, mas isso leva a uma especulação sem fim. Em contraste com esta tentativa de explicação histórico-biográfica, muitas correntes de psi- cologia estão procurando explicações para as características psicológicas mais profundas do indivíduo no ambiente social que, em minha opinião, pode realmente ser uma forma de iluminar certos problemas envolvidos com essa questão. Outra fonte foi descoberta por C. G. Jung: a influência sobre a criança não do comportamento social consciente dos pais, mas do inconsciente dos pais. Segundo a visão de Jung, a atmosfera inconsciente do ambiente familiar é até mais influente do que o comportamento pedagó- * Traduzido livremente da edição estadunidense do texto Highlights of the Historical Dimen- sion of Analysis (publicado no livro Archetypal Dimensions of the Psyche pela editora Sham- bala, 1997) por Emanuel Simões, Filipe Jesuino, Nayara Mello e Liciane Alves para leitura e discussão no grupo de estudos de Psicologia Analítica Cultura e o Sujeito Psicológico/ Fort-Ce. 2 gico consciente dos pais. Mas devemos mesmo ir um passo além disso: muitas pessoas (não todas, como veremos mais tarde) são consciente ou inconscientemente dirigidas por algo que tem sido apropriadamente des- crito pelo termo Zeitgeist. O Zeitgeist é um fenômeno curioso. Por um lado é a soma do coleti- vo; perspectivas compartilhadas, sentimentos e ideias de uma geração ou período histórico – por exemplo, o Zeitgeist da Renascença ou o Zeitgeist do Iluminismo. Este tipo de Zeitgeist toma forma predominantemente em centros culturais e aglomerações urbanas, enquanto frequentemente em locais geográficos de partes mais remotas do país e com estratos sociais culturalmente menos interessantes, formas mais antigas de perspectivas e tradições persistem fortemente. Em certo sentido, somente bem poucas pessoas são “modernas”; em cada população aproximadamente todos os estratos históricos são representados – um fato que a psicoterapia deve le- var em consideração. Em minha cidade, Kusnacht, na vizinhança de Zurique, eu tenho en- contrado sempre um franco homem paleolítico. Eu fui para a sua loja de sucatas e comprei uma serra e um cavalete para minha casa de campo de férias. Ao fazê-lo, eu soltei um par de comentários absurdos sobre eletrici- dade, aquele tipo de “contra-senso moderno”. Ele imediatamente me pegou pela manga e me puxou para o jardim atrás da sua casa, insistindo que eu sentasse com ele, e disse, “Você me entende – sim, você me entende! É por isso que vou contar a você como eu vivo. Eu trabalho há poucos meses em uma fábrica, até que eu comecei a juntar dinheiro suficiente. Então eu com- pro carne seca e vinho e vou para o alto das montanhas. Eu mesmo faço uma cama de arbustos e eu vivo lá. Quando não tem ninguém por perto, eu ando nu sobre as geleiras. Sim, e Cristanismo! Não é esse o maior con- tra-senso?! Acreditar que Deus vive em um prédio, em uma igreja! Deus está nas flores, nos cristais, nas nuvens, na chuva! É aí onde Deus está!”. Eu assegurei-lhe de toda minha simpatia, mas imaginei comigo mesma o que a esposa de um homem como esse tem para dizer. Então, coincidentemente, eu esbarrei com ela também. Era uma mulher analfabeta da Sicília – tão primitiva quanto ele era! Quando contei a Jung sobre esse encontro, ele sorriu e disse, “Aí temos uma Suíça da idade da pedra! Ele poderia ser co- locado em um museu provinciano com um letreiro dizendo, ‘Aqui está um 3 suíço dos tempos neolíticos. Você pode entrevistá-lo!”. Um psicólogo pobre de espírito poderia ter considerado o homem louco, mas isso teria sido impreciso. Afinal, ele vivia de uma maneira muito bem ajustada, apenas no período histórico errado. Na Suíça, uma parte da população – principalmente rural – vive na Ida- de Média, e a maioria da população comum de classe média tem uma pers- pectiva que pertence ao século XIX. Rádio e televisão, aparentemente, pou- co fazem para mudar este cenário. Mas não são apenas grupos individuais dentro de uma população que vivem em diferentes períodos históricos. O indivíduo também, como havemos de descobrir alcançando um núcleo das suas profundezas, carrega dentro de si, armazenado no seu inconsciente, todo o passado histórico de seu povo, até mesmo da humanidade como um todo. Por exemplo, até hoje eu nunca analisei um italiano, homem ou mulher, em quem motivos da antiguidade clássica não tenham aparecido nos sonhos em condições completamente vivas. Por exemplo, lembro-me do sonho inicial de um psicólogo de cinquenta e dois anos de idade. Ele viu agrupamentos de nuvens no céu e um jovem magicamente belo com sapatos alados que descia em direção a ele. Ele acordou estranhamente aba- lado. Eu estava muito assustada, porque o jovem era claramente Hermes, o condutor de almas, e de fato isso apareceu logo quando a saúde do homem estava em ruínas. A análise iria ser tornar seu guia para a morte. Ele era, como a maioria dos intelectuais italianos, um comunista de poltrona, mas no seu leito de morte ele encontrou o seu caminho de volta para a Igreja. Mas por que Hermes e não um anjo da morte? Por que os tempos antigos ainda estão muito vivos na Itália. Ou deixe-me dar um exemplo da minha própria vida. Vinte anos atrás eu comprei um pedaço mais afastado de uma propriedade, na beira de uma floresta, e construí uma casa sem energia elétrica, telefone, ou qualquer outra engenhoca da civilização moderna. Muitos dos meus conhecidos tentaram me assustar, dizendo que a casa era muito isolada e perigosa. A primeira noite sozinha na nova casa, eu tive o seguinte sonho. Pela janela eu vi uma procissão de pessoas se aproximando e pensei, “Ó Deus, já outra perturbação!”. Então eu vi que as pessoas eram todas camponeses em trajes medievais e que era uma procissão cerimonial de casamento com a noiva e o noivo à frente. Eu pensei, “Eu devo realmente receber essas pessoas.”. En- 4 quanto eu estava no caminho do porão para pegar algum vinho, eu acordei. Jung interpretou que isso significava que através do meu retorno à terra, os espíritos dos meus antepassados camponeses teriam sido despertados. Foi um retorno às raízes históricas internas. Mas esse não foi o final. Algumas noites depois, eu tive outro sonho. Era final de tarde e eu me dei conta de que tinham pessoas à minha porta. Eu fui ver quem era, e lá estava uma gangue de jovens fantasiados como gnomos de entrudo de carnaval, com máscaras de animais e de fantasmas na fronte. Paulatinamente, entretanto, eles pareciam se transformar mais e mais em fantasmas de verdade. Eu comecei a ter uma misteriosa sensação, e eu voltei para casa e fechei a porta. Então eu vi uma brilhante luz azul en- trando pela janela. Fui até a janela e vi que a minha casa estava toda debaixo d’água, mas era uma água brilhante, reluzente, em que era possível respirar. Em contraste com a realidade, as árvores vieram até a casa. Nelas estavam brincando alegremente grandes macacos cinza-prateados com rostos ne- gros, lemuriformes e com caudas longas. Eu acordei revigorada e reanima- da, como se eu tivesse assistido a esses macacos a noite inteira. Como você pode ver, nesse caso, eu voltei além até mesmo das másca- ras pagãs. Volteipara os espíritos animais ancestrais! Você pode imaginar o quanto a minha “alma de macaco” estava gostando da vida na natureza, enquanto meu ego consciente urbano estava reagindo de forma bastante temerosa, precisando ambientar-se à situação. Assim, como psicólogo, há de se estar sempre familiarizado com todo o fundo histórico de uma pessoa para entendê-la melhor. Lembro-me da análise de um educado homem coreano. Eu tinha me preparado para a cul- tura coreana o melhor possível, mas o que surgiu nos seus sonhos? Motivos que inicialmente eu era completamente incapaz de entender. O sonhador também não podia entendê-los, porque sua única orientação era para o passado budista de seu país. Mas esses eram motivos do xamanismo tun- gúsico! Na verdade os coreanos são da etnia dos tungus, e no período pré -budista, sua religião e terapia artística era o xamanismo. Graças aos livros de Mircea Eliade, Nioradze, Findeisen, e outros, nós dois fomos capazes de chegar a entender esses motivos oníricos. Um caso que deixou uma impressão particularmente forte foi o de um mexicano católico e bem educado. Embora eu tenha gostado dele desde o 5 princípio, eu tive a desconfortável sensação de que eu não o entendia, e eu suspeitava que ele também não estava aproveitando muito do que eu dizia a ele. Então, sem aviso, parecendo sem conexão com sua vida exterior, ele teve o seguinte sonho: Na bifurcação de uma árvore havia uma grande pedra ob- sidiana, que de repente ganhou vida, pulou fora da árvore e rolou ameaçado- ramente em direção ao sonhador. O sonhador estava em pânico e correu pela sua vida, com a pedra dura em seus calcanhares. Então o sonhador avistou alguns trabalhadores, que tinham cavado um buraco retangular no chão. Eles o chamaram e disseram que deveria entrar no meio do buraco e ficar quieto. Ele o fez, no que a pedra obsidiana tornou-se menor e menor, até que estava “mansamente” aos pés do sonhador, não maior do que um punho. Quando eu ouvi este sonho, eu involuntariamente exclamei: “Por Deus, o que você tem a ver com Tezcatlipoca?!”. Coincidentemente, aconteceu de eu saber que a obsidiana foi um dos principais símbolos desse deus asteca primitivo. Então surgiu que o sonhador era três quartos asteca, o que até este momento ele não tinha mencionado, porque no México ainda existem preconceitos raciais. Agora estava claro por que tínhamos tido tal dificul- dade de compreender um ao outro: os nativos americanos pensam por um modo imagético e mitológico, mas com o coração; o nosso pensamento racional é inteiramente estranho para eles. Eu me reorientei e então nós entendemos um ao outro. Depois desse sonho, abriu-se uma ferida profun- da no sonhador – tristeza e ressentimento sobre a brutalidade do pseudo- Cristão Cortez e do seu bando de aventureiros enlouquecidos por ouro, mas também um ardente interesse nos velhos deuses astecas. Assim ele en- controu suas raízes espirituais novamente e também começou a trabalhar criativamente nos antigos textos astecas. Sua neurose foi curada, e ele se transformou muito mais em si mesmo. Ele também podia agora compreen- der melhor a verdade Cristã, isto é, enquanto um paralelo arquetípico dos mitos religiosos astecas. Embora os crimes de Cortez remontem há cerca de quatrocentos anos aproximadamente, esse episódio histórico ficou imedia- tamente atrás da sua desorientação psíquica, o que fez com que o sonhador empreendesse a análise. A divina imagem arquetípica ainda viva do deus Tezcatlipoca literalmente o perseguiu, e, ao encará-lo e tornar-se envolvido em um encontro com ele, ele redescobriu o ponto de conexão com o seus espíritos ancestrais e com suas raízes culturais religiosas. 6 Aqui nós encontramos concretamente uma das descobertas mais signifi- cativas de C.G. Jung, seu conceito de inconsciente coletivo e seus arquétipos. Para Jung, arquétipos são disposições estruturais herdadas e inatas que di- zem respeito aos modos de comportamento específicos da espécie humana. Um aspecto dessas formas é o da ação: eles se expressam em ações típicas, similares em todos os seres humanos e, assim, são instintivos (como Eibl -Eibesfeld, dentre outros, provou, todos os povos da terra se expressam por meio de semelhantes gestos de cumprimento, forma de criação de crianças, de cortejo etc.). Mas além do nível da ação, esses instintos também apresen- tam uma forma que só pode ser percebida internamente na psique, isto é, em sentimentos, emoções, imagens míticas fantásticas e ideias primitivas “mitológicas”, que assumem forma semelhante em todos os seres humanos. Jung se referiu a esse último aspecto como arquetípico. Os arquétipos são elementos primitivos da mente e das culturas mais diversas. Sempre que esse profundo estrato coletivo é ativado em um indivíduo, ele pode ser tanto uma fonte de estruturação criativa e novas realizações espirituais, ou, se algo dá errado, pode se tornar a fonte de estados e ações patológicas. Todas as grandes religiões mundiais que permanecem intactas contém e apresentam em seu imaginário os grandes arquétipos do inconsciente co- letivo – as imagens primitivas do herói-salvador, da grande-mãe, do pai celeste do espírito, do animal ajudante, do criador do mal, da árvore do mundo, do centro do mundo, do além e do reino dos mortos e assim por diante. Frequentemente essas noções primais são tão semelhantes em cul- turas díspares que pesquisadores sociais inventam teorias absurdas de mi- gração para explicar a similaridade. Embora obviamente tenha havido mi- grações e trocas de motivos religiosos, nós psicólogos somos céticos quanto a especulações selvagens nessa área, visto que, em nosso trabalho, temos a experiência diária de que tais imagens originais podem ser ativadas es- pontaneamente no inconsciente de uma pessoa, mesmo em um indivíduo cuja consciência é totalmente alheia a tais imagens. Por exemplo, embora o sonhador mexicano mencionado previamente tivesse uma vaga noção da existência de um velho deus chamado Tezcatlipoca, ele nunca, mesmo remotamente, pensou nele. Depois do sonho, ele primeiro teve que ler ex- tensivamente a seu respeito antes que a imagem do deus começasse a lhe ser compreensível. 7 Pode-se perguntar neste ponto por que seria necessário para uma pes- soa estar em contato com suas raízes histórico-espirituais. Em Zurique nós temos a oportunidade de analisar muitos americanos que vêm ao Institu- to Jung e observar, assim, os sintomas resultantes de um hiato na cultura (emigração de seus antepassados) e uma perda de raízes. Nesse caso nós estamos lidando com pessoas cujas consciências se estruturam de maneira semelhante à nossa. Quando nos aprofundamos, todavia, encontramos algo que parece uma lacuna nos degraus – nenhuma continuidade! Um homem branco cultivado – e abaixo disso uma sombra primitiva, a respeito da qual os americanos geralmente têm menos noção do que nós. O efeito disso é uma certa inquietude e sugestionabilidade, uma susceptibilidade acrítica às correntes da moda, e uma propensão a reações extremas. Claro que isso também tem um lado positivo, que se expressa no senso de empreendedo- rismo e na abertura ao mundo, peculiar ao americano de forma geral. Quan- do se analisa tal povo, mais cedo ou mais tarde, por meio de seus sonhos, a história de seus ancestrais, até o período da sua emigração para os Estados Unidos, é trazida para a discussão. Nesse ponto, a maior parte dos analisan- dos espontaneamente sente a necessidade de fazer uma jornada sentimental à terra de seus ancestrais. A conexão renovada com o país de seus antepas- sados geralmente contribui para um melhor auto-entendimento pela parte dos analisandos. Períodos de emigração ou de participação em outra cultura em geral produzem consequências psicológicas bastante peculiares. O inglês é familiar com a experiência de “tornar-se nativo”, com a qual elesreferem a influência inconsciente sobre os colonizadores e oficiais da colônia, e os demais em funções semelhantes, que são infectados com a mentalidade afri- cana. A influência é inicialmente negativa, assumindo forma de atraso, falta de clareza, uma tendência a criar histórias fantásticas e assim por diante. To- dos, atributos dos quais os brancos rotineiramente acusam os nativos. Essa influência inconsciente negativa pode, todavia, ser transformada em algo positivo se a pessoa em questão não subestimar a outra cultura e, em vez disso, se abrir a ela respeitosamente e tomar seus pontos de vista e traços a sério. Então ela terá um efeito enriquecedor em vez de minorador. Isso é verdadeiro, evidentemente, em todo lugar, não apenas na África. Eu tive a oportunidade de analisar um homem que viveu os primei- ros doze anos de sua vida em Hong Kong. Era impressionante perceber o 8 quanto ele havia inconscientemente se tornado chinês. Durante a análise, quando ele começou a estudar conscientemente a sabedoria chinesa, abri- ram-se horizontes até então não imaginados. Como Jung comentou certa vez, os americanos inconscientemente assimilaram, a si mesmos, muito das populações negras e dos americanos nativos, mesmo daqueles com quem não resguardavam laço de sangue. Hoje, muitos anos após a observação de Jung, os americanos começam a se dar conta disso, e muitos estão ago- ra conscientemente tentando se abrir a essas influências culturais. Ainda é muito pouco, porém, o estudo a elas dedicado. É indiscutível, não obstante, que o país e o povo ao qual alguém pertence e o desenvolvimento histórico que lhes diz respeito são fatores proeminentes na psique dos indivíduos. Estamos profundamente implicados não apenas com nosso passado bio- gráfico, mas com nosso passado histórico coletivo, a despeito de gostarmos ou, mesmo, de percebê-lo. Com efeito, de um ponto de vista psicológico, a história pode se tornar um verdadeiro monstro devorador que é capaz de nos paralisar por com- pleto. O passado, dentro do qual o fluxo dos eventos históricos desaparecem inelutavelmente, é uma força enorme. Por essa razão, as pessoas na Índia representam o tempo como a deusa monstruosa Kali (de kala, azul-negra, morte e tempo), ou no Tibet como Maha-Kala (grande tempo, aquele que é negro e grande), ou em nossa própria cultura como o Pai Tempo, um velho aleijado, saturnino, que devora tudo. Assim como em membros de famílias antigas e cultivadas um fin de race1 pode ser observado, um tipo de fadiga cética que já não deseja recomeçar onde quer que seja, o excesso de passado cultural pode sobrecarregar um povo inteiro. Por exemplo, eu tenho perce- bido frequentemente que em intelectuais italianos as culturas antiga e me- dieval pesam tão intensamente que lhes falta certa ingenuidade que é ne- cessária para dar início a qualquer coisa realmente nova. (Sem dúvida, isso é algo que pode ser superado por meio de entendimento). Como resultado de um perfeccionismo ambicioso que lhes impõe a exibição de sua cultura, expressar-se com refinamento linguístico, e sustentar cada assertiva com incontáveis referências e notas de rodapé, eles produzem coisas que perde- ram todo seu impacto, trabalhos finamente talhados e vazios de poder e de incitação. O passado é como uma poderosa força atrativa que lhe puxa em sua direção e lhe petrifica se você não está mais seguindo em frente ou se 9 para. Eu creio que muitas pessoas se tornaram simpatizantes do Comunis- mo e do anarquismo porque eles pareciam prometer uma tabula rasa para um novo começo. Eles projetaram uma qualidade ingênua e poderosa nas classes sociais mais baixas e esperaram que partisse deles uma renovação criativa. Claro que isso é um erro, uma projeção. Eles devem produzir a tabula rasa e o recomeço criativo dentro de si próprios, pois quando tais transformações são relegadas ao nível externo e coletivo, normalmente se transformam em algo negativo. Mas por que alguma transformação seria necessária, afinal? Por que o Zeitgeist muda em uma cultura no curso dos séculos? Sob o ponto de vista junguiano, isto está conectado com uma contrariedade peculiar na nature- za do homem, que seja, uma certa oposição entre consciente e inconsciente. Eu mencionei previamente que os fatores do inconsciente coletivo têm um duplo aspecto: por um lado, eles se expressam como “instintos” ou “impul- sos” – em formas comportamentais como sexualidade, busca por status, criação dos filhos e territorialidade; pelo outro, manifestam-se como um mundo fantástico mítico-religioso peculiarmente humano. Neste último, Jung enxergou o elemento primitivo da mente, cuja forma de expressão é o ato simbólico e a imagem simbólica. No nível arcaico, por exemplo, trata-se das muitas ideias “mágicas” que se desenvolvem em torno de ações instinti- vas.2 Jung observou na África, por exemplo, que os nativos do monte Elgon cuspiam em suas mãos todas as manhãs e então erguiam suas mãos aber- tas para o sol nascente. Quando ele perguntou sobre o sentido de tal ato, eles só conseguiam responder: “Nós sempre fizemos isso desse jeito”. Eles negavam absolutamente que rezavam para o sol. De fato, a saliva tem o sig- nificado geral de uma “substância da alma” e a oriens, a aurora consurgens, significa o aparecimento da divindade. De nosso ponto de vista psicológico, o gesto arquetípico dos elgonyis significava alguma coisa como “Ó Deus, nos te damos nossas almas como oferendas!” Eles estavam completamente inconscientes do que estavam fazendo, no entanto. Eles sabiam tão pouco a seu respeito quanto nós em relação a por que escondemos ovos de páscoa ou colocamos luzes de natal em uma árvore que levamos para nossa sala no período natalino. O mundo instintivo do primitivo, como Jung indicou, não é simples de forma alguma. É, ao contrário, um complexo jogo de ações de instintos 10 fisiológicos com tabus, ritos e ensinamentos tribais, que impõem restrições formais ao instinto, prevenindo todos os instintos de atuarem desimpedida e unilateralmente, e disponibilizando-os para propósitos mais elevados, ou seja, para atividades espirituais, que, nesse nível, são parte da religião. As- sim, instinto e mente, em última instância, não são opostos mas interagem como parte de um equilíbrio psíquico finamente ajustado. Todas as formas de religião, contudo, apresentam uma tendência de se fixar em um formato rígido, no qual o equilíbrio original entre as configurações espiritual e fi- siológica se convertem em conflito – a forma espiritual se enrijece em puro formalismo e veneno ou suprime os instintos, que se vingam então por meio de uma tendência crescente na direção de uma atuação desenfreada. Esse desenvolvimento aparentemente desfavorável se repetiu incontáveis vezes no curso da história dos povos. Consoante Jung, isso não é uma catás- trofe sem sentido; seu significado oculto, na verdade, é o que ela impulsiona o desenvolvimento humano no sentido de maior diferenciação. Não há, com efeito, declínio da energia sem um polo oposto, e portanto a natureza continuamente cria tensões conflitantes, que com toda a probabilidade tem a função de produzir um terceiro fator mais diferenciado como solução. Sempre que a harmonia entre as formas religiosa e instintiva é perturbada pela pelo enrijecimento da primeira, uma situação de emergência psíquica se estabelece. No passado isso foi regularmente retratado pelo mito do de- saparecimento dos deuses benfazejos e da ascendência de outros, funestos; ou no mito de que, como resultado da hybris ou da blasfêmia, os deuses se tornam remotos; ou (na China, por exemplo) o mito de que o céu e a terra não estavam mais em harmonia. Em tais momentos, novos símbolos religiosos que reconciliam ou unem os opostos são sempre constelados no inconsciente coletivo – normalmente na imagem de uma “pessoa cósmica”, que,como curandeiro e salvador, une uma vez mais os aspectos superior e inferior da criação. A causa desse processo de transformação, que pode ser evidenciado ao ocorrer repetidamente na história espiritual dos povos e que nós temos de- lineado apenas brevemente aqui, é pra ser achada primeiramente na ten- dência de formas espirituais rígidas. Isso está conectado ao fato de que é da natureza da consciência humana desejar, ou até mesmo ter que formular e apontar coisas de uma maneira clara e não ambígua. Por contrapartida, a 11 vida inconsciente psíquica tende a modelos de comportamento mais flui- dos e menos precisos. Esta é a razão pela qual, em indivíduos, assim como em culturas como um todo, consciente e inconsciente podem cair em opo- sição. Quando isto ocorre, nós falamos de neurose em indivíduos e em cul- turas, de uma crise espiritual. (Obviamente, nos achamos hoje em meio a este tipo de situação outra vez!) Isso significa, como Jung apontou, que hoje muitos indivíduos têm neuroses puramente facultativas. Se eles vivessem em outros tempos, eles seriam normais, não perturbados psiquicamente; mas eles estão profundamente movidos pelas crises históricas prevalecen- tes em nosso tempo e ficam inconstantes por causa delas. Assim, nós não podemos achar as causas desse padecimento na história pessoal de tal pes- soa; ao invés disso, devemos achar uma solução com ele – nós fazemos isso com a ajuda de seus sonhos - para o problema do nosso tempo. Contudo, como dissemos, essas crises coletivas garantem a necessidade de um desen- volvimento subsequente da consciência humana – no nível individual e co- letivo. Elas são causas motivadoras, balisando renovos espirituais criativos. Porque esse é um processo humano universal tipicamente psicológico, ele também tomou forma simbólica no folclore e nos mitos - em curado pela água da vida. O rei ancião doente é um símbolo para as configurações espirituais enrijecidas da cultura acima referidas, que não estão mais em harmonia com a esfera dos instintos nem com as tendências inconscien- tes espirituais do inconsciente coletivo. O renovo é normalmente trazido à tona no mito por um herói, que é com freqüência um homem modesto ou um completo simplório. Esse mito encontra-se entre todos os povos da Terra, e sua existência mostra quão importante esse tipo de transformação histórico-psicológica é. Se direcionarmos nossa atenção, com a ajuda dos sonhos, aos proces- sos que estão ocorrendo no inconsciente coletivo, somos capazes, até certo ponto, de prever determinado desenvolvimento histórico ou espiritual. É também, em atentar para esses processos, que profecias são fundamental- mente estabelecidas. E é por estarem de acordo com as regras mitológicas que os profetas do Velho Testamento eram com freqüência menosprezados, deveras, até tidos como simplórios ou homens loucos. Deste modo, Eliseu foi referido como louco (2 Reis 9:11) assim como foi Jeremias (Jeremias 29:26), e em Oséias 9:7, o seguinte é apresentado como a vox populi3: “O 12 profeta é um tolo, o homem espiritual é louco”. Quando o povo viu o arre- batamento de Saul, eles disseram, “O que aconteceu com o filho de Quis? Está Saul também em meio aos profetas?” querendo dizer que tal com- portamento era de forma alguma apropriado para um rei4. Mas o profeta enxerga as profundezas e dessa forma prediz desenvolvimentos espirituais futuros através de imagens. Dessa forma, a Igreja enxergou nas visões do Filho do Homem no Livro de Daniel e no Livro de Enoque (60:10), um presságio da vinda de Cristo, para dar apenas um exemplo. Se a hipótese de que transformações espirituais podem ser lidas anteci- padamente no inconsciente coletivo é verdadeira, então a pergunta natural- mente surge onde nós nos encontramos agora com nossa crise moderna. C. G. Jung, em seu trabalho “Resposta a Jó” e Aion, fez uma tentativa de respon- der a essa questão. Repetindo o que é dito ali em linhas gerais, o problema pode ser figurado como segue: No Velho Testamento, a imagem de Deus é completa no sentido de que Yahweh contém ambos bem e mal dentro de si: “Eu formo a luz e crio as trevas, promovo a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas.” (Isaías 45:7). Com o advento do Cristianismo, nesse sentido, uma grande transformação ocorre. Não só Deus tornou-se homem em Cristo, ele se tornou mais e mais somente o justo, o Deus bom. Satanás, por outro lado, como é dito, “caiu como um relâmpago do Céu.” De agora em diante é ele que é o criador do mal. No primeiro milênio Cristão, nós encon- tramos uma luta constante para suprimir o mal e ajudar o bem a triunfar. Daí, no ano 1000, muitas pessoas esperavam o Julgamento Final, a derrota do mal e o fim do mundo. Antes disso, no entanto, como Cristo mesmo profetizou, o Anticristo apareceria e estabeleceria um breve domínio do mal. Quando, no ano 1000 o mundo não acabou, uma transformação psicológica ocorreu, que foi caracterizada pelo fato de o problema do mal ter entrado uma vez mais no campo de visão das pessoas, ou até mesmo ter-se tornado manifesto em todos os tipos de movimentos anti-Cristianismo. O retorno das tradições espirituais pagãs ao Ocidente, pelo caminho dos Árabes, trouxe, ao mesmo tempo, a revalorização da natureza – no Renas- centismo - e igualmente, do mundo. Isso levou – sem muitos detalhes, já que estas são coisas que são muito discutidas hoje em dia – à orientação comple- tamente mundana das ciências naturais modernas, assim como à racionaliza- ção do Iluminismo. Apesar de esta racionalização ter sido inicialmente usado 13 pela Igreja contra aqueles cujas crenças diferiam das da mesma, hoje tem lançado dúvida nas próprias crenças. O Socialismo e Comunismo Nacional foram movimentos vastos que causaram – e ainda causam – a desintegração da crença Cristã, se tornando evidente por um grande número de pessoas. Na visão de Jung, no entanto, existe hoje no inconsciente coletivo uma ten- dência clara para entender os pólos do bem e do mal, que se dividiram para muito longe um do outro, em sua relatividade psicológica e para reconci- liá-los novamente dentro da imagem integral de Deus. Essa reconciliação, todavia, só pode vir a acontecer, obviamente, através de um intermediário, e este é, de acordo com Jung, o princípio feminino negligenciado até aqui. A séria critica de Jung à religião do Velho Testamento – e, também, novamente ao Protestantismo de hoje- é que é uma religião puramente masculina. Co- meçando com o papel proeminente de Eva na história da Queda do Homem, a tendência a associar a mulher com o mal tem se manifestado constante- mente. Os lugares de profeta e de sacerdote são negados à ela. Até mesmo ainda hoje, na sinagoga Ortodoxa, uma mulher não pode cumprimentar um rabino com um aperto de mão, e é permitida participar dos cultos somente atrás de uma tela de grade! Na sabedoria relativamente tardia dos livros do Velho Testamento, finalmente uma figura feminina aparece, a personificação da “Sabedoria de Deus”, que é louvada como uma árvore pagã e uma deusa da fertilidade: “Eu fui exaltada como um cedro no Líbano, e como uma árvore de cipreste sobre as montanhas do Hermon [...] Eu sou a mãe do amor jus- to:[...][I] sou dada a todos os meus filhos” (Eclesiastes 24:13ff). Essa figura da Sapientia Dei5 tem sido interpretada a propósito como a anima de Cristo, como o elemento feminino na configuração do seu sim- bolismo. Na Idade Média, ela era tida, também, como um tipo de alma mundana que une todas as coisas. E não menos importante, de acordo com a visão da Igreja Católica, ela era a prefiguração de Maria. Certamente não é coincidência que foi em Éfeso que Maria foi, mais tarde, elevada ao status de “Portadora de Deus”; Éfeso foi a cidade do culto de Artemis Ephesia, a grande mãe dos deuses. Pelo menos no mundo Católico, um certo elemen- to psíquicofeminino persistiu na forma de veneração a Maria. Mas o prin- cipio feminino busca mais do que a reconciliação, mais que a polarização dos opostos, que é de fato por que a Mãe de Deus é considerada mediadora. Quando visto à luz desse contexto histórico, fica mais fácil entender por- 14 que o psicólogo C. G. Jung exaltava a celebrada Declaratio Assumptionis Mariae do Papa Pio XII como a grande obra espiritual do nosso século. É claro que não existe muito na Declaratio que já não tenha sido incorporado no costume dos povos. De qualquer forma, a Declaratio é notável porque reconhece e acomoda uma tendência muito moderna do inconsciente co- letivo: a Mãe de Deus ascendendo ao céu junto com seu corpo, que não foi recebido sem pecado, denotando indiretamente, também, uma aceitação do corpo humano muito mais ampla e, com ele, da matéria como um todo. Isso retira a força do materialismo anti-Cristão. Pois é uma tendência clara no inconsciente das pessoas hoje não mais excluir seus corpos e sua sexua- lidade da completude de seu desenvolvimento e da realização de si mesmo, da maneira como o homem medieval fez, com seus exercícios estéticos. Foi interessante ver como indivíduos reagiram a Declaratio. A maioria deles, eu incluída, quase não prestou atenção aos artigos dos jornais. Muitas pessoas pensaram que isso era uma edição completamente desatualizada – mas não os seus inconscientes. Uma série inteira de reações oníricas a Declaratio foi trazida à minha prática analítica. Por exemplo, uma mulher Protestante que, em um nível consciente não notou a notícia, teve o se- guinte sonho: Ela estava passando pela Ponte Limmat e indo para um lugar habitual em Zurique. Lá, uma grande multidão de pessoas estava reunida. As pessoas estavam dizendo, “A ascensão de Maria vai acontecer aqui.” Ela se misturou à multidão e começou a olhar junto com os outros para uma plataforma de madeira onde o evento deveria acontecer. Lá, uma mulher negra maravilhosamente bonita apareceu despida. Ela levantou as mãos e vagarosamente flutuou em direção ao céu. Que a Virgem Maria apareceu como uma mulher negra não precisa surpreender ninguém. Existem, afinal, madonas negras em vários lugares. Como eu interpreto o acontecido, no sonho, isso só serve para dar ênfase especial ao elemento ctônico primordial. Na realidade, a mulher tinha di- ficuldade de aceitar sua feminilidade em um nível corporal. Ela frequente- mente escapava disto para reinos da mentalidade masculina. Deste modo, o sonho enfatiza que o corpo feminino é também espiritual, e , com efeito, tem ainda uma função sagrada. Para o psicólogo, é interessante ver o que aconteceu após a Declaratio na Igreja – uma campanha contra o celibato dos sacerdotes e outra para permitir 15 que mulheres assumam ofícios eclesiásticos. No entanto, os escritos advogan- do essas causas quase nunca invocam a Declaratio como um argumento, de um ponto de vista psicológico, essas camapanhas foram uma conseqüência direta ou uma continuação da direção espiritual expressada na Declaratio. Não menos importante neste contexto é a onda de movimentos de mu- lheres, que tomaram largas proporções particularmente na América do Norte. Não é de maneira alguma minha intenção aqui a de avaliar todos esses movimentos de forma positiva ou negativa; os menciono apenas en- quanto sintoma psicológico. Eu, pessoalmente, não acredito que mulheres em partes do mundo povoadas pela raça branca são mais oprimidas agora ou tenham sido mais oprimidas recentemente que foram há muito tempo. Então, esses movimentos estão sendo desencadeados por uma constelação arquetípica no inconsciente coletivo; contudo, esta prórpia constelação re- sulta de uma negligência de longa data do princípio feminino. O leitor terá notado que eu frequentemente digo “princípio feminino” e não “mulher”. De fato, o último se refere a algo diferente daquilo de que estou falando. Como Jung apontou, homens também possuem componen- tes psíquicos femininos, os quais Jung chamou de anima do homem. Se um homem suprime seus aspectos femininos, a conseqüência é que ele se torna inconscientemente “feminino”. Isto toma a forma de humores irracionais, acessos repentinos de sentimentalismo, fascinação com pornografia, quali- dades histéricas, e etc. Se, por outro lado, ele reconhece conscientemente e desenvolve seus traços femininos, ele então se apegara menos rigidamente a princípios, tornando-se, geralmente, mais “humano”, mais caloroso emo- cionalmente, e se tornará mais aberto ao lado irracional e artístico da vida. O período histórico do amor cortês mostrou que bonitas formas culturais podem surgir através do reconhecimento da anima. Infelizmente, esse perí- odo foi substituído pelo período da caça as bruxas e pela renovada supres- são do princípio feminino. Que o reconhecimento do principio feminino é ainda mais importan- te para mulheres que para homens, é obvio. Na ausência dele, mulheres devem tornar-se masculinas de modo a triunfarem, ou então elas perma- necem incapazes de superar uma profunda falta de auto-confiança. Para o momento, não é minha intenção avaliar os movimentos acima referidos; em vez disso, a esta altura, estou interessada em mostrar com o que uma 16 transformação desse tipo no Zeitgeist se parece e como indicar que tais mudanças são provavelmente baseadas nos profundos processos transfor- macionais do inconsciente coletivo. Esses processos se estendem por longos intervalos de tempo, até mesmo séculos. Portanto, a corrente que se encaminha adiante do princípio femi- nino nas culturas cristãs tem uma longa pré-história. De novo e de novo, o princípio feminino tem brotado para compensar a unilateralidade do inte- lectualismo e do tom patriarcal de prevalência dos padrões culturais. Hoje, no entanto, ele parece estar forçando o seu caminho a um primeiro plano em uma escala particularmente grande, pois, por trás disso, um problema ainda mais profundo está sendo ativado - o problema do mal. Até agora no mundo cristão este problema tem sido puramente suprimido ou tratado como insignificante. Mas agora, o terrorismo mundial, um enorme aumen- to nos crimes, e a total ausência de direitos do indivíduo que tem prevale- cido em muitos países nos confronta. A profecia de Cristo sobre a inevitável vinda do Anticristo parece estar se tornando verdade. Essa profecia foi psicologicamente possível porque o “programa” Cristão tem contido até aqui uma ênfase unilateral na bon- dade e justiça de Deus. Nesses casos, de acordo com a nossa experiência psicológica, mais cedo ou mais tarde alguma repercussão deverá ocorrer. O princípio feminino do qual estivemos falando é o único mediador possível entre os opostos. Quando nós lemos os jornais ou escutamos o rádio nos dias de hoje, nós ouvimos infindáveis reportagens um tanto quanto seriamente pesquisadas, sobre porque o terrorismo está aumentando ou porque as mulheres estão, de repente, procurando mais reconhecimento. Entretanto, um insight que vá em direção a dimensões mais profundas desses problemas, o que iria re- querer um conhecimento de história, é raro. Isso acontece porque o leitor ou ouvinte mediano de hoje ainda não sabe nada ou quase nada sobre a exis- tência do inconsciente nas pessoas, e digamos ainda, nada do inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo manifesta-se a si mesmo em uma dimen- são histórica de intervalos seculares, como nós vimos, por exemplo, no caso do sonho Tezcatlipoca do nosso amigo mexicano. Se mais e mais pessoas viessem a conhecer o inconsciente coletivo através de suas próprias experi- ências, eu acredito que as histórias - primariamente nossa história espiritual 17 e intelectual - poderiam ser vistam em uma outra dimensão bem diferente de como elas presentemente são. Mas nós ainda estamos longe disso. A dificuldade repousa no fato deque os processos básicos se locali- zam no inconsciente, e o inconsciente realmente é, como o nome diz, não consciente. Além disso, apesar da mulher que sonhou com a Virgem Maria negra ter tido tendências feministas em seu consciente, ela não sabia de nada sobre as raízes históricas desse problema e, como nós mencionamos, não tinha tido pensamento nenhum sobre a Declaratio Assumptions. Para a sua consciência Protestante, aquilo era no melhor dos casos uma preo- cupação antiquada. No entanto, é da maior importância que nos torne- mos mais educados a respeito da história, e isto não deveria ser meramente uma questão de aprender quem conquistou quem e quais países passaram de mãos em mãos - isso não é mais que uma continuação do padrão da história natural de comer e ser comido. Na verdade, uma educação como esta deveria envolver conhecimentos vivos da nossa história religiosa, da mitologia Cristã como Jung a formulou. Nosso mexicano sonhou não com Cortez nem com a perseguição racial dos índios, mas com o Tezcatlipoca, a ainda viva imagem arquetípica do deus primitivo de seu povo. A história prova, como Arnold Toynbee tem mostrado de um modo particularmente impressionante, que povos e grupos humanos que perdem sua mitologia religiosa são rapidamente destruídos. Sua mitologia provi- dencia um significado para a vida que os fazem sentir como uma harmo- niosa parte do cosmos inteiro. Isto, por exemplo, é a grande importância dos mitos de criação. Se você quiser se familiarizar com esses assuntos leia, por exemplo, o excelente livro de Marcel Griaule, Dieux d’eaux, no qual o sábio velho cego Ogotomeli apresenta o rico complexo sistema de mundo do Dogon, que dá seu sentido cósmico religioso a tudo. Até mesmo as mais ordinárias ações cotidianas e instrumentos da tribo. Muitos povos também, como por exemplo os Polinésios, enumeram em seus contos todos os seus reis anteriores em intermináveis longas listas, como uma forma de preser- var sua conexão com o passado. De acordo com os índios Zuni, os deuses contaram ao seu emissário, o contador de histórias Kaiklo: “ Assim como uma mulher que tem filhos é amada porque ela mantém a corrente de seu clã intacta, assim irá você, o qual incansavelmente nos escuta (enquanto nós recontamos nossos mitos), ser amado pelos deuses e honrado pelos 18 seres humanos, pois você mantém as histórias da criação intactas e tudo que nós fazemos, conhecido”. No Egito antigo, sempre que o rei mostrava a si mesmo as pessoas durante a procissão, os portadores dos estandartes carregavam os estandartes de seus quatorze predecessores atrás dele, re- presentando os seus kas - suas almas imortais e virilmente energizadas – a fim de mostrar que o passado inteiro, do modo como foi, estava atrás dele e sancionava suas ações. Sempre que esse tipo de mitologia histórico-religiosa de um povo é des- truída, as pessoas perdem seu sentimento de pertença a um todo significa- tivo e se tornam desorientadas. Assim, nós vemos hoje a quantidade de tri- bos indígenas Norte Americanas que são forçadas a combater o alcoolismo e redução em sua taxa de natalidade – uma redução absoluta. Sua mitologia é destruída e com ela o sentimento de significado de suas existências. Para pessoas assim a única meta que resta é a de adquirir bens materiais nesse mundo - ou então morrer. Os jovens vão embora, os velhos caem em um estado de resignação, e a tribo desintegra-se. Onde quer que o racionalis- mo moderno e tecnológico entra em contato com pessoas que ainda vivem imperturbáveis nos termos de sua mitologia, nós podemos ver esse quadro triste. A “loja de departamento” se torna então o templo moderno. Em Bali, eu tive uma vez uma conversa com uma Balinesa de aparência aristocrática que havia se casado com um Italiano. Ela havia vivido por um curto período de tempo em Roma e estava agora vivendo com seu marido em Bali novamente. Eu disse, “ Você deve estar feliz por estar vivendo em sua terra natal de novo.” “Ah, não”, ela respondeu, “ Eu realmente anseio por voltar a Roma.” “ O que você gostava em Roma?”, eu perguntei. “Ah,”, ela disse, “as grandes e ricas lojas de departamento.” Então não foi o Fórum ou o Vaticano! Mas não ria dessa mulher – há também entre nós cada vez mais pessoas para as quais os bancos e as lojas de departamento são os verdadeiros lugares sagrados. Este é um desenvolvimento neurótico falho do qual um grande número de pessoas e grupos sociais inteiros sofrem. Muitos têm perdido todos os valores espirituais que transcedem a realidade material. Nós também perdemos partes consideráveis de nossa mitologia espiritual, e nós também, portanto, como professores de história, somos ameaçados por um concreto declínio histórico. Como Jung apontou, são os representante oficiais das igrejas, dentre outros, a quem se deve culpar. “O 19 Cristianismo adormeceu” e tem negligenciado se relacionar com a agitação do crescimento da psique inconsciente. Hoje em dia, quando pacientes neuróticos nos procuram para tratamen- to, eles frequentemente estão sofrendo apenas parcialmente por problemas pessoais. Muitas pessoas vem nos dias de hoje porque estão sofrendo da falta de sentido e esperança do nosso tempo. Hoje existe uma melancolia ou mal-humor coletivos, um mal-estar que se apoderou de grupos intei- ros. Aqui há uma semelhança com a época da queda do Império Roma- no. Quanto mais os povos primitivos facilitam as coisas para si mesmos, distraindo-se com panem et circenses6 ou encontrando alguma válvula de escape externa na qual eles podem descarregar sua fúria/desespero, o que é claro não leva a lugar nenhum. No entanto, outros sofrem profundamente da aparente falta de sentido de sua existência. Com isso, o cuidador tem que descer ao inconsciente com os olhos abertos, para assim trazer de volta a resposta da psique que já repousa esperando nas profundezas. Eu gostaria de relatar para você o sonho de um Americano que ilustra claramente essa crise do nosso tempo. Para os psicólogos entre vocês, dei- xe-me destacar que o sonhador nem é psicótico e nem está ameaçado por psicose. O seu sonho segue desse modo: Eu estou percorrendo a tão falada Palisades da qual pode-se olhar por cima a cidade de Nova Iorque. Eu estou caminhando com uma mulher (a anima) desconhecida e um homem que está nos guiando. Nova Iorque foi reduzida a pedregulhos; há fogos em todas as partes. As pessoas estão fugindo em todas as direções. O rio Hudson transbordou de suas margens. No crepúsculo bolas de fogo vindas do céu. É o fim do mundo, a destruição completa de nossa civilização inteira. A causa disso foi uma raça de gigantes que veio do espaço. Eu os vi pegando pessoas e as devorando. Nosso guia nos explicou que esses gigantes vieram de diferentes planetas onde eles viviam juntos em paz. Na ver- dade eles haviam concebido a vida na terra e “cultivaram” nossa civilização do mesmo modo que alguém cultiva vegetais em um jardim. Agora eles vieram para a colheita, pois um evento especial estava para ocorrer. Eu fui salvo pois possuía a pressão sangüínea levemente alta, mas fui escolhido para passar por uma provação terrível. Eu vi diante de mim um gigantesco trono de ouro, radiante como o sol. Nele estavam sentados o rei e a rainha dos gigantes. Eles eram os autores da destruição do nosso plane- 20 ta. Minha provação consistia em ter que vivenciar a destruição. Mas havia mais. Eu tinha que escalar uma escadaria íngreme até a altura do rei e da rainha. Eu comecei a subida, a qual foi longa e difícil. Meu coração batia violentamente. Eu tinha medo, mas eu sabia que o destino da humanidade estava em jogo. Então eu despertei coberto de suor. Enquanto eu acordava, eu percebi que a destruição da Terra era o banquete de casamento do rei e da rainha. Foi por isso que eu tive aquela estranha sensação quando os vi. A primeira partedo sonho nos faz recordar do Livro de Enoque. Nele está escrito que um número de anjos cobiçaram pecaminosamente mulhe- res humanas. Com eles foi gerada a raça dos gigantes, a qual começou a destruir a Terra inteira. Entretanto, os anjos também ensinaram aos huma- nos novas artes e ciências. Por conta do protesto dos anjos leais, Deus viu a si mesmo obrigado a dar um fim à destruição. Então se segue a visão do “Fi- lho do Homem.” C.G. Jung interpreta esse mito como “ Resposta a Jó.”7 Ele representa a invasão prematura da consciência humana por conteúdos do inconsciente coletivo (daí as novas artes). Isso produz uma inflação, uma qualidade pomposamente arrogante, um exagerado senso de auto-impor- tância nas pessoas. A visão do Filho do Homem aponta para a verdadeira solução que está sendo solicitada pelo inconsciente. Em nosso sonho moderno a solução é o banquete de casamento do rei e da rainha. Isso significa a união de opostos psíquicos. Essa imagem li- bertadora pode ter seu efeito de alforria apenas se o sonhador tomar para si o trabalho duro de escalar ao mais alto nível de consciência necessá- rio para a realização dessa imagem. A ascensão significa aquilo que Jung vai chamar de individuação, isto é, auto-realização. O sonhador tem essa grande tarefa posta a ele pelo seu inconsciente. Na primeira parte da vida, melhor ajustamento ao mundo externo frequentemente significa a cura de uma neurose. No caso de algumas pessoas jovens e na maioria das pesso- as acima de quarenta anos, no entanto, não há possibilidade de cura se as pessoas em questão não encontrarem algo dentro delas que possam cha- mar de significado de suas vidas, uma solução, ou na verdade, a solução delas ao problema geral de nosso tempo. Para muitos, um retorno a suas raízes espirituais, uma compreensão renovada e um melhor entendimento das antigas verdades é suficiente. Para outros, no entanto, o inconsciente parece estar procurando a realização de algo que nunca esteve lá antes, algo 21 criativamente novo - mas ainda assim um novo que não despreza o antigo mas na verdade adiciona algo a ele, como o novo anel anual em uma árvore em crescimento. Esses últimos indivíduos são aqueles com uma natureza criativa. Pessoas como essas nunca são poupadas das crises o do sofrimen- to do nascimento espiritual - o isolamento, serem incompreendidas - mas não também da emoção da realização. Na visão de mundo de Carl Jung, aquilo que é eternamente o mesmo, o antigo transmitido pela tradição, e o criativamente novo não constituem nenhum tipo de antítese absoluta. De fato, o mundo dos arquétipos apresenta estruturas psíquicas básicas que permanecem idênticas a si mesmas através dos milênios, mas que, ao mes- mo tempo, são um elemento dinâmico organizador por trás de cada nova criação, pois elas estão em movimento e reconstelam a si mesmas de nova maneira em processos de transformação de intervalos seculares. Notas 1 N. do T.: Em francês, no original. Expressão idiomática que significa degene- ração. 2 Cf. C.G. Jung. Mysterium Conjunctionis, v.14 das obras compiladas, § 602. 3 N. do T.: Em latim, no original. Expressão que significa a voz do povo. 4 Cf. R. Scharf-Kluger,Saul und der Geist Gottes. Studien zur Analytischen Psy- chologic C. G. Jungs (Saul and the Spirit of God: Studies in the Analytical Psycho- logy of C. G. Jung) (Zurich: Rascher, 1955),vol. 2, pp. 215ff. 5 N. do T.: Em latim, no original. Expressão que significa sabedoria. 6 N. do T.: Em latim, no original. Expressão que significa pão e circo. 7 C. G. Jung, cw 11, pp. 355ff
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