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Distinções da dimensão histórica da análise

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Distinções Da Dimensão 
Histórica Da análise*
De Marie-Louise von Franz
Sigmund Freud deve receber o mérito por ser o primeiro a apontar a 
importância das experiências infantis na etiologia das neuroses. Depois 
que pesquisas comportamentais provaram a susceptibilidade dos animais 
às influências externas nos primórdios da juventude, essa visão sobre as 
experiências infantis do ser humano foi ainda mais reforçada. No entanto, 
muitas tendências psíquicas tanto saudáveis quanto patológicas não podem 
ser rastreadas até as experiências do início da infância. Este fato tem atra-
ído muitos pesquisadores para buscar as causas mesmo em experiências 
pré-natais, mas isso leva a uma especulação sem fim. Em contraste com 
esta tentativa de explicação histórico-biográfica, muitas correntes de psi-
cologia estão procurando explicações para as características psicológicas 
mais profundas do indivíduo no ambiente social que, em minha opinião, 
pode realmente ser uma forma de iluminar certos problemas envolvidos 
com essa questão. Outra fonte foi descoberta por C. G. Jung: a influência 
sobre a criança não do comportamento social consciente dos pais, mas do 
inconsciente dos pais. Segundo a visão de Jung, a atmosfera inconsciente do 
ambiente familiar é até mais influente do que o comportamento pedagó-
* Traduzido livremente da edição estadunidense do texto Highlights of the Historical Dimen-
sion of Analysis (publicado no livro Archetypal Dimensions of the Psyche pela editora Sham-
bala, 1997) por Emanuel Simões, Filipe Jesuino, Nayara Mello e Liciane Alves para leitura e 
discussão no grupo de estudos de Psicologia Analítica Cultura e o Sujeito Psicológico/ Fort-Ce.
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gico consciente dos pais. Mas devemos mesmo ir um passo além disso: 
muitas pessoas (não todas, como veremos mais tarde) são consciente ou 
inconscientemente dirigidas por algo que tem sido apropriadamente des-
crito pelo termo Zeitgeist.
O Zeitgeist é um fenômeno curioso. Por um lado é a soma do coleti-
vo; perspectivas compartilhadas, sentimentos e ideias de uma geração ou 
período histórico – por exemplo, o Zeitgeist da Renascença ou o Zeitgeist 
do Iluminismo. Este tipo de Zeitgeist toma forma predominantemente em 
centros culturais e aglomerações urbanas, enquanto frequentemente em 
locais geográficos de partes mais remotas do país e com estratos sociais 
culturalmente menos interessantes, formas mais antigas de perspectivas 
e tradições persistem fortemente. Em certo sentido, somente bem poucas 
pessoas são “modernas”; em cada população aproximadamente todos os 
estratos históricos são representados – um fato que a psicoterapia deve le-
var em consideração.
Em minha cidade, Kusnacht, na vizinhança de Zurique, eu tenho en-
contrado sempre um franco homem paleolítico. Eu fui para a sua loja de 
sucatas e comprei uma serra e um cavalete para minha casa de campo de 
férias. Ao fazê-lo, eu soltei um par de comentários absurdos sobre eletrici-
dade, aquele tipo de “contra-senso moderno”. Ele imediatamente me pegou 
pela manga e me puxou para o jardim atrás da sua casa, insistindo que eu 
sentasse com ele, e disse, “Você me entende – sim, você me entende! É por 
isso que vou contar a você como eu vivo. Eu trabalho há poucos meses em 
uma fábrica, até que eu comecei a juntar dinheiro suficiente. Então eu com-
pro carne seca e vinho e vou para o alto das montanhas. Eu mesmo faço 
uma cama de arbustos e eu vivo lá. Quando não tem ninguém por perto, 
eu ando nu sobre as geleiras. Sim, e Cristanismo! Não é esse o maior con-
tra-senso?! Acreditar que Deus vive em um prédio, em uma igreja! Deus 
está nas flores, nos cristais, nas nuvens, na chuva! É aí onde Deus está!”. Eu 
assegurei-lhe de toda minha simpatia, mas imaginei comigo mesma o que a 
esposa de um homem como esse tem para dizer. Então, coincidentemente, 
eu esbarrei com ela também. Era uma mulher analfabeta da Sicília – tão 
primitiva quanto ele era! Quando contei a Jung sobre esse encontro, ele 
sorriu e disse, “Aí temos uma Suíça da idade da pedra! Ele poderia ser co-
locado em um museu provinciano com um letreiro dizendo, ‘Aqui está um 
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suíço dos tempos neolíticos. Você pode entrevistá-lo!”. Um psicólogo pobre 
de espírito poderia ter considerado o homem louco, mas isso teria sido 
impreciso. Afinal, ele vivia de uma maneira muito bem ajustada, apenas no 
período histórico errado.
Na Suíça, uma parte da população – principalmente rural – vive na Ida-
de Média, e a maioria da população comum de classe média tem uma pers-
pectiva que pertence ao século XIX. Rádio e televisão, aparentemente, pou-
co fazem para mudar este cenário. Mas não são apenas grupos individuais 
dentro de uma população que vivem em diferentes períodos históricos. O 
indivíduo também, como havemos de descobrir alcançando um núcleo das 
suas profundezas, carrega dentro de si, armazenado no seu inconsciente, 
todo o passado histórico de seu povo, até mesmo da humanidade como 
um todo. Por exemplo, até hoje eu nunca analisei um italiano, homem ou 
mulher, em quem motivos da antiguidade clássica não tenham aparecido 
nos sonhos em condições completamente vivas. Por exemplo, lembro-me 
do sonho inicial de um psicólogo de cinquenta e dois anos de idade. Ele 
viu agrupamentos de nuvens no céu e um jovem magicamente belo com 
sapatos alados que descia em direção a ele. Ele acordou estranhamente aba-
lado. Eu estava muito assustada, porque o jovem era claramente Hermes, o 
condutor de almas, e de fato isso apareceu logo quando a saúde do homem 
estava em ruínas. A análise iria ser tornar seu guia para a morte. Ele era, 
como a maioria dos intelectuais italianos, um comunista de poltrona, mas 
no seu leito de morte ele encontrou o seu caminho de volta para a Igreja. 
Mas por que Hermes e não um anjo da morte? Por que os tempos antigos 
ainda estão muito vivos na Itália.
Ou deixe-me dar um exemplo da minha própria vida. Vinte anos atrás 
eu comprei um pedaço mais afastado de uma propriedade, na beira de uma 
floresta, e construí uma casa sem energia elétrica, telefone, ou qualquer 
outra engenhoca da civilização moderna. Muitos dos meus conhecidos 
tentaram me assustar, dizendo que a casa era muito isolada e perigosa. A 
primeira noite sozinha na nova casa, eu tive o seguinte sonho. Pela janela 
eu vi uma procissão de pessoas se aproximando e pensei, “Ó Deus, já outra 
perturbação!”. Então eu vi que as pessoas eram todas camponeses em trajes 
medievais e que era uma procissão cerimonial de casamento com a noiva e 
o noivo à frente. Eu pensei, “Eu devo realmente receber essas pessoas.”. En-
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quanto eu estava no caminho do porão para pegar algum vinho, eu acordei. 
Jung interpretou que isso significava que através do meu retorno à terra, os 
espíritos dos meus antepassados camponeses teriam sido despertados. Foi 
um retorno às raízes históricas internas.
Mas esse não foi o final. Algumas noites depois, eu tive outro sonho. 
Era final de tarde e eu me dei conta de que tinham pessoas à minha porta. 
Eu fui ver quem era, e lá estava uma gangue de jovens fantasiados como 
gnomos de entrudo de carnaval, com máscaras de animais e de fantasmas 
na fronte. Paulatinamente, entretanto, eles pareciam se transformar mais e 
mais em fantasmas de verdade. Eu comecei a ter uma misteriosa sensação, 
e eu voltei para casa e fechei a porta. Então eu vi uma brilhante luz azul en-
trando pela janela. Fui até a janela e vi que a minha casa estava toda debaixo 
d’água, mas era uma água brilhante, reluzente, em que era possível respirar. 
Em contraste com a realidade, as árvores vieram até a casa. Nelas estavam 
brincando alegremente grandes macacos cinza-prateados com rostos ne-
gros, lemuriformes e com caudas longas. Eu acordei revigorada e reanima-
da, como se eu tivesse assistido a esses macacos a noite inteira.
Como você pode ver, nesse caso, eu voltei além até mesmo das másca-
ras pagãs. Volteipara os espíritos animais ancestrais! Você pode imaginar 
o quanto a minha “alma de macaco” estava gostando da vida na natureza, 
enquanto meu ego consciente urbano estava reagindo de forma bastante 
temerosa, precisando ambientar-se à situação.
Assim, como psicólogo, há de se estar sempre familiarizado com todo 
o fundo histórico de uma pessoa para entendê-la melhor. Lembro-me da 
análise de um educado homem coreano. Eu tinha me preparado para a cul-
tura coreana o melhor possível, mas o que surgiu nos seus sonhos? Motivos 
que inicialmente eu era completamente incapaz de entender. O sonhador 
também não podia entendê-los, porque sua única orientação era para o 
passado budista de seu país. Mas esses eram motivos do xamanismo tun-
gúsico! Na verdade os coreanos são da etnia dos tungus, e no período pré
-budista, sua religião e terapia artística era o xamanismo. Graças aos livros 
de Mircea Eliade, Nioradze, Findeisen, e outros, nós dois fomos capazes de 
chegar a entender esses motivos oníricos.
Um caso que deixou uma impressão particularmente forte foi o de um 
mexicano católico e bem educado. Embora eu tenha gostado dele desde o 
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princípio, eu tive a desconfortável sensação de que eu não o entendia, e eu 
suspeitava que ele também não estava aproveitando muito do que eu dizia a 
ele. Então, sem aviso, parecendo sem conexão com sua vida exterior, ele teve 
o seguinte sonho: Na bifurcação de uma árvore havia uma grande pedra ob-
sidiana, que de repente ganhou vida, pulou fora da árvore e rolou ameaçado-
ramente em direção ao sonhador. O sonhador estava em pânico e correu pela 
sua vida, com a pedra dura em seus calcanhares. Então o sonhador avistou 
alguns trabalhadores, que tinham cavado um buraco retangular no chão. Eles 
o chamaram e disseram que deveria entrar no meio do buraco e ficar quieto. 
Ele o fez, no que a pedra obsidiana tornou-se menor e menor, até que estava 
“mansamente” aos pés do sonhador, não maior do que um punho.
Quando eu ouvi este sonho, eu involuntariamente exclamei: “Por Deus, 
o que você tem a ver com Tezcatlipoca?!”. Coincidentemente, aconteceu de 
eu saber que a obsidiana foi um dos principais símbolos desse deus asteca 
primitivo. Então surgiu que o sonhador era três quartos asteca, o que até 
este momento ele não tinha mencionado, porque no México ainda existem 
preconceitos raciais. Agora estava claro por que tínhamos tido tal dificul-
dade de compreender um ao outro: os nativos americanos pensam por um 
modo imagético e mitológico, mas com o coração; o nosso pensamento 
racional é inteiramente estranho para eles. Eu me reorientei e então nós 
entendemos um ao outro. Depois desse sonho, abriu-se uma ferida profun-
da no sonhador – tristeza e ressentimento sobre a brutalidade do pseudo-
Cristão Cortez e do seu bando de aventureiros enlouquecidos por ouro, 
mas também um ardente interesse nos velhos deuses astecas. Assim ele en-
controu suas raízes espirituais novamente e também começou a trabalhar 
criativamente nos antigos textos astecas. Sua neurose foi curada, e ele se 
transformou muito mais em si mesmo. Ele também podia agora compreen-
der melhor a verdade Cristã, isto é, enquanto um paralelo arquetípico dos 
mitos religiosos astecas. Embora os crimes de Cortez remontem há cerca de 
quatrocentos anos aproximadamente, esse episódio histórico ficou imedia-
tamente atrás da sua desorientação psíquica, o que fez com que o sonhador 
empreendesse a análise. A divina imagem arquetípica ainda viva do deus 
Tezcatlipoca literalmente o perseguiu, e, ao encará-lo e tornar-se envolvido 
em um encontro com ele, ele redescobriu o ponto de conexão com o seus 
espíritos ancestrais e com suas raízes culturais religiosas.
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Aqui nós encontramos concretamente uma das descobertas mais signifi-
cativas de C.G. Jung, seu conceito de inconsciente coletivo e seus arquétipos. 
Para Jung, arquétipos são disposições estruturais herdadas e inatas que di-
zem respeito aos modos de comportamento específicos da espécie humana. 
Um aspecto dessas formas é o da ação: eles se expressam em ações típicas, 
similares em todos os seres humanos e, assim, são instintivos (como Eibl
-Eibesfeld, dentre outros, provou, todos os povos da terra se expressam por 
meio de semelhantes gestos de cumprimento, forma de criação de crianças, 
de cortejo etc.). Mas além do nível da ação, esses instintos também apresen-
tam uma forma que só pode ser percebida internamente na psique, isto é, 
em sentimentos, emoções, imagens míticas fantásticas e ideias primitivas 
“mitológicas”, que assumem forma semelhante em todos os seres humanos. 
Jung se referiu a esse último aspecto como arquetípico. Os arquétipos são 
elementos primitivos da mente e das culturas mais diversas. Sempre que esse 
profundo estrato coletivo é ativado em um indivíduo, ele pode ser tanto uma 
fonte de estruturação criativa e novas realizações espirituais, ou, se algo dá 
errado, pode se tornar a fonte de estados e ações patológicas.
Todas as grandes religiões mundiais que permanecem intactas contém 
e apresentam em seu imaginário os grandes arquétipos do inconsciente co-
letivo – as imagens primitivas do herói-salvador, da grande-mãe, do pai 
celeste do espírito, do animal ajudante, do criador do mal, da árvore do 
mundo, do centro do mundo, do além e do reino dos mortos e assim por 
diante. Frequentemente essas noções primais são tão semelhantes em cul-
turas díspares que pesquisadores sociais inventam teorias absurdas de mi-
gração para explicar a similaridade. Embora obviamente tenha havido mi-
grações e trocas de motivos religiosos, nós psicólogos somos céticos quanto 
a especulações selvagens nessa área, visto que, em nosso trabalho, temos 
a experiência diária de que tais imagens originais podem ser ativadas es-
pontaneamente no inconsciente de uma pessoa, mesmo em um indivíduo 
cuja consciência é totalmente alheia a tais imagens. Por exemplo, embora 
o sonhador mexicano mencionado previamente tivesse uma vaga noção 
da existência de um velho deus chamado Tezcatlipoca, ele nunca, mesmo 
remotamente, pensou nele. Depois do sonho, ele primeiro teve que ler ex-
tensivamente a seu respeito antes que a imagem do deus começasse a lhe 
ser compreensível.
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Pode-se perguntar neste ponto por que seria necessário para uma pes-
soa estar em contato com suas raízes histórico-espirituais. Em Zurique nós 
temos a oportunidade de analisar muitos americanos que vêm ao Institu-
to Jung e observar, assim, os sintomas resultantes de um hiato na cultura 
(emigração de seus antepassados) e uma perda de raízes. Nesse caso nós 
estamos lidando com pessoas cujas consciências se estruturam de maneira 
semelhante à nossa. Quando nos aprofundamos, todavia, encontramos algo 
que parece uma lacuna nos degraus – nenhuma continuidade! Um homem 
branco cultivado – e abaixo disso uma sombra primitiva, a respeito da qual 
os americanos geralmente têm menos noção do que nós. O efeito disso é 
uma certa inquietude e sugestionabilidade, uma susceptibilidade acrítica às 
correntes da moda, e uma propensão a reações extremas. Claro que isso 
também tem um lado positivo, que se expressa no senso de empreendedo-
rismo e na abertura ao mundo, peculiar ao americano de forma geral. Quan-
do se analisa tal povo, mais cedo ou mais tarde, por meio de seus sonhos, a 
história de seus ancestrais, até o período da sua emigração para os Estados 
Unidos, é trazida para a discussão. Nesse ponto, a maior parte dos analisan-
dos espontaneamente sente a necessidade de fazer uma jornada sentimental 
à terra de seus ancestrais. A conexão renovada com o país de seus antepas-
sados geralmente contribui para um melhor auto-entendimento pela parte 
dos analisandos. Períodos de emigração ou de participação em outra cultura 
em geral produzem consequências psicológicas bastante peculiares. O inglês 
é familiar com a experiência de “tornar-se nativo”, com a qual elesreferem 
a influência inconsciente sobre os colonizadores e oficiais da colônia, e os 
demais em funções semelhantes, que são infectados com a mentalidade afri-
cana. A influência é inicialmente negativa, assumindo forma de atraso, falta 
de clareza, uma tendência a criar histórias fantásticas e assim por diante. To-
dos, atributos dos quais os brancos rotineiramente acusam os nativos. Essa 
influência inconsciente negativa pode, todavia, ser transformada em algo 
positivo se a pessoa em questão não subestimar a outra cultura e, em vez 
disso, se abrir a ela respeitosamente e tomar seus pontos de vista e traços 
a sério. Então ela terá um efeito enriquecedor em vez de minorador. Isso é 
verdadeiro, evidentemente, em todo lugar, não apenas na África.
Eu tive a oportunidade de analisar um homem que viveu os primei-
ros doze anos de sua vida em Hong Kong. Era impressionante perceber o 
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quanto ele havia inconscientemente se tornado chinês. Durante a análise, 
quando ele começou a estudar conscientemente a sabedoria chinesa, abri-
ram-se horizontes até então não imaginados. Como Jung comentou certa 
vez, os americanos inconscientemente assimilaram, a si mesmos, muito das 
populações negras e dos americanos nativos, mesmo daqueles com quem 
não resguardavam laço de sangue. Hoje, muitos anos após a observação 
de Jung, os americanos começam a se dar conta disso, e muitos estão ago-
ra conscientemente tentando se abrir a essas influências culturais. Ainda é 
muito pouco, porém, o estudo a elas dedicado. É indiscutível, não obstante, 
que o país e o povo ao qual alguém pertence e o desenvolvimento histórico 
que lhes diz respeito são fatores proeminentes na psique dos indivíduos. 
Estamos profundamente implicados não apenas com nosso passado bio-
gráfico, mas com nosso passado histórico coletivo, a despeito de gostarmos 
ou, mesmo, de percebê-lo.
Com efeito, de um ponto de vista psicológico, a história pode se tornar 
um verdadeiro monstro devorador que é capaz de nos paralisar por com-
pleto. O passado, dentro do qual o fluxo dos eventos históricos desaparecem 
inelutavelmente, é uma força enorme. Por essa razão, as pessoas na Índia 
representam o tempo como a deusa monstruosa Kali (de kala, azul-negra, 
morte e tempo), ou no Tibet como Maha-Kala (grande tempo, aquele que é 
negro e grande), ou em nossa própria cultura como o Pai Tempo, um velho 
aleijado, saturnino, que devora tudo. Assim como em membros de famílias 
antigas e cultivadas um fin de race1 pode ser observado, um tipo de fadiga 
cética que já não deseja recomeçar onde quer que seja, o excesso de passado 
cultural pode sobrecarregar um povo inteiro. Por exemplo, eu tenho perce-
bido frequentemente que em intelectuais italianos as culturas antiga e me-
dieval pesam tão intensamente que lhes falta certa ingenuidade que é ne-
cessária para dar início a qualquer coisa realmente nova. (Sem dúvida, isso 
é algo que pode ser superado por meio de entendimento). Como resultado 
de um perfeccionismo ambicioso que lhes impõe a exibição de sua cultura, 
expressar-se com refinamento linguístico, e sustentar cada assertiva com 
incontáveis referências e notas de rodapé, eles produzem coisas que perde-
ram todo seu impacto, trabalhos finamente talhados e vazios de poder e de 
incitação. O passado é como uma poderosa força atrativa que lhe puxa em 
sua direção e lhe petrifica se você não está mais seguindo em frente ou se 
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para. Eu creio que muitas pessoas se tornaram simpatizantes do Comunis-
mo e do anarquismo porque eles pareciam prometer uma tabula rasa para 
um novo começo. Eles projetaram uma qualidade ingênua e poderosa nas 
classes sociais mais baixas e esperaram que partisse deles uma renovação 
criativa. Claro que isso é um erro, uma projeção. Eles devem produzir a 
tabula rasa e o recomeço criativo dentro de si próprios, pois quando tais 
transformações são relegadas ao nível externo e coletivo, normalmente se 
transformam em algo negativo.
Mas por que alguma transformação seria necessária, afinal? Por que o 
Zeitgeist muda em uma cultura no curso dos séculos? Sob o ponto de vista 
junguiano, isto está conectado com uma contrariedade peculiar na nature-
za do homem, que seja, uma certa oposição entre consciente e inconsciente. 
Eu mencionei previamente que os fatores do inconsciente coletivo têm um 
duplo aspecto: por um lado, eles se expressam como “instintos” ou “impul-
sos” – em formas comportamentais como sexualidade, busca por status, 
criação dos filhos e territorialidade; pelo outro, manifestam-se como um 
mundo fantástico mítico-religioso peculiarmente humano. Neste último, 
Jung enxergou o elemento primitivo da mente, cuja forma de expressão é o 
ato simbólico e a imagem simbólica. No nível arcaico, por exemplo, trata-se 
das muitas ideias “mágicas” que se desenvolvem em torno de ações instinti-
vas.2 Jung observou na África, por exemplo, que os nativos do monte Elgon 
cuspiam em suas mãos todas as manhãs e então erguiam suas mãos aber-
tas para o sol nascente. Quando ele perguntou sobre o sentido de tal ato, 
eles só conseguiam responder: “Nós sempre fizemos isso desse jeito”. Eles 
negavam absolutamente que rezavam para o sol. De fato, a saliva tem o sig-
nificado geral de uma “substância da alma” e a oriens, a aurora consurgens, 
significa o aparecimento da divindade. De nosso ponto de vista psicológico, 
o gesto arquetípico dos elgonyis significava alguma coisa como “Ó Deus, 
nos te damos nossas almas como oferendas!” Eles estavam completamente 
inconscientes do que estavam fazendo, no entanto. Eles sabiam tão pouco a 
seu respeito quanto nós em relação a por que escondemos ovos de páscoa 
ou colocamos luzes de natal em uma árvore que levamos para nossa sala no 
período natalino.
O mundo instintivo do primitivo, como Jung indicou, não é simples 
de forma alguma. É, ao contrário, um complexo jogo de ações de instintos 
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fisiológicos com tabus, ritos e ensinamentos tribais, que impõem restrições 
formais ao instinto, prevenindo todos os instintos de atuarem desimpedida 
e unilateralmente, e disponibilizando-os para propósitos mais elevados, ou 
seja, para atividades espirituais, que, nesse nível, são parte da religião. As-
sim, instinto e mente, em última instância, não são opostos mas interagem 
como parte de um equilíbrio psíquico finamente ajustado. Todas as formas 
de religião, contudo, apresentam uma tendência de se fixar em um formato 
rígido, no qual o equilíbrio original entre as configurações espiritual e fi-
siológica se convertem em conflito – a forma espiritual se enrijece em puro 
formalismo e veneno ou suprime os instintos, que se vingam então por 
meio de uma tendência crescente na direção de uma atuação desenfreada. 
Esse desenvolvimento aparentemente desfavorável se repetiu incontáveis 
vezes no curso da história dos povos. Consoante Jung, isso não é uma catás-
trofe sem sentido; seu significado oculto, na verdade, é o que ela impulsiona 
o desenvolvimento humano no sentido de maior diferenciação. Não há, 
com efeito, declínio da energia sem um polo oposto, e portanto a natureza 
continuamente cria tensões conflitantes, que com toda a probabilidade tem 
a função de produzir um terceiro fator mais diferenciado como solução. 
Sempre que a harmonia entre as formas religiosa e instintiva é perturbada 
pela pelo enrijecimento da primeira, uma situação de emergência psíquica 
se estabelece. No passado isso foi regularmente retratado pelo mito do de-
saparecimento dos deuses benfazejos e da ascendência de outros, funestos; 
ou no mito de que, como resultado da hybris ou da blasfêmia, os deuses 
se tornam remotos; ou (na China, por exemplo) o mito de que o céu e a 
terra não estavam mais em harmonia. Em tais momentos, novos símbolos 
religiosos que reconciliam ou unem os opostos são sempre constelados no 
inconsciente coletivo – normalmente na imagem de uma “pessoa cósmica”, 
que,como curandeiro e salvador, une uma vez mais os aspectos superior e 
inferior da criação.
A causa desse processo de transformação, que pode ser evidenciado ao 
ocorrer repetidamente na história espiritual dos povos e que nós temos de-
lineado apenas brevemente aqui, é pra ser achada primeiramente na ten-
dência de formas espirituais rígidas. Isso está conectado ao fato de que é da 
natureza da consciência humana desejar, ou até mesmo ter que formular e 
apontar coisas de uma maneira clara e não ambígua. Por contrapartida, a 
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vida inconsciente psíquica tende a modelos de comportamento mais flui-
dos e menos precisos. Esta é a razão pela qual, em indivíduos, assim como 
em culturas como um todo, consciente e inconsciente podem cair em opo-
sição. Quando isto ocorre, nós falamos de neurose em indivíduos e em cul-
turas, de uma crise espiritual. (Obviamente, nos achamos hoje em meio a 
este tipo de situação outra vez!) Isso significa, como Jung apontou, que hoje 
muitos indivíduos têm neuroses puramente facultativas. Se eles vivessem 
em outros tempos, eles seriam normais, não perturbados psiquicamente; 
mas eles estão profundamente movidos pelas crises históricas prevalecen-
tes em nosso tempo e ficam inconstantes por causa delas. Assim, nós não 
podemos achar as causas desse padecimento na história pessoal de tal pes-
soa; ao invés disso, devemos achar uma solução com ele – nós fazemos isso 
com a ajuda de seus sonhos - para o problema do nosso tempo. Contudo, 
como dissemos, essas crises coletivas garantem a necessidade de um desen-
volvimento subsequente da consciência humana – no nível individual e co-
letivo. Elas são causas motivadoras, balisando renovos espirituais criativos. 
Porque esse é um processo humano universal tipicamente psicológico, 
ele também tomou forma simbólica no folclore e nos mitos - em curado 
pela água da vida. O rei ancião doente é um símbolo para as configurações 
espirituais enrijecidas da cultura acima referidas, que não estão mais em 
harmonia com a esfera dos instintos nem com as tendências inconscien-
tes espirituais do inconsciente coletivo. O renovo é normalmente trazido 
à tona no mito por um herói, que é com freqüência um homem modesto 
ou um completo simplório. Esse mito encontra-se entre todos os povos da 
Terra, e sua existência mostra quão importante esse tipo de transformação 
histórico-psicológica é. 
Se direcionarmos nossa atenção, com a ajuda dos sonhos, aos proces-
sos que estão ocorrendo no inconsciente coletivo, somos capazes, até certo 
ponto, de prever determinado desenvolvimento histórico ou espiritual. É 
também, em atentar para esses processos, que profecias são fundamental-
mente estabelecidas. E é por estarem de acordo com as regras mitológicas 
que os profetas do Velho Testamento eram com freqüência menosprezados, 
deveras, até tidos como simplórios ou homens loucos. Deste modo, Eliseu 
foi referido como louco (2 Reis 9:11) assim como foi Jeremias (Jeremias 
29:26), e em Oséias 9:7, o seguinte é apresentado como a vox populi3: “O 
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profeta é um tolo, o homem espiritual é louco”. Quando o povo viu o arre-
batamento de Saul, eles disseram, “O que aconteceu com o filho de Quis? 
Está Saul também em meio aos profetas?” querendo dizer que tal com-
portamento era de forma alguma apropriado para um rei4. Mas o profeta 
enxerga as profundezas e dessa forma prediz desenvolvimentos espirituais 
futuros através de imagens. Dessa forma, a Igreja enxergou nas visões do 
Filho do Homem no Livro de Daniel e no Livro de Enoque (60:10), um 
presságio da vinda de Cristo, para dar apenas um exemplo. 
Se a hipótese de que transformações espirituais podem ser lidas anteci-
padamente no inconsciente coletivo é verdadeira, então a pergunta natural-
mente surge onde nós nos encontramos agora com nossa crise moderna. C. 
G. Jung, em seu trabalho “Resposta a Jó” e Aion, fez uma tentativa de respon-
der a essa questão. Repetindo o que é dito ali em linhas gerais, o problema 
pode ser figurado como segue: No Velho Testamento, a imagem de Deus é 
completa no sentido de que Yahweh contém ambos bem e mal dentro de si: 
“Eu formo a luz e crio as trevas, promovo a paz e crio o mal; eu, o Senhor, 
faço todas essas coisas.” (Isaías 45:7). Com o advento do Cristianismo, nesse 
sentido, uma grande transformação ocorre. Não só Deus tornou-se homem 
em Cristo, ele se tornou mais e mais somente o justo, o Deus bom. Satanás, 
por outro lado, como é dito, “caiu como um relâmpago do Céu.” De agora em 
diante é ele que é o criador do mal. No primeiro milênio Cristão, nós encon-
tramos uma luta constante para suprimir o mal e ajudar o bem a triunfar. Daí, 
no ano 1000, muitas pessoas esperavam o Julgamento Final, a derrota do mal 
e o fim do mundo. Antes disso, no entanto, como Cristo mesmo profetizou, o 
Anticristo apareceria e estabeleceria um breve domínio do mal. Quando, no 
ano 1000 o mundo não acabou, uma transformação psicológica ocorreu, que 
foi caracterizada pelo fato de o problema do mal ter entrado uma vez mais 
no campo de visão das pessoas, ou até mesmo ter-se tornado manifesto em 
todos os tipos de movimentos anti-Cristianismo.
O retorno das tradições espirituais pagãs ao Ocidente, pelo caminho dos 
Árabes, trouxe, ao mesmo tempo, a revalorização da natureza – no Renas-
centismo - e igualmente, do mundo. Isso levou – sem muitos detalhes, já que 
estas são coisas que são muito discutidas hoje em dia – à orientação comple-
tamente mundana das ciências naturais modernas, assim como à racionaliza-
ção do Iluminismo. Apesar de esta racionalização ter sido inicialmente usado 
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pela Igreja contra aqueles cujas crenças diferiam das da mesma, hoje tem 
lançado dúvida nas próprias crenças. O Socialismo e Comunismo Nacional 
foram movimentos vastos que causaram – e ainda causam – a desintegração 
da crença Cristã, se tornando evidente por um grande número de pessoas. 
Na visão de Jung, no entanto, existe hoje no inconsciente coletivo uma ten-
dência clara para entender os pólos do bem e do mal, que se dividiram para 
muito longe um do outro, em sua relatividade psicológica e para reconci-
liá-los novamente dentro da imagem integral de Deus. Essa reconciliação, 
todavia, só pode vir a acontecer, obviamente, através de um intermediário, 
e este é, de acordo com Jung, o princípio feminino negligenciado até aqui. A 
séria critica de Jung à religião do Velho Testamento – e, também, novamente 
ao Protestantismo de hoje- é que é uma religião puramente masculina. Co-
meçando com o papel proeminente de Eva na história da Queda do Homem, 
a tendência a associar a mulher com o mal tem se manifestado constante-
mente. Os lugares de profeta e de sacerdote são negados à ela. Até mesmo 
ainda hoje, na sinagoga Ortodoxa, uma mulher não pode cumprimentar um 
rabino com um aperto de mão, e é permitida participar dos cultos somente 
atrás de uma tela de grade! Na sabedoria relativamente tardia dos livros do 
Velho Testamento, finalmente uma figura feminina aparece, a personificação 
da “Sabedoria de Deus”, que é louvada como uma árvore pagã e uma deusa da 
fertilidade: “Eu fui exaltada como um cedro no Líbano, e como uma árvore 
de cipreste sobre as montanhas do Hermon [...] Eu sou a mãe do amor jus-
to:[...][I] sou dada a todos os meus filhos” (Eclesiastes 24:13ff).
Essa figura da Sapientia Dei5 tem sido interpretada a propósito como a 
anima de Cristo, como o elemento feminino na configuração do seu sim-
bolismo. Na Idade Média, ela era tida, também, como um tipo de alma 
mundana que une todas as coisas. E não menos importante, de acordo com 
a visão da Igreja Católica, ela era a prefiguração de Maria. Certamente não 
é coincidência que foi em Éfeso que Maria foi, mais tarde, elevada ao status 
de “Portadora de Deus”; Éfeso foi a cidade do culto de Artemis Ephesia, a 
grande mãe dos deuses. Pelo menos no mundo Católico, um certo elemen-
to psíquicofeminino persistiu na forma de veneração a Maria. Mas o prin-
cipio feminino busca mais do que a reconciliação, mais que a polarização 
dos opostos, que é de fato por que a Mãe de Deus é considerada mediadora. 
Quando visto à luz desse contexto histórico, fica mais fácil entender por-
14
que o psicólogo C. G. Jung exaltava a celebrada Declaratio Assumptionis 
Mariae do Papa Pio XII como a grande obra espiritual do nosso século. É 
claro que não existe muito na Declaratio que já não tenha sido incorporado 
no costume dos povos. De qualquer forma, a Declaratio é notável porque 
reconhece e acomoda uma tendência muito moderna do inconsciente co-
letivo: a Mãe de Deus ascendendo ao céu junto com seu corpo, que não foi 
recebido sem pecado, denotando indiretamente, também, uma aceitação 
do corpo humano muito mais ampla e, com ele, da matéria como um todo. 
Isso retira a força do materialismo anti-Cristão. Pois é uma tendência clara 
no inconsciente das pessoas hoje não mais excluir seus corpos e sua sexua-
lidade da completude de seu desenvolvimento e da realização de si mesmo, 
da maneira como o homem medieval fez, com seus exercícios estéticos. 
Foi interessante ver como indivíduos reagiram a Declaratio. A maioria 
deles, eu incluída, quase não prestou atenção aos artigos dos jornais. Muitas 
pessoas pensaram que isso era uma edição completamente desatualizada 
– mas não os seus inconscientes. Uma série inteira de reações oníricas a 
Declaratio foi trazida à minha prática analítica. Por exemplo, uma mulher 
Protestante que, em um nível consciente não notou a notícia, teve o se-
guinte sonho: Ela estava passando pela Ponte Limmat e indo para um lugar 
habitual em Zurique. Lá, uma grande multidão de pessoas estava reunida. 
As pessoas estavam dizendo, “A ascensão de Maria vai acontecer aqui.” Ela 
se misturou à multidão e começou a olhar junto com os outros para uma 
plataforma de madeira onde o evento deveria acontecer. Lá, uma mulher 
negra maravilhosamente bonita apareceu despida. Ela levantou as mãos e 
vagarosamente flutuou em direção ao céu. 
Que a Virgem Maria apareceu como uma mulher negra não precisa 
surpreender ninguém. Existem, afinal, madonas negras em vários lugares. 
Como eu interpreto o acontecido, no sonho, isso só serve para dar ênfase 
especial ao elemento ctônico primordial. Na realidade, a mulher tinha di-
ficuldade de aceitar sua feminilidade em um nível corporal. Ela frequente-
mente escapava disto para reinos da mentalidade masculina. Deste modo, 
o sonho enfatiza que o corpo feminino é também espiritual, e , com efeito, 
tem ainda uma função sagrada.
Para o psicólogo, é interessante ver o que aconteceu após a Declaratio na 
Igreja – uma campanha contra o celibato dos sacerdotes e outra para permitir 
15
que mulheres assumam ofícios eclesiásticos. No entanto, os escritos advogan-
do essas causas quase nunca invocam a Declaratio como um argumento, de 
um ponto de vista psicológico, essas camapanhas foram uma conseqüência 
direta ou uma continuação da direção espiritual expressada na Declaratio. 
Não menos importante neste contexto é a onda de movimentos de mu-
lheres, que tomaram largas proporções particularmente na América do 
Norte. Não é de maneira alguma minha intenção aqui a de avaliar todos 
esses movimentos de forma positiva ou negativa; os menciono apenas en-
quanto sintoma psicológico. Eu, pessoalmente, não acredito que mulheres 
em partes do mundo povoadas pela raça branca são mais oprimidas agora 
ou tenham sido mais oprimidas recentemente que foram há muito tempo. 
Então, esses movimentos estão sendo desencadeados por uma constelação 
arquetípica no inconsciente coletivo; contudo, esta prórpia constelação re-
sulta de uma negligência de longa data do princípio feminino. 
O leitor terá notado que eu frequentemente digo “princípio feminino” 
e não “mulher”. De fato, o último se refere a algo diferente daquilo de que 
estou falando. Como Jung apontou, homens também possuem componen-
tes psíquicos femininos, os quais Jung chamou de anima do homem. Se um 
homem suprime seus aspectos femininos, a conseqüência é que ele se torna 
inconscientemente “feminino”. Isto toma a forma de humores irracionais, 
acessos repentinos de sentimentalismo, fascinação com pornografia, quali-
dades histéricas, e etc. Se, por outro lado, ele reconhece conscientemente e 
desenvolve seus traços femininos, ele então se apegara menos rigidamente 
a princípios, tornando-se, geralmente, mais “humano”, mais caloroso emo-
cionalmente, e se tornará mais aberto ao lado irracional e artístico da vida. 
O período histórico do amor cortês mostrou que bonitas formas culturais 
podem surgir através do reconhecimento da anima. Infelizmente, esse perí-
odo foi substituído pelo período da caça as bruxas e pela renovada supres-
são do princípio feminino.
Que o reconhecimento do principio feminino é ainda mais importan-
te para mulheres que para homens, é obvio. Na ausência dele, mulheres 
devem tornar-se masculinas de modo a triunfarem, ou então elas perma-
necem incapazes de superar uma profunda falta de auto-confiança. Para o 
momento, não é minha intenção avaliar os movimentos acima referidos; 
em vez disso, a esta altura, estou interessada em mostrar com o que uma 
16
transformação desse tipo no Zeitgeist se parece e como indicar que tais 
mudanças são provavelmente baseadas nos profundos processos transfor-
macionais do inconsciente coletivo. 
Esses processos se estendem por longos intervalos de tempo, até mesmo 
séculos. Portanto, a corrente que se encaminha adiante do princípio femi-
nino nas culturas cristãs tem uma longa pré-história. De novo e de novo, o 
princípio feminino tem brotado para compensar a unilateralidade do inte-
lectualismo e do tom patriarcal de prevalência dos padrões culturais. Hoje, 
no entanto, ele parece estar forçando o seu caminho a um primeiro plano 
em uma escala particularmente grande, pois, por trás disso, um problema 
ainda mais profundo está sendo ativado - o problema do mal. Até agora no 
mundo cristão este problema tem sido puramente suprimido ou tratado 
como insignificante. Mas agora, o terrorismo mundial, um enorme aumen-
to nos crimes, e a total ausência de direitos do indivíduo que tem prevale-
cido em muitos países nos confronta.
A profecia de Cristo sobre a inevitável vinda do Anticristo parece estar 
se tornando verdade. Essa profecia foi psicologicamente possível porque 
o “programa” Cristão tem contido até aqui uma ênfase unilateral na bon-
dade e justiça de Deus. Nesses casos, de acordo com a nossa experiência 
psicológica, mais cedo ou mais tarde alguma repercussão deverá ocorrer. O 
princípio feminino do qual estivemos falando é o único mediador possível 
entre os opostos.
Quando nós lemos os jornais ou escutamos o rádio nos dias de hoje, nós 
ouvimos infindáveis reportagens um tanto quanto seriamente pesquisadas, 
sobre porque o terrorismo está aumentando ou porque as mulheres estão, 
de repente, procurando mais reconhecimento. Entretanto, um insight que 
vá em direção a dimensões mais profundas desses problemas, o que iria re-
querer um conhecimento de história, é raro. Isso acontece porque o leitor ou 
ouvinte mediano de hoje ainda não sabe nada ou quase nada sobre a exis-
tência do inconsciente nas pessoas, e digamos ainda, nada do inconsciente 
coletivo. O inconsciente coletivo manifesta-se a si mesmo em uma dimen-
são histórica de intervalos seculares, como nós vimos, por exemplo, no caso 
do sonho Tezcatlipoca do nosso amigo mexicano. Se mais e mais pessoas 
viessem a conhecer o inconsciente coletivo através de suas próprias experi-
ências, eu acredito que as histórias - primariamente nossa história espiritual 
17
e intelectual - poderiam ser vistam em uma outra dimensão bem diferente 
de como elas presentemente são. Mas nós ainda estamos longe disso.
A dificuldade repousa no fato deque os processos básicos se locali-
zam no inconsciente, e o inconsciente realmente é, como o nome diz, não 
consciente. Além disso, apesar da mulher que sonhou com a Virgem Maria 
negra ter tido tendências feministas em seu consciente, ela não sabia de 
nada sobre as raízes históricas desse problema e, como nós mencionamos, 
não tinha tido pensamento nenhum sobre a Declaratio Assumptions. Para 
a sua consciência Protestante, aquilo era no melhor dos casos uma preo-
cupação antiquada. No entanto, é da maior importância que nos torne-
mos mais educados a respeito da história, e isto não deveria ser meramente 
uma questão de aprender quem conquistou quem e quais países passaram 
de mãos em mãos - isso não é mais que uma continuação do padrão da 
história natural de comer e ser comido. Na verdade, uma educação como 
esta deveria envolver conhecimentos vivos da nossa história religiosa, da 
mitologia Cristã como Jung a formulou. Nosso mexicano sonhou não com 
Cortez nem com a perseguição racial dos índios, mas com o Tezcatlipoca, a 
ainda viva imagem arquetípica do deus primitivo de seu povo.
A história prova, como Arnold Toynbee tem mostrado de um modo 
particularmente impressionante, que povos e grupos humanos que perdem 
sua mitologia religiosa são rapidamente destruídos. Sua mitologia provi-
dencia um significado para a vida que os fazem sentir como uma harmo-
niosa parte do cosmos inteiro. Isto, por exemplo, é a grande importância 
dos mitos de criação. Se você quiser se familiarizar com esses assuntos leia, 
por exemplo, o excelente livro de Marcel Griaule, Dieux d’eaux, no qual o 
sábio velho cego Ogotomeli apresenta o rico complexo sistema de mundo 
do Dogon, que dá seu sentido cósmico religioso a tudo. Até mesmo as mais 
ordinárias ações cotidianas e instrumentos da tribo. Muitos povos também, 
como por exemplo os Polinésios, enumeram em seus contos todos os seus 
reis anteriores em intermináveis longas listas, como uma forma de preser-
var sua conexão com o passado. De acordo com os índios Zuni, os deuses 
contaram ao seu emissário, o contador de histórias Kaiklo: “ Assim como 
uma mulher que tem filhos é amada porque ela mantém a corrente de seu 
clã intacta, assim irá você, o qual incansavelmente nos escuta (enquanto 
nós recontamos nossos mitos), ser amado pelos deuses e honrado pelos 
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seres humanos, pois você mantém as histórias da criação intactas e tudo 
que nós fazemos, conhecido”. No Egito antigo, sempre que o rei mostrava 
a si mesmo as pessoas durante a procissão, os portadores dos estandartes 
carregavam os estandartes de seus quatorze predecessores atrás dele, re-
presentando os seus kas - suas almas imortais e virilmente energizadas – a 
fim de mostrar que o passado inteiro, do modo como foi, estava atrás dele 
e sancionava suas ações.
Sempre que esse tipo de mitologia histórico-religiosa de um povo é des-
truída, as pessoas perdem seu sentimento de pertença a um todo significa-
tivo e se tornam desorientadas. Assim, nós vemos hoje a quantidade de tri-
bos indígenas Norte Americanas que são forçadas a combater o alcoolismo 
e redução em sua taxa de natalidade – uma redução absoluta. Sua mitologia 
é destruída e com ela o sentimento de significado de suas existências. Para 
pessoas assim a única meta que resta é a de adquirir bens materiais nesse 
mundo - ou então morrer. Os jovens vão embora, os velhos caem em um 
estado de resignação, e a tribo desintegra-se. Onde quer que o racionalis-
mo moderno e tecnológico entra em contato com pessoas que ainda vivem 
imperturbáveis nos termos de sua mitologia, nós podemos ver esse quadro 
triste. A “loja de departamento” se torna então o templo moderno.
Em Bali, eu tive uma vez uma conversa com uma Balinesa de aparência 
aristocrática que havia se casado com um Italiano. Ela havia vivido por um 
curto período de tempo em Roma e estava agora vivendo com seu marido 
em Bali novamente. Eu disse, “ Você deve estar feliz por estar vivendo em 
sua terra natal de novo.” “Ah, não”, ela respondeu, “ Eu realmente anseio 
por voltar a Roma.” “ O que você gostava em Roma?”, eu perguntei. “Ah,”, 
ela disse, “as grandes e ricas lojas de departamento.” Então não foi o Fórum 
ou o Vaticano! Mas não ria dessa mulher – há também entre nós cada vez 
mais pessoas para as quais os bancos e as lojas de departamento são os 
verdadeiros lugares sagrados. Este é um desenvolvimento neurótico falho 
do qual um grande número de pessoas e grupos sociais inteiros sofrem. 
Muitos têm perdido todos os valores espirituais que transcedem a realidade 
material. Nós também perdemos partes consideráveis de nossa mitologia 
espiritual, e nós também, portanto, como professores de história, somos 
ameaçados por um concreto declínio histórico. Como Jung apontou, são os 
representante oficiais das igrejas, dentre outros, a quem se deve culpar. “O 
19
Cristianismo adormeceu” e tem negligenciado se relacionar com a agitação 
do crescimento da psique inconsciente.
Hoje em dia, quando pacientes neuróticos nos procuram para tratamen-
to, eles frequentemente estão sofrendo apenas parcialmente por problemas 
pessoais. Muitas pessoas vem nos dias de hoje porque estão sofrendo da 
falta de sentido e esperança do nosso tempo. Hoje existe uma melancolia 
ou mal-humor coletivos, um mal-estar que se apoderou de grupos intei-
ros. Aqui há uma semelhança com a época da queda do Império Roma-
no. Quanto mais os povos primitivos facilitam as coisas para si mesmos, 
distraindo-se com panem et circenses6 ou encontrando alguma válvula de 
escape externa na qual eles podem descarregar sua fúria/desespero, o que é 
claro não leva a lugar nenhum. No entanto, outros sofrem profundamente 
da aparente falta de sentido de sua existência. Com isso, o cuidador tem que 
descer ao inconsciente com os olhos abertos, para assim trazer de volta a 
resposta da psique que já repousa esperando nas profundezas.
Eu gostaria de relatar para você o sonho de um Americano que ilustra 
claramente essa crise do nosso tempo. Para os psicólogos entre vocês, dei-
xe-me destacar que o sonhador nem é psicótico e nem está ameaçado por 
psicose. O seu sonho segue desse modo:
Eu estou percorrendo a tão falada Palisades da qual pode-se olhar por cima 
a cidade de Nova Iorque. Eu estou caminhando com uma mulher (a anima) 
desconhecida e um homem que está nos guiando. Nova Iorque foi reduzida a 
pedregulhos; há fogos em todas as partes. As pessoas estão fugindo em todas 
as direções. O rio Hudson transbordou de suas margens. No crepúsculo bolas 
de fogo vindas do céu. É o fim do mundo, a destruição completa de nossa 
civilização inteira. A causa disso foi uma raça de gigantes que veio do espaço. 
Eu os vi pegando pessoas e as devorando. Nosso guia nos explicou que esses 
gigantes vieram de diferentes planetas onde eles viviam juntos em paz. Na ver-
dade eles haviam concebido a vida na terra e “cultivaram” nossa civilização do 
mesmo modo que alguém cultiva vegetais em um jardim. Agora eles vieram 
para a colheita, pois um evento especial estava para ocorrer.
Eu fui salvo pois possuía a pressão sangüínea levemente alta, mas fui 
escolhido para passar por uma provação terrível. Eu vi diante de mim um 
gigantesco trono de ouro, radiante como o sol. Nele estavam sentados o rei 
e a rainha dos gigantes. Eles eram os autores da destruição do nosso plane-
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ta. Minha provação consistia em ter que vivenciar a destruição. Mas havia 
mais. Eu tinha que escalar uma escadaria íngreme até a altura do rei e da 
rainha. Eu comecei a subida, a qual foi longa e difícil. Meu coração batia 
violentamente. Eu tinha medo, mas eu sabia que o destino da humanidade 
estava em jogo. Então eu despertei coberto de suor. Enquanto eu acordava, 
eu percebi que a destruição da Terra era o banquete de casamento do rei e 
da rainha. Foi por isso que eu tive aquela estranha sensação quando os vi.
A primeira partedo sonho nos faz recordar do Livro de Enoque. Nele 
está escrito que um número de anjos cobiçaram pecaminosamente mulhe-
res humanas. Com eles foi gerada a raça dos gigantes, a qual começou a 
destruir a Terra inteira. Entretanto, os anjos também ensinaram aos huma-
nos novas artes e ciências. Por conta do protesto dos anjos leais, Deus viu a 
si mesmo obrigado a dar um fim à destruição. Então se segue a visão do “Fi-
lho do Homem.” C.G. Jung interpreta esse mito como “ Resposta a Jó.”7 Ele 
representa a invasão prematura da consciência humana por conteúdos do 
inconsciente coletivo (daí as novas artes). Isso produz uma inflação, uma 
qualidade pomposamente arrogante, um exagerado senso de auto-impor-
tância nas pessoas. A visão do Filho do Homem aponta para a verdadeira 
solução que está sendo solicitada pelo inconsciente.
Em nosso sonho moderno a solução é o banquete de casamento do rei 
e da rainha. Isso significa a união de opostos psíquicos. Essa imagem li-
bertadora pode ter seu efeito de alforria apenas se o sonhador tomar para 
si o trabalho duro de escalar ao mais alto nível de consciência necessá-
rio para a realização dessa imagem. A ascensão significa aquilo que Jung 
vai chamar de individuação, isto é, auto-realização. O sonhador tem essa 
grande tarefa posta a ele pelo seu inconsciente. Na primeira parte da vida, 
melhor ajustamento ao mundo externo frequentemente significa a cura de 
uma neurose. No caso de algumas pessoas jovens e na maioria das pesso-
as acima de quarenta anos, no entanto, não há possibilidade de cura se as 
pessoas em questão não encontrarem algo dentro delas que possam cha-
mar de significado de suas vidas, uma solução, ou na verdade, a solução 
delas ao problema geral de nosso tempo. Para muitos, um retorno a suas 
raízes espirituais, uma compreensão renovada e um melhor entendimento 
das antigas verdades é suficiente. Para outros, no entanto, o inconsciente 
parece estar procurando a realização de algo que nunca esteve lá antes, algo 
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criativamente novo - mas ainda assim um novo que não despreza o antigo 
mas na verdade adiciona algo a ele, como o novo anel anual em uma árvore 
em crescimento. Esses últimos indivíduos são aqueles com uma natureza 
criativa. Pessoas como essas nunca são poupadas das crises o do sofrimen-
to do nascimento espiritual - o isolamento, serem incompreendidas - mas 
não também da emoção da realização. Na visão de mundo de Carl Jung, 
aquilo que é eternamente o mesmo, o antigo transmitido pela tradição, e o 
criativamente novo não constituem nenhum tipo de antítese absoluta. De 
fato, o mundo dos arquétipos apresenta estruturas psíquicas básicas que 
permanecem idênticas a si mesmas através dos milênios, mas que, ao mes-
mo tempo, são um elemento dinâmico organizador por trás de cada nova 
criação, pois elas estão em movimento e reconstelam a si mesmas de nova 
maneira em processos de transformação de intervalos seculares.
Notas
1 N. do T.: Em francês, no original. Expressão idiomática que significa degene-
ração.
2 Cf. C.G. Jung. Mysterium Conjunctionis, v.14 das obras compiladas, § 602.
3 N. do T.: Em latim, no original. Expressão que significa a voz do povo.
4 Cf. R. Scharf-Kluger,Saul und der Geist Gottes. Studien zur Analytischen Psy-
chologic C. G. Jungs (Saul and the Spirit of God: Studies in the Analytical Psycho-
logy of C. G. Jung) (Zurich: Rascher, 1955),vol. 2, pp. 215ff. 
5 N. do T.: Em latim, no original. Expressão que significa sabedoria.
6 N. do T.: Em latim, no original. Expressão que significa pão e circo.
7 C. G. Jung, cw 11, pp. 355ff

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