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JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78p. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78p. [5] I A história da literatura vem, em nossa época, se fazendo cada vez mais mal-afamada — e, aliás, não de forma imerecida[1]. Nos últimos 150 anos, a história dessa venerável disciplina tem inequivocamente trilhado o caminho da decadência constante. Todos os seus feitos culminantes datam do século XIX. À época de Gervinus e Scherer, de De Sanctis e Lanson, escrever a história de uma literatura nacional era considerado o apogeu da carreira de um filólogo. Os patriarcas da história da literatura tinham como meta suprema apresentar, por intermédio da história das obras literárias, a idéia da individualidade nacional a caminho de si mesma. Hoje, essa aspiração suprema constitui já uma lembrança distante. Em nossa vida intelectual contemporânea, a história da literatura, em sua forma tradicional, vive tão-somente uma existência nada mais que miserável, tendo se preservado apenas na qualidade de uma exigência caduca do regulamento dos exames oficiais. Como matéria obrigatória do currículo do ensino secundário, ela já quase desapareceu na Alemanha. No mais, histórias da literatura podem ainda ser encontradas, quando muito, nas estantes de livros da burguesia instruída, burguesia esta que, na falta de um dicionário de literatura mais apropriado, as consulta principalmente para solucionar charadas literárias[2]. [6] Nos cursos oferecidos nas universidades, a história da literatura está visivelmente desaparecendo. Há tempos já não constitui segredo algum afirmar que os filólogos de minha geração orgulham-se de ter substituído os tradicionais painéis globais ou de época de sua literatura nacional por cursos voltados para um enfoque sistemático ou centrados em problemas históricos específicos. A produção científica oferece um quadro semelhante: as empreitadas coletivas, na forma de manuais, enciclopédias e volumes interpretativos — estes constituindo o ramo mais recente das assim chamadas slnteses de livraria —, desalojaram as histórias da literatura, tidas por pretensiosas e pouco sérias. Significativamente, tais coletâneas pseudo- históricas raramente resultam da iniciativa de estudiosos, mas devem-se, em geral, à idéia de algum editor empreendedor. Já a pesquisa levada a sério, por sua vez, encontra registro em monografias de revistas especializadas, pautando-se pelo critério mais rigoroso dos métodos científico-literários da estilística, da retórica, da filologia textual, da semântica, da poética e da história das palavras, dos motivos e dos gêneros. Por certo, também as revistas atuais especializadas em filologia encontram-se ainda, em grande medida, repletas de ensaios que se contentam com uma abordagem histórico-literária. Seus autores, porém, vêem- se expostos a uma dupla crítica. Da ótica das disciplinas vizinhas, os problemas que levantam são, aberta ou veladamente, qualificados de pseudoproblemas, e seus resultados, desdenhados como um saber pura- mente antigo. Tampouco a crítica oriunda da teoria literária revela-se mais complacente em seu juízo. Tal crítica tem a objetar à história clássica da literatura que ela apenas se pretende uma forma da escrita da história, mas, na verdade, move-se numa esfera exterior à dimensão histórica e, ao fazê-lo, falha igualmente na fundamentação do juízo estético que seu objeto — a literatura, enquanto uma forma de arte — demanda[3]. Primeiramente, cumpre esclarecer essa crítica. A história da literatura, em sua forma mais habitual, costuma esquivar-se do perigo de uma enumeração meramente cronológica dos fatos ordenando seu material segundo tendências gerais, gêneros e “outras categorias”, para então, sob tais rubricas, abordar as obras individualmente, em seqüência cronológica. A biografia dos autores e a apreciação do conjunto de sua obra surgem aí em passagens [7] alea|tórias e digressivas, à maneira de um elefante branco. Ou, então, o historiador da literatura ordena seu material de forma unilinear, seguindo a cronologia dos grandes autores e apreciando-os conforme o esquema de “vida e obra” — os autores menores ficam aí a ver navios (são inseridos nos intervalos entre os grandes), e o próprio desenvolvimento dos gêneros vê-se, assim, inevitavelmente fracionado. Esta última modalidade de história da literatura corresponde sobretudo ao cânone dos autores da Antigüidade clássica; já a primeira encontra-se com maior freqüência nas literaturas modernas, que se defrontam com a dificuldade — crescente à medida que se aproximam do presente — de ter de fazer uma seleção dentre uma série de autores e obras cujo conjunto mal se consegue divisar. Contudo, uma descrição da literatura que segue um cânone em geral preestabelecido e simplesmente enfileira vida e obra dos escritores em seqüência cronológica não constitui — como já observou Gervinus — história alguma; mal chega a ser o esqueleto de uma história[4]. Do mesmo modo, nenhum historiador tomaria por histórica uma apresentação da literatura segundo seus gêneros que, registrando mudanças de uma obra para a outra, persiga as formas autônomas do desenvolvimento da lírica, do drama e do romance e emoldure o todo inexplicado com uma observação de caráter geral — amiúde tomada emprestada à história — sobre oZeitgeist e as tendências políticas do período. Por outro lado, não é apenas raro, mas francamente malvisto, que um historiador da literatura profira vereditos qualitativos acerca de obras de épocas passadas. Muito pelo contrário, o historiador costuma, antes, apoiar-se no ideal de objetividade da historiografia, à qual cabe apenas descrever como as coisas efetivamente aconteceram. Sua abstinência estética funda-se em boas razões. Afinal, a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento no contexto sucessório [Folgerverhältnis] do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção, do efeito [Wirkung] [8] re|duzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios estes de mais difícil apreensão. Ademais, se, comprometido com o ideal da objetividade, o historiador da literatura limita-se à apresentação de um passado acabado, deixando ao crítico competente o juízo acerca da literatura do presente inacabado e apegando-se ao cânone seguro das “obras-primas”, permanecerá ele o mais das vezes, em sua distância histórica, uma ou duas gerações atrasado em relação ao estágio mais recente do desenvolvimento da literatura. Na melhor das hipóteses, participará, pois, como leitor passivo da discussão presente sobre os fenômenos literários contemporâneos, tornando-se, assim, na construção de seu juízo, um parasita de uma crítica que, em segredo, ele desdenha como “nãocientífica”. Que papel resta hoje, portanto, a um estudo histórico da literatura que, para recorrer a uma definição clássica do interesse na história — a de Friedrich Schiller —, tem tão pouco a ensinar ao observador pensante que não oferece ao homem prático nenhum modelo a ser imitado, nem nenhum esclarecimento ao filósofo, e que, ademais, não logra prometer ao leitor nada que se assemelhe a uma fonte do mais nobre entretenimento[5]? [9] II As citações não constituem apenas um apelo a uma autoridade com o propósito único de sancionar determinado passo no curso da reflexão científica. Elas podem também retomar uma questão antiga visando demonstrar que uma resposta já tornada clássica não mais se revela satisfatória, que essa própria resposta fez-se novamente histórica, demandando de nós uma renovação da pergunta e de sua solução. A resposta de Schiller à pergunta colocada em sua aula inaugural na universidade de Jena, de 26 de maio de 1789 — Was heißt und zuwelchem Ende studiert man Universalgeschichte? [O que significa e com que pro- pósito estuda-se história universal?] —, não é apenas representativa do modo de compreender a história do idealismo alemão, mas igualmente elucidativa no que se refere a um olhar retrospectivo e crítico voltado para a história de nossa disciplina. E isso porque aquela resposta nos mostra com que expectativa a história da literatura do século XIX, competindo com a hístoriografia geral, buscou desincumbir-se da tarefa legada pela filosofia idealista da história. Ao mesmo tempo, ela nos permite perceber por que razão o ideal do conhecimento da escola histórica tinha, necessariamente, de conduzir a uma crise, trazendo consigo o declínio da história da literatura. Gervinus pode nos servir aqui de testemunha principal. Dele é não somente a primeira exposição científica de uma Geschichte der poetischen Nationalliteratur der Deutschen [História [10] da literatura nacional poética dos alemães] (1835-1842), como também o primeiro (e único) tratado de teoria da história de autoria de um filólogo[6]. Partindo da idéia central do Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers [Sobre a tarefa do historiador] (1821) de Wilhelm von Humboldt, seu Grundzüge der Historik[Fundamentos da teoria da história] constrói uma teoria na qual Gervinus, em outra parte, embasou também a grande tarefa da escritura de uma história da beletrística. Para ele, o historiador da literatura somente se torna um historiador de fato quando, investigando seu objeto, encontra aquela idéia fundamental que atravessa a própria série de acontecimentos que ele tomou por assunto, neles manifestando-se e conectando-os aos acontecimentos do mundo[7]. Essa idéia fundamental, que, para Schiller, traduz-se ainda no princípio teleológico geral que nos permite compreender o desenvolvimento da história universal da humanidade, figura já em Humboldt em manifestações isoladas da idéia da individualidade nacional[8]. Quando, então, Gervinus se apropria dessa maneira ideal de explicar a história, ele, imperceptivelmente, coloca a idéia histórica de Humboldt[9] a serviço da ideologia nacional. Assim, uma história da literatura nacional alemã teria de mostrar de que forma a direção sensata na qual os gregos haviam colocado a humanidade — direção esta para a qual, em função de sua peculiaridade, os alemães sempre tenderam — foi conscientemente retoma- da por estes[10]. A idéia universal da filosofia esclarecida da história desagrega-se na multiplicidade da história das individualidades nacionais, afunilando-se, por fim, no mito literário segundo o qual precisamente os alemães estariam qualificados para ser os verdadeiros sucessores dos gregos — e isso em função daquela idéia que somente os alemães revelavam-se aptos a concretizar em toda a sua pureza[11]. Esse processo, tornado visível a partir do exemplo de Gervinus, não constitui um fenômeno típico apenas da história do espírito [Geistesgeschichte] no século XIX. Uma vez tendo a escola histórica desacreditado o modelo teleológico da filosofia idealista da história, daí resultou também uma implicação metodológica, tanto para a história da literatura quanto para toda a historiografia. Censurando-se como a- histórica a solução da [11] filo|sofia da história de se compreender a marcha dos acontecimentos a partir de uma meta, de um apogeu ideal da história mundial[12], como se podia, então, entender e apresentar o nexo da história, que jamais se revela em sua totalidade? Conforme demonstrou H. G. Gadamer, o ideal da historia universal transformou-se, assim, num embaraço para a investigação histórica[13]. O historiador — escreveu Gervinus — pode somente pretender apresentar séries acabadas de acontecimentos, uma vez que, desconhecendo as cenas finais, não lhe é possível julgar[14]. Histórias nacionais somente podiam ser consideradas séries acabadas de acontecimentos na medida em que culminam politicamente na concretização da unificação nacional ou, literariamente, no apogeu de um modelo clássico nacional. Contudo, seu desenvolvimento posterior a essa “cena final” tinha, inegavelmente, de trazer de volta o velho dilema. Assim, em última instância, Gervinus só fez da necessidade uma virtude ao — em notável concordância com o famoso diagnóstico de Hegel acerca do fim da arte — desprezar a literatura de seu próprio período pós-clássico, como se se tratasse de mera manifestação decadente, e aconselhar os talentos, agora desprovidos de uma meta, a, de preferência, ocuparem-se do mundo real e do Estado[15]. Livre, porém, do dilema envolvendo a conclusão e o avanço da história, o historiador do historicismo parecia estar quando se limitava à abordagem de épocas as quais podia abarcar com os olhos até a “cena final” e descrever em sua ‘plenitude própria, sem considerar o que delas resultou. Assim, a história como painel de época prometia atender plenamente até ao ideal metodológico da escola histórica. Desde então, quando o desenvolvimento da individualidade nacional não mais lhe basta como fio condutor, a história da literatura alinhava umas às outras principalmente épocas acabadas. A regra fundamental da escritura his- tórica, segundo a qual o historiador deve anular-se ante seu objeto, permitindo que ele se apresente com total objetividade[16], deixava-se aplicar melhor através desse enfoque por épocas, como todos sig- nificativos apartados e isolados uns dos outros. Se a “total objetividade” demanda que o historiador abstraia do ponto de vista de seu presente, então o valor e o significado de uma época [12] pas|sada hão também de ser cognoscíveis independentemente do curso posterior da história. As célebres palavras de Ranke, de 1854, conferem a esse postulado uma fundamentação teológica: Eu, porém, afirmo: todas as épocas apresentam-se imediatas a Deus, e seu valor não repousa naquilo que delas resulta, mas em sua exis- tência, nelas próprias[17]. Essa nova resposta à pergunta acerca de como compreender o conceito de “progresso” na história destina ao historiador a tarefa de uma nova teodicéia: na medida em que contempla e apresenta cada época como algo válido em si, ele está justificando Deus perante a filosofia progressista da história, que vê as épocas como meros estágios para a geração seguinte, pressupondo, assim, uma primazia da última e, portanto, uma injustiça divina[18]. Entretanto, a solução de Ranke para o problema legado pela filosofia da história foi obtida à custa de um corte no fio que liga o passado ao presente — isto é, a época, “como ela efetivamente foi”, àquilo que “dela resultou”. Afastando-se da filosofia da história do Iluminismo, o historicismo abandonou não apenas o modelo teleológico da história universal, como também o princípio metodológico que, acima de tudo, segundo Schiller, marca o historiador universal e seu pro- ceder: vincular o passado ao presente[19] — um conhecimento imprescindível, apenas supostamente especulativo, o qual a escola histórica não podia impunemente desconsiderar[20], como o demonstra, aliás, o ulterior desenvolvimento no campo da historiografia literária. A obra da história literária do século XIX apoiou-se na convicção de que a idéia da individualidade nacional seria a parte invisível de todo fato[21], e de que essa idéia tornaria representável a forma da história[22] também a partir de uma seqüência de obras literárias. Havendo desaparecido tal convicção, tinha de perder-se também o fio dos acontecimentos, fazendo-se inevitável que a literatura passada e a presente se apartassem uma da outra em esferas separadas do juízo[23], bem como que a escolha, determinação e valoração dos fatos literários se tornassem problemáticas. A guinada rumo ao positivismo foi determinada primordialmente por essa crise. A historiografia literária positivista acreditava estar fazendo da necessidade uma virtude ao tomar emprestados os métodos [13] das ciências exatas. O resultado é bastanteconhecido: a aplicação do princípio da explicação puramente causal à história da literatura trouxe à luz fatores apenas aparentemente determinantes, fez crescer em escala hipertrófica a pesquisa das fontes e diluiu a peculiaridade específica da obra literária num feixe de “influências” multiplicáveis a gosto. O protesto não tardou a chegar. A história do espírito apoderou-se da literatura, contrapôs à explicação histórica causal uma estética da criação irracional e buscou o nexo da poesia na recorrência de idéias e motivos supratemporais[24]. Na Alemanha, ela se deixou envolver na preparação e fundamentação da ciência literária nacionalista do nacional-socialismo. Depois da guerra, substituíram-na novos métodos, os quais levaram a cabo o processo de desideologização, sem, no entanto, reassumir a tarefa clássica da história literária. A apresentação da literatura em sua história e em sua relação com a história geral estava fora da área de interesse da nova história das idéias e dos conceitos, bem como da investigação da tradição que floresceu na esteira da Escola de Warburg. A primeira almeja secretamente uma renovação da história da filosofia, conforme esta se reflete na literatura[25] a última neutraliza a práxis vital da história, na medida em que busca o ponto crucial do saber na origem ou na continuidade supratemporal da tradição, e não na atualidade e singularidade de um fenômeno literário[26]. O conhecimento daquilo que persiste em meio à mudança constante desobriga-nos do esforço da compreensão histórica. Na obra monumental de Ernst Robert Curtius — que propiciou trabalho a uma legião de epígonos pesquisadores da tópica —, a continuidade da herança da Antigüidade, alçada à condição de idéia suprema, figura sob a forma da tensão historicamente não mediada, imanente à tradição literária, entre criação e imitação, poesia elevada e mera literatura. Um classicismo atemporal das obras-primas eleva-se acima daquilo que Curtius chama “a irrompível cadeia tradicional da mediocridade” [27], deixando a história atrás de si como terra incognita. [14] Vence-se aí em tão pouca medida o abismo entre a contemplação histórica e a contemplação estética da literatura quanto na teoria literária de Benedetto Croce, com sua separação ad absurdum entre poesia e não-poesia. O antagonismo entre a poesia pura e a literatura vinculada especificamente a uma época somente pôde ser superado quando a estética na qual se assenta foi colocada em questão, e se reconheceu que a oposição entre criação e imitação caracteriza apenas a literatura do período humanista da arte, não mais sendo capaz de abranger os fenômenos da literatura moderna, ou mesmo da medieval. Da orientação definida pela escola positivista e pela idealista destacaram-se a sociologia da literatura e o método imanentista, aprofundando ainda mais o abismo entre poesia e história. Tal se revela com a máxima nitidez nas teorias literárias antagônicas da escola marxista e da formalista, escolas estas que constituirão o ponto central de meu panorama crítico da pré-história da ciência literária atual. [15] III Comum a essas duas escolas é a renúncia ao empirismo cego do positivismo, bem como à metafísica estética da história do espírito. Por caminhos opostos, ambas tentaram resolver o problema de como compreender a sucessão histórica das obras literárias como o nexo da literatura, e ambas mergulharam, por fim, numa aporia cuja solução teria exigido que se estabelecesse uma nova relação entre a contemplação histórica e a contemplação estética. A teoria literária marxista entendeu ser sua tarefa demonstrar o nexo da literatura em seu espelhamento da realidade social. Desnecessário seria determo-nos aqui nos resultados ingênuos obtidos pela historiografia literária praticada pelo marxismo vulgar, que jamais se cansou de fazer derivar diretamente de alguns fatores econômicos e constelações de classes da “infra-estrutura” a multiplicidade dos fenômenos literários. Um nível mais elevado a teoria literária marxista alcançou nos momentos em que tentou definir a função da literatura enquanto elemento constitutivo da sociedade: “Se a determinação social do homem é sua natureza, então há de resultar também dos atos passados de autotestemunho literário um quadro completo das contradições que a humanidade viveu ao longo da história. [...] A poesia move-se em direção a um ouvir. É por essa razão que nela se gesta a sociedade à qual ela se dirige: o estilo é sua lei — e, pelo conhecimento do estilo, pode-se decifrar também o destinatário da poesia”. Werner Krauss, de cuja obraLiteraturgeschichte als [16] geschichtlicher Auftrag cito[28], discutiu essa ampla tese em monografias sobre a literatura do Iluminismo[29], mas não a desenvolveu, transformando-a numa história da literatura que, baseada em premissas tão pouco ortodoxas, teria podido dar uma nova direção à história literária marxista. Uma vez que esta última — decerto, também por razões políticas — apega-se a uma delimitação nacional da história da literatura, ela segue sempre trilhando velhos caminhos, sem se colocar de maneira nova o problema da relação entre literatura e sociedade, relação esta que constitui um processo. Trata-se, entretanto, de um problema que, ainda que o substrato antiquado da unificação político-nacional fosse substituído pelo modelo histórico mais geral do caminho rumo à sociedade sem classes, não estaria mais bem solucionado. Em toda a gama das formas que assume, apenas muito precariamente a literatura admite ser remontada a fatores do processo econômico, pois a mudança estrutural dá-se com muito maior lentidão na “infra-estrutura” do que na “superestrutura”, e o número de determinantes verificáveis é muito menor na primeira do que na última. Somente uma porção reduzida da produção literária é permeável aos acontecimentos da realidade histórica, e nem todos os gêneros possuem força testemunhal no tocante a “lembrança dos motivos constitutivos da sociedade”. Ademais, quando uma obra importante parece conferir uma nova direção ao processo literário, ela permanece circundada por uma produção que, amiúde, a vista é incapaz de abranger, produção esta composta de obras que correspondem a uma tendência já ultrapassada do gosto, mas cujo efeito sobre a sociedade não se deve ter em menor conta do que a novidade freqüentemente incompreendida contida naquela obra importante, a qual, no entanto, é a única que pesa na sucessão homogênea da progressão histórica. Contudo, a heterogeneidade do simultâneo não constitui a única dificuldade não superada pela historiografia literária marxista. Esta, vendo-se constrangida a medir o grau de importância de uma obra literária em função de sua força testemunhal relativamente ao processo social, e sendo incapaz de extrair daí quaisquer categorias estéticas próprias, permaneceu, de um modo ge- ral — e sem o admitir —, presa a uma estética classicista[30]. Isso [17] se revela não apenas nos apriorismos da crítica Literária de Georg Lukács, mas, ainda em maior grau, na construção de cânones, comum a todas as escolas marxistas e obrigatória até pouco tempo atrás. O conceito de arte clássica, tomado emprestado a Hegel e absolutizado, resultou em que toda a literatura moderna que não se deixava apreender segundo o princípio da identidade entre forma e conteúdo teve de ser desqualificada como arte degenerada da burguesia decadente. Apenas mais recentemente parece ter começado a gestar-se uma tendência contrária. De início, seus defensores não puderam apoiar-se em outra autoridade que não a do próprio Stálin, ao, analogamente à afirmação deste último acerca da lingüística, postular também para a lite- ratura a independência entre a superestrutura e a base econômica. O debate com o realismo socialista conduziu, durante o período do degelo, a uma crítica à teoria do reflexo, abrindo a perspectiva da fundação de uma teoria da arte apropriada às formas da arte moderna, uma teoriaque teria obrigatoriamente de tra- zer consigo a ruptura com a estética clássica da representação. Há que se aguardar o resultado de tais iniciativas, as quais buscam solucionar a questão acerca da função social da literatura tendo em vista, agora, também a contribuição específica de suas formas e meios artísticos[31]. Contudo, o problema da história literária assim formulado não constitui uma descoberta da ciência literária marxista. Já há quarenta anos, ele se colocou também para a escola formalista por ela combatida, à época em que essa escola viu-se condenada ao silêncio e banida para a diáspora pelos outrora detentores do poder. [18] IV Os primeiros passos dos formalistas, que, na condição de membros da Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética (Opoiaz), começaram a evidenciar-se com publicações programáticas a partir de 1916, deram-se sob o signo de uma rigorosa ênfase no caráter artístico da literatura. A teoria do método for- malista[32]alçou novamente a literatura à condição de um objeto autônomo de investigação, na medida em que desvinculou a obra literária de todas as condicionantes históricas e, à maneira da nova lingüística estrutural, definiu em termos puramente funcionais a sua realização específica, como a soma de todos os procedimentos artísticos nela empregados[33]. A tradicional separação entre poesia e literatura torna-se, assim, sem efeito. O caráter artístico da literatura deve ser verificado única e exclusivamente a partir da oposição entre linguagem poética e linguagem prática. A língua, em sua função prática, passa então a representar, na qualidade de série não-literária, todas as demais condicionantes históricas e sociais da obra literária; esta é descrita e definida como obra de arte precisamente em sua singularidade própria (écart poétique), e não, portanto, em sua relação funcional com a série não-literária. A diferenciação entre linguagem poética e linguagem prática conduziu ao conceito de percepção artística, conceito este que rompe completamente o vínculo entre [19] litera|tura e vida. A arte torna-se, pois, o meio para a destruição, pelo “estranhamento”, do automatismo da percepção cotidiana. Decorre daí que a recepção da arte não pode mais consistir na fruição ingênua do belo, mas demanda que se lhe distinga a forma e se lhe conheça o procedimento. Assim, o processo de percepção da arte surge como um fim em si mesmo, tendo apercep- tibilidade da forma como seu marco distintivo e o desvelamento do procedimento como o princípio para uma teoria que, renunciando conscientemente ao conhecimento histórico, transformou a crítica de arte num método racional e, ao fazê-lo, produziu feitos de qualidade científica duradoura. Entretanto, não se pode ignorar um outro feito da escola formalista. A historicidade da literatura, inicialmente negada, reapareceu ao longo da construção do método formalista, colocando-o diante de um problema que o obrigou a repensar os princípios da diacronia. O literário na literatura não é determinado apenas sincronicamente — pela oposição entre as linguagens poética e prática —, mas o é também diacronicamente, por sua oposição àquilo que lhe é predeterminado pelo gênero e à forma que o precede na série literária. Na formulação de Vítor Chklovski, se a obra de arte é percebida em contraposição ao pano de fundo oferecido por outras obras de arte e mediante associação com estas[34], a interpretação deve levar em conta também a sua relação com outras formas existentes anteriormente a ela. Com isso, a escola formalista começou a buscar seu próprio caminho de volta rumo à história. Essa sua nova proposta distinguia-se da velha história da literatura pelo fato de abandonar a concepção básica desta última de um processo linear e continuado, e por contrapor, assim, ao conceito clássico da tradição um princípio dinâmico de evolução literária. O prisma da continuidade perdia, pois, sua velha primazia no conhecimento histórico. A análise da evolução literária desnuda, na história da literatura, a autogeração dialética de novas formas[35]; ela descreve o fluxo supostamente pacífico e gradual da tradição como um processo que encerra rupturas, revoltas de novas escolas e conflitos entre gêneros concorrentes. O “espírito objetivo” das épocas [20] homogê|neas é repudiado como especulação metafísica. Segundo Vítor Chklovski e Júri Tynianov, em toda época existem simultaneamente várias escolas literárias, e uma delas representa o ápice canonizado da literatura; a canonização de uma forma literária conduz à sua automatização, provocando, na camada inferior, a construção de novas formas, as quais conquistam o lugar das antigas, adquirem a dimensão de um fenômeno de massa e, por fim, são elas próprias compelidas de volta à periferia[36]. Com essa proposta — que, paradoxalmente, volta o princípio da evolução literária contra o sentido orgânico-teleológico do conceito clássico de evolução —, a escola formalista aproximou-se bastante de uma nova compreensão histórica da literatura, no domínio do surgimento, da canonização e da decadência dos géneros. Ela nos ensinou a ver de uma maneira nova a obra de arte em sua história — isto é, na transformação dos sistemas de gêneros e formas literárias —, abrindo caminho, assim, para uma descoberta da qual também a lingüística se apropriou: a descoberta de que a pura sincronia é ilusória, porque — nas palavras de Roman Jakobson e Júri Tynianov — todo sistema apresenta-se necessariamente como uma evolução, e esta, por sua vez, carrega forçosamente um caráter sistemático[37]. Contudo, compreender a obra de arte em sua história — ou seja, no interior da história da literatura definida como uma sucessão de sistemas[38] — ainda não é o mesmo que contemplá-la na história — isto é, no horizonte histórico de seu nascimento, função social e efeito histórico. O histórico na literatura não se esgota na sucessão de sistemas estético-formais; assim como o da língua, o desenvolvimento da literatura não pode ser determinado apenas de forma imanente, através de sua relação própria entre diacronia e sincronia, mas há de ser definido também em função de sua relação com o processo geral da história[39]. Se, dessa perspectiva, voltarmos novamente o nosso olhar para o dilema comum à teoria literária formalista e à marxista, resultará daí uma conclusão que nenhuma delas tirou. Se, por um lado, se pode compreender a evolução literária a partir da sucessão histórica de sistemas e, por outro, a história geral a [21] partir do encadeamento dinâmico de situações sociais, não haverá de ser possível também colocar-se a “série literária e a “não-literária” numa conexão que abranja a relação entre Literatura e história, sem com isso obrigar-se a primeira a, abandonando seu caráter artístico, encaixar-se numa função meramente mimética ou ilustrativa? [22] V No âmbito da questão aí colocada, eu vejo o desafio da ciência literária na retomada do problema da história da literatura deixado em aberto pela disputa entre o método marxista e o formalista. Minha tentativa de superar o abismo entre literatura e história, entre o conhecimento histórico e o estético, pode, pois, principiar do ponto em que ambas aquelas escolas pararam. Seus métodos compreendem o fato literárioencerrado no círculo fechado de uma estética da produção e da representação. Com isso, ambas privam a literatura de uma dimensão que é componente imprescindível tanto de seu caráter estético quanto de sua função social: a dimensão de sua recepção e de seu efeito. Leitores, ouvintes, espectadores — o fator público, em suma, desempenha naquelas duas teorias literárias um papel extremamente limitado. A escola marxista não trata o leitor — quando dele se ocupa — diferentemente do modo com que ela trata o autor: busca-lhe a posição social ou procura reconhecê-lo na estratificação de uma dada sociedade. A escola formalista precisa dele apenas como o sujeito da percepção, como alguémque, seguindo as indicações do texto, tem a seu cargo distinguir a forma ou desvendar o procedimento. Pretende, pois, ver o leitor dotado da compreensão teórica do filólogo, o qual, conhecedor dos meios artísticos, é capaz de refletir sobre eles — do mesmo modo como, inversamente, a escola marxista iguala a experiência espontânea do leitor ao interesse científico do materialismo histórico, que deseja [23] desven|dar na obra literária as relações entre a superestrutura e a base. Contudo — e como afirmou Walther Bulst —, texto algum jamais foi escrito para ser lido e interpretado filologicamente por filólogos[40], ou — acrescento eu — historicamente por historiadores. Ambos os métodos, o formalista e o marxista, ignoram o leitor em seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o histórico: o papel do destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa. Considerando-se que, tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade, a obra literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre literatura e leitor — relação esta que pode ser entendida tanto como aquela da comunicação (informação) com o receptor quanto como uma relação de pergunta e resposta[41] —, há de ser possível, no âmbito de uma história da literatura, embasar nessa mesma relação o nexo entre as obras literárias. E isso porque a relação entre literatura e leitor possui implicações tanto estéticas quanto históricas. A implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação com outras obras já lidas[42]. A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade estética. Se, pois, se contempla a literatura na dimensão de sua recepção e de seu efeito, então a oposição entre seu aspecto estético e seu aspecto histórico vê-se constantemente mediada, e reatado o fio que liga o fenômeno passado à experiência presente da poesia, fio este que o historicismo rompera. Com base nessa premissa, cumpre agora responder à pergunta acerca de como se poderia hoje fundamentar metodologicamente e reescrever a história da literatura. O esboço que se segue foi dividido em sete teses (VI-XII), cada uma das quais será por mim discutida separadamente. [24] VI Uma renovação da história da literatura demanda que se ponham abaixo os preconceitos do objetivismo histórico e que se fundamentem as estéticas tradicionais da produção e da representação numa estética da recepção e do efeito. A historicidade da literatura não repousa numa conexão de “fatos literários” estabelecida post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores. Essa mesma relação dialógica constitui o pressuposto também da história da literatura. E isso porque, antes de ser capaz de compreender e classificar uma obra, o historiador da literatura tem sempre de novamente fazer-se, ele próprio, leitor. Em outras palavras: ele tem de ser capaz de fundamentar seu próprio juízo tomando em conta sua posição presente na série histórica dos leitores. O postulado que, em sua crítica à ideologia dominante da objetividade, R. G. Collingwood estabeleceu para a historiografia — “history is nothing but the re-enactment of past thought in the historian’s mind”[43] — aplica-se em ainda maior medida à história da literatura. A concepção positivista da história como descrição “objetiva” de uma seqüência de acontecimentos num passado já morto falha tanto no que se refere ao caráter artístico da literatura, quanto no que respeita à sua historicidade [25] especí|fica. A obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto[44]. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual: “parole qui doit, en même temps qu’elle lui parle, créer un interlocuteur capable de l’entendre”[45]. É esse caráter dialógico da obra literária que explica por que razão o saber filológico pode apenas consistir na continuada confrontação com o texto, não devendo congelar-se num saber acerca de fatos[46]. O saber filológico permanece sempre vinculado à interpretação, e esta precisa ter por meta, paralelamente ao conhecimento de seu objeto, refletir e descrever a consumação desse conhecimento como momento de uma nova compreensão. A história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete. A soma — crescente a perder de vista — de “fatos” literários conforme os registram as histórias da literatura convencionais é um mero resíduo desse processo, nada mais que passado coletado e classificado, por isso mesmo não constituindo história alguma, mas pseudo-história. Aquele que toma já por uma parcela da história da literatura uma tal série de fatos literários está confundindo o caráter de acontecimento de uma obra de arte com o de um fato histórico. Como acontecimento literário, o Perceval de Chrétien de Troyes não é “histórico” no sentido em que o é, por exemplo, a Terceira Cruzada, contemporânea à obra[47]. Não se trata de uma action que, em função de uma série de premissas e motivações imperiosas, da intenção reconstruível de um ato histórico e de suas conseqüências inevitáveis e incidentais, se possa explicar como evento decisivo, O contexto histórico no qual uma obra literária aparece não constitui uma seqüência factual de acontecimentos forçosamente existentes independentemente de um observador. O Perceval torna-se acontecimento literário unicamente para seu leitor, que lê essa obra derradeira de Chrétien tendo na lembrança [26] as obras anteriores do autor, percebe-lhe a singularidade em comparação com essas e outras obras já conhecidas e adquire, assim, um novo parâmetro para a avaliação de obras futuras. Diferentemente do acontecimento político, o literário não possui conseqüências imperiosas, que seguem existindo por si sós e das quais nenhuma geração posterior poderá mais escapar. Ele só logra seguir produzindo seu efeito na medida em que sua recepção se estenda pelas gerações futuras ou seja por elas retomada — na medida, pois, em que haja leitores que novamente se apropriem da obra passada, ou autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la. A literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra. Da objetivação ou não desse horizonte de expectativa dependerá, pois, a possibilidade de compreender e apresentar a história da literatura em sua historicidade própria. [27] VII A análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo que a ameaça quando descreve a recepção e o efeito de uma obra a partir do sistema de referências que se pode construir em função das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre a linguagem poética e a linguagem prática. Essa tese volta-se contra o ceticismo disseminado — firmado sobretudo pela crítica de René Wellek à teoria literária de I. A. Richards — quanto à possibilidade de uma análise do efeito estético chegar a alcançar a esfera de significação de uma obra literária, em vez de, em suas tentativas, resultar, na melhor das hipóteses, simplesmente numa sociologia do gosto. Wellek argumenta não serpossível, por meios empíricos, determinar um estado da consciência, quer seja o individual — uma vez que este encerra em si algo de momentâneo e exclusivamente pessoal quer seja o coletivo — que J. Mukarovsky supõe ser o efeito da obra de arte[48]. Roman Jakobson pretendeu substituir o “estado coletivo da consciência” por uma “ideologia coletiva”, esta sob a [28] forma de um sistema de normas que existiria, para cada obra literária, na qualidade de langue, e que seria atualizado pelo receptor como parole — embora de maneira imperfeita e jamais em sua totalidade[49]. De fato, essa teoria limita o subjetivismo do efeito, mas deixa em aberto a questão de a partir de que dados se pode apreender e alojar num sistema de normas o efeito de uma obra particular sobre determinado público. Há, entretanto, meios empíricos nos quais até hoje não se pensou — dados literários a partir dos quais, para cada obra, uma disposição específica do público se deixa averiguar, disposição esta que antecede tanto a reação psíquica quanto a compreensão subjetiva do leitor. Assim como em toda experiência real, também na experiência literária que dá a conhecer pela primeira vez uma obra até então desconhecida há um “saber prévio, ele próprio um momento dessa experiência, com base no qual o novo de que tomamos conhecimento faz-se experienciável, ou seja, legível, por assim dizer, num contexto experiencial”[50]. Ademais, a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembran- ça do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então — e não antes disso —, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores. O caso ideal para a objetivação de tais sistemas histórico-literários de referência é o daquelas obras que, primeiramente, graças a uma convenção do gênero, do estilo ou da forma, evocam propositadamente um marcado horizonte de expectativas em seus leitores para, depois, destruí-lo passo a passo — proce- dimento que pode não servir apenas a um propósito crítico, mas produzir ele próprio efeitos poéticos. Assim é que Cervantes faz com que, da leitura do Dom Quixote, resulte o horizonte de expectativa dos antigos e tão populares romances de cavalaria, romances estes que a aventura desse seu último cavaleiro parodia, então, profundamente[51]. Assim é também que Diderot, com as perguntas fictícias do leitor ao narrador no princípio de seu Jacques le fataliste, evoca o horizonte de expectativa do então em voga romance de “viagem”, bem como as convenções (aristotelizantes) da fábula romanesca e da providência que lhe é própria, fazendo-o apenas para, a seguir, contrapor provocativamente ao prometido romance de viagem e de amor uma vérité de l’histoireinteiramente não-romanesca: a realidade bizarra e a casuística moral das histórias que insere, nas quais a verdade da vida contesta seguidamente o caráter mentiroso da ficção poética[52]. Também Nerval, em suas Chimères, cita, combina e mistura toda uma gama de conhecidos motivos românticos e ocultistas, produzindo a partir daí o horizonte de expectativa da transformação mítica do mundo, mas apenas para afirmar seu repúdio à poesia romântica: as identificações e relações da condição mítica familiares ou acessíveis ao leitor dissolvem-se em algo desconhecido na medida em que fracassa o intentado mito privado do Eu lírico, e na medida também em que se rompe a lei da informação suficiente, de modo que a própria obscuridade tornada expressiva adquire uma função poética[53]. Mas a possibilidade da objetivação do horizonte de expectativa verifica-se também em obras historicamente menos delineadas. E isso porque, na ausência de sinais explícitos, a predisposição específica do público com a qual um autor conta para determinada obra pode ser igualmente obtida a partir de três fatores que, de um modo geral, se podem pressupor: em primeiro lugar, a partir de normas conhecidas ou da poética imanente ao gênero; em segundo, da relação implícita com obras conhecidas do contexto histórico-literário; e, em terceiro lugar, da oposição entre ficção e realidade, entre a função poética e a função prática da linguagem, oposição esta que, para o leitor que reflete, faz-se sempre presente durante a leitura, como possibilidade de comparação. Esse terceiro fator inclui ainda a possibilidade de o leitor perceber uma nova obra tanto a partir do horizonte mais restrito de sua expectativa literária, quanto [30] do horizonte mais amplo de sua experiência de vida. Voltarei a essa estruturação dos horizontes e à sua possível objetivação mediante o esquema de pergunta e resposta quando abordar a questão da relação entre literatura e vida (ver tese XII). [31] VIII O horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna possível determinar seu caráter artístico a partir do modo e do grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público. Denominando-se distância estética aquela que medeia entre o horizonte de expectativa preexistente e a aparição de uma obra nova — cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por conseqüência uma “mudança de horizonte” —, tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro das reações do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados de aprovação, compreensão gradual ou tardia). A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico de sua aparição, atende, supera, decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos claramente um critério para a determinação de seu valor estético. A distância entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o já conhecido da experiência estética anterior e a “mudança de horizonte”[54] exigida pela acolhida à nova obra, determina, do ponto de vista da estética da recepção, o caráter artístico de uma obra literária. Àmedida que essa distância se reduz, que não se demanda da consciência receptora nenhuma guinada rumo ao horizonte da 32] expe|riência ainda desconhecida, a obra se aproxima da esfera da arte “culinária” ou ligeira. Esta última deixa-se caracterizar, segundo a estética da recepção, pelo fato de não exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim de simplesmente atender a expectativas que delineiam uma tendência dominante do gosto, na medida em que satisfaz a demanda pela reprodução do belo usual, confirma sentimentos familiares, sanciona as fantasias do desejo, torna palatáveis — na condição de “sensação” — as experiências não corriqueiras ou mesmo lança problemas morais, mas apenas para “solucioná-los” no sentido edificante, qual questões já previamente decididas[55]. Se, inversamente, trata- se de avaliar o caráter artístico de uma obra pela distância estética que a opõe à expectativa de seu público inicial, segue-se daí que tal distância — experimentada de início com prazer ou estranhamento, na qualidade de uma tiova forma de percepção — poderá desaparecer para leitores posteriores, quando a negatividade original da obra houver se transformado em obviedade e, daí em diante, adentrado ela própria, na qualidade de uma expectativa familiar, o horizonte da experiência estética futura. É nessa segunda mudança de horizonte que se situa particularmente a classicidade das assim chamadas obras-primas; sua forma bela, tornada uma obviedade, e seu “sentido eterno”, aparentemente indiscutível, aproximam-na perigosamente, do ponto de vista estético-recepcional, da pacificamente convincente e palatávelarte “culinária”, de forma que um esforço particular faz-se necessário para que se possa lê-la “a contrapelo” da experiência que se fez hábito e, assim, divisar-lhe novamente o caráter artístico (cf. X). A relação entre literatura e público não se resolve no fato de cada obra possuir seu público específico, histórica e sociologicamente definível; de cada escritor depender do meio, das concepções e da ideologia de seu público; ou no fato de o sucesso literário pressupor um livro “que exprima aquilo que o grupo espera- va, um livro que revela ao grupo sua própria imagem”[56]. A sociologia da literatura não está contemplando seu objeto de forma suficientemente dialética ao definir com tamanha estreiteza de visão o círculo formado por escritor, obra e público[57]. Tal definição pode ser invertida: há obras que, no momento de sua [33] publi|cação, não podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem tão completamente o horizonte conhecido de expectativas literárias que seu público somente começa a formar-se aos poucos[58]. Quando, então, o novo horizonte de expectativas logrou já adquirir para si validade mais geral, o poder do novo cânone estético pode vir a revelar-se no fato de o público passar a sentir como envelhecidas as obras até então de sucesso, recusando-lhes suas graças. É somente tendo em vista essa mudança de horizonte que a análise do efeito literário adentra a dimensão de uma história da literatura escrita pelo leitor[59], e as curvas estatísticas dos best sellers proporcionam conhecimento histórico. Como exemplo disso, pode servir-nos uma sensação literária do ano de 1857. Juntamente com o Madame Bovary de Flaubert — romance que, de lá para cá, tornou-se mundialmente famoso — foi publicado o hoje esquecido Fanny, de seu amigo Feydeau. Embora o romance de Flaubert tenha acarretado um processo por violação da moral pública, Madame Bovary foi, a princípio, eclipsado pelo romance de Feydeau: em um ano, Fanny alcançou treze edições e, assim, um sucesso que Paris não via desde o Atala de Chateaubriand. Do ponto de vista temático, ambos os romances atendiam à expectativa de um novo público que, na análise de Baudelaire, abjurara todo e qualquer romantismo e desdenhava em igual medida tanto o grandioso quanto o ingênuo nas paixões[60]. Os dois tratavam de um tema trivial — o adultério em um ambiente burguês ou provinciano. Contudo, para além dos previsíveis detalhes das cenas eróticas, ambos os autores souberam dar uma guinada sensacional no triângulo amoroso entorpecido pela convenção. Lançaram uma nova luz sobre o desgastado tema do ciúme, invertendo a já esperada relação dos três papéis clássicos: Feydeau faz o jovem amante da femme de trente ans, embora tendo satisfeitos os seus desejos, ter ciúme do marido de sua amada e sucumbir ante essa tormentosa situação; Flaubert dá aos adultérios da esposa do médico de província — adultérios estes que Baudelaire interpreta como uma forma sublime do dandysme — desfecho surpreendente, na medida em que é precisamente a figura ridícula do marido enganado, Charles Bovary, que, ao final do romance, assume traços [34] subli|mes. Na crítica oficial da época, encontram-se vozes a condenar tanto Fanny quanto Madame Bovary como produtos da nova escola do réalisme, à qual acusam de negar tudo quanto é ideal e de atacar as idéias sobre as quais se assenta a ordem social no Segundo Império[61]. Contudo, esboçado aqui apenas em umas poucas pinceladas, o horizonte de expectativa do público de 1857 — que, após a morte de Balzac, nada mais esperava de grandioso do romance[62] — somente explica o êxito distinto de ambos os romances quando se coloca também a questão do efeito produzido por sua forma narrativa. A inovação formal de Flaubert, seu princípio do “narrar impessoal” (a impassibilité que Barbey d’Aurevilly atacou afirmando que, se se pudesse forjar uma máquina de narrar de aço inglês, esta não funcionaria diferentemente de Monsieur Flaubert[63]), tinha de chocar aquele mesmo público que recebeu o conteúdo provocante de Fanny apresentado no tom facilmente digerível de um romance confessional. Ademais, incorporados às descrições de Feydeau, tal público pôde identificar ideais da moda e desejos fracassados de uma camada social dominante[64], podendo deleitar-se livremente com a lasciva cena culminante na qual Fanny (sem desconfiar de que seu amante a observa da sacada) seduz o marido — afinal, já a reação da desafortunada testemunha desobrigava o público da indignação moral. Quando, porém, Madame Bovary, compreendido de início somente por um pequeno círculo de conhecedores e considerado um marco na história do romance, tornou- se um sucesso mundial, o público leitor de romances por ele formado sancionou o novo cânone de expectativas, tornando insuportáveis as debilidades de Feydeau — seu estilo floreado, seus efeitos da mo- da, seus clichês lírico-confessionais — e fazendo amarelecer qual um best seller do passado as páginas de Fanny. [35] IX A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi criada e recebida no passado possibilita, por outro lado, que se apresentem as questões para as quais o texto constituiu uma resposta e que se descortine, assim, a maneira pela qual o leitor de outrora terá encarado e compreendido a obra. Tal abordagem corrige as normas de uma compreensão clássica ou modernizante da arte — em geral aplicadas inconscientemente — e evita o círculo vicioso do recurso a um genérico espírito da época. Além disso, traz à luz a diferença hermenêutica entre a compreensão passada e apresente de uma obra, dá a conhecer a história de sua recepção — que intermedeia ambas as posições — e coloca em questão, como um dogma platonizante da metafísica filológica, a aparente obviedade segundo a qual a poesia encontra-se atemporalmente presente no texto literário, e seu significado objetivo, cunhado deforma definitiva, eterna e imediatamente acessível ao intérprete. O método da estética da recepção[65] é imprescindível à compreensão da literatura pertencente ao passado remoto. Quando não se conhece o autor de uma obra, quando sua intenção não se encontra atestada e sua relação com suas fontes e modelos só pode ser investigada indiretamente, a questão filoló- gica acerca de como, “verdadeiramente”, se deve entender o texto — ou seja, de como entendê-lo “da perspectiva de sua época” [36] — encontra resposta sobretudo destacando-o do pano de fundo daquelas obras que ele, explícita ou implicitamente, pressupunha serem do conhecimento do público seu contemporâneo. O poeta das branches mais antigas do Roman de Renart — conforme atesta o prólogo da obra — confia, por exemplo, em que seus ouvintes conheçam romances como a história de Tróia e o Tristan, bem como poemas épicos (chansons de geste) e anedotas em verso (fabliaux), interessando-se, portanto, pela “inaudita guerra dos barões Renart e Ysengrin”, que há de eclipsar tudo quanto se conhece. As obras e gêneros evocados são então, a seguir, todos mencionados ironicamente no curso da narrativa, e é, aliás, precisamente em função disso que se explica não em pouca medida o sucesso de público, ultrapassando em muito as fronteiras da França, dessa obra que se fez rapidamente famosa e foi a primeira a assumir posição contrária a toda a literatura heróica e cortês até então dominante[66]. A investigação filológica ignorou longamente a intenção originalmente satírica da obra medieval Reineke Fuchs, e, com isso, também o sentido irônico-didático da analogia entre o ser animal e a natureza humana; fê-lo porque, desde Jacob Grimm, permanecera cativa da concepção romântica da pura poesia natural e da fábula ingênua. Da mesma forma — para citar um segundo exemplo de normas modernizantes —, poder-se-ia também, com razão, repreender a pesquisa épica francesa desde Bédier pelo fato de ela — sem o perceber — viver de critérios tomados da poética de Boileau e julgar uma literaturanão-clássica segundo as normas da simplicidade, da harmonia entre a parte e o todo, da verossimilhança e de outros critérios afins[67]. Seu objetivismo histórico evidentemente não coloca o método filológico-crítico a salvo do intérprete que, julgando-se isento, eleva seu próprio pré-entendimento estético à condição de norma inconfessa, modernizando irrefletidamente o sentido do texto antigo. Quem acredita que, em conseqüência unicamente de seu mergulho no texto, o sentido “atemporalmente verdadeiro” de uma poesia teria de descortinar-se de forma imediata e plena ao intérprete — postado, por assim dizer, exteriormente à história e acima de todos os “equívocos” de seus predecessores e da recepção [37] histó|rica — “escamoteia o emaranhado da história do efeito [Wirkungsgeschichte] no qual se encontra enredada a própria consciência histórica”. Aquele que assim pensa estará, pois, negando “as premissas involuntárias e não arbitrárias, mas determinantes, que balizam a sua própria compreensão”, logrando com isso tão-somente aparentar uma objetividade que, na verdade, depende da legitimidade de seus questionamentos”[68]. Em Wahrheit und Methode [Verdade e método], Hans Georg Gadamer, cuja crítica ao objetivismo histórico aqui retomo, descreveu o princípio da história do efeito — que busca evidenciar a realidade da história no próprio ato da compreensão[69] — como uma aplicação da lógica de pergunta e resposta à tradição histórica. Levando adiante a tese de Collingwood, segundo a qual “só se pode entender um texto quando se compreendeu a pergunta para a qual ele constitui uma resposta”[70], Gadamer explica que a pergunta reconstruída não pode mais inserir-se em seu horizonte original, pois esse horizonte histórico é sempre abarcado por aquele de nosso presente: “O entendimento [é] sempre o processo de fusão de tais horizontes supostamente existentes por si mesmos”[71]. A pergunta histórica não pode existir por si, mas tem de transformar-se na pergunta “que a tradição constitui para nós”[72]. Resolvem-se assim as questões de que se valeu René Wellek para descrever a aporia do juízo literário. Deve o filólogo avaliar uma obra literária a partir da perspectiva do passado, do ponto de vista do presente ou do “juízo dos séculos”[73]? Os critérios efetivos de um passado qualquer poderiam ser tão estreitos pondera Wellek que sua utilização apenas tornaria mais pobre uma obra que, na história de seu efeito, desenvolveu um rico potencial de significados. O juízo estético do presente, por sua vez, privilegiaria um cânone de obras que atendem ao gosto moderno, mas avaliaria injustamente todas as demais obras, e unicamente porque a função destas à sua época já não se mostra visível. E a própria história do efeito, por mais instrutiva que seja, estaria, “em sua autoridade, exposta às mesmas objeções que a autoridade dos contemporâneos do poeta”[74]. A conclusão de Wellek — de que não há possibilidade de nos esquivarmos de nosso próprio juízo e de que se deve apenas torná-lo o mais [38] obje|tivo possível, procedendo como fazem os cientistas, isto é, “isolando o objeto”[75] — não constitui solução alguma da aporia, mas uma recaída no objetivismo, O “juízo dos séculos” acerca de uma obra literária é mais do que apenas “o juízo acumula do de outros leitores, críticos, espectadores e até mesmo professores”[76]; ele é o desdobramento de um potencial de sentido virtualmente presente na obra, historicamente atualizado em sua recepção e concretizado na história do efeito, potencial este que se descortina ao juízo que compreende na medida em que, no encontro com a tradição, ele realize a “fusão dos horizontes” de forma controlada. A concordância entre minha tentativa de, com base na estética da recepcão, fundar uma possível história da literatura e o princípio da história do efeito de H. G. Gadamer encontra, porém, seu limite no intento de Gadamer de elevar o conceito do clássico à condição de protótipo de toda mediação histórica entre passado e presente. Sua definição segundo a qual “o que é ‘clássico’ não necessita primeiramente da superação da distância histórica, pois, em mediação constante, realiza por si só essa superação”[77], escapa à relação de pergunta e resposta constitutiva de toda tradição histórica. Se clássico é “o que diz algo ao presente como se o dissesse especialmente a ele”?[78], então não se teria de buscar primeiramente no texto clássico a pergunta para a qual ele constitui uma resposta. O clássico que de tal forma “significa e interpreta a si mesmo”[79] não se traduz pura e simplesmente no resultado daquilo a que chamei a “segunda mudança de horizonte”? Não constitui ele a obviedade inquestionável da assim cha- mada “obra-prima”, que oculta sua negatividade original no horizonte retrospectivo de uma tradição modelar e nos obriga a, investindo contra sua atestada classicidade, primeiramente recuperar o “correto horizonte de pergunta”? Mesmo ante a obra clássica a consciência que opera com base na história do efeito não se encontra desobrigada da tarefa de identificar “a relação de tensão entre texto e presente”[80]. O conceito hegeliano do clássico que interpreta a si mesmo só pode conduzir à inversão da relação histórica de pergunta e resposta[81] e contradizer o princípio da história do efeito segundo o qual o entendimento “não é um processo apenas reprodutivo, mas produtivo também” [82]. [39] Evidentemente, determina tal contradição o fato de Gadamer ter se apegado a um conceito de arte clássica que, fora de sua época de origem — a do Humanismo —, não se sustenta como fundamento geral de uma estética da recepção. Trata-se do conceito de mimesis, entendido aqui como “reconhecimento”, conforme expõe Gadamer em sua explicação ontológica da experiência da arte: “O que efetivamente experimentamos numa obra de arte, aquilo para o qual nos voltamos, é antes quão verdadeira ela é, ou seja, em que medida conhecemos e reconhecemos nela as coisas e a nós mesmos”[83]. Esse conceito de arte pode ser aplicado à arte humanista, mas não à medieval que a precedeu, e de forma alguma à época moderna que a sucedeu, na qual a estética da mimesis, tanto quanto a metafísica substancialista que a fundamenta (“o conhecimento do ser”), perdeu seu caráter obrigatório. Contudo, a importância cognitiva da arte não teve fim com essa mudança de época[84], evidenciando assim que ela absolutamente não estava vinculada à função clássica do reconhecimento. A obra de arte pode também transmitir um conhecimento que não se encaixa no esquema platônico; ela o faz quando antecipa caminhos da experiência futura, imagina modelos de pensamento e comportamento ainda não experimentados ou contém uma resposta a novas perguntas[85]. É precisamente desse significado virtual e dessa função produtiva no processo da experiência que a história do efeito de literatura se vê subtraída quando se deseja colocar a mediação entre a arte passada e o presente sob o signo de tal conceito do clássico. Na condição de uma perspectiva da tradição hipostatizada (uma vez que, segundo Gadamer, o clássico, em mediação constante, realiza ele próprio a superação da distância histórica), o clássico há de voltar nosso olhar para o fato de que, à época de sua produção, a arte clássica ainda não se afigurava “clássica”, mas, antes, terá outrora ela própria aberto novas perspectivas e pré-formado novas experiências, as quais somente em função da distância histórica — no reconhecimento do já conhecido — causam a impressão de que uma verdade atemporal se expressa na obra de arte. Mesmo o efeito das grandes obras literárias do passado não é um acontecer que se mediava a si próprio, nem pode ser [40] com|parado a uma emanação: também a tradição da arte pressupõe uma relação dialógica do presente com o passado, relação esta em decorrência da qual a obra do passado somente nos pode responder e “dizer alguma coisa” se aquele que hoje a contempla houver colocadoa pergunta que a traz de volta de seu isolamento. Onde, em Wahrheit und Methode, a compreensão — analo- gamente ao “acontecer do ser” [Seinsgeschehen] de Heidegger — é entendida como “penetração num acontecer da tradição no qual passado e presente mediavam-se continuadamente”[86], aí tem de padecer o “momento produtivo que a compreensão encerra”[87]. Essa função produtiva da compreensão progressiva — que, necessariamente, encerra também uma crítica da tradição e o esquecimento — fundamentará, nas páginas que seguem, o projeto estético-recepcional de uma história da literatura. Tal projeto tem de considerar a historicidade da literatura sob três aspectos: diacronicamente, no contexto recepcional das obras literárias (ver tese X); sincronicamente, no sistema de referências da literatura pertencente a uma mesma época, bem como na seqüência de tais sistemas (ver tese XI); e, finalmente, sob o aspecto da relação do desenvolvimento literário imanente com o processo histórico mais amplo (ver tese XII). [41] X A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra isolada em sua “série literária”, a fim de que se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência da literatura. No passo que conduz de uma história da recepção das obras à história da literatura, como acontecimento, esta última revela-se um processo no qual a recepção passiva de leitor e crítico transforma- se na recepção ativa e na nova produção do autor — ou, visto de outra perspectiva, um processo no qual a nova obra pode resolver problemas formais e morais legados pela anterior, podendo ainda propor novos problemas. De que maneira pode a obra isolada, fixada numa série cronológica pela história positivista da literatura e, desse modo, reduzida exteriormente a um “factum”, ser trazida de volta para o interior de seu contexto sucessório histórico e, assim, novamente compreendida como um “acontecimento”? A teoria da escola formalista pretende solucionar esse problema — como já se disse aqui — por intermédio de seu princípio da “evolução literária”. Segundo tal princípio, a obra nova brota do pano de fundo das obras anteriores ou contemporâneas a ela, atinge, na qualidade de forma bem-sucedida, o “ápice” de uma época literária, é reproduzida e, assim, progressivamente automatizada, para então, finalmente, tendo já se imposto a forma seguinte, prosseguir [42] vegetan|do no cotidiano da literatura como gênero desgastado. Caso se intentasse analisar e descrever uma época literária de acordo com esse programa — que, ao que eu saiba, até hoje jamais foi aplicados[88] —, poder-se-ia esperar de tal empreitada um quadro que, em muitos aspectos, resultaria superior ao oferecido pela história convencional da literatura. Tal exposição estabeleceria relações entre as séries fechadas em si mesmas — as quais coexistem na história convencional sem nenhuma conexão a vinculá-las, emolduradas, quando muito, por um esboço de história geral (ou seja, séries de obras de um mesmo autor, de uma escola ou de um estilo) —, bem como relações entre as séries de diferentes gêneros, revelando assim a interação evolutiva das funções e das formas[89]. As obras que aí se destacariam, se corresponderiam e se substituiriam figurariam, então, como momentos de um processo que não precisaria mais ser construído tendo em vista um ponto de chegada, pois, enquanto autogeração dialética de novas formas, ele não necessita de nenhuma teleologia. Vista dessa maneira, a dinâmica própria da evolução literária ver-se-ia, ademais, isenta do dilema dos critérios de seleção: o que importa aqui é a obra na qualidade de forma nova na série literária, e não a auto-reprodução de formas, expedientes artísticos e gêneros naufragados, os quais se deslocam para o segundo plano, até que um novo momento da evolução volte a torná-los “perceptíveis”. Por fim, no projeto formalista de uma história da literatura que se vê como “evolução” e, paradoxalmente, exclui todo desenvolvimento orientado, o caráter histórico de uma obra seria sinônimo de seu caráter artístico: tal e qual o princípio que afirma ser a obra de arte percebida contra o pano de fundo de outras obras, o significado e o caráter evolutivo de um fenômeno literário pressupõem como marco decisivo a inovação[90]. A teoria formalista da “evolução literária” é decerto a tentativa mais importante no sentido de uma renovação da história da literatura. A descoberta de que também no domínio da literatura as mudanças históricas se processam no interior de um sistema, a intentada funcionalização do desenvolvimento literário e, não em menor grau, a teoria da automatização são conquistas das quais não devemos abrir mão, ainda que a canonização [43] uniface|tada da mudança necessite de correção. A crítica já apontou suficientemente as fraquezas da teoria formalista da evolução: o mero contraste ou variação estética não bastaria para explicar o desenvolvimento da literatura; a questão acerca do sentido tomado pela mudança das formas literárias teria permanecido irrespondida; a inovação, por si só, não constituiria ainda o caráter artístico; e, finalmente, não se teria, por sua simples negação, abolido a relação entre evolução literária e mudança social[91]. A resposta a esta última questão encontra-se em minha tese XII; a solução das demais exige que, pela via da estética da recepção, se abra a teoria literária descritiva dos formalistas para a dimensão da experiência histórica. A descrição da evolução literária como uma luta incessante do novo contra o velho, ou como alternância entre canonização e automatização das formas, reduz o caráter histórico da literatura à atualidade unidimensional de suas mudanças e limita a compreensão histórica à percepção destas últimas. Contudo, as mudanças da série literária somente perfazem uma seqüência histórica quando a oposição entre a forma velha e a nova dá a conhecer também a especificidade de sua mediação. Tal mediação pode ser definida como o problema “que cada obra de arte coloca e lega, enquanto horizonte das ‘soluções’ possíveis posteriormente a ela”[92]. Entretanto, a descrição da estrutura modificada e dos novos procedimentos artísticos de uma obra não remete necessariamente de volta a esse problema e, portanto, à sua função na série histórica. A fim de determinar esta última — isto é, a fim de conhecer o problema legado para o qual a obra nova na série literária constitui uma resposta —, o intérprete tem de lançar mão de sua própria experiência, pois o horizonte passado da forma nova e da forma velha, do problema e da solução, somente se faz reconhecível na continuidade de sua mediação, no horizonte presente da obra recebida. Como “evolução literária”, a história da literatura pressupõe o processo histórico de recepção e produção estética como condição da mediação de todas as oposições formais ou “qualidades diferenciais”[93]. O fundamento estético-recepcional devolve à “evolução literária” não apenas a direção perdida, na medida em que o [45] pon|to de vista do historiador da literatura torna-se o ponto de fuga — mas não de chegada! — do processo; ele abre também o olhar para a profundidade temporal da experiência literária, dando a conhecer a distância variável entre o significado atual e o significado virtual de uma obra. O que se quer dizer com isso é que o caráter artístico de uma obra — cujo potencial de significado o formalismo reduz à inovação, enquanto critério único de valor — não tem de ser sempre e necessariamente perceptível de imediato, já no horizonte primeiro de sua publicação, que dirá então esgotado na oposição pura e simples entre a forma velha e a nova. A distância que separa a percepção atual, primeira, do significado virtual — ou, em outras palavras: a resistência que a obra nova opõe à expectativa de seu público inicial podeser tão grande que um longo processo de recepção faz-se necessário para que se alcance aquilo que, no horizonte inicial, revelou-se inesperado e inacessível. Pode ocorrer aí de o significado virtual de uma obra permanecer longamente desconhecido, até que a “evolução literária” tenha atingido o horizonte no qual a atualização de uma forma mais recente permita, então, encontrar o acesso à compreensão da mais antiga e incompreendida. Assim foi que somente a lírica obscura de Mallarmé e de sua escola é que preparou o terreno para o retorno à já longamente desprezada e esquecida poesia barroca e, em particular, para a reinterpretação filológica e o renascimento” de Góngora. Exemplos de como uma nova forma literária pode reabrir o acesso a obras já esquecidas podem ser dados em profusão; encaixam-se aí os assim chamados “renascimentos” — “assim chama dos” porque o significado do termo pode dar a impressão de um retorno por força própria, freqüentemente encobrindo o fato de que a tradição literária não é capaz de transmitir-se por si mesma e de que, portanto, um passado literário só logra retornar quando uma nova recepção o traz de volta ao presente, seja porque, num retorno intencional, uma postura estética modificada se reapropria de coisas passadas, seja porque o novo momento da evolução literária lança uma luz inesperada sobre uma literatura esquecida, luz esta que lhe permite encontrar nela o que anteriormente não era possível buscar ali|[94]. [45] O novo, portanto, não é apenas uma categoria estética. Ele não se resolve nos fatores inovação, surpresa, superação, reagrupamento, estranhamento, fatores estes aos quais — e exclusiva-mente aos quais — a teoria formalista atribui importância. O novo torna-se também categoria histórica quando se conduz a análise diacrônica da Literatura até a questão acerca de quais são, efetivamente, os momentos históricos que fazem do novo em uma obra literária o novo; de em que medida esse novo é já perceptível no momento histórico de seu aparecimento; de que distância, caminho ou atalho a compreensão teve de percorrer para alcançar-lhe o conteúdo e, por fim, a questão de se o momento de sua atualização plena foi tão poderoso em seu efeito que logrou modificar a maneira de ver o velho e, assim, a canonização do passado literário[95]. Já se discutiu, em outro contexto, que aspecto assume sob essa luz a relação entre teoria poética e práxis esteticamente produtiva[96]. E certo, ademais, que tais considerações estão longe de esgotar as possibilidades de interação entre produção e recepção que decorrem da mudança histórica da postura estética. Elas bastam, entretanto, para clarificar aqui a qual dimensão conduz uma contemplação diacrônica da literatura que não mais se contente em tomar já pelo aspecto histórico da literatura a expo- sição de uma seqüência cronológica de “fatos” literários. [46] XI Os resultados obtidos pela lingüística com a diferenciação e vinculação metodológica da análise diacrônica e da sincrônica ensejam, também no âmbito da história da literatura, a superação da contemplação diacrônica, até hoje a única habitualmente empregada. Seja a perspectiva histórico- recepcional depara constantemente com relações interdependentes a pressupor um nexo funcional (“posições bloqueadas ou ocupadas diferentemente”) nas modificações da produção literária, então há de ser igualmente possível efetuar um corte sincrônico atravessando um momento do desenvolvimento, classificar a multiplicidade heterogênea de obras contemporâneas segundo estruturas equivalentes, opostas e hierárquicas e, assim, revelar um amplo sistema de relações na literatura de um determinado momento histórico. Poder-se-ia, então, desenvolver o princípio expositivo de uma nova história da literatura dispondo-se mais cortes no antes e no depois da diacronia, de tal forma que esses cortes articulem historicamente, em seus momentos constitutivos de épocas, a mudança estrutural na literatura. Siegfried Kracauer foi, decerto, quem mais decididamente questionou o primado da contemplação diacrônica na historio-grafia. Seu tratado Time and history[97]contesta a pretensão da história geral (General History) de, no interior da cronologia, tornar compreensíveis acontecimentos de todas as esferas da vida como um processo uno, consistente em cada momento histórico. Essa [47] compreensão da história, ainda e sempre na esteira do conceito hegeliano do “espírito objetivo”, pressuporia que tudo o que acontece simultaneamente se encontraria também marcado pelo momento, ocultando assim a factual não- simultaneidade do simultâneo[98]. E isso porque, segundo Kracauer, a multiplicidade dos acontecimentos de um momento histórico — acontecimentos estes que o historiador universal crê compreender como ex- poentes de um conteúdo uno — traduzir-se-ia, na verdade, em momentos de curvas temporais bastante diversas, condicionados pelas leis de sua história particular (Special History)[99], conforme evidenciam de forma imediata as interferências umas nas outras das diversas “histórias” das artes, bem como da história do direito, da economia, da política e assim por diante: “The shaped times of the diverse areas overshadow the uniform flow of time. Any historical period must therefore be imagined as a mixture of events which emerge at different moments of their own time”[100]. Não está em discussão aqui se tal diagnóstico implica uma incoerência intrínseca da história, significando, portanto, que a coerência da história geral resulta sempre, e apenas retrospectivamente, da visão e da exposição homogeneizadora do historiador; nem tampouco se o radical duvidar da “razão histórica” — que Kracauer, partindo do pluralismo de lapsos cronológicos e morfológicos de tempo, estende até a antinomia básica do geral e do particular na história — demonstra ser hoje de fato filosoficamente ilegítima a história universal. No que concerne, porém, à esfera da literatura, pode-se dizer que a percepção de Kracauer da “coexistência do simultâneo e do não-simultâneo”[101], longe de conduzir o conhecimento histórico a uma aporia, torna visível a necessidade e a possibilidade de descortinar o caráter histórico da literatura por meio de cortes sincrônicos. Decorre, afinal, dessa percepção que a ficção cronológica do momento que marca todos os fenômenos simultâneos corresponde em tão pouca medida ao conceito do histórico quanto a ficção morfológica de uma série literária homogênea, na qual todos os fenômenos, em sua sucessão, obedecem apenas a leis imanentes. A contemplação puramente diacrônica — por mais conclusivamente que ela, nas histórias dos gêneros, logre explicar modificações segundo a lógica [48] ima| nente de inovação e automatização, problema e solução — somente alcança a dimensão verdadeiramente histórica quando rompe o cânone morfológico, quando confronta a obra importante do ponto de vista da história das formas com os exemplos historicamente falidos, convencionais, do gênero e, além disso, não deixa de considerar a relação dessa obra com o contexto literário no qual ela, ao lado de outras obras de outros gêneros, teve de se impor. A historicidade da literatura revela-se justamente nos pontos de interseção entre diacronia e sincronia. Deve, portanto, ser igualmente possível tornar apreensível o horizonte literário de determinado momento histórico sob a forma daquele sistema sincrônico com referência ao qual a literatura que emergiu simultaneamente pôde ser diacronicamente recebida segundo relações de não- simultaneidade, e a obra percebida como atual ou inatual, como em consonância com a moda, como ultrapassada ou perene, como avançada ou atrasada em relação a seu tempo. Se, afinal, a literatura que surge simultaneamente decompõe-se — da perspectiva da estética da produção — numa heterogênea multiplicidade do não-simultâneo, isto é, das obras marcadas por momentos distintos do “shaped time” de seu gênero (como o céu estrelado aparentemente
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