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DEDALUS -Acervo - FFLCH-LE \ 869.915 81665 4.ed Seleta em prosa e verso. \11111 ~~I~II~11111~II\\\II~Iml~~1111 21300036903 ),,- C",- iAJ . (j tlv, <Lt '"", "O Sei"João BatistadoModC'rn;.wlO" MÁRIO DI' ANDRAI>E ,. i MANUEL BANDEIRA ! ~~. ~ ,:~11 ~.I:. ..: I SELETA EM PROSA E VERSO~,,\.' EOI(Ão COMEMORATIVA DO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO D() BARD() (IXX6-llJXh) ~, A!' 'li :1 1. ()r.L!tI";:.tI('Ú". (',I,t"d",I' (' ""(tI,1 d,' E~I:\NlIEI. 1>1. M()RAI':S ../.01I.:diçÚo i.. ! SBD-FFLO I-USP III~lil~~Uj~IIII J .O. JOSÉOlYMPIO I DITaRA Rio 111..I,\NI'IRI)/I'IXt. ", ~;\~ ; ~LG\-\-\J~Ç . . WL- 1. . ~ JG \S\QíJJ'l- U (ff3-'L:..~.J... S. P. ," õJ-;;J--' FACULDI\O!:DE FILOSOFIALETRASe. , CtEN,.IAS tIUMMJAS. ) \. ..! (~~\ -'. BIBLlOTE.CADE. Ui11AS .:~i MarinoFalcãoacertouemparte.De fato,o poemaé o relato de umasedução.Só quea finalidadedetodasas manigânciasdo poetaera obtertão-somenteum sorrisode Sacha.E comoestá contadonosversos,obleve-o.Obtevemais,coisainefável,a Última mensagemdos anjos,sob a formade um voealisemuitoseme- lhanteàslinhase pontosdo alfabetomorse. Marinoerroutambémno queconcerneà idadede Sacha.Era menorde dezoitoanos,sim,tinha,ao tempoda sedução,apenas unsseismesesde idade,s6 falavacmalfabctomorse.Louríssima. alvíssima,seriíssima.Eu tinhaqueconquistar-lheumsorriso,usei de todosos recursosreferidos.E o sorrisoveio.Comodevetcr luzidosobreo mundoo primeiroarco-íris. Vou mandarestacrônicaa Sacha.Ela vivehojeemEstocolmo, casadacom um rapagãosueco,mãede duassuequinhasmaravi- Ihosas-Ann-Mariee Ingrid,trêsanose umano,portanto,ambas já maisidosasdo queSachaquandoinspirouo poematãointeres- santementeanatomizadopor MarinoFalcão.Não lhedoaa esteo quehá de erradona suainterpretação.Valérynãodissequenão existeverdadeirosentidode um texto?Não valea autoridadedo autor:"Qlloiqll'i/ait vouludire,il a écritceqll'i/a écrit".2 (A 1/(lorilllra, A IIdurilll1a) POÉTICA O POETA E A POESIA 1. O poemafigura neslaselela,à pág.96.=-2."O quequerquetenha queridodizer,ele escreveo queescreve". SOU NATURAL DO Recife, masnaverdadenasciparaa vidacons-cienteem Petrópolis,pois de Pctrópolisdatamas minhasmais velhasreminisci:ncias.Procureifixá-Iasno poema"Infância":1 umacorridadc ciclistas,um bambualdehruçadono rio (imagino queerao fundodo Paláciodc Cristal).o pátiodo antigoHotel Orlcans,hojePálaceIlotel... Deviater eu entãounstrêsanos. O que há de especialnessasreminiscências(e em outrasdos anosseguintes,rcminiscênciasdo Rio e de SãoPaulo.até 1892, quandovolte;a Pernambueo.ondefiqueiatéos dezanos)é que, nãoobstanteseremtão vagas,encerramparamim um conteúdo inesgotávelde emoção.A certaalturada vida vim a identificar essacmoçãoparticularcomoutra.--a dc naturczaartística.Desde essemomento.possodizer que haviadcscobertoo segredoda pocsia.o scgredod..!mcu itinerárioem pocsia.Vcrifiqueiainda quc o contcÚdoclllocionaldaquelasrcminiscênciasda primeira meniniccerao mesmode certosrarosmomcntosemminhavida dc adulto:nume noutrocasoalgumacoisaqueresisteà análise da intcligi:nciae da memÓriaconsciente,e queme enchede so- bressaltoOll me forçaa umaatitudede apaixonadaescuta. O meuprimeirocontactocoma poesiasoba formade versos Icrásidoprovavelmenteemcontosde fadasemhistóriasda caro- chinha.No Recife.depoisdosseisanos.Pelo menosmelembro nitidamentedo sohrossoque me cansavaa cantigada menina enterradaviva no conto"A Madrasta": I I I ;1 ,I I .1., '\ CapiTleiroele1II1'1i{lai, Nelame cOlte.fmeuscabelos. Minha mãeme penteou, Minha madrastame ente"ou Pelo figoda figueira Que o passarinhobicou. XÔ, passarinho! lIeleta.23 Era assimque me recitavamos versos.E esse"Xô, passa- rinho!"me cortavao coração,me davavontadede chorar. Aos versosdoscontosda carochinhadevojuntaros dascan- tigasde roda,algumasdas quaissempreme encantaram,como "Roseira,dá-meumarosa",2"O anelque tu me deste","Bão, balalão,senhorcapitão","Mas paraquêtantosofrimento".3Falo destasporqueas utilizeiem poemas.E tambémas trovaspopu- lares,copIasde zarzuelas,coupletsde operetasfrancesas,enfim versosde todaa sortequemeensinavameupai. Lembro-mede unscujo autoratéhojeignoro.Ouviu-osmeupai de um sujeito queum dia, no alpendrede umacasinhado interiorde Pernam- buco,lhe veio pedir esmola.Meu pai, que gostavade brincar, disse-lhe:"Poisnão!Masvocêantestemdemedizerunsversos." Ora, ° nossohomemnão se fez de rogadoe saiu-secom esta décimalapidar,.cujo primeiroverso,estropiado,mostraque a estrofenão era de sua autoria: Tiveumachoça,seardeu-se. Tentou-meo diabo,joguei-os. Tinha um s6 dente,caiu. E fiqueisemt~rmaismeios Tive wna arara,morreu. De sustentaros meusbrios. Um papagaio,iugill. Tinha uns chinelos... Vendi-os. Dois tostõestinirade meu: Tinhaunsamores." Deixei-os. Assim,na companhiapaternaia-meeu embebendodessaidéia quea poesiaestáemtudo--tantonosamorescomonoschinelos, tantonascoisaslógicascomonasdisparatadas. CUS(jll;lIhlltleN,,~,masde umsentimentomisturado,coma intui- ção terrificantedas tristezase maldadesda vida. Dosseisaosdezanos,nessesquatroanosde residêncianp Re- cife.1:0111pequenosveraneiosnos arredores-Monteiro,Sertãozi- IIho de Caxangá.Boa Viagem.Usina do Cabo--construiu-sea minharnitologia,r.e digo mitologiaporqueos seustipos,um To- tônioRodrigucs,urnaD. AninhaViegas,a pretaTomásia,velha cozinheirada casade meuavô CostaRibeiro,têmparamim a mesmaconsistênciaheróicadas personagensdos poemashomé- ricos.A Rua daUnião,comosquatroquarteirõesadjacenteslimi- tadospelasruasda Aurora,do Sol,daSaudadee PrincesaIsabel, foi a minhaTróada;a casademeuavô,a capitaldessepaísfabu- loso. Quandocomparoessesquatroanosde minhameninicea quaisqucroutrosquatroanosdeminhavidadeadulto,fico espan- tadodo vaziodestesúlitn:losemcotejocoma densidadedaquela quadradistante. o................................................. 0"0....................... Tomeiconsciênciade queeraum poetamenor;6quemeesta- ria parasemprefechado() mundodas grandesabstraçõesgene- rosas;que não haviaem mim aquelaespéciede cadinhoonde, pelocalordo sentimento,as emoçõesmoraisse transmudamem emoçõcsestéticas:o metalpreciosoeu teriaquesacá-Ioa duras penas,ou melhor,a durasesperas,do pobreminériodasminhas pequenasdorese aindamenoresalegrias. Procuromelembrarde outrasimpressõespoéticasda primeira infânciae eis que me acodemos primeiroslivros de imagens: João Felpudo,SimplicioOlhapro Ar, Viagemà Rodado Mundo numaCasquinhade Noz. SobretudoesteúltimoteveinOuência muitoforteemmim;por eleadquiria noçãodehaverumareali- dademaisbela,düerenteda realidadequotidiana,e a páginado macacotirandococosparaos meninosdespertouo meuprimeiro desejodeevasão.No fundo,já eraPasárgada4queseprenunciava. . . "Vou-meemborapra Pusárgada"7foi o poemade maislonga gestaçãoem todaa minhaobra.Vi pelaprimeiravezessenome ue Pasárgadaquandotinha os meusdezesseisanos e foi num autorgrego.Estava~ertode ter sidoemXenofonte,masjá vas- culheiduasou trêsvezesa Ciropédiae não encontreia passa- gem.O doutoFrei DamiãoBergeinformou-meque Estrabãoe Arriano, autoresque nuncali, falamna famosacidadefundada por Ciro, o antigo.no localprecisoem quevenceraa Astíages. Ficava a sucstede Persépolis.Esse nomede Pasárgada,que significa"campodos persas"ou "tesourodos persas",suscitou na minhaimaginaçãoumapaisagemfabulosa,um país de delí- cias,COntOo de "L'I1tl'itat;olla/l Voyage"de Baudelaire.Mais de vinteanosdepois,quandoeu moravasó na minhacasada Rua seleta.25 O Coraçãoerao livrode leituraadotadonaminhaclasse.Para mim,porém,nãoeraumlivrodeestudo.Era a portadeummun- do, nãode evasão,comoo da Viagemà Rodado Mundonuma 24 m.b. do Curvelo,nummomentode fundodesânimo,da maisaguda sensaçãode tudo o que eu não tinhafeito na minhavida por motivoda doença,saltou-medesúbitodo subconscienteessegrito estapafúrdio:"Vou-meemborapra Pasárgada!"Sentina redon- dilha a primeiracélulade um poema,e tenteirealizá-Ia,masfracassei.Já nessetempoeu não forçavaa mão.Abandoneia idéia.Alguns anosdepois,em idênticascircunstânciasde desa- lentoe tédio,me ocorreuo mesmodesabafode evasãoda "vida besta".8Destavez o poemasaiusemesforço,comose já esti- vessepronto dentrode mim. Gosto dessepocmaporque~'cjo nele,em escorço,todaa minhavida;e tambémporqueparece quenelesoubetransmitira tantasouttaspessoasa visãoe pro- messadaminhaadolescência-essaPasárgadaondepodcmosviver pelo sonhoo que a vida madrastanão nos quis dar. Não sou arquiteto,como meu pai desejava,não fiz ncnhumacasa,mas reconstruí,e "nãocomoformaimperfeitanestemundodeaparên- cias",umacidadeilustre,que hoje não é maisa Pasárgadade Ciro, e sim a "minha"Pasárgada. . "A última Cançãodo Beco"Pé o melhorpoemaparaexem- plificarcomoem minhapoesiaquasetudo resultade um jogo de intuições.Não faço poesiaquandoqueroe sim quandoela, poesia,quer.E elaqueràs vezesemhorasimpossíveis:no meio danoite,ou quandoestouemcimada horaparair dar umaaula na Faculdadede Filosofiaou sair para u~ jantarde cerimô- nia... "A últimaCançãodo Beco" nasceunummomentodes- tes,s6 que o jantar não era de cerimônia.Na vésperade me mudarda Rua Moraise Vale, às seise tantoda tarde,tinhaeu acabadode arrumaros meustroçose caíra eJÇaustona cama. Exaustoda arrumaçãoe um poucotambémda emoçãodedeixar aqueleambiente,ondeviveranoveanos.De repentea cmoção se ritmouem redondilhas,escrevia primeiraestrofe,masera horade vestir-meparasair,vesti-mecomos versossurdindona cabeça,descià rua,no BecodasCarmelitasmelembreide Raul de Leoni,e os versosvindosempre,e eu commedodeesquecê- -los, tomeium bonde,saqueido bolsoum pedaçodepapele um lápis, fui tomandoas minhasnotasnuma estenografiaimprovi- sada,senãoquandolá 'sequebroua pontado lápis,os versos nãoparavam.. . Cheganddaomeudestino,pediumlápise escrevi 26 m.b. " ~ li queaindaguan.Javade cor. ., De voltaa casa,batios versos na máquinae fiquci espantadíssimoao verificar que o poemase cOlllpllsna, Ú millh.I n:wlia, ('/li .\"I'tl'(,.\.trof('sde sete ver.wsde setc sí/lI/ws. (/ til/eráriode l'lI.\'lírgllâa) 1. Poemado livro Belo Belo.-2. Vel' pil~. 133.-3.Ver pág. 151.-4. Ver pÚg. 146.-5.Ver pÚg, 133.-6.Ver págs. 25 e 156,-7.Ver pAgo ]46.-8. A expressãoé de!\1ÚriodeAndrade.A melhordefiniçãoé a de Carlos Dnnnlllondde Andradf'.no PO('IIHI"Cidndc'linhaQualquer": "Casasentreballalleiras/l\lulheresentreIUl'unjciras/pomaramor ean- tar./Um homemvai uevagar./Umcachorrovai devagar./Umburro vai dt'vaJ~ar./lkv;lJ~ar...a~;.iall..t:Isolhalll./I~ta\'idahesta.meuDeus". Essa paslllaceiracaractl'!'izaa "vida besta".E ela tantopodedecor- 1'::1'da falta de sentidona vida. comoda contrariedadeimpostapelo viver cotidiunollqueleque sonhaviver com as verd:1dcirasbelezas do mundo.(Ver p;',gs.45.46c 4i.)-9. Ver pág.149. POESIA E VERSO Ufo,(DIA. ao começara escreverum livro didático sobre litera-tura, tive quc dar ullla defini~'iioda pocsiae embatuquei. Eu. 4uedesdeos dezanosde idadefaçoversos;eu, que tantas vczessentiraa poesiapassaremmimcomoumacorrenteelé~rica e afluir aos l11('usolhossob a formade misteriosaslágrimasde alegria:nãosoubeno momentoforjarjá nãodigoumadefinição racionaldessasque,segundoa regrada lógica,devemconvira todo() ddinido e Slí ao ddinido, maslima definiçãopuramente empírica,artística,liteníria.No apertomesocorride Schiller,em quem() críticoera tão grandequantoo poeta,e dissecom ele: "Pocsiaé a forçaqUl' alua de maneiradivinae inapreendida, além'e acimada consciência." Sabc:so que é atuarde maneiradivina?Confessolisamente que não sei. Mas conheçoda poesia,por experiênciaprópria, essamaneirainapreendidade ação: nuncapude explicar,em muitoscasos,a emoçãoquemeassaltavaao ouvirou ao ler certos versos,certascombinaçõesde palavras.A propósito,vou eon- tar-vosuma anedota.Havia na AvenidaMarechalFlorianoum hotelquese chamavaHotel PenínsulaFernandes.Toda vez que eu passavapor ali e viana tabuletaaquelenomeHotelPenínsula seleta.27 Femandes,sentianão sei quepequeninoalvoroço-alvoroçoem sumadequalidadepoética.E ficavaintrigadíssimo.Por queaquele hotelse chamavaPenínsulaFernandes?Uma tardemeuprimo AntônioBandeira,igualmenteinvocadopeloestranhonome,não se conteve,subiuas escadase foi falarao proprietário,queera um portuguêsterra-a-terrae semnenhumafumaçade literatura. -O senhorme desculpea curiosidade,maspor queé queo seuhotelse chamaPenínsulaFernandes? -Muito simples-:espondeuo homem.-F'rnandesporqueé o meunome,e p'nínsulaporqueé bonito! O nomeestavarealmenteexplicado,mas a emoçãopoética não: atuavade maneirainapreendida. E assimquemuitosfatosde rua atuamsobrea nossasensibi- lidade.Dois automóveiscolidem,ou umasenhoradesmaia,ou um homemé assassinado,ou umaestrangeir~emtrânsitoparaBuenos Aires desembarcana PraçaMauá emtrajespoucomaisqueme- nores:forma-selogo um ajuntamentoe os quevão chegandoe aderindoao grupoe os queolhamde longenãosabemaindao que se passou.Pairano ar um certotumultoemocional,criando umacomoqueatmosferade poesia.Pois bem,o poetasuscitaa mesmacoisa,só quemedianteapenasumacolisãode palavras. QuandoSchillerdissequea poesiaé umaforçaqueatuaalém e acimada consciência,parecequequeriareferir-seàquelemundo do subconscientequetodostrazemosdentrodenós.A poesiaseria entãoa ponteentreo subconscientedo poetae o subconsciento do leitor.Seadoteinomeulivroa definiçãodeSchiller,foi porque elaesclarece,a meuver,a poesiamenosacessível,a quenãoocorre no focoda consciência)Masé evidentequea pocsiapodenascer tambémem plenofoco da consciência,e portantoatuarde ma- neiraclaramenteapreensível.Em meupoema"Palinódia"la estro- fe centralé perfeitamenteinteligível.Mas eu mesmonãosaberia explicaras estrofesiniciale final. Elas pertencema um poema quefiz duranteum sonho.Ao despertartenteirecompô-Ioe não me foi possívelfazê-Io senãoparcialmente.A estrofeinteligível resultoude um trabalhomentalemplenofocoda consciência;as outrasduasforamelaboradasde maneirainapreendidana franja da consciência.Tenhoa minhainterpretaçãodelas,masnãovo-la comunicarei:é segredoprofissional. Nas mesmascondiçõesde "Palinódia"estáo meu soneto"O Lutador'? tambémelaboradoem sonho. 28 m.b. I t,) .r; '1,,.;- ., \~. 1,,1' . \ Nele a intervençãoposteriorem estadode vigíliafoi mínima. O soneto,com títuloe tudoé fielmenteo do sonho.Tive de o illterpretarcomose eu fosseum estranhoa mim mesmo,como qualquerum de vós o podeciainterpretarsegundoas sugestões do seusubconscienteestimulado.Para mim-mensagemdo meu subconscienteà minhaconsciência,mensagemmuitovagamente apreendidapor estae de novorefrangidaparao seumundoori- ginal. Assentadoquea poesiapodcatuardentroou fora,acimaou abaixoda consciência,comeceia registrartodasas definiçõesde poesiaquefui encontrandoao acasodeminhasleituras.Organizei assimumapequenaantologiado assunto.Sãonumerosíssimase o poetaCarlosDrummondde Andradedepoisde mimaindaassi- nalounumacrÔnicaumaporçãodelasqueeu nãoconhecia.Mas é possívelreduzi-Iasa umameiadÚziadetipos,quelhesfacilitanl o exame.Senão,vejamos: Certosautoresdefinema poesiacomoficção:"Poeta",escreveu Jonson,grandedramaturgoinglês,contemporâneode Shakespeare e um doshomensmaiscultosdo seutempo,"é, nãoaqueleque escrevecommétrica,maso quefingee formaumafábula,pois fábulae ficçãosão,por assimdizer,a formae a almade toda obrapoéticaou poema".b o mesmoconceitodedoisoutrosgran- díssimospoetasinglesesseiscentistas:Donne,quedisse'~\LP.Q.~~!~ é comoumasimili-Criaçãoe faz coisasque não existem,como se existissem",e Dryden,paraquem"a ficçãoé a essênciada poesia". Perguntoeu agora:nãohaverápoesiaquandorealizoempala- vrasumatransposiçãoda realidade,seminventarnada,sem"fin- gir" nada?Comonestepoema3: O llrrtltllra-ct'u.w!le110ar puro que foi lm'adopelachuva E descerefletidolia poçade lamado pátio. Filtre a rcalitladee a ima[:em.110cheiosecoqueas separa, Quatro[lomhas[llls.çeillm. Poemaqueé umasimplesreproduçãopor imitação,paraem- pregaras velhaspalavrasde Aristóteles. Jáo Danteacrescentaao elementoficçãoum novoelemento- a mÚsica,e diz: "Poesiaé ficçãoretÓricapostaem 'música'."O elementomúsicavai aparecerem numerosasoutrasdefinições. "À poesia",escreveuCarlyle,"chamaremospensamentomusical." seleta29 E Ruskin,moralista,ensinaqueela é "a apresentação,emfom1a musical,à imaginação,denobresfundamentosàsnobresemoções". Não se podenegarque a músicasejaum elementoda velha poesia,da poesiaao tempoemqueela foi assimdefinida.Hoje 5abemosquepodehaverpoesiasemmúsica,e poesiada melhor. Semmúsica,bementendido,no sentidode nãoprocuraro poeta fazero versocantarno poema. Outropoeta,e quepoeta!o granderomânticoColeridge,defi- niuo poema"aquelaespéciedecomposiçãoqueseopõeàsobras de ciênciapor visarcomoobjetoimediatoo prazere nãoa ver- dade".O objetoimediato,porqueemprofundidadeeleé "a iden- tidadede todosos outrosconhecimentos,a flor e o perfumede todo o humanoconhecimento". E aqui entramosno conceitode poesia-conhecimento.Mui- tossãoos queo afirmam.ParaLautréamont,elaanunciaasrela- çõesexistentesentreos primeirosprincipiose as verdadessecun- dáriasdavida.Novalisjá disseraque"a poesiaé o realabsoluto". E o modernoMaritainprecisa:"Poesiaé o conhecimento,incom- paravelmente:conhecimento-experiência,conhecimentoemoção, conhecimentoexistencial.Ela é o fruto do contactodo espírito com a realidadeem si mesmainefávele com a sua fonte,que acreditamosser Deus." O epíteto"inefável"leva-nosa um grupode definições,onde culminao conceitona definiçãode Edwin ArlingtonRobinson, grandepoetanorte-americano:"Poe'liaé a linguagemque nos diz, em virtudedumareaçãomaisou menosemocional,alguma coisaquenãopodeserdita." Devoesclarecerquetodasessasdefiniçõese muitasoutrasqlJe coligi,apareccmemcontextoondese procuraapreendera essên- cia do fenômenopoético:não foramapresentadasisoladamente comodefiniçãono sentidológicoda palavra,e de isolá-Iascomo fiz, resultaumaccrtamutilaçãodo pensamentode seusautorcs. Nada obstantc.cadaumacontémumaparcelade verdade,ilu- I minaum àngulodo problema,que é talvezinsolúvel.Todasme \ parecemfalaremtermosde poesia,como seuvago,o seumis- tério.Nenhumase rcfereao que é a matéria-primada poesia na arte literária-as palavras,e tantose podemaplicarà arte literáriacomoà músicae às artesplásticas.Paul Valéry men- ciona-asnumadefiniçãoqueé um pequeninopoema:"Poesiaé 30 m.b. , a tentativade representarou de restituirpor meioda linguagem articuladaaquelascoisasou aquelacoisaqueos gestos,as lágri- mas,as carícias,os beijos,os su~pirosprocuramobscuramente exprimir."E André Gide foi desenterrarde-um prefácioesque- cido deBanvilleestadefinição,queespantatenhasaídoda cabe- ça de um daquelesmestresqueThibaudetchamouos Tetrarcas do Parnaso:"Poesia... essamagiaque consisteem despertar sensaçõcspor meiode umacombinaçãodesons... essesortilégio graçasao qual idéiasnos são necessariamentecomunicadas,de uma maneiracerta,por meio de palavrasque todavianão as exprimem." Comentandolargamentea definiçãode J:!anvil'e,começaGide pelosvocábulos"magia"e "sortilégio"(sorcellerie):"Valéry,de maneiravoluntariamenteambígua,dirá chorme... O verdadeiro poetaé ummago.Não se tratatantoparaelede ser comovido, masde induziro leitora comover-se:'por meiode umacombi- naçãodesons',quesãopalavras.Quea significaçãodessaspala- vras importa,não seráprecisodizer;não, porém,independente- menteda sonoridadedelas,O versodeliciosode Racine,tão fre- qüentemenecitado como exemplode cllcantaçãoharmoniosa: Vou.smO/mltesQItbordou VOltSjúteslaissée..Mudaias palavras, dizei: Vousêt(.smortesur le ril'aReoÜ TlIéseévou.sava;taban- ciolurée.r.O significadocontinuao mesmo,maso 'encanto'desa- parece." Mallarmétinharazão:"Não é comidéiasquesefazemversos: é compalavras."Não queo sentidodelasnão importe.Importa, !lias,não comoadvertiuGide, independentementeda sonoridade lidas. Natmalmcnte(1sentimentoestásubentendido,é ele que faz acharas combinaçõesde palavrassuscitadorasda emoção !,oética. A ~!ral\(kdificuldade.pon:m.estáem que llllS se comovem ,.Iiantedeccrtosverses;:oulrosnão,Há pessoasqueachaminten- sa poesianosversosde Murilo Mendes;outrasnão a achamne- nhu!lla,encontram-naé nossonetosde Emílio de Meneses,onde os admiradoresde Ml'rilo nãovêemsequera sombradela.E há as que não suportamnemum nemoutro: gostamé da suave. I músicade OlegárioMariano.Afinal em poesiatudo é relativo: -,k. .a poesianãoexisteemsi: seráumarelaçãoentreo mundointe-, ." ~"I ' Beleta 31 \ '" .. .\ \',11;' \. '. . \ . ~ I rior do poeta,com a sua sensibilidade,a sua cultura,as suas vivências,e o mundointeriordaquelequeo lê.. Sepassamosda definiçãode poesiaparaa definiçãodo verso, asdificuldadesdiminuem,masnãodesaparecem.Abri umtratado de versificação.qualquer,o de Bilac e GuimarãesPassos,por exemplo,e ali vereis definidoo versocomo"o ajuntamentode palavras,ou aindaumasó palavra,compausasobrigadase deter- minadonúmerode sílabas,queredundamemmúsica".Em nota traduzemos doisautoreso francêsQuitard:"A etimologialatina daspalavras'prosa'e 'verso'claramenteindicaa diferençaessen- cialda suasignificação:'prosa'vemdo adjetivolatinoprosa(su- bentendendo-seo substantivoora/io,discurso,oração)-oratio pro- sa, discursocontínuo,seguido,e respeitandoa ordemgramatical direta!'Verso'é derivadode versus,do verbovertere,tornarou voltar,-porque,umavez esgotadoum certonúmerode sílabas, a oraçãoseinterrompeevoltadenovoaopontodepartida,a fim de começaroutraevoluçãosilábica.". A definiçãodeBilace GuimarãesPassos,queé maisou menos a detodososoutrostratadistas,podiaservirparaa nossalínguae maisalgumasoutrasmass6 atéo adventodo versolivre. Que definiçãosepodedardoverso,demodoqueelaseapliquea qual- queridioma,vivoou morto,e emqualquertempo?pedroIlcnrí- quez-Ureõa,o grandemestredominicano,há poucofalecido,ten- tou,a meuver comêxito,essadefiniçãomínima.Poesia,poesia no sentidoformal,ensinouele,é linguagemdivididaemunidades rítmicas;prosaé linguagemcontinuada.Semdúvida,na linguagem continuadadaprosaháparágrafos.Maso cortedaprosaempará- grafosatendetão-somenteà necessidadede ordenaçãodasidéias. O versoé a unidaderítmicado poema.Ritmo,emsuafórmula elementar,é repetição.O verso,emsuaessência,é unidaderítmica porqueserepetee formaséries.Paraformarsériespodemasuni- dadesser semelhantesou dessemelhantes.Podemser unidades flutuantes.Mas é necessárioquecadaversosejaumacomoque entidade,ou comodisseValéry"umapalavratotal,vasta,nativa, perfeita,novae estranhaà língua". O que diferenciaos diversostiposde versificaçãoatravésde todosos idiomase de todosos tempossãoos expedientesdeque sevaleramos poetasparapôr emmaiorevidênciao ritmo.Expe- dientescomo:valoresde sílabas(quantidade),acentosde inten- 32 m.b. .) .~ sidadebemmarcados.regulaçãodos tonsou diferençasde altura musicalentreas sílabas,nÚmcrofixo de sílabas,rima,aliteração, encadcamento,paralelismo,acróstico.Na ver&ificaçãoportuguesa os apoiosrítmicosde quetemosexemplossãoo númerofixo de sílab<ls,a ccsura.a rima.a aliteração.o encadeamento,o parale- lismoe o acróstico.Talvezmuitosde meusleitoresnão estejam a pardosignificadodetodasessaspalavras.Do encadeamento,do paralclisl11o,por exemplo.O encadeamentoconsisteemrepetirde versoa verso,ou deestrofea estrofe,fonemas,palavrase frases. Foi, como paralelismo,muitousadona poesiahebraica,e dele seservequaseinfalivelrnenteemseuspoemaso nossoalgobíblico AugustroFredericoSclunidt: Porquechorarse o céu estáróseo, S/' 11.1'flor/'.I' e.l'lilO 111I.1'Ir/'padeira.l' IllIIIII/Çlll/lJO. ao sopro leve do [vento. J'orq/ll' chorar .rel/li felicidadelias camillllO,r. SI' l/li .1'illO.\,batel/dolia.\'aldeia.\'de Por/ugal? Nessepoemado Canto da Noite o poeta só abandonaa inter- ro~a(..ão"porquc chorar" para passarà locução l'ncadeadora"feliz como": 1'01'1111I'c!wwr--m('u 1>/'1/.1',.w:e.I'/OI/fdi::. I' pobre. Feliz comoos pobresdesconhecidosdos hospitais, Feliz comoos cegosparaquema lu7.é maÜ"ela do quea luz,Feliz CO/llO... e/c. O paralelismoé a repetiçãoideológica.Encadeamentoe pdrale- lismoliverama suafasedeouroemlínguaportuguesano tempo dos cancioneiros.O que chamaram"cossante"era uma cantiga paralelísticae encadeada.Assim esta "barcarola"de Martim Codax: ,') alldas do mar de V;go, Se vistesmeuamigo! F ai, Deus,se verrácedo! . , J~ . ':r;/, I } ':. :t;.Q)./f I '" Ondasdo mar levado, Se vistesmeuamado! E ai, Del/s,se verrácedo! 8clcta.33 Sevistesmeuamigo, O por queeususpiro! E ai, Deus,se verrácedo! Se vistesmeuamado, O por queei grancuidado! E ai, Deus,se verrácedo! Essa cantigaé paralelísticaporqueas estrofesparesrepetem a idéiadas estrofesímparescom ligeirasalteraçõesde palavras paravariaro timbredavogaltônicadasrimas(i ea); éencadeada, porqueo segundoversode cadaestrofeímparse repetecomo primeiroversoda estrofeímparseguinte. Já a rimaé apoiorítmicomuitoconhecido,massó comoigual- dadede sonsno fim daspalavrasa partirda vogaltônica- a chamadarimaconsoante.Muita genteaiodanão sabedasrimas toantes,isto é, aquelasemque só são iguaisas vogaisa partir da tônica,comoem "asa" e "cada","velho"e "quero".Raros sabemque no latim eclesiástico,na poesiainglesae na alemã basta,parahaverrima,a repetiçãoda últimasílabaátonae até da últimavogalátona.Lembrai-vosdo Veni, SancteSpiritus: Veni, SancteSpiritus, Et emittecoelitus Lucis tuaeradium.o Lembrai-vosde Shakespeare,queno sonetoprefaciadorde Ro- meue Julieta rima "dignity"com "mutiny";de Milton que no soneto"On Shakespeare"escreveu: Tltotlin OUTwonderandastonislunent Has built thyselfa livelongmonument,T rimando "a.rtonishment"com "monumem". Lembrai-vosde Heine,que rima "lch liebediclz"com "bitterlich": /Joch wenndu .rprich.l't:"/ch liehedic/t!" So mussich weinenbitterlich.ij Finalmentepoucagentej.í terárefletidoque a aliteraçãoé, no fim de contas,uma rima ao contrário,ou seja,umarima dos começosdas palavras.Sei bem que não houveintenção,pelo menosconsciente,da.partede GonçalvesDias emrimarpor ali- 34 m.b. 1 t. teraçãona segundae terceiraestrofesda "Canção do Exílio", mas a verdadeé que essasrimas ao contráriodão à pequenaobra-pri- ma não sei que inefávelmusicalidade: NãopermitaDeu.rque eu morra Semquevoltepara lá; Semquedesfru~eos primores Que mio desfrutopor-cá; Sem que illda avist(' asl'alm('iras, ()II<l1' Cill/til (I,mhiti, O nÚmerolho uesílabas,I:ompausasobrigadas,é semduvida o maisimperiosometr<ll1omodo rilmo.Todavianão é preciso ficar-seno mesmomclroparamantero mesmoritmo.No poema deGonçalvesDias intitulado"MinhaVida e meusAmores"ocor- re umamudançade metromuitointeressante.O poetavinhaver- sejandoemdecassílabosaccntuadosna sexlasílabaou na quarta e oitava: Ol/tra 1'1'::C/UClá fI/i, que a \'i. 'l/Ie a medo T/'Tlla 1'0,:li:.' OUilt'i:---SOllhci cOllligo/- Inefável pra<.erbal/houmeu peito, Senti delícias; lIla.f a JÓ.f comigo I'/'I/.\'ci--tall'/' ;:.'---/' já IlÚO pude cn;-lo, De súbito, nos versos 67 e 68, faz cair as pausasna quarta c sétimassílabas,aproximandoo ritmo decassilábicodo ritmo do verso de onze sílabas,que vai aparecernos versos 70 e 71: Mas J(' v()c/~fala: "Eu gosto de você!" Aí ('U t('llhode chorar amargamelite. Ela tão meigae ttiocheiade encanto, F:la tão fiam, tão pura e tão bela. . , AIIlllr-IIl,'!-- Eu (/11/'.\'OU? Meu'\"olho.\'ell\agam, ellquallto duvida Minh'almasemcrença,de forçaexaurida, Já fa/,'/I cfa I'h/a, {}II/' /111101'ncio doi/'Oli, () nlO\'il11cntorílmicodc UI11versopodcsofrcra influênciado vcrsoanlclior uu du seguinte.ê sabidoque na puesiaespanhola e na portuguesaantigaa vogalinicialde um versopodiaembe- bcr-senovcrsoprccedcntc.GonçalvesDias,tãolido numae nou- seleta. 35 tra, tambémversejouassim.O queadmiraé queatéAlbertode Oliveira,mestrede umaescolade rigorosamétrica,baja proce- didoda mesmamaneira,talvezinadvertidamente,quandoem"O Examede Hucí1ia"escreveu: Subiu(JQAtiasde umsalto E ao Kilimandjaro;logo De tãoalto, Ao Barh-al-Abiahdeáguaclara Baixoue (JQsaibrodefogo Do Sahara. O quartoverso("Ao Barh-al-Abiabde águaclara") temoito sí- labas,masa primeira("ao") seembebenaúltimasílabado verso anterior,de sortequeno contextoda estrofese mantémo ritmo do heptassilabo. Há casosatéemqueé forçosoquebraro versoparamantero ritmo.Comofei CasimirodeAbreuna célebre"Valsa".O poema estádistribuídoemversosdeduassílabas: Tu, ontem Na dança Quecansa, Voavas Co'asfaces Em rosas Formosas De vivo, Lascivo Carmim Mas oa últimaestrofepôs o poetaa palavra"pálida"no fim de dois versos: Teia pálida J~'I/tiio; Qual pálida Rosa Mimosa, No vale no "/'I/to Cruel/to Batida, CaMa Semvida No chão! O vocábuloproparoxítollOobrigavao poetaa abrir o versose- guintepor uma palavracomeçandopor vogalou a quebraro metrodeduassílabasparauma.Casimirovaleu-sedeume outro recurso,um da primeiravez, o outro da segunda.Se ele não tivesseatendidoà interrelaçãodosversose emlugarde "então" dissesse"no instantc"e em vez de "rosa" escrevesse"camélia", o ritmoseriasacrificado: Na valsa Cansaste; Ficaste Prostrada, TurbadaJ Pensavas, Cismavas, E estavas J>eIlSQ\Jas, Cis11Im'as, E estavas Tão T}álida No instante; Qualpálida Camélia Mimosa.. . Foi em observaçãoa cssejogo de ressonânc.iasde um verso emoutroqueeu no poema"Boi morto",escritoemoctossílabos. quebreia medidano tercciroversoda Últimaestrofe. Disseatrásque o encadeamentoé o principalapoiorítmico de que se serveAugcstoFredericoSchmidtnos seuspoemas. AdalgisaNery. quc tambémcmprega,aindaque menosassidua- mentequeSchmidt,o encadeamento,começoua usarda rimaem versosnãometrificados,a partir,creioque do seu livro Ar do Deserto,queé de 1943:36 m.b. 8eleta37 À medidaqueo vaziono meucorpoecoa, Cresceno meuespíritoo sentidodas vidasacontecida.'i, Balançar.donosmeusouvidoso pensamentoqueapregoa Os soluçose a solidãodasalmasinutilmentepertencidas. Mas versolivre cempor centoé aqueleque não se socorre de nenhumsinalexteriorsenãoa da voltaao pontode partida à esquerdada folhado papel:versoderivadode vertere,voltar. A primeiravista,parecemaisfácilde fazerdo queo versometri- ficado.Mas é engano.Bastadizerqueno versolivreo poetatem de criar o seuritmosemauxíliode fora. f: comoo sujeitoque solto no recessoda florestadevaacharo seu caminhoe sem bússola,semvozesque de longeo orientem,semos grãozinhos defeijãodahistóriade João e Maria.Semdúvidanãocustanada escreverum trechode prosae depoisdistribuí-Ioemlinhasirre- gulares,obedecendotão-somenteàs pausasdo pensamento.Mas issonuncafoi versolivre.Se fosse,qualquerpessoapoderiapôr em versoaté o últimorelatóriodo Minislro da Fazenda.Essa enganosafacilidadeé causada superpopulaçãode poetasquein- festamagoraas nossasletras.O modernismoteveisso.de catas- trófico: trazendoparaa nossalínguao versolivre,deu a todo o mundoa ilusãodequeumasériede linhasdesiguaisé poema. Resultado:hoje qualquersubescrituráriode autarquiaem crise de dor-de-cotovelo,qualquerbrotinhodesiludidodo namorado, qualquerbalzaquianadesajustadano seuambientefamiliarsejul- gam habilitadosa concorrercom JoaquimCardosoou Cecília Meireles. Por issoerasemprecomdelíciaqueeu lia as críticasde Elói Pontesno Globo e é semprecom prazerque leio as de Berilo Nevesno Jornal do Comércio,críticossemcontemplaçãopara com a poesiaquenãose exprimeemversosmedidose rimados. O quemeentristeceé ver queelesnuncatenhamtido influência bastantepara pôr um paradeir4?nesse"babaréu de medíocres", como costumavadizer o primeirono seu curiosoestilo. Por issotenhoàs vezesumagrandetentaçãode esquecertudo o queaprendicommestreUrenae dizere jurarparatodaa gente que"versoé o ajuntamentodepalavras,ou aindaumasó palavra, com pausasobrigadase determinadonúmerode sílabas",como ensinavamBilac e GuimarãesPassos.Isto é, talvezsubstituísse 38 m.b. t .. f , a palavra"ajuntamento",que me soa vagamentea coisailícita, c acrescentassea obrigaçãoda rima edo duploacróstico!Con- cordais?(DePoetase dePoesia) 1. Poemado livro Llbertlnagem.-2.Poemado livro BeloBelo.-3. "A Realidadee a Imagem".do livro BeloBelo.-4. "Vós morrestesà mar- ~cmonderostesdeixada."-S. "Vocêmorreusobrea costaondeTeseu a linha deixado."-6. "Vt>I11.Esplrito Santo./E envia do Céu/O raio datualuz."-7. "Tu denossopasmoe assombramento/Tumesmocons- truíste todoum monumento."-8."Mas se você fala: 'Eu gostode você!'/AIeu tenhode choraramargamente."(Trad. de Paulo Rónai). A POESIA ESTÁ NAS PALAVRAS MAS AOmesmotempocompreendi.aindaantesde conheceraliçãodeMallarmé,quecmliteraturaa poesiaestánaspalavras, se faz compalavrase não com idéiase sentimentosmuitoem- bora,bementendido,sl'japelaforçado sentimentoou pelaten.. sãolIo espíritoqueacodemao poetaas combinaçõesde palavras ondehácargadepoesia.Coisaquedescobrinoslapsosdememó- ria ou no examede variantes.Quantasvezes,querendorelembrat uma eslrofede pocma.uma trovapopular,e não conseguindo reconstituí-lasfielmente,fazia da melhormaneirao remplissage;l depois,cotejandoas duasversões-a minhae o original,verifi- cavaqual delas~ramelhor,pesquisavao segredoda superiori- dadee, descoberto,passavaa utilizá-Ianosmeusversos.Quantas vezestambémvi, em r,oetasde gostocerteironas emendas,um versodefeituosoou inexpressivocarregar-sede poesiapeloefeito encanlatóriode umaou de algumaspalavras,exprimindono en- tantoo mesmosentiment0ou a mesmaidéiaqueas substituídas. Compare-se,por exemplo.o poema"Mocidadee Morte", de CastroAlves,comoapareceuemEspumasFlutuantes,coma pri- mcÍraversão,de 1864,e publicadaem São Paulo por voltade 1868-69sob o títulode "O Tísico". Na oitavainicial haviao verso"No seioda morenahá tantaamora!".Na versãodefini- tiva"amora"foi substituídapor "aroma".Naturalmenteo poeta ponderouque as amorasdo peitodas morenasnão são tantas, 8el~ta39 duasapenas,e maistardecorrigiuo versopara"No seioda mulherhátantoaromal".A superioridadeé óbvia.(Itineráriode Pasárgada) 1.Enchimentodoverso:completavao versoporcontaprópria. A POESIA REPONTA ONDE MENOS SE ESPERA TODOS os DIASa poesiarepontaondemenosseespera:numano-tíciapolicialdosjornais,numatabuletadefábrica,numnome de hotel da Rua Marechal'Floriano, nos anúnciosda Casa Matias... Poesiaeletodasas escolas.Parnasiana:"FábricaNa- cionalde Artigos Japoneses"(não sei se aindaexiste,era na Praça da República).Surréaliste:"Hotel PcnínsulaFcrnandes" (ao meuprimoAntoninhoBandeira,queperguntouao proprie- tário português:"Porque Península Fernandes?", respondeuo homem:"F'rnandes porqueé o meunome,e p'ninsulaporqueé bonitol") Por aí assim,românticos,simbolistas,futuristas,una- nimistas,integralistas... Faltavaà minhacoleçãoaJgumhaicai.Acabode acharvários agora,e estupendos,ondemenosesperava:numlivro de fórmu- las ~etoaleteparamulheres. Alguns exemplos: Águade rosas Glicerina Bórax Álcool Que brilho verbal,que surpresaparao ouvidona sonoridade secada palavraálcooldepoisda musicalidadeum poucosolta dos dois primeirosversose desfazendonum comoacordesus- pcnsivoa cadênciaperfeitado versobórax! Tinturadebenjoim Boratode sódio Tinturadequi/aia Águade rosas 40 1/1.b. ~ I .!' ).. '" ~ ~ Áglla-de-colônia Águadefloresde laranjeira Boratodesódio Mentol 6leo derícino 61eode amêndoasdoces Álcool de 90° Essênciade rosas Dirãoqueo haicaitemsó trêsversos.Poisaquivaium: Pá d/' IIrro~ Talco Sulmitrato ele bismllto Oulro: AgI/li d(' rosas Ácido lu;,.ico f':ssh/(,;II dI' mel da b,glatcrrtl Há mesmoum queconstituium verdadeiro"epigramairônico e sentimental".Se não,vejam: Leiteeleamhllloas Bicloretode mercúrio O livro de Maried'Osnyencerra,nestase outrasreceitas,uma liçãoe umexemplodepoesia.(Crônicasda Provindado Brasil) RIMA Murro JlAVERIAquedizerdasrimasdeGonçalvesDias.Não as procuravararasc ricas,aindaque às vezesas faziacom a consoantede apoio, sem intençãoprovavelmentc:"coração", "afcição";"cvita","avita",etc.A suahabitualdiscriçãolevava-o a contentar-secom acordesmenosvistosos,a accitaras rimas naturalmcnlcligadasa(l as~unto.O seutratoda poesiacastelhana comunicou-lhe() amordastoantes,por ele largamenteemprega- das: "caro","alvo"; "esmalta","prata";"topa", "provoca",etc. No poema"A Tempcstadc",dosOltimosCantos,as toantesre- seleta41 I sultamnumbelo efeitosugeridordos prenúncios,aindaincertos e vagos,da tempestadequese aproxima: Um raio Fulgura No espaço Esparso, De luz; E trêmulo E puro Se aviva, S'esquiva, Rutila, Seduz! Outra espécieaindamais sutil de rima-a dos fonemasini. ciais-foi muitousadapor GonçalvesDias,ou melhor,aparecem espontaneamentena contexturadasestrofese por elasse explica muitasvezes,emparte,o segredoda musicalidadequenosenleia em certospoemas.Na "Cançãodo Exílio", por exemplo. Às vezeso efeitomusicalresultadeharmoniasaindamaissutis, queno fundoaindasãorimas:assim"grata"e "nota";"aurora" e "primav~ra";"tarde"e "perde",etc.O últimoexemploé da poesia"Como!1:.sTu?", queestácheiadessasdelicadezasverbais. (Gonçah'esDias) O VERSO LIVRE oESDEQUEo poetaprescindedo apoiorítmicofornecidopelonú-merofixodesílabas,penetranodomíniodoversolivre,o qual, em sua extremaliberação,isto é, quandonão se socOI'rede nenhumapoiorítmico,poderiaconfundir-secom a prosarítmi- ca, se não houvesse,nelea unidadeformal interior,aquiloque de certomodoo isolano contextopoético.(A Ver.l'ijicl/('ãoem LínguaPortuguesa-EnciclopédiaDelta-Laroll.rse) O poema"CarinhoTriste"lfoi a minhaprimeiratentativade versolivre.Aindanãoeramversoslivres,comonãoo eramtam- 42 m.b. ~ I. ) \ I ! poucoos do poemade Guy-CharlesCros. Mas durantemuito tem- . po continueinessaprática de aproximação,que foi a de muitos" poetas(tinha sido a.de Laforgueem algunspoemas,"L'Hiver qui Vienl". por exemplo). O versoverdadeiramentelivre foi para mim uma conquistadifí- cil. O hábitodo ritmo metrificado,da construçãoredondafoi-se-me currigindo lental1\l'nte;1f\'I"\;ade que estranhosdessensihilizantes: trauuçÜesel11prosa (as de Poc por MaIlarmé). poemasdésavollés2\ pelos "eus autores.C(l1I10\) famosoque Léon Deubcl escreveuna Placcd11Carroussclàs 3 horasde umamadrugadade 1900(Seig- "eur! je ,j'uissatl,rpaill, S(//ISrêve et sans demeure.),3menus,re- ceitasdecozinha,fórmulasde preparadosparapele,comoesta: ()leo de rícillo 6leo de amêndoasdoces Á /cool de 90° E.vsê"citlde rosa.ç. Versoscomoos do meu"Debussy",o\"Sonhode umaTerça- -feiraGorda",~"Baladadc SantaMaria Egipcíaca","'Na Solidão dasNoitesÚmidas",1"Bélgica",~"A Vigíliade Hero",o'~Madrigal Melancólico",IU"QuandoPerdereso GostoHumildedaTristeza",11 aindaacusamo sentimcntodamcdida.Ora,noversolivreautên- ticou mctrodeveestarde tal modoesquecidoqueo alexandrino maisortodoxofuncionedentrodelesemvirtudede versomedido. Comoelll "Mlllhercs"l~o akxandrino"O meuamorporémnão tembondadealguma".Só em1921,com"A Estrada",13"Meninos Carvociros".J.\"Noturnoda Mosela",15etc.fui conseguindolibEr- tar-meda forçado h:íhilo.Mas nãosci se nãoficousempreuma comosaudadea repontaraquic ali. .. Não melembrodeproble- masdentroda metrificação,queeu não tivesseresolvidopronta- mente.No \'nlanloos primeirosversosdo pm'ma"Gesso",lei que é cm vcr~;oslivres, IIIC deu água pela barba duranteanos. Origi- nalmenteme saíramassim: A f/U('//I/',\'(/I(/w;:i,,/wd,: K/~,Ç,\'O,f/uatu/oma cleram,era flova. E v g/!SSOmuitobranco(' as linhas militopura.ç Mal sugeriamimagl'mde vida. Não era possívelmanteraquele"ma deram",tão avessoao gênio da fala brasileira.Alémdisso,o versosoavapesadoe desgracioso. seleta 43
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