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5º Encontro Nacional da ABRI Redefinindo a Diplomacia num Mundo em Transformação 29 a 31 de julho de 2015 PUC Minas Belo Horizonte – MG Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa A TEORIA DA GUERRA DE CLAUSEWITZ: ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL Eduardo Mei UNESP 1 Resumo: Embora o general prussiano Carl von Clausewitz seja uma referência importante no estudo das relações internacionais, sua obra é mais conhecida dos estudiosos dos assuntos militares e dos chamados “estudos estratégicos”, sendo ainda pouco conhecida pelos demais estudiosos da área. Com a notável exceção de Raymond Aron, poucos autores identificados com as Relações Internacionais desenvolveram estudos sistemáticos sobre a obra de Clausewitz. Nosso objetivo é apresentar alguns elementos da teoria clausewitziana da guerra que julgamos essenciais para a melhor compreensão da Segurança Internacional. Clausewitz define a guerra como a continuação da política com a entremistura de meios violentos. A guerra é, portanto, um evento político e isto determina o que Aron denominou “primado da política”. Trata-se, é claro, da violência perpetrada por um grupo e não por um indivíduo, pois, nesse caso, a definição de guerra seria demasiado ampla e inoperante. Como toda guerra opõe vontades em conflito, cuja solução pode ser imposta ou negociada, a compreensão da guerra depende necessariamente da compreensão da política. Além disso, como a guerra ocorre muitas vezes em situações de crise política, a compreensão da guerra esclarece a política. Isto ocorre porque, como prova de força, a guerra testa as relações políticas em geral e os diversos fins e interesses em jogo. A guerra — mormente a “grande” guerra — põe em xeque a “dominação” e a “disciplina”. (Weber, Economia e Sociedade) Não obstante, interpretações reducionistas limitam a definição de política àquela que emana da “inteligência personificada do Estado”. As revoluções, entretanto, exibem o que as “pequenas” guerras ocultam: que as guerras são a continuação da totalidade das relações políticas. Além disso, a pluralidade de vontades em jogo projeta-se numa complexa dialética de meios e fins que se estende no tempo, de modo que raramente há uma convergência duradoura de fins políticos. Palavras-Chaves: Segurança Internacional; Clausewitz; Weber; Aron; Guerra; Estado; 2 Os Estudos de Segurança Internacional (ESI) sempre envolveram muita polêmica. Como todas as áreas de estudo das Relações Internacionais (RI), os ESI estão amplamente influenciados pela hegemonia acadêmica anglo-saxônica. Embora tenha havido uma notável evolução na área, o debate ainda é muitas vezes desalentador. A “evolução dos estudos de segurança internacional”, por exemplo, submetida a um exame atento apresenta um grande avanço cujo ponto de partida, entretanto, é bastante recuado. De modo que, no ponto culminante da reflexão anglo-saxônica e hegemônica, o debate é pouco inspirador e os resultados insatisfatórios.1 A trajetória sinuosa da Escola de Copenhague é exemplar a esse respeito (BUZAN e HANSEN, 2012; VILLA e SANTOS, 2010). Parte de um “paradigma” realista, propõe um conceito multidimensional de segurança que transcende o Estado, aproximando-se do construtivismo de Wendt, mas não supera a perspectiva estadocêntrica. O próprio construtivismo de Wendt é bastante limitado pela perspectiva realista, com a qual parece emular para credenciar-se no chamado “mainstream”. Ao que parece, as limitações desse debate encontram-se em equívocos nos fundamentos metodológicos dessas teorias. Por conseguinte, antes de discorrermos sobre alguns elementos da teoria clausewitziana da guerra que podem contribuir para a compreensão da “segurança internacional”, algumas considerações teóricas se fazem necessárias. As teorias de RI, desde seus primórdios, sempre tiveram evidentes preocupações práticas. “Paz”, “segurança”, “interesse nacional” recorrentemente aparecem, ora como objetivo, ora como conceito. A inserção política de acadêmicos de RI no aparelho de Estado contribuiu para a promiscuidade entre teoria e prática, pois, para uma perspectiva positiva que se considera neutra, a prática é inequívoca. Por isso, tais teorias, tendo preocupações práticas determinadas, sempre almejaram a confirmação pelos fatos. Um caso exemplar 1 Certamente, as honrosas exceções daqueles que confrontam o pensamento hegemônico e as dificuldades de inserção que eles enfrentam corroboram a tendência geral. 3 dessa tendência é o debate em torno do pós guerra fria: os eventos confirmariam ou rechaçariam a hipótese waltziana de que a unipolaridade não poderia perdurar? Além disso, a perspectiva positivista embasa a condução política e projeta a si mesma no futuro indeterminado, arvorando-se em ciência profética ou divinatória, e tornando-se autora do próprio destino (KANT, 1798). Não obstante, as bases epistemológicas das quais partem essas teorias incorrem em vários problemas. De fato, durante séculos, a trajetória do Sol na abóbada celeste corroborava a teoria geocêntrica ptolomaica, sem que essa fosse correta em seus fundamentos. Ao que parece, pesam sobre as teorias hegemônicas de Relações Internacionais a influência da filosofia analítica e a concepção positivista de ciência. De fato, ambas consideram que “há um único modelo de ciência, o modelo das ciências da natureza” (ARON, 1973, p. 24; SCHUTZ, 1953, p. 71).2 De um modo geral tais abordagens abstraem o elemento humano ou subjetivo da análise, crendo que assim serão mais objetivas e científicas. Como observa Schutz, Isto não modifica o fato de que este tipo de ciência social não enfoca de maneira direta e imediata o mundo social da vida, comum a todos nós, senão idealizações e formalizações do mundo social, hábil e convenientemente escolhidas, que não contradigam seus dados. (SCHUTZ, 1960, p. 22)3 Em decorrência desse pressuposto positivista, omitem-se, portanto, na produção acadêmica hegemônica, algumas questões epistemológicas fundamentais. Sinteticamente, são as seguintes: Qual a relação entre teoria e realidade? O que é possível conhecer? Em que medida o conhecimento é relativo à perspectiva do cientista? Quais os limites da “objetividade” do conhecimento almejado? Uma “ciência” que não examina seus próprios fundamentos é científica? Tais 2 O ano refere-se não à data da edição utilizada, mas à data da publicação, pois essa é mais relevante para o argumento. 3 Schutz fincou, em 1932, as bases de uma teoria social “construtivista” na obra A construção significativa do mundo social. 4 questões remetem à “disputa dos métodos” travada na Alemanha no último quartel do século XIX e primeiras décadas do século XX, às obras de Weber e de Aron (WEBER, 1904; ARON, 1938a, 1938b e 1973; MEI, 2009) e fundamentam-se na obra crítica de Kant. Essas questões envolvem o fato de que a realidade tal como a apreendemos é infinita tanto intensiva quanto extensivamente. A perspectiva do cientista é, necessariamente, limitada e fragmentária. Como registrou Max Weber (1904), Todo conhecimento reflexivo da realidade infinita por um espírito finito tem por base a pressuposição implícita que apenas um fragmento limitado da realidade pode constituir a cada vez o objeto de uma apreensão científica e apenas ele é essencial. (WEBER, 1904, p. 126) Perante a realidade infinita, nossa ciência é, pois, limitada. Na impossibilidade de examinar toda a realidade, as ciências histórico-sociais selecionam e “recortam” um “objeto” que é fundamentalmente artificial(FREUND, 1965, p. 58). Todavia, tal procedimento não é de modo algum neutro: a apreensão da realidade é sempre influenciada pela perspectiva do observador, leigo ou acadêmico, e o recurso a uma teoria qualquer traz consigo os valores e interesses subjacentes a ela. Inexistindo pesquisa e divulgação científica sem algum tipo de financiamento, grupos de interesse se constituem e concorrem pela hegemonia acadêmica. Ao examinar um objeto qualquer, o cientista coloca-se inevitavelmente numa perspectiva “interessada”, seja ele consciente disso ou não. Disso decorrem duas tendências antagônicas: de um lado, a ineludível pluralidade de perspectivas perante a realidade; de outro, o empenho dos defensores da ordem em rechaçar ou ocultar essa pluralidade, apresentando-se como a única perspectiva correta, isenta, objetiva, científica. Ao apoiar-se no modelo das ciências naturais, o positivismo incorre justamente no equívoco de 5 ignorar tal pluralidade e, ignorando-a, não problematizá-la (MESURE, 1986)4. Destarte, podemos considerar que qualquer perspectiva positivista das relações internacionais é parcial e ideológica, isto é, tende a considerar-se neutra e a filtrar a realidade acriticamente. Paradoxalmente, não é o que a “ciência” procura explicar ou compreender que deve exigir mais atenção do cientista, mas o que ela oculta e o porquê dessa ocultação. Trata-se, portanto, de desvelar a realidade que certo tipo de ciência oculta. A pluralidade de perspectivas apresenta, contudo, outro problema: se cada cientista estuda a realidade imbuído de seus valores e interesses, como não incorrer no relativismo e mesmo no niilismo? (MEI, 2009) Diante dessas considerações, podemos traçar uma síntese do surgimento dos “estudos de segurança internacional”. Depois de duas guerras mundiais e no ambiente bastante belicoso da guerra fria, a “segurança” apresenta-se primeiramente como uma preocupação política e, posteriormente, como objeto de estudos. Durante a guerra, desenvolve-se o complexo industrial-militar estadunidenses — a guerra e a “segurança” era, afinal, um ótimo negócio. Como assunto de Estado, a “segurança” envolvia os proclamados “interesses nacionais” e era pautada principalmente por militares.5 Como objeto de estudos, acompanhava pari passu a agenda política. Além disso, as características do ambiente “acadêmico” em que ocorre o debate limitam-lhe os fundamentos e o escopo.6 O grupo hegemônico na “academia” atua como um feudo, restringindo os parâmetros do debate e impondo uma agenda política e teórica.7 Destarte, 4 Cf. Sylvie MESURE, “De l’antipositivisme à l’antirelativisme. Raymond Aron et le problème de la relativité historique”. Paris: Julliard, Commentaire, Automne 1986, volume 9/numéro 35. pp. 471-478. 5 O uso das aspas se impõe pelo caráter equívoco de amas expressões. 6 É eloquente a esse respeito o recente surgimento das teorias feministas de RI. A violência sofrida por mulheres e crianças era um tema oculto na área, como se inexistisse ou fosse irrelevante. Não obstante, ela é tão antiga quanto disseminada. 7 Conviria um estudo sociológico dos feudos “acadêmicos”, da sua influência na definição da pauta dos periódicos científicos e da sua atuação política. Jean-Louis Martres substitui a 6 compreende-se a militarização da temática da segurança, a crítica a essa militarização, a “multidimencionalização” e posterior restrição do conceito de segurança (VILLA e SANTOS, 2010). Todavia, como essa trajetória é percorrida com um impulso positivista, o problema crucial da pluralidade de perspectivas nem sequer é tematizado, como se um ajuste na teoria permitisse apreender fidedignamente a realidade. Substitui-se então o estudo da realidade por um debate conceitual, como se os conceitos traduzissem essa realidade, esquecendo- se que estes são um mero instrumento para a compreensão de um fragmento artificialmente construído daquela. Os conceitos não são, pois, tratados como tipos-ideais e acabam hipostasiando a realidade, isto é, tornam-se o leito de Procrusto em que se incomodam as relações internacionais e “engessam” e “esclerosam” aquilo que deveria ser compreendido (WEBER, 1904, p. 144). Ao que parece, ainda é válida a consideração que Berger e Luckmann faziam em 1968, ao observarem que a Sociologia estadunidense tendia a omitir que a sociedade é um produto humano: Sua perspectiva da sociedade tende, pois, a ser o que Marx chamou reificação (Verdinglichung), isto é, uma distorção não dialética da realidade social que obscurece o caráter desta última como produção humana contínua, considerando-a, ao contrário, em categorias coisificadas, apropriadas apenas para o mundo da natureza. (BERGER & LUCKMANN, 2003, p. 82, n. 29) Daí decorre o bizantino debate conceitual acerca da “Segurança Internacional”.8 De fato, se não é tematizada a pluralidade de perspectivas existentes no mundo social, e com ela a pluralidade de valores e interesses em jogo, a formulação teórico-conceitual e as análises empíricas tendem ao dogmatismo, a não metáfora “feudal” pela religiosa, ao considerar que os teóricos de RI “… ont tendance à agir de façon quasi religieuse, comme pourrait le faire un clergé laïc, mettant dans les paradigmes la même volonté d’explication ultime que celle procurée par des dogmes religieux.” (MARTRES, 2008, pp. 42 e ss., itálicos no original). 8 Note-se a propósito que as palavras “bipolar” e “multipolar” datam apenas do século XIX e pertenciam ao léxico da Biologia. É a guerra fria que propiciará sua aplicação às relações internacionais. É duvidoso, além disso, que elas pudessem enriquecer as obras de Tucídides ou Maquiavel. 7 confrontar os interesses hegemônicos. Afinal, quando falamos de “segurança”, o que está em jogo? o que deve ser “assegurado”? Por outro lado, a pluralidade de perspectivas, por si só, levaria a um inconveniente relativismo. Claro está que o problema da pluralidade de perspectivas e de sua possível superação é fundamental ao debate. Note-se que nem mesmo teóricos construtivistas examinam o tema a cotento.9 O que se propõe neste artigo é examinar a contribuição de Clausewitz à compreensão da “Segurança Internacional” em uma perspectiva crítica. Note-se desde já que o conceito de “segurança” e os seus derivados são vagos e, em geral, ocultam a pluralidade de interesses no jogo político. O conceito de “constelações de segurança” por exemplo, serve para trazer um pouco de luz à realidade que o conceito positivo de “segurança” e o seu uso tratavam de ocultar. Ocorre o mesmo com o conceito positivo de “segurança multidimensional”. A própria origem do debate — o complexo militar-industrial estadunidense — restringia os parâmetros dos ESI: restringiam-se as relações internacionais a relações interestatais e atribuía-se ao Estado — mormente ao Pentágono e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos — o papel de definir exclusivamente o que devia ser assegurado10, conferindo-lhe o honroso título de “interesse nacional”. Entretanto, essa restrição não é teoricamente indiferente ou isenta. Mesmo que atribuamos ao Estado um papel decisivo nas relações internacionais,11 subjazem aí os múltiplos interesses em jogo e atribuir ao Estado o papel exclusivo na definição da “segurança internacional” equivale a anular interesses realmente existentes. A bipolaridade ideológica fazia suas 9 Nem mesmo na obra de Alfred SCHUTZ,origem remota do construtivismo, o tema da pluralidade de perspectivas é examinado. Com efeito, as preocupações gnosiológicas aí predominam e o problema filosófico-prático da pluralidade perspectivas é desconsiderado. 10 O anglicismo “securitizado” é ironicamente apropriado para definir, ao reverso, aquilo que se propõe: os títulos subprime eram securitizados; a “guerra ao terror” securitizou o Oriente Médio, etc. 11 E a relevância causal, em sentido weberiano (ARON, 1973, pp. 221-242), não é um critério único e exclusivo para a escolha de um objeto de estudos. 8 vítimas. A restrição analítica — “rigorosa e elegante” — do número de jogadores impõe a redução dos interesses em jogo e a definição da agenda de “segurança” restrita aos interesses hegemônicos. Multidimensionalizar a “segurança”, portanto, nada mais é do que romper a redução analítica sem questioná-la efetivamente. Os interesses hegemônicos são, destarte, preservados. A perspectiva analítica que se propõe aqui inspira-se na filosofia crítica da história de Kant, Weber e Aron. Trata-se de uma posição antidogmática cujas premissas fundamentais são as seguintes: 1) Embora considere a história um “entretecido de tolice, capricho pueril e frequentemente também de maldade infantil e vandalismo” (KANT, 1784), também considera possível esperar a realização de fins que contemplem a emancipação e dignidade humanas, a “máxima liberdade sob leis” e a paz duradoura entre os povos. Tais fins não prescrevem uma fatalidade, um futuro inesquivável. Antes são fins “problemáticos”, tarefas a realizar, um futuro possível entre tantos outros. 2) Como tarefas a realizar, são fins da razão — fins que superam qualquer determinação a partir de uma suposta “natureza humana”, conflitando, inclusive, com tal “natureza”. 3) Tais fins são realizáveis e compreensíveis apenas na “espécie” humana. Uma conduta ou visão de mundo que exclua do curso da história qualquer etnia ou identidade cultural só pode inspirar-se numa filosofia dogmática da história. (Essa conduta dogmática assume hoje a forma totalitária de ditadura “legislativa” do mercado, com impactos não desprezíveis na “segurança internacional”). 4) É possível considerar que o curso da história humana é impelido pela “sociável insociabilidade”, o antagonismo que opõe indivíduos e grupos, levando-os a constituir sociedades políticas (ora denominados Estados) e opõe também essas sociedades políticas, levando-as a constituir regulamentos e instituições “supraestatais”. Dessa “sociável insociabilidade” derivamos os conceitos de vontade, conflito, guerra, paz, diálogo, cooperação, consenso, aliança, etc. É impossível determinar a priori o 9 curso da história humana e a ação política visa à realização de variados fins. Qualquer visão de mundo que determine fins “inelutáveis” ou inscritos na natureza humana constitui-se numa filosofia dogmática da história.12 5) Como considera a realidade sensível infinita — intensiva e extensivamente (WEBER, 1904) — e a realidade social significativamente construída, fundamenta-se em conceitos idealtípicos e no encadeamento contingente de eventos, que se desdobram em probabilidades retrospectivas e num futuro aberto (ARON, 1938a, 1938b, 1962, MEI, 2009). 6) Considera as ciências construções culturais socialmente significativas, axiologicamente interessadas e, portanto, não neutras. Fazendo uso de uma terminologia bakhtiniana, a produção científica está, pois, sujeita ao embate entre “forças centrípetas” — que procuram impor o discurso único e hegemônico — e “forças centrífugas” — que enfrentam e corroem esse discurso. Na sua teoria da guerra absoluta, Clausewitz define a guerra como “um duelo em vastas proporções”, isto é, envolvendo duas coletividades.13 E considera que “a guerra é um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”. Essas duas definições — cujo valor intrínseco é meramente teórico, não se aplicando às guerras reais — não nos permite estabelecer bases consistentes para uma reflexão sobre a “segurança internacional”. De fato, a guerra absoluta — que só existe nos delírios das “argúcias lógicas” — leva a guerra ao paroxismo: a máxima mobilização de meios (humanos e materiais); o aniquilamento (desarmamento) do inimigo; e o uso ilimitado da violência. A teoria da guerra absoluta implica, portanto, a 12 Como observam Berger & Luckmann (1968), “A humanidade é variável do ponto de vista sócio-cultural. Em outras palavras, não há natureza humana no sentido de um substrato estabelecido biologicamente que determine a variabilidade das formações sócio-culturais.” (BERGER & LUCKMANN, 2003, p. 67) 13 Como já trabalhei mais detalhadamente a obra de Clausewitz em outros lugares (MEI, 1996, 2013 e 2014), remeto o leitor a essas obras e restrinjo-me nesse trabalho aos aspectos fundamentais à argumentação. 10 escalada da violência, a batalha decisiva, a guerra de aniquilamento e a paz imposta. Ela exclui a diplomacia e a negociação. Nas guerras reais, o duelo inexiste. Por um lado, uma coletividade jamais se transforma num corpo único, cindindo-se em indivíduos e grupos; por outro, raramente não se apresenta um terceiro interessado, pendendo para um ou outro lado. Se considerarmos a existência de vontades distintas, podemos ponderar diversas relações entre elas: além do conflito e da guerra, diálogo, cooperação, consenso, união, etc. A vontade coletiva envolve também possibilidade de fusão ou integração, fragmentação ou mesmo desintegração. Se a teoria da guerra absoluta contempla apenas o duelo, as guerras reais envolvem uma infinita gama de possibilidades: dois ou vários atores lutando individualmente ou em alianças, além de negociações e atuação diplomática. Além disso, a fricção — isto é, “os inúmeros e imprevisíveis incidentes de pequena importância” — e o acaso fazem das guerras reais um jogo que varia segundo as circunstâncias, Toda guerra é uma experiência única, singular, original. Nas guerras reais, o empenho das vontades é diretamente proporcional aos motivos em jogo, reduzindo-se à sua insignificância ou podendo chegar a extremos, quando há interesses vitais ameaçados. Há uma relação dialética entre motivo e empenho e outra entre fins (políticos) e meios (militares: humanos e materiais). A relação entre política e estratégia e entre estratégia e tática é dialética. Os fins da política determinam e são limitados pelos meios estratégicos (atinentes à guerra ou conjunto de batalhas); os objetivos estratégicos determinam e são limitados pelos meios táticos (atinentes à cada batalha isoladamente). Contudo, se pensarmos estrategicamente as relações internacionais ou a “segurança internacional”, projetamos no tempo a pluralidades de fins (interesses e motivações) e a dialética que envolve a política, a estratégia e a tática. Fins que pressupõem a possibilidade da guerra podem contemplar interesses alcançados durante a paz. Na era da economia 11 financeirizada, as despesas militares destinadas a enfrentar inimigos — reais ou imaginários, concebidos em gabinetes e encubados no exterior — permitem a realização de lucros produtivos e financeiros. O discurso segurancizante serve muito bem como propaganda para a realização de tais lucros. Em um mundo cada vez menos interessado e mais desiludido com a política, a fabricação de guerras é um lucrativo e escuso negócio. Por isso, técnicos e cientistas da vanguarda da ordem vigente buscam manter o monopólio sobre o tema. Deve-se frisar, portanto, que as guerras reais não são fenômenos exclusivamente ou mesmo prioritariamentemilitares, mas sim fenômenos histórico-sociais, cujo desenlace pode muitas vezes não depender dos resultados das várias batalhas. A guerra deve ser compreendida como um conflito violento de vontades que envolve fatores étnicos, culturais, econômicos, ideológicos, técnicos, populacionais, geográficos, jurídicos, etc. É equivocada e nociva a definição dos estudos estratégicos como eminentemente militares e não se justifica a predominância de militares nessa área acadêmica. Mais ainda a guerra é um assunto público seqüestrado por atores privados de quem nem suspeitamos. Da perspectiva acima enunciada, impõe-se a tarefa de resgatá-lo e democratizá- lo. Além disso, não é possível estabelecer de antemão e de uma vez por todas o âmbito dos conflitos e das guerras. E as “regras” não são as mesmas para os vários atores que podem entrar em “jogo”. Se há atores que podem ser definidos, inclusive juridicamente, e cujo papel pode ser considerado mais previsível por ser minimamente regulamentado, tais como o Estado e o Conselho de Segurança da ONU, a existência e atuação de outros interessados não pode ser determinada de antemão. É indeterminável a priori a influência de atores regionais ou sub-estatais num conflito qualquer. Cada situação histórica deve ser analisada em sua originalidade e pouca valia têm conceitos forjados e hipostasiados no debate acadêmico. 12 Embora a referência e o objeto de Clausewitz sejam, principalmente, as guerras interestatais européias, a definição da guerra como “ato de violência” e como “continuação da política por outros meios” não envolve necessariamente o Estado, adequando-se à definição mais ampla de guerra proposta por Cícero e adotada por Grotius: “status per vim certantium, qua tales sunt”.14 Ao que parece, com essa definição Grotius pretendia justamente contemplar “múltiplas formas de lutas armadas, de modo algum limitadas aos conflitos de potências independentes” (HAGGENMACHER, 1968, P. 111). Seguramente, a guerra de independência dos Países Baixos relativamente ao império Habsburgo é contemplada nessa definição. Embora afronte o direito internacional público — que contempla apenas o bellum publicum solenne, guerra declarada entre Estados soberanos —, esta definição ampla da guerra permite-nos contemplar analiticamente as guerras protagonizadas por atores não-estatais, clãs, senhores da guerra e empresas militares privadas. O Estado é certamente um ator-chave nas relações internacionais em geral e nas questões de segurança em particular. A definição de Estado, todavia, é muitas vezes equivocada. A definição positivista de “Estado territorial soberano”, de cunho jurídico, é insatisfatória analiticamente, pois substitui aquilo que visa compreender, hispostasiando, engessando e esclerosando a realidade. A definição idealtípica proposta por Weber, visa justamente superar essas limitações, mas ela é muitas vezes deturpada e o “monopólio da violência legítima” ou mesmo o mero “monopólio da violência” é transformado em hipóstase e passa a esclerosar a realidade da qual deveria ser mero instrumento analítico. Segundo Weber, o Estado racional moderno era, no início do século XX, uma instituição exclusiva da Europa ocidental, onde o ofício das armas tornou-se economicamente proibitivo para os atores privados devido aos elevados custos das fortificações e da artilharia. O Estado moderno é, portanto, o 14 “Situação daqueles que disputam pela força, enquanto tais.” 13 resultado de uma lenta evolução histórica. É nesse sentido que o "Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território — este, o ‘território’, faz parte da qualidade característica —, reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima" (WEBER, 1921, p. 1056). Ou mais precisamente: […] o Estado moderno é uma associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pretendeu com êxito monopolizar a coação física legítima como meio da dominação e reuniu com este objetivo, nas mãos de seus dirigentes, os meios materiais de organização, depois de desapropriar todos os funcionários estamentais autônomos que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar- se, ele próprio, em seu lugar, representado por seus dirigentes supremos. (WEBER, 1921, p. 1060) Essa definição idealtípica relaciona-se às definições de “poder”, “dominação” e disciplina”. Weber define poder como “a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”.15 O poder stricto sensu distingue-se da dominação e da disciplina, pois prescinde da obediência, característica distintiva destas. A dominação é um tipo de poder definido como “a probabilidade de encontrar obediência a um mandato de determinado conteúdo”.16 A disciplina é “a probabilidade de encontrar por parte de um conjunto de pessoas obediência a um mandato que, em virtude de atitudes arraigadas, seja pronta, simples e automática”.17 Todavia, essa instituição ocidental é exportada pelas metrópoles européias e adquire características novas nos lugares em que é enxertada. Como há, segundo Weber, três tipos “puros” de dominação legítima, são variadas as formas como o Estado se estrutura efetivamente. 15 Max WEBER, Economía y sociedad. Op. cit., p. 43. 16 Idem, ibidem, p. 43. 17 Ibidem, p. 43. 14 Entretanto, Weber define Estado pelo seu “meio específico”: o monopólio da violência legítima. Não obstante, se desconsideramos os fins do Estado — que podem ser múltiplos e dependem da luta política doméstica e internacional —, o meio erige-se em fim. O “monopólio da violência legítima” passa a ser um fim em si mesmo, meio e fim do Estado. Além disso, são extrínsecos à definição de Estado os limites em que a violência é exercida. Tais limites também são um resultado da luta política doméstica e internacional. Destarte, a indefinição de fins transcendentes à violência e a eleição do “monopólio da violência legítima” como meio-fim cumpre, então, o mesmo papel da inversão da “fórmula” clausewitziana segundo a qual a “guerra é a continuação da política por meios violentos” (ARON, 1976, p. 169-77). Com efeito, ao considerar a guerra absoluta (que, insistimos, para Clausewitz só existia no mundo das “argúcias lógicas”) a forma por excelência da relação interestatal, no presente ou projetada no futuro, os belicistas passam a considerar a política uma continuação da guerra no tempo de paz. O duelo, a “imposição da vontade ao inimigo”, a estratégia de aniquilamento e a imposição da paz, tornam-se o fim obstinado da política e, em tempos de paz, vive-se exclusivamente da e para a preparação para a guerra. As guerras reais, entretanto, envolvem necessariamente a diplomacia, a possibilidade da negociação e a paz negociada. A definição dos fins da política é, portanto, intrínseca à consecução da “segurança internacional”. Analiticamente, podemos considerar que em uma situação histórica específica os fins buscados por este ou aquele Estado se sobrepõem aos demais. Porém, isso não quer dizer que os Estados determinam exclusivamente os fins a atingir. Embora na definição trinitária da guerra Clausewitz atribua um peso preponderante ao Estado, essa consideração deve ser relativizada. Não podemos relacionar simplesmente a razão ao soberano e ao Estado, a inteligência ao comandante e ao aparelho militar e a paixão ao povo. 15 Depois da morte de Clausewitz, aumentou significativamente a participação dopovo nos rumos da política. Destarte, devemos considerar que a guerra pode envolver o conjunto da coletividade e que a “razão” (motivos ou fins visados), a “inteligência” (os meios) e a “paixão” (motivação irracional) se distribuem virtualmente entre todos os atores e em variegadas proporções. Os fins visados pelo Estado são, portanto, resultantes de uma luta política e a guerra pode mudar os rumos do jogo. A compreensão da guerra e a conquista da paz deve em cada circunstância examinar o complexo de relações sociais que está em jogo. Enfim, a “segurança internacional” envolve uma pluralidade de perspectivas e, em cada conjuntura, pode assumir características distintas. As visões de mundo socialmente construídas e os valores e interesses em jogo devem ser examinados em toda sua complexidade e sem preconceitos. A perspectiva analítica não pode ser estreitada por concepções dogmáticas da realidade social. Referências Bibliográficas: ARON, Raymond (1938a). Introduction à la philosophie de l’histoire. Essai sur les limites de l’objectivité historique. Nouvelle édition revue et annotée par Sylvie MESURE. Collection Tel, n. 58. Paris: Gallimard, 1986. (1938b). La philosophie critique de l’histoire: Essai sur une théorie de l’histoire. Nouvelle édition revue et annotée par Sylvie MESURE. Paris: Julliard,1987. (1962). Paix et guerre entre les nations. Paris: Calmann-Lévy, 2004. (1976). Penser la guerre, Clausewitz. I: l’âge européen. Paris: Gallimard. BERGER, Peter L. and LUCKMANN, Thomas (1968). La construcción social de la realidad. Buenos Ayres, Amorrortu, 2003. CLAUSEWITZ, Carl von (1831). Da guerra. FREUND, Julien (1965). “Introduction”. In: WEBER, Max. 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SCHUTZ, Alfred (1953). “Formación de conceptos y teorías en las ciencias sociales” In El problema de la realidad social (Escritos I). Buenos Aires: Amorrortu, 2006. (1960) “El mundo social y la teoría de la acción social” In El problema de la realidad social (Escritos II). Buenos Aires: Amorrortu, 2012. WEBER, Max. (1904). “L'objectivité de la connaissance dans les sciences et la politique sociales” In: Essais sur la théorie de la science. Colléction Agora. Traduction de Julien Freund. Paris: Plon, 1965. (1921). Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1997. Redefinindo a Diplomacia num Mundo em Transformação Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa Referências Bibliográficas:
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