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de legitimidade do plano interno para o plano internacional. O segundo Capítulo tratará da questão das intervenções humanitárias e do direito (ou dever) de ingerência, conceito que antecede o da responsabilidade de proteger e que representa elaboração teórica relativa à evolução da questão na década de 1990. Buscar-se-á definir o que é intervenção humanitária e identificar os empecilhos a essas intervenções ana maria bierrenbach 20 no atual marco jurídico internacional, que salienta a importância do consentimento das partes envolvidas. Serão citados exemplos de intervenções, desde 1945, nas quais o argumento humanitário esteve presente, seja como justificativa principal, seja como motivo assessório, ou ainda como “cortina de fumaça” para recobrir outros interesses. Serão mencionadas também situações em que o elemento humanitário não foi utilizado como justificativa, mas estava indubitavelmente presente. Será possível observar as diferenças entre as intervenções empreendidas no período da Guerra Fria, quando a confrontação bipolar dificultava ou inviabilizava ações coletivas multilaterais, autorizadas pelo CSNU, daquelas efetivadas na década de 1990, quando o Conselho de Segurança autorizou intervenções militares em várias situações. Essa década testemunhou também os debates quanto ao “direito” ou “dever” de ingerência, conceito difundido pela ONG Médicos Sem Fronteiras. Na sequência, o terceiro Capítulo abordará o DIH: suas origens históricas, suas fontes, seus principais instrumentos, bem como sua relação com o DIDH. O DIH, também conhecido como Direito da Guerra, ou Direito dos Conflitos Armados, refere-se ao que a doutrina chamou de jus in bello, ou seja, o direito na guerra, e determina o que é permitido e o que é proibido em uma guerra: quais são os meios admitidos, qual o tratamento a ser conferido a prisioneiros, de que maneira se deve tratar a população civil, entre outros temas. A doutrina tem tradicionalmente distinguido o jus in bello, do jus ad bello, ou o direito à guerra, que remete às discussões sobre a guerra justa. O Capítulo tratará, ainda, do CICV, com vistas a compreender a natureza jurídica dessa Organização e o papel desempenhado por ela de “guardiã” do DIH. Buscar-se-á compreender as limitações do CICV em sua função de principal agência prestadora de assistência humanitária, bem como os motivos que levam essa Organização a manter sua estrita adesão à neutralidade e ao consentimento das partes, opondo-se, portanto, a quaisquer formas de intervenção humanitária. O quarto Capítulo buscará percorrer a trajetória de construção do conceito de responsabilidade de proteger: os antecedentes teóricos e históricos; a experiência (muitas vezes frustrada) das operações de paz na década de 1990, cujos mandatos, além de confusos, eram difíceis de justificar do ponto de vista da doutrina e da normativa internacional existente; a elaboração teórica da soberania como responsabilidade, 21 introdução por Francis Deng (atualmente Assessor Especial do SGNU para o tema do genocídio); o relatório da ICISS, que será abordado em detalhes, por constituir a principal referência teórica sobre o novo conceito; o relatório do Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança, de 2004; e, finalmente, a incorporação formal da “Responsibility to Protect (R2P)” no Documento Final da Cúpula Mundial da ONU de 2005. O Capítulo abordará também o conceito de segurança humana, que reflete desenvolvimento teórico paralelo e guarda semelhanças com a responsabilidade de proteger. O trabalho buscará salientar as posições defendidas pelo Brasil ao longo dos debates, buscando compreender o quadro parlamentar e os motivos da resistência inicial dos países em desenvolvimento em relação ao tema. O Capítulo terminará com uma análise sobre o estado atual das discussões e sobre as perspectivas de avanço do tema no âmbito da ONU. O último Capítulo tratará das hipóteses de aplicação da responsabilidade de proteger admitidas pela comunidade internacional e expressas no Documento Final da Cúpula Mundial de 2005: genocídio, limpeza étnica, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Como será visto, embora representem desenvolvimentos históricos distintos, são categorias passíveis de confusões e sobreposições. Há autores que consideram que a limpeza étnica e o genocídio, objeto de convenção internacional específica, adotada em 1948, constituem subespécies dos crimes contra a humanidade. Outros afirmam que o genocídio é uma espécie de limpeza étnica. Os crimes de guerra correspondem, em grande medida, aos delitos compreendidos pelo DIH tradicional. São, de todo modo, conceitos que se têm beneficiado de interpretações a partir da jurisprudência criada, em um primeiro momento, pelos Tribunais Criminais Internacionais de Nuremberg e Tóquio e, mais recentemente, pelos Tribunais Especiais ad hoc para Ruanda e antiga Iugoslávia. O Capítulo fará também breve exposição sobre as negociações que levaram à adoção do Estatuto de Roma e sobre as perspectivas para a Conferência de Revisão do TPI, realizada em Uganda, em junho de 2010. Na conclusão, buscar-se-á verificar em que medida é possível estabelecer uma conexão entre o conceito de responsabilidade de proteger e o DIH, para além da relação óbvia que indica que as missões militares de intervenção são obrigadas, como quaisquer outras missões militares, a respeitar o Direito Internacional dos Conflitos Armados. O trabalho ana maria bierrenbach 22 espera demonstrar que a responsabilidade de proteger representa a nova forma do jus ad bellum. Nesse sentido, sua relação com o DIH reproduz, contemporaneamente, a tensão entre o jus ad bellum e o jus in bello, que já preocupava Vitória e Suarez, juristas da Escola de Salamanca, no século XV. A conclusão propõe, ainda, um processo de reflexão quanto à posição brasileira em relação à responsabilidade de proteger, em favor de uma abertura maior ao conceito, limitado às hipóteses de genocídio, limpeza étnica, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. 23 As noções do legítimo e ilegítimo, da justiça e da injustiça, aqui não têm lugar. Onde não há um poder comum não há lei e onde não há lei não existe injustiça. Em tempos de guerra, a violência e o ardil são duas virtudes cardeais (Hobbes. O Leviathan, Capítulo XIII). 1.1 Considerações iniciais O princípio da responsabilidade de proteger, objeto desta tese, busca solucionar um dos maiores impasses conceituais das Relações Internacionais. Trata-se de conjugar o respeito à soberania, de um lado, e a proteção humanitária, de outro. A responsabilidade de proteger apresenta-se como a nova “fórmula” que possibilita a prática das intervenções humanitárias: em casos de graves violações, como genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e limpeza étnica, a quebra da soberania, representada pela intervenção, seria não só legítima, mas também legal. A solução do impasse leva em conta, portanto, duas dimensões: a da legitimidade e a da legalidade. Desde a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, em Viena, em 1993, a comunidade internacional reconheceu que as violações de direitos afirmados em tratados são matéria de legítimo Capítulo 1 Considerações sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade ana maria bierrenbach 24 interesse internacional, o que constitui flexibilização da noção tradicional de soberania. Segundo Boutros-Ghali, ex-SGNU: Uma das maiores exigências intelectuais do nosso tempo é a de repensar a questão da soberania (...) Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento