Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Os bonobos são, juntamente com os chimpanzés comuns, nossos parentes existentes mais próximos. Aqui, uma fêmea faz alongamento. PARTE I INTRODUÇÃO De onde vieram os organismos que habitam a Terra? Por que existem tantos tipos diferentes? Como vieram a ser aparentemente tão bem planejados? Essas são as indagações fundamentais da biologia evolutiva. As respostas são encontradas no padrão e no mecanismo da evolução. O padrão é a descendência com modificações dos ancestrais comuns. O mecanismo primário é a seleção natural. Nosso primeiro objetivo na Parte I (Capítulos 1-4) é apresentar o padrão e o processo da evolução. No Capítulo 1, exploramos um exemplo, a evolução do HIV. No Capítulo 2, examinamos o padrão da evolução e a evidência de ancestralidade comum. No Capítulo 3, focalizamos o mecanismo da evolução. A seleção natural é o princípio organizador da biologia evolutiva; sua simplicidade insere-se entre os encantos do assunto. No entanto, a seleção natural é amplamente mal interpretada. Sua compreensão exige que nos afastemos de expressões como “sobrevivência do mais apto”. No Capítulo 4, abrangemos os métodos para reconstrução da história evolutiva. Nosso segundo objetivo é expor os métodos experimentais e analíticos usados pelos biólogos que estudam a evolução. Esses métodos constituem um tema destacado do prin- cípio ao fim do texto. São enfatizados para ajudar os leitores a fazer perguntas, planejar experimentos, analisar dados e revisar criticamente os artigos científicos. Os exemplos de- talhados que apresentamos esclarecem os conceitos gerais da biologia evolutiva e também fornecem insight do modo como entendemos o que conhecemos. ■ Prostitutas na zona do meretrício de Songachi, em Calcutá, Índia, aprendem com uma profissional da área da saúde os benefícios de usar preservativos. Em Songachi, uma campanha agressiva para educar as profissionais do sexo, cafetinas e proxenetas a distribuir preservativos e estimular seu uso manteve a prevalência de HIV, entre as prostitutas, abaixo de 12%. Em outras regiões de meretrício, a prevalência do HIV elevou-se a mais de 50% (Cohen, 2004). 1 Um caso para o pensamento evolucionista: a compreensão do HIV Por que estudar evolução? Apesar de quase não o mencionar em sua obra Sobre a Ori-gem das Espécies (1859), um dos motivos de Charles Darwin era que a compreensão da evolução pode ajudar nosso autoconhecimento. Darwin escreveu: “A luz será lançada sobre a origem do homem e sua história”. Para Theodosius Dobzhansky (1973), um ar- quiteto da visão moderna da evolução que apresentamos neste texto, a recompensa era que a biologia evolutiva é a base conceitual que sustenta todas as ciências biológicas. “Na biologia, nada faz sentido”, declarava ele, “exceto à luz da evolução”. Para alguns leitores, no entanto, talvez o incentivo seja o de que uma disciplina de evolução é requisito para a integralização do seu curso. Neste ponto, sugerimos ainda outra razão para estudar evolução: os instrumentos e as técnicas de biologia evolutiva oferecem compreensão crucial das questões de vida e morte. Para justificar essa afirmativa, analisamos a evolução do vírus da imunodeficiência humana (HIV), que causa a síndrome da imunodeficiência humana adquirida (AIDS). Um olhar minucioso sobre esse importante problema contemporâneo apresentará o objetivo da análise evolutiva. Irá exemplificar os tipos de indagações que os biólogos da evolução fazem, mostrar como uma perspectiva evolucionista pode informar as pesquisas de todas as ciências biológicas e introduzir conceitos que exploraremos detalhadamente em outra parte deste livro. 4 Scott Freeman & Jon C. Herron O HIV constitui um estudo de caso obrigatório, porque origina questões capazes de influenciar a vida pessoal e profissional de todos os leitores. Esse vírus exemplifica aspectos urgentes de saúde pública: é um vírus emergente, que rapidamente desenvolve resistência a drogas e é mortal. A AIDS já se qualifica como uma das epidemias mais devastadoras que a nossa espécie sofreu. As questões com que nos defrontamos são as seguintes: Por que o tratamento precoce da AIDS, como o que utiliza a droga azidotimidina • (AZT), parece promissor quando é usado pela primeira vez, mas se mostra ineficaz com o decorrer do tempo? Por que o HIV mata as pessoas? • Por que algumas pessoas são resistentes à infecção, ou, tão logo infectadas, progridem • para a doença? De onde se origina o HIV? • Algumas dessas perguntas aparentemente não teriam relação com a biologia evolutiva. No entanto, essa é a ciência dedicada a compreender dois aspectos: (1) como as populações mudam, ao longo do tempo, segundo as modificações do seu ambiente, e (2) como as novas espécies vêm a existir. Mais formalmente, os biólogos evolucionistas estudam a adaptação e a diversidade. São esses, exatamente, os assuntos focalizados pelas nossas perguntas sobre o HIV e a AIDS. Antes de considerá-las, entretanto, precisamos aprofundar um pouco os conhecimentos de biologia básica. 1.1 A história natural da epidemia de HIV/AIDS A pior epidemia da história humana, a julgar pelo número de mortes, foi, provavelmente, a de influenza, em 1918, que assolou o mundo em questão de meses, matando 50 a 100 milhões de pessoas (Johnson e Mueller, 2002). A segunda pior foi, provavelmente, a Peste Negra, causada por um patógeno extremamente virulento, cuja identidade permanece controversa (ver Raoult et al., 2000; Gilbert et al., 2004; Christakos e Olea, 2005; Duncan e Scott, 2005). Devastou a Europa de 1347 a 1352, eliminando 30 a 50% da população – aproximadamente 25 milhões de vidas (Derr, 2001). Surtos mais localizados, ao longo dos 300 anos seguintes, mataram mais alguns milhões. Também merece menção a epidemia de varíola do Novo Mundo, desencadeada em torno de 1520 pelos conquistadores europeus. Sua mortalidade é mais difícil de calcular, mas durante as décadas subseqüentes dizimou as populações americanas nativas ao longo dos dois continentes (Roberts, 1989; Snow, 1995; Patterson e Runge, 2002). A epidemia de AIDS, reconhecida em primeiro lugar pelos médicos em 1981, ganhou rapidamente um lugar entre essa companhia implacável (UNAIDS, 2005). Até o momento, o HIV infectou mais de 65 milhões de pessoas. Dessas, 25 milhões já morreram das in- fecções oportunistas que caracterizam a AIDS. Entre as restantes, muitas estão gravemente doentes, e numerosas, ainda, estão disseminando a doença. O Programa Conjunto das Na- ções Unidas sobre HIV/AIDS estimou que, em 2020, a epidemia da AIDS terá dizimado um total de aproximadamente 90 milhões de vidas (UNAIDS, 2002a). A Figura 1.1 apresenta um resumo do padrão mundial da epidemia da AIDS. No mapa da Figura 1.1a, as regiões são coloridas diferentemente para mostrar a prevalência da infec- ção do HIV entre os adultos, indicando-se também o número total de adultos e crianças infectados pelo HIV e a proporção sexual entre os adultos infectados. Os histogramas da Figura 1.1b documentam o crescimento da epidemia ao longo do tempo, em diferentes partes do mundo. Diariamente, cerca de 13.400 pessoas são infectadas, pela primeira vez, pelo HIV, e 8.500 morrem de AIDS (UNAIDS, 2005). De acordo com a Organização Mundial Como um estudo de caso, o HIV demonstrará como os biólogos evolucionistas estudam a adaptação e a diversidade. A AIDS está entre as piores epidemias da história humana. Análise Evolutiva 5 da Saúde, a AIDS agora é responsável por cerca de 4,9% de todas as mortes mundiais (WHO, 2004). A AIDS causa uma fração menor de mortes do que o câncer (12,5%), infartos do miocárdio (12,6%), derrames (9,7%) e infecções das vias respiratórias infe- riores (6,8%) – causas comuns de óbito entre os idosos, mas provoca mais mortes do que a tuberculose(2,7%), malária (2,2%), acidentes automobilísticos (2,1%), homicídios (1%) e guerras (0,3%). Essa epidemia causou sua maior devastação, sem dúvida, na região Subsaariana da África (ver Piot et al., 2001), onde a prevalência média do HIV entre adultos é de 7,2% (UNAI- DS, 2005). O foco pior é a Suazilândia, com uma prevalência de 38,8% em adultos, se- guindo-se Botsuana (37,3%), Lesoto (28,9%) e Zimbábue (24,6%) (UNAIDS, 2004). No Lesoto, um indivíduo que completou 15 anos em 2000 tem a probabilidade de 74% de contrair HIV aos 50 anos (UNAIDS, 2002a). Na Botsuana, a epidemia da AIDS diminuiu a expectativa média de vida dos 65 anos para os 40, sendo esperado que se reduza ainda mais (Figura 1.2). Nos países industrializados da América do Norte e da Europa Ocidental, as estimativas totais de infecção são muito inferiores às da África Subsaariana (UNAIDS, 2004, 2005). Na Europa Ocidental, a prevalência da infecção por HIV em adultos é de apenas 0,3%. No Canadá, a prevalência em adultos é também de 0,3%, sendo de 0,6% nos Estados Unidos. Para certos grupos de risco, no entanto, as taxas de infecção rivalizam com as das regiões africanas mais devastadas. Entre os homens homossexuais, a taxa de infecção é de 18% na cidade de Nova York, 19% em Los Angeles, 24% em San Francisco e 40% em Baltimore (CDC, 2005). Entre os usuários de drogas injetáveis, a taxa de infecção é de 18% em Chi- cago e em torno de 25% na cidade de Nova York (Piot et al., 2001). O HIV estabelece uma nova infecção quando um líquido corporal abrigando o vírus, geralmente sangue ou sêmen, transporta-o de uma pessoa infectada diretamente para uma membrana mucosa ou para a corrente sangüínea de uma pessoa não-infectada. O vírus pode ser transmitido durante a relação heterossexual, homossexual ou oral, bem como por agulhas contaminadas, transfusão com produtos sangüíneos contaminados, parto e lacta- ção. O vírus dissemina-se por diferentes rotas em diversas regiões. Na África Subsaariana 30 40 50 60 70 A no s Período 1980- 1985 1985- 1990 1990- 1995 1995- 2000 2000- 2005 2005- 2010 Figura 1.2 Expectativa de vida na Botsuana. Esse gráfico mostra a expectativa de vida estimada ao nascimento, para indivíduos nasci- dos entre 1980 e 2000, e a expec- tativa de vida projetada para indiví- duos nascidos entre 2000 e 2010. O declínio após 1990 é devido à epidemia da AIDS. Redesenhado da Figura 12, em UNAIDS (2004). Figura 1.1 A pandemia de HIV/AIDS. (a) Esse mapa mos- tra a distribuição geográfica das infecções do HIV. Cada região é colorida diferentemente, indicando a prevalência da infecção entre os adultos. Além disso, as regiões estão assinaladas pelo número total de indivíduos existentes com o HIV e a proporção sexual entre os adultos infectados. Mais de três quintos da população infectada pelo HIV vivem na África Subsaariana; outro quinto vive no sul e no sudeste da Ásia. Dados de UNAIDS (2005). (b) Esses histogramas ilustram o crescimento no número de adultos existentes com HIV, desde que a pandemia começou, no início da década de 1980. Redesenhado de WHO (2004). F = sexo feminino; M = sexo masculino. 1,8 milhão 32% F; 68% M 1,2 milhão 25% F; 75% M 25,8 milhões 57% F; 43% M 510,000 47% F; 53% M 74.000 720.000 27% F; 73% M 870.000 18% F; 82% M 7,4 milhões 26% F; 74% M 300.000 50% F; 50% M (a) 7,2 % 1,6 % 0,26 a 0,50% 0 a 0,25% 0,76 a 1% 0,51 a 0,75% N úm er o de a du lto s in fe ct ad os ( em m ilh õe s) EuropaAméricas Ásia (Sul e Sudeste)África 0 10 20 30 1982 1986 1990 1994 1998 2002 Prevalência em adultos (% de infectados) Número de adultos e crianças existentes com HIV Porcentagens de mulheres e homens adultos infectados (b) 1982 1986 1990 1994 1998 2002 1982 1986 1990 1994 1998 2002 1982 1986 1990 1994 1998 2002 1,6 milhão 28% F; 72% M 6 Scott Freeman & Jon C. Herron e na Índia, a relação heterossexual foi o primeiro modo de transmissão (Piot et al., 2001; Schmid et al., 2004; Lopman et al., 2005 – mas veja também Gisselquist et al., 2002, 2004; Brody e Potterat, 2005). Na China, o vírus disseminou-se inicialmente entre os usuários de drogas injetáveis, depois entre os doadores de sangue cujo plasma era coletado de maneira insegura e finalmente entre os parceiros de sexo heterossexual (Kaufman e Jing, 2002). Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, a relação homossexual e a contaminação de agulhas entre os usuários de drogas injetáveis foram as vias de transmissão mais comuns, embora a relação heterossexual venha desempenhando um papel crescente nessa transmis- são (UNAIDS, 2005). Os programas para deter a disseminação do HIV alcançaram sucesso (Figura 1.3). De- pois que a epidemia de AIDS chegou à Tailândia, no fim da década de 1980, e começou a acelerar no início da década seguinte, o Ministério da Saúde lançou uma campanha para incentivar os jovens a reduzir as práticas sexuais de risco e usar preservativos (Nelson et al., 2002). Em menos de 10 anos, a incidência da infecção do HIV entre os recrutas militares caiu de mais de 11% a menos de 3%, concomitantemente com um aumento no uso de preservativos durante as visitas às prostitutas (e uma diminuição na freqüência dessas visitas). Um programa de educação para o sexo saudável, específico para as pros- titutas, na Costa do Marfim, contribuiu para uma queda dramática semelhante nas taxas de infecção do HIV, mais uma vez coincidente com o aumento no uso de preservativos (Ghys et al., 2002). 91 92 93 94 95 96 97 98 0 3 6 9 12 15 60 70 80 90 100 H IV-positivo (% ) U so d e pr es er va tiv os ( % ) (a) Recrutas da Tailândia 92 93 94 95 96 97 98 H IV-positivo (% ) U so d e pr es er va tiv os ( % ) (b) Prostitutas da Costa do Marfim Ano 20 40 60 80 30 50 70 90 Ano No entanto, não há espaço para a complacência. O gráfico da Figura 1.4 mostra que, em torno do ano 2000, a taxa de novas infecções do HIV começou a aumentar, paralela- mente às taxas de infecção de outras doenças transmissíveis sexualmente, entre os homens que mantinham relações sexuais com outros homens, em Londres. O mesmo fato está acontecendo em San Francisco e outros locais (Kellogg, McFarland e Katz, 1999; Hamers e Downs, 2004; Giuliani et al., 2005). Parece que a introdução de terapias com drogas de efi- cácia de longo prazo, que para alguns indivíduos transformou o HIV em uma doença crô- nica manejável, pelo menos temporariamente, também pode ter estimulado um aumento do comportamento sexual de risco (Kats et al., 2002; Chen et al., 2002; Crepaz, Hart e Marks, 2004). Uma causa adicional para preocupação é o abuso cada vez mais disseminado de metanfetamina, que está associado ao comportamento de risco e à maior probabilidade de contrair o HIV (Buchacz et al., 2005). 2.500 2.000 1.000 1.500 500 0 200220001999 Ano 19981997 2001 Gonorréia Novo diagnóstico de HIV Sífilis Taxa por 100.000 homens que têm relações sexuais com homens Uma infecção do HIV pode ser adquirida somente de alguém que já a tenha. Figura 1.3 Prevenção de HIV/ AIDS bem-sucedida. Estes grá- ficos registram o sucesso dos pro- gramas de prevenção do HIV na (a) Tailândia e (b) Costa do Marfim. À medida que o uso de preservativos aumentou, a incidência da infecção do HIV diminuiu. Desenhado a par- tir de dados de Nelson et al. (2002) e Ghys et al. (2002). Figura 1.4 Taxas de novo diag- nóstico de HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis, entre homens que têm relações sexuais com outros homens, em Londres. Este gráfico documenta os recentes aumentos na incidência de gonor- réia esífilis, bem como um aumento na taxa de novos diagnósticos de HIV, entre homens que têm rela- ções sexuais com outros homens, em Londres. Fonte: Macdonald et al. (2004). Análise Evolutiva 7 O que é o HIV? Como todos os vírus, o HIV é um parasita intracelular que não consegue se reproduzir por sua própria conta. O HIV invade tipos específicos de células do sistema imune humano e utiliza a energia e o maquinário enzimático dessas células para se autoduplicar, matando, nesse processo, as células hospedeiras. A Figura 1.5 resume, com algum detalhe, o ciclo vital do HIV, que compreende uma fase extracelular e uma intracelular. Durante a fase extracelular, ou infecciosa, o vírus passa de uma célula hospedeira para outra, podendo ser transmitido de um organismo hospe- deiro para outro. A forma extracelular de um vírus é chamada vírion ou partícula viral. Durante a fase intracelular, ou parasítica, o vírus se duplica. O HIV inicia sua fase de duplicação prendendo-se a duas proteínas da superfície de uma célula hospedeira. Após aderir primeiramente à CD4, encontrada na superfície de certas células do sistema imune, o HIV fixa-se à segunda proteína, denominada co-receptora, que fusiona o envelope do vírion com a membrana celular da hospedeira e extravasa o con- teúdo do vírion no interior da célula. Esse conteúdo inclui o genoma viral diplóide (duas cópias de uma molécula de RNA de fita simples) e três proteínas: transcriptase reversa, que transcreve o genoma de RNA do vírus em DNA; a integrase, que encadeia o genoma de DNA no genoma da célula hospedeira, e a protease, que desempenha um papel na produ- ção de novas proteínas virais. O HIV é um parasita que devasta as células do sistema imune humano. Os vírions do HIV penetram nas células hospedeiras por meio de ligação às proteínas de sua superfície e, a seguir, usam o próprio maquinário dessas células para produzir novos vírions. Integrase Protease 1 2 3 4 5 8 7 Genoma de RNA (duas cópias)Transcriptase reversa gp120 (proteína de superfície) CD4 Co-receptora Vírion do HIV RNA do HIV DNA do HIV Núcleo da célula hospedeira DNA da célula hospedeira DNA do HIV Proteína do HIV Célula hospedeira mRNA do HIV6 gp 41 (proteína de ancoragem para gp120) 9 10 1) Forma extracelular do HIV, conhecida como vírion, encontra uma célula hospedeira 2) Proteína gp120 do HIV liga-se à CD4 e à co-receptora da célula hospedeira 3) Genoma de RNA do HIV, transcriptase reversa, integrase e protease entram na célula hospedeira 4) Transcriptase reversa sintetiza o DNA do HIV, a partir do molde de RNA do HIV 5) Integrase encadeia o DNA do HIV com o genoma do hospedeiro 6) DNA do HIV é transcrito em mRNA (RNA mensageiro) do HIV, pela RNA-polimerase da célula hospedeira 7) mRNA do HIV é traduzido em proteínas precursoras do HIV, pelos ribossomos da célula hospedeira 8) Protease cliva as precursoras em proteínas virais maduras 9) Nova geração de vírions se agrupa no interior da célula hospedeira 10) Novos vírions brotam da membrana da célula hospedeira Figura 1.5 O ciclo vital do HIV. Um vírion de HIV (1) invade uma célula hospedeira mediante ligação a duas proteínas da superfície celular (2), possibilitando que o vírion extravase seu conteúdo no interior da célula (3). No interior da célula hospedeira, a transcriptase reversa do HIV faz uma cópia de DNA do genoma viral (4). A integrase do HIV insere essa cópia de DNA no genoma da célula hospedeira (5). A RNA-polime- rase da célula hospedeira transcreve o genoma viral em mRNA (6), e os ribossomos da célula hospedeira traduzem o mRNA viral em proteínas precursoras (7). A protease do HIV cliva as precursoras, produzindo proteínas virais maduras (8). Novos vírions agrupam-se no citoplasma da célula hospedeira (9) e depois brotam da membrana da célula hospedeira (10). 8 Scott Freeman & Jon C. Herron Observe que no HIV, assim como em outros retrovírus, o fluxo da informação gené- tica é diferente do que ocorre em células e vírus com genomas de DNA. Nos retrovírus, a informação genética não segue a direção conhecida do DNA para o mRNA e desse para as proteínas. Ao contrário, a informação origina-se do RNA para o DNA, depois para o mRNA e desse para as proteínas. Foi essa primeira etapa, caracterizando um fluxo invertido da informação, que inspirou o prefixo retro, no retrovírus, e o termo reversa, na transcriptase reversa. Depois que o genoma do HIV foi inserido nos cromossomos da célula hospedeira, a RNA-polimerase dessa célula transcreve o genoma viral em mRNA, e os seus ribosso- mos sintetizam as proteínas virais. Os novos vírions agrupam-se no citoplasma da célula hospedeira, brotam da membrana celular e ingressam na corrente sangüínea, onde podem encontrar outra célula do mesmo hospedeiro para infectar ou ser transmitidos a um novo hospedeiro. Um aspecto notável do ciclo vital do HIV é que o vírus usa o maquinário enzimático da célula hospedeira – as polimerases, os ribossomos e os RNAs transportadores (tRNAs) – em quase todas as etapas. Por isso, o HIV e as doenças virais em geral são tão difíceis de tratar. É praticamente certo que as drogas que interrompem o ciclo vital do vírus também interferem nas funções enzimáticas da célula hospedeira, causando, portanto, efeitos cola- terais debilitantes. Como o HIV causa a AIDS? Apesar de um quarto de século de pesquisas intensas, o mecanismo pelo qual a infec- ção do HIV conduz à deficiência imune ainda não está completamente compreendido (Brenchley et al., 2006; Grossman et al., 2006). A versão resumida é esta: o HIV parasita as células do sistema imune, especificamente as células T auxiliares. Após uma longa batalha contra o vírus, o suprimento de células T auxiliares do sistema imune é fortemente redu- zido. Uma vez que as células T auxiliares desempenham um papel crítico na resposta aos patógenos invasores (Figura 1.6), o hospedeiro torna-se vulnerável a diferentes infecções secundárias. Figura 1.6 Como o sistema imune luta contra uma infec- ção viral. As células dendríticas (em preto) captam o vírus e apresentam fragmentos de suas proteínas às células T auxiliares virgens*. Tão logo ativada por um fragmento da proteína viral que se adapta ao seu receptor de célula T, essa célula T auxiliar divide-se, produzindo células de memória (em laranja) e células efetoras (em branco). As células T auxiliares de memória não participam da presente batalha, mas permanecem prontas a desencadear uma reação rápida quando o mesmo vírus invadir novamente o organismo. As células T auxiliares efetoras juntam- se à luta presente. Em parte, pela liberação de moléculas de sinalização denominadas quimocinas, estimulam as células B a amadurecerem em plasmócitos, que produzem os anticorpos que se ligam ao vírus. De outra parte, também estimulam os ma- crófagos a ingerir as células infectadas e ajudar a ativar as células T citotóxicas virgens. Essas células, quando ativadas, dividem-se e produzem células de memória e células efetoras. As células T ci- totóxicas efetoras identificam e matam as células infectadas pelo vírus invasor. A resposta imune é mantida sob o controle de cé- lulas T reguladoras. Os dísticos em laranja identificam proteínas de superfície celular, das quais algumas são utilizadas pelo HIV para ingressar nas células. Modificado de NIAID (2003). Célula B Plasmócitos Anticorpos Célula infectada Célula dendrítica Células T auxiliares efetoras Células T citotóxicas efetoras Célula T auxiliar virgem Linfocinas Vírus CD8 CD4 CXCR4 Célula T citotóxica virgem CD8 Células T auxiliares de memória Macrófago(-) Célula T reguladora (-) (+) (+) (+) CD8 Células T citotóxicas de memória CD4 CCR5CD4 CCR5 CD4 CCR5 CD4 CCR5 CD4 CCR5 CD4 CCR5 CD4 CCR5 Receptor de célula T * N. de T. As células T auxiliares virgens são células T auxiliares maduras que saíram do timo, mas ainda não en- contraram seu antígeno específico (em inglês, naive helper T cells). Fonte: Parham, P. O sistema imune. Porto Alegre: Artmed, 2001, p. G:4. Análise Evolutiva 9 As evidências da complexidade secreta que se oculta atrás dessa versão resumida provêm de um estudo de Guido Silvestri e colaboradores (2005). Esses pesquisadores usaram o SIVsm como um modelo para o HIV. O SIVsm (de simian immunodeficiency virus in sooty mangabey) é um vírus da imunodeficiência simiana, relacionado ao HIV, mas infecta maca- cos. O hospedeiro natural do SIVsm, o mangabei fuliginoso*, tolera a infecção do SIVsm sem ficar doente. Os macacos resos** infectados com SIVsm, entretanto, desenvolvem ti- picamente a AIDS. Silvestri e colaboradores infectaram três mangabeis fuliginosos e três macacos resos com SIVsm de mesma origem e depois monitoraram a luta entre o vírus e os sistemas imunes dos hospedeiros. O vírus experimentou altos níveis de replicação nos seis hospedeiros. Dois macacos re- sos mostraram ativação imune cronicamente alta, evidenciada pela proliferação abundante de células T, mas nenhum dos mangabeis fuliginosos apresentou tal ativação. Paradoxal- mente, foram esses macacos resos – os únicos cujos sistemas imunes responderam mais agressivamente à infecção – que desenvolveram AIDS. Parece que a própria resposta imune do hospedeiro contribui para o desenvolvimento da imunodeficiência. Em harmonia com essa conclusão, Paolo Rizzardi e colaboradores (2002) descobriram, em um pequeno acompanhamento clínico, que pacientes humanos com HIV, tratados com drogas anti-retrovirais e ciclosporina imunossupressora, mantinham contagens de células T auxiliares superiores às de pacientes-controle tratados apenas com drogas anti-retrovirais. A fim de decifrar esses resultados, precisamos examinar o ciclo vital das células T. Essas células originam-se de células-tronco da medula óssea (Figura 1.7a), que geram precurso- ras que maturam em células T virgens, no timo. As células T virgens são ativadas nos lin- fonodos. Uma célula T ativada sofre um surto proliferativo, produzindo células T efetoras e de memória, que circulam no sangue e penetram nos tecidos. Grande parte das células de memória do organismo reside no tecido linfóide associado às membranas mucosas que revestem o nariz, a boca, os pulmões e especialmente o intestino. As células T virgens e as células T de memória têm vida longa (Figura 1.7b), enquanto as células T efetoras, que participam ativamente da luta contra os invasores, são de vida curta (Moulton e Farber, 2006). Além disso, qualquer linhagem dada de células T tem uma capa- cidade finita de replicação – capacidade que é reduzida a cada divisão celular. Isso significa que cada surto de replicação dentro de uma linhagem de células T aproxima-a da exaus- * N. de T. Também denominado mangabey fuliginoso. ** N. de T. Também denominados macacos rhesus. Figura 1.7 O ciclo vital das células T. (a) As células T origi- nam-se de células-tronco da medula óssea, maturam no timo e são ativadas nos linfonodos. (b) As células T virgens e de memória têm vida longa; as células T efetoras, vida curta. Uma dada linhagem de células T tem capacidade finita de replicação. Modificada de Gross- man et al. (2002). Células T de memória Resposta imune secundária Resposta imune primária Timo Células T virgens Células T efetoras (b) As células-tronco hematopoiéticas da medula óssea geram precursoras... ... que se deslocam para o timo, onde são maturadas em células T virgens As células T virgens são ativadas nos linfonodos. As células T efetoras e de memória circulam no sangue e em vários tecidos corporais, especialmente nos tecidos linfóides associados ao intestino e outras mucosas. As células T de memória podem ser ativadas em qualquer local onde encontrem seus antígenos. (a) 10 Scott Freeman & Jon C. Herron tão. Como veremos em breve, esses padrões ajudam a explicar como a manutenção da ativação imune durante a infecção do HIV pode, em última análise, diminuir o suprimento de células T auxiliares do organismo e acarretar o colapso das defesas do hospedeiro. Uma infecção de HIV não-tratada mostra várias fases, nas quais a perda das células T auxiliares acontece em diferentes velocidades e parece ser dirigida por mecanismos diversos (Douek et al., 2003; Derdeyn e Silvestri, 2005; Brenchley et al., 2006; Grossman et al., 2006). Os gráficos da Figura 1.8 ras- treiam a produção viral (superior), as contagens de células T auxiliares (ao centro) e o nível de ativação imune (inferior) em um hospedeiro típico, enquanto sua infecção progride ao longo das fases aguda, crônica e de AIDS terminal. Na fase aguda ou inicial, os vírions de HIV penetram no organismo do hospedeiro e começam a se replicar. Como foi mostrado na Figura 1.5 (página 7), o HIV ganha acesso a uma célula hospedeira primeiramente prendendo-se à proteína de superfície celular CD4, depois ligando-se a uma co-receptora. Voltando à Figura 1.6, observe que a presença de CD4 e ou- tras proteínas de superfície celular, em várias células do sistema imune, está indicada em cor laranja. A co-receptora usada pela maioria das linhagens de HIV responsáveis por novas infec- ções é a CCR5. Assim, essas linhagens virais infectam células dendríticas, macrófagos, células T reguladoras e, especialmente, células T auxiliares efetoras e de memória. O HIV reproduz-se explosivamente, levando a concentra- ção sangüínea de vírions a se elevar abruptamente. Ao mesmo tempo, as concentrações de células T CD4 caem rapidamente, em grande parte porque o HIV as mata, enquanto se replica. O golpe mais implacável incide sobre as células T auxiliares de memória, nos tecidos linfóides do intestino (Guadalupe et al., 2003; Brenchley et al., 2004; Mehandru et al., 2004). Uma vez que o intestino é extenso e vulnerável à penetração de patógenos, a perda dessas células T é um grave golpe às defesas corporais. A fase aguda termina quando a replicação viral se torna mais lenta e a concentração sangüínea de vírions diminui. Uma ra- zão para isso talvez seja a de que o vírus simplesmente esgota a totalidade das células do hospedeiro que ele pode invadir facilmente. Entretanto, além disso, o sistema imune mobiliza- se contra a infecção, e as células T citotóxicas começam a se direcionar para as células do hospedeiro infectadas pelo HIV. Assim, as contagens de células T CD4 do hospedeiro recupe- ram-se um pouco. O HIV foi desacelerado, mas não suprimido. Quando co- meça a fase crônica, o sistema imune esforça-se para recuperar- se de suas perdas iniciais, ao mesmo tempo em que continua a lutar contra o vírus. Do princípio ao fim da fase crônica, o sistema imune permanece muito ativo, por razões que ain- da não são totalmente compreendidas. Em parte, essa ativação crônica é devida ao esforço contínuo para controlar a infecção do HIV. As causas adicionais podem incluir a estimulação pelas 106 105 104 103 102 Pr od uç ão v ira l (c óp ia s de R N A d o H IV p or m l d e pl as m a) Aguda Crônica AIDSFase: 0 20 100 80 60 40 C on ta ge m d e cé lu la s T C D 4 (p or ce nt ag em d o va lo r pr é- in fe cç ão ) Circulantes no sangue Em tecidos linfóides do intestino e de outras mucosas Limiar para o início da AIDS ~ 200 células por mm3 0 20 100 80 60 40 0 6 12 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Tempo desde a infecção Semanas Anos A tivaç ão im un e (p or ce nt ag em d o va lo r m áx im o) +++ ++++ ++++ +++ ++ + Seletividade celular marcante ++++ +++ +++ +++ ++ + Capacidade regenerativa do sistema imune Figura 1.8 Padrão geral da progressão de uma infecção de HIV não-tratada. Uma infecção de HIV não-tratada tem, tipicamente, três fases: uma fase aguda, em que o hospedeiro mostra os sintomas gerais de uma infecção viral; uma fase crônica, em que o hospedeiro é amplamente assintomático, e uma fase de AIDS, em que o sistema imune do hospedeiro entra em colapso, deixando-o vulnerável a infecções oportunistas. A produção viral (gráfico superior) projeta- se durante a fase aguda, depois cai, quando o hospedeiro mobiliza uma resposta imune. No entanto, essa resposta não consegue deter a replicação viral e, durante o fim da fase crônica e na fase de AIDS, a produção viral eleva-se novamente. Na fase adiantada da infecção, freqüentemente a população viral desenvolve a capacidade de in- fectar uma maior variedade de células hospedeiras. As contagens de células T CD4 do paciente (gráfico central) diminuem durante a fase aguda, recuperando-se um pouco, posteriormente. Durante as fases crônica e de AIDS, essas contagens caem de novo. O sistema imune do hospedeiro permanece extremamente ativo (gráfico inferior) do princípio ao fim. Isso ajuda a combater o vírus, mas também fornece células em que o vírus se reproduz e, ao final, exaure a capacidade do sistema imune para se regenerar. Segundo Bartlett e Moore (1998), Brenchley et al. (2006), Grossman et al. (2006). Análise Evolutiva 11 proteínas codificadas pelo vírus, a destruição de células T reguladoras pelo vírus (Oswald- Richter et al., 2004) e a necessidade de combater outros patógenos que se introduzem furtivamente, após o enfraquecimento das defesas do intestino. O estado cronicamente ativado do sistema imune reforça alguns aspectos da resposta do hospedeiro ao HIV. Todavia, produz também um suprimento constante de células T CD4 ativadas em que o vírus pode se reproduzir, bem como consome o suprimento de células T auxiliares virgens e de memória do hospedeiro, mediante estimulação para sua divisão e diferenciação em células efetoras de vida curta (Deeks e Walker, 2004; Garber et al., 2004). A substituição de células T auxiliares perdidas depende, em última análise, da produção de novas células T virgens pelo timo. No entanto, a produção tímica diminui com a idade e é prejudicada pela infecção do HIV, que, aliás, também danifica a medula óssea e os linfono- dos. À medida que a luta antiviral avança, a capacidade do sistema imune para se regenerar constantemente se desgasta. A produção viral aumenta novamente, e as contagens de célu- las T CD4 caem. A fase crônica termina quando a concentração de células T auxiliares no sangue reduz-se a cerca de 200 células por milímetro cúbico. Com tão poucas células T auxiliares, o sistema imune não consegue mais funcionar. O paciente desenvolve a AIDS, síndrome caracterizada por infecções oportunistas de bacté- rias e fungos que raramente causam problemas às pessoas com sistemas imunes fortes. Na ausência de drogas terapêuticas anti-HIV eficazes, espera-se normalmente que um indiví- duo infectado pelo HIV que começou a mostrar sintomas de AIDS possa viver mais dois ou três anos. Tendo abrangido a biologia básica viral, estamos aptos a examinar as questões relativas à evolução do HIV. A primeira questão frustrou, por muito tempo, todos os que se envolve- ram na luta contra a epidemia: por que era tão difícil produzir drogas capazes de combater o HIV? Certamente não era por falta de tentativas; as empresas governamentais e privadas investiram centenas de milhões de dólares nas pesquisas da AIDS e no desenvolvimento de drogas. A trajetória da AZT, uma das primeiras drogas anti-AIDS, veio a se tornar caracte- rística. No início, a AZT pareceu promissora, mas finalmente mostrou-se decepcionante. Para explicar a razão disso, precisamos apresentar a evolução por seleção natural. 1.2 Por que a AZT funciona em curto prazo, mas falha em longo prazo? A fim de combater as infecções virais, os pesquisadores procuram drogas capazes de inibir as enzimas essenciais aos vírus. Por exemplo, uma droga que bloqueia a transcrição reversa deve matar os retrovírus, com efeitos colaterais mínimos. Essa é a base racional da azidoti- midina, ou AZT. A Figura 1.9 mostra como funciona a transcrição reversa. A transcriptase reversa do HIV usa o RNA viral como molde para construir uma fita de DNA complementar. A A AIDS começa quando a infecção do HIV progrediu a tal ponto que o sistema imune do hospedeiro não funciona adequadamente. Figura 1.9 Como a AZT blo- queia a transcriptase reversa. A enzima transcriptase reversa do HIV usa os nucleotídeos da célula hospedeira para construir uma fita de DNA complementar à fita de RNA do vírus. A AZT mimetiza su- ficientemente bem um nucleotídeo normal para iludir a transcriptase re- versa, mas carece do sítio de ligação para o próximo nucleotídeo da fita. U U GACUG ACU A A OH C A T OH OH OH C OH G OH A T A A OH T N3 RNA DNA Trifosfato de AZT OH Nucleotídeos Transcriptase Reversa 12 Scott Freeman & Jon C. Herron transcriptase reversa produz o DNA mediante uso de elementos construtores – os nucleo- tídeos – roubados da célula hospedeira. A mesma figura também mostra como a AZT faz cessar a transcrição reversa. Observe a timidina no nome da AZT (azidotimidina): em sua estrutura química, a AZT é similar ao nucleotídeo normal timidina – tão semelhante que ilude a transcriptase reversa, sendo por essa captada e incorporada na crescente fita de DNA. No entanto, note também que existe uma diferença crucial entre a timidina normal e a AZT (Figura 1.10). No local em que a timidina tem um grupo hidroxila (−OH), a AZT tem um grupo azida (−N3). O grupo hidroxila que falta na AZT é precisamente onde a transcriptase reversa deveria ligar o pró- ximo nucleotídeo à molécula de DNA em formação. Desse modo, a transcriptase reversa está agora impedida de prosseguir. Incapaz de adicionar mais nucleotídeos, não consegue terminar sua tarefa. A AZT interrompe dessa maneira a trajetória de novas proteínas virais e novos vírions. Nos testes iniciais, a AZT funcionou. Efetivamente, sustou a perda de macrófagos e de células T em pacientes aidéticos. Por outro lado, causou graves efeitos colaterais, porque às vezes enganava a DNA-polimerase e interrompia a síntese de DNA nas célu- las hospedeiras. Entretanto, prometia inibir, ou no mínimo desacelerar, a progressão da doença. Em torno de 1989, no entanto, após somente alguns anos de uso, os pacientes pararam de responder ao tratamento. Suas contagens de células CD4 novamente come- çaram a declinar. Por quê? Teoricamente, a AZT poderia perder sua eficácia de duas maneiras. Uma delas é que a própria fisiologia celular do paciente poderia mudar. Depois de entrar na célula, a AZT deve ser fosforilada pela enzima timidinaquinase da própria célula, para se tornar biologi- camente ativa. Talvez a exposição de longa duração à AZT leve a célula a produzir menos timidinaquinase. Se acontecesse isso, a AZT se tornaria menos eficaz ao longo do tempo. Patrick Hoggard e colaboradores (2001) testaram essa hipótese verificando periodicamente as concentrações intracelulares de AZT fosforilada, em um grupo de pacientes que inge- riram a mesma dosagem de AZT durante um ano. Os dados refutam essa hipótese, pois as concentrações de AZT fosforilada não se modificaram ao longo do tempo. A outra maneira em que a AZT poderia perder sua eficácia é que a população de vírions existente no interior do paciente poderia mudar, de modo que os próprios ví- rions seriam resistentes à destruição pela AZT. Para descobrirse as populações de vírions se tornam resistentes à AZT, com o passar do tempo, Brendan Larder e colaboradores (1989) obtiveram amostras do HIV de pacientes e fizeram os vírus crescerem em células cultivadas em placas de Petri. A Figura 1.11 apresenta os dados de dois pacientes que os pesquisadores monitoraram durante muitos meses. No gráfico, cada curva declina, mos- trando como a capacidade de replicação do HIV é rapidamente reprimida pelo aumento das concentrações de AZT. Examinemos as três curvas relativas ao Paciente 1. As amostras de vírions desse paciente, após estar usando AZT por dois meses, ainda eram suscetíveis a essa droga. Nesse período, os vírions perderam quase completamente sua capacidade de replicação, em concentrações moderadas de AZT. As amostras de vírions do mesmo paciente, após 11 meses com AZT, já eram parcialmente resistentes; os vírions podiam ser detidos, mas com doses 10 vezes mais altas de AZT. Os vírions obtidos depois de 20 meses de tratamento com AZT eram extremamente resistentes. Eram inteiramente resistentes às concentrações de AZT que sustaram a primeira amostra e ainda podiam replicar-se razoavelmente bem nas concentrações que sustaram a segunda amostra. Os dados relativos ao Paciente 2 contam a mesma história. As populações de vírions no in- terior de cada paciente mudam, tornando-se resistentes à AZT. Em outras palavras, essas populações evoluem. Na maioria dos pacientes, a evolução do HIV resistente à AZT ocorre em apenas seis meses (Figura 1.12). Qual é a diferença entre um vírion resistente e um suscetível? Para responder a essa per- gunta, façamos um exercício de reflexão. Se quiséssemos construir, por meio de engenharia genética, um vírion de HIV capaz de se replicar em presença de AZT, o que faríamos? A 0 50 100 Meses de tratamento 2 11 20 Concentração de AZT (MM) Paciente 1 1 11 16 0,001 0,01 0,1 1 10 Meses de tratamento Paciente 2 Re sis tê nc ia d os v íri on s (% d e vi ab ilid ad e re la tiv a em p re se nç a de A Z T) 0 50 100 Figura 1.11 As populações de HIV desenvolvem resistência à AZT nos pacientes individuais. À medida que o tratamento conti- nuava, nesses dois pacientes, eram necessárias concentração mais altas de AZT para restringir a replicação dos vírus amostrados a partir do sangue dos pacientes. Redesenhado de Larder et al. (1989). T OH T N3 Trifosfato de AZT Timidina Figura 1.10 Timidina versus AZT. Análise Evolutiva 13 resposta mais simples poderia ser mudar o sítio ativo da enzima transcriptase reversa, dimi- nuindo sua probabilidade de confundir a AZT com o nucleotídeo normal. O desenho da Figura 1.13a representa como isso poderia funcionar, em princípio. Na prática, poderíamos usar uma substância química mutagênica ou uma radiação ionizante para produzir linhagens de HIV com seqüências nucleotídicas alteradas em seus genomas e, conseqüentemente, seqüências alteradas de aminoácidos em suas pro- teínas. Se fossem gerados muitos mutantes, no mínimo alguns conteriam mutações na parte da molécula de transcriptase reversa que reconhece e se liga à timidina normal. Na Figura 1.13b, é apresentado um modelo da estrutura verdadeira do sítio de ligação da transcriptase reversa. Caso uma das transcriptases reversas com sítio de ligação alterado fosse menos provável de confundir a AZT com o nucleotídeo normal, então a varian- te mutante de HIV seria capaz de continuar a se replicar, em presença da droga. Nas populações de vírions de HIV tratados com AZT, as linhagens incapazes de se replicar em presença de AZT diminuiriam numericamente, e a nova forma viria a dominar as populações de HIV. As etapas envolvidas nesse exercício de reflexão correspondem justamente ao que acontece no interior dos pacientes com HIV, como os que foram acompanhados por Larder e colaboradores. Como sabemos disso? Em estudos similares a esse, os pesquisa- dores obtiveram amostras repetidas de vírions de HIV de pacientes que recebiam AZT. Em cada amostra, os pesquisadores seqüenciaram o gene da transcriptase reversa, desco- brindo que as linhagens virais presentes tardiamente no tratamento eram geneticamente diferentes das linhas virais que estavam presentes antes do tratamento, nos mesmos indi- víduos hospedeiros. As mutações associadas à resistência à AZT eram freqüentemente as mesmas, de um paciente para outro (St.Clair et al., 1991; Mohri et al., 1993; Shirazaka et al., 1993), e localizavam-se no sítio ativo da transcriptase reversa (Figura 1.13c). Esses pes- quisadores observaram diretamente a evolução da resistência à AZT em muitos pacientes com AIDS. Em cada indivíduo, as mutações no genoma do HIV causaram substituições específicas de aminoácidos no sítio ativo da transcriptase reversa. Tais mudanças genéticas permitiram que as linhagens mutantes do vírus se replicassem em presença de AZT. Ao contrário da situação de nosso exercício de reflexão, no entanto, não ocorreu qualquer manipulação consciente. Então, como ocorreu a mudança nas linhagens virais? A resposta é que a transcriptase reversa é propensa a erro, e o genoma do HIV não tem instruções para produzir enzimas de correção de erros. Conseqüentemente, mais de 50% dos transcritos de DNA produzidos pela transcriptase reversa contêm pelo menos um erro em sua seqüência nucleotídica, também conhecido como uma mutação (Hübner et al., Algumas mutações no sítio ativo da transcriptase reversa reduzem sua probabilidade de adicionar AZT, em vez de timidina. >10 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0,1 0 R es ist ên ci a à A Z T ( 95 % d a do se in ib id or a [m M ]) 0 5 10 15 20 25 Meses de tratamento Figura 1.12 Na maioria dos pacientes, a resistência à AZT desenvolve-se em seis meses. Nesse gráfico está plotada a resis- tência em 39 pacientes examinados em diferentes épocas. Redesenhado de Larder et al. (1989). Figura 1.13 Diferença entre as transcriptases reversas sensíveis à AZT e as resistentes à AZT. (a) Esse desenho mostra como uma mudança no sítio ativo da transcrip- tase reversa poderia capacitar essa enzima a reconhecer a AZT como uma impostora. (b) Essa reprodu- ção mostra o grande sulco na enzi- ma transcriptase reversa, em que o substrato (RNA) se liga. (c) Nessa reprodução, as esferas laranjas indi- cam os locais das substituições de aminoácidos correlacionadas com a resistência à AZT. Observe que es- sas substituições situam-se no sulco, ou sítio ativo, da enzima. Segundo Cohen (1993). (b) (c) (a) T N3 T N3 Suscetível Resistente Transcriptase Reversa Transcriptase Reversa 14 Scott Freeman & Jon C. Herron 1992; Wain-Hobson, 1993). De fato, o HIV tem a taxa de mutação mais alta de todos os vírus ou organismos observados até o presente. Devido às milhares de replicações de HIV que ocorrem em cada paciente durante o curso de uma infecção, uma única linhagem de HIV produz centenas de diferentes variantes de transcriptase reversa ao longo do tempo. Simplesmente em virtude de sua quantidade, é praticamente certo que uma ou mais dessas variantes contenham uma substituição de aminoácido que reduzem a afinidade da transcriptase reversa pela AZT. Se o paciente tomar essa droga, a replicação de variantes inalteradas de HIV será suprimida, mas os mutantes resistentes ainda serão capazes de sintetizar algum DNA e produzir novos vírions. À medida que os vírions resistentes se reproduzem e os suscetíveis não se propagam, com o passar do tempo, a fração de vírions Resultado: a composição da população mudou ao longo do tempo. Tempo Os erros na transcrição reversa produzem uma população variável. Algumas variantes diferem naresistência à AZT. Os erros na transcrição reversa produzem uma população variável. Algumas variantes diferem na resistência à AZT. A resistência (ou suscetibilidade) é transmitida dos genitores à prole. Durante o tratamento com AZT, muitos vírions não conseguem se reproduzir. As variantes que persistem são as que conseguem se reproduzir na presença de AZT. AZT Vírion suscetível à AZT Vírion parcialmente resistente à AZT Vírion muito resistente à AZT Mutação Figura 1.14 Como as populações de HIV desenvolvem resistência à AZT. As variações causadas por mutações, hereditariedade e diferen- ças de sobrevivência devidas à AZT resultam em uma mudança na composição da população, ao longo do tempo. Análise Evolutiva 15 resistentes à AZT no organismo do paciente aumentará. Além disso, é provável que cada nova geração, na população viral, contenha vírions com novas mutações. Algumas dessas mutações adicionais podem, subseqüentemente, reforçar a capacidade da transcriptase re- versa para funcionar em presença de AZT. Uma vez que se reproduzem com maior ra- pidez, os vírions que contêm essas novas mutações também aumentarão sua freqüência, à custa de seus contemporâneos menos resistentes. Esse processo de mudança da composição da população viral ao longo do tempo é de- nominado evolução por seleção natural. Ocorreu com tanta freqüência nos pacientes que tomavam AZT que o uso isolado dessa droga como tratamento da AIDS foi abandonado. (Discutimos terapias mais avançadas no Quadro 1.1.) Agora vamos considerar uma questão um pouco diferente. Já acompanhamos o que acontece aos vírions que contêm diferentes versões do gene da transcriptase reversa, quan- do a AZT está presente. O que ocorre quando a AZT está ausente? As linhagens mutantes de HIV também são mais eficientes reprodutivamente, quando as células hospedeiras não contêm AZT? Não. Quando o tratamento com AZT foi sustado, a proporção de vírions resistentes à AZT, na população viral, retornou à existente antes de o tratamento com AZT iniciar. As mutações reversas, que restabeleciam a configuração original da seqüência de aminoácidos da transcriptase reversa, tornaram-se comuns, porque os vírions que as con- tinham não reproduziam formas resistentes à AZT (St. Clair et al., 1991). A linhagem viral que aumenta em freqüência é a que se replica mais rapidamente no ambiente atual. Sem a presença de AZT, a seleção natural favorece os vírions não-mutantes; com a presença de AZT, favorece os vírions mutantes. A evolução por seleção natural é unidirecional e irre- versível? Não. Note-se que o processo que descrevemos envolve quatro etapas (Figura 1.14): Os erros de transcrição produzem mutações no gene da transcriptase reversa. Os 1. vírions que contêm os genes mutantes produzem versões da enzima transcriptase reversa que variam em sua resistência à AZT. Os vírions mutantes transmitem à prole seus genes da transcriptase reversa e, desse 2. modo, sua resistência ou suscetibilidade à AZT. Em outras palavras, a resistência à AZT é hereditária. Durante o tratamento com AZT, alguns vírions têm maior capacidade de sobrevi-3. vência e reprodução do que outros. Os vírions que sobrevivem em presença de AZT são os que têm mutações em seus 4. genes da transcriptase reversa, mutações essas que lhes conferem resistência. O resultado disso é que a composição da população viral, no interior do hospedeiro, muda com o passar do tempo. Os vírions resistentes à AZT abrangem uma fração cada vez maior da população; os vírions suscetíveis à AZT tornam-se raros. Não há nada de misterioso ou intencional quanto à evolução por seleção natural; a evolução simplesmente acontece. É uma conseqüência automática de simples e fria aritmética. Sendo uma conseqüência automática de fria aritmética, a evolução por seleção natural pode acontecer em qualquer população que apresente essas quatro etapas. Isto é, pode ocorrer em qualquer população em que existam variações hereditárias no sucesso repro- dutivo. Veremos muitos exemplos nos próximos capítulos. Uma medida de nossa compreensão verdadeira sobre um processo é a nossa capacidade de controlá-lo. Se entendemos realmente o mecanismo da evolução por seleção natural, como age no organismo dos pacientes com HIV, devemos encontrar um meio de fazê-lo cessar – ou, pelo menos, reduzi-lo. Para uma discussão de como os pesquisadores usaram sua compreensão do mecanismo de evolução da resistência, para planejar terapias mais eficazes, ver o Quadro 1.1. No decorrer do tempo, as mudanças na composição genética das populações de HIV levaram- nas a uma resistência aumentada à droga. Esse é um exemplo de evolução por seleção natural. As características hereditárias que conduzem à sobrevivência e à exuberância reprodutiva propagam-se nas populações; as que levam à deficiência reprodutiva desaparecem. Essa é a evolução por seleção natural. 16 Scott Freeman & Jon C. Herron 1.3 Por que o HIV é fatal? Um dos aspectos fundamentais para se tornar biólogo evolucionista é aprender o “pensa- mento selecionista”. A idéia é a de que a evolução por seleção natural, como está esboçada na Seção 1.2, é um processo automático que simplesmente acontece sempre que uma população mostra a necessária variação hereditária em sobrevivência e sucesso reprodutivo. Os pesquisadores desenvolveram diversas drogas anti- retrovirais que, como a AZT, direcionam os processos exclusivamente para as enzimas e proteínas virais (ver Fi- gura 1.5, página 7; Pomerantz e Horn, 2003; Pommier et al., 2005). As drogas já em uso ou em desenvolvimento incluem: Inibidoras da transcriptase reversa. • Algumas, como a AZT, inibem a transcriptase reversa mime- tizando os elementos construtores do DNA. Ou- tras a inibem bloqueando diretamente o sítio ativo da enzima. Inibidoras da protease. • Essas drogas impedem a protease do HIV de clivar as proteínas precursoras virais para produzir os componentes maduros dos novos vírions. Inibidoras de fusão. • Essas drogas barram a entrada do HIV nas células hospedeiras, inicialmente inter- ferindo nas proteínas gp120 ou gp41 desse vírus ou bloqueando as proteínas localizadas na superfície da célula hospedeira, às quais o HIV se prende. Inibidoras da integrase. • Essas drogas bloqueiam a integrase do HIV, impedindo-a de inserir o DNA do HIV no genoma do hospedeiro e, desse modo, evitando a transcrição de novos RNAs virais. Até o momento, a experiência indica que, quando qualquer droga anti-retroviral é usada isoladamente, o re- sultado será semelhante ao que vimos com a AZT. A po- pulação viral desenvolve resistência rapidamente no hos- pedeiro (ver, por exemplo, St. Clair et al., 1991; Condra et al., 1996; Ala et al., 1997; Deeks et al., 1997; Doukhan e Delwart, 2001). Com qualquer droga única, conforme vimos em rela- ção à AZT, apenas uma ou poucas mutações no gene para a proteína visada já podem tornar o vírus resistente. Com sua alta taxa de mutação, tempo curto de gerações e gran- de tamanho populacional, o HIV gera tantos genomas mutantes, que é provável surgir um genoma com a com- binação crítica de mutações, em um tempo razoavelmente curto. Quando existe variação genética para a replicação em presença da droga, e essa está presente, então é inevitá- vel que a população viral evolua. É necessário, então, um modo de aumentar o número de mutações que devem estar presentes no genoma de um vírion para torná-lo resistente. Quanto mais muta- ções forem necessárias para a resistência, menor será a probabilidade de que essas mutações ocorram conjun- tamente em um único vírion. Em outras palavras, é ne- cessária uma estratégia para reduzir a variação genética da resistência a zero. Sem essa variação, a população viral não evolui. O meio mais simples de aumentar o número de mu- tações necessáriaspara desenvolver a resistência é usando duas ou mais drogas simultaneamente. A resistência a dro- gas deve ser atribuída por diferentes mutações. Teorica- mente, as mutações que tornam o HIV resistente a uma das drogas também irão torná-lo suscetível a alguma das outras drogas (ver St. Clair et al., 1991). Há boas notícias de que os coquetéis de tratamento que usam combinações de drogas têm-se revelado efi- cazes. Por exemplo, Roy Gulick e colaboradores (1997) descobriram que, em muitos pacientes, um coquetel de duas inibidoras da transcriptase reversa (AZT e didesóxi- 3’-tiacitidina, ou 3TC), além de uma inibidora da pro- tease (indinavir), pode reduzir o número de vírions de HIV no plasma sangüíneo a níveis imperceptíveis, duran- te um ano, no mínimo. Resultados como esses renderam aos tratamentos com múltiplas drogas a denominação coletiva de Terapia Anti-Retroviral Altamente Ativa, ou HAART (de Highly Active Anti-Retroviral Therapy; Cohen, 2002a; para mais combinações de fármacos usadas na HAART, ver Kalkut, 2005). Frank Palella e colaboradores (2002) acompanharam aproximadamente 1.800 pacientes submetidos a vários re- gimes de prescrições de HAART durante seis anos. Com o advento da HAART, em 1996, as taxas de mortalida- de entre os pacientes caíram extraordinariamente (Figura 1.15a), assim como a incidência de infecções oportunistas típicas da AIDS (Figura 1.15b). O conhecimento de como a resistência evolui ajudou os pesquisadores a salvar vidas. Quadro 1.1 A compreensão de como a resistência evolui pode ajudar os pesquisadores a planejarem melhores tratamentos? Análise Evolutiva 17 Traços que levam à sobrevivência e à reprodução disseminam-se por toda a população; traços que levam à morte sem saída desaparecem. Se quisermos compreender por que uma característica particular é comum em uma determinada população, um bom início é ten- tarmos entender como ela poderia influir na sobrevivência e no sucesso reprodutivo dos indivíduos. Nesta seção, aplicamos o pensamento selecionista a um aspecto desconcertante das infecções de HIV: se não-tratadas, são quase sempre fatais. Entretanto, também há más notícias: os coquetéis de múltiplas drogas não curam a infecção do HIV. Permanece no corpo do paciente um estoque de genomas viáveis de HIV, oculto nos cromossomos dos linfócitos em repou- so e, possivelmente, em outros tecidos (Chun et al., 1997; Finzi et al., 1997; Wong et al., 1997b). Em conseqüência, quando os pacientes saem da HAART, suas cargas virais elevam-se rapidamente (Chun et al., 1999; Davey et al., 1999; Oxenius et al., 2002; Kaufmann et al., 2004). O esto- que oculto de HIV pode persistir durante décadas (Finzi et al., 1999). Os pesquisadores estão experimentando te- rapias que possam diminuí-lo, mas não está claro se al- gum dia será possível esgotar completamente esse estoque (Lehrman et al., 2005; Smith, 2005). Uma questão crucial é se, no estoque oculto, os vírions estão latentes (ou inativos) ou em replicação. Aparente- mente, em alguns pacientes, a HAART suprime toda a replicação, persistindo apenas os vírions latentes (ver, por exemplo, Finzi et al., 1997; Wong et al., 1997b; Zhang et al., 1999). Enquanto todos os vírions estiverem latentes, a população viral não evoluirá. No entanto, em outros pacientes, alguns vírions con- tinuam a se replicar (ver, por exemplo, Günthard et al., 2000; Ramratnam et al., 2000; Sharkey et al., 2000; Frost et al., 2001). A replicação contínua sugere que a popu- lação viral abrigou pelo menos alguma variação em sua resistência, antes que a terapia se iniciasse. Uma vez que os vírions parcialmente resistentes estão continuando a se reproduzir, existe uma oportunidade para o surgimento de mutações que concedam resistência adicional e, sob a seleção imposta pelas drogas, se acumulem nas linha- gens virais (Kristiansen et al., 2005). Diversas equipes de pesquisadores documentaram a evolução de linhagens de HIV que eram simultaneamente resistentes a múltiplas drogas, incluindo tanto os inibidores da transcriptase re- versa quanto os inibidores da protease (Wong et al., 1997a; Gallago et al., 2001; Grant et al., 2002; Evans et al., 2005; Markowitz et al., 2005). Um desapontamento a mais é que muitos pacientes que tomam coquetéis de múltiplas drogas sofrem efei- tos colaterais difíceis ou impossíveis de tolerar (Cohen, 2002a). Náuseas, anemia e uma variedade de transtornos metabólicos dificultam sua adesão ao tratamento prescrito (Sabundayo et al., 2006). Esses pacientes mantêm concen- trações mais baixas das drogas anti-retrovirais, aumentando a probabilidade de que os vírions parcialmente resistentes sejam capazes de se reproduzir e, por conseguinte, essas populações virais evoluam. O mais importante é que a alta atividade da HAART tem um prazo de término para a maioria dos pacientes (Chen et al., 2003; Mocroft et al., 2004). No estudo de Pa- lella e colaboradores – que produziu os dados dramáticos apresentados na Figura 1.15 – poucos regimes de HA- ART permaneceram eficazes por mais de três anos. Os tratamentos anti-HIV que sejam facilmente tolera- dos e suprimam permanentemente a replicação e a evolu- ção virais continuam alvo de pesquisas contínuas. (a) 40 30 20 10 0 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 20 40 60 80 100 M ortes por 100 pessoas por anoPo rc en ta ge m d e di as e m r eg im e de H A A RT d os p ac ie nt es 0 Doença do citomegalovírus Pneumonia por Pneumocystis carinii Complexo de Mycobacterium avium (b) 16 12 8 4 0 N úm er o de in fe cç õe s op or tu ni st as p or 1 00 pe ss oa s po r an o 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 Figura 1.15 Sucessos da terapia anti-retroviral altamente ativa. Em uma amostra de 1.800 pacientes, a introdução de coquetéis de múltiplas drogas levou a uma redução extraordinária (a) nas taxas de mortalidade pela AIDS e (b) na incidência de infecções secundárias características da AIDS. Segundo Palella et al. (2002). 18 Scott Freeman & Jon C. Herron Evolução míope* É evidente que morrer de AIDS é ruim para o hospedeiro. Se houver variação heredi- tária na resistência ao HIV e à AIDS entre os humanos, então podemos esperar que a resistência irá propagar-se para todas as populações humanas à medida que passarem as gerações. Examinaremos esse aspecto na Seção 1.4. O organismo que queremos focalizar aqui, entretanto, não é o hospedeiro; é o vírus. Matar o hospedeiro não é ruim também para o vírus? Afinal, quando o hospedeiro morre, os vírions que vivem no seu interior também morrem. A fim de aplicar o pensamento selecionista ao problema da letalidade do HIV, imagi- nemos que um ou poucos vírions invadiram um novo hospedeiro e estabeleceram uma infecção. Nesse nova população, os vírions estão se replicando rapidamente (ver parte su- perior da Figura 1.8 na página 10). Quando usam a transcriptase reversa para copiar seus genomas, geram muitas mutações. Assim, a população crescente está desenvolvendo varia- ção genética. Agora, o corpo do hospedeiro mobiliza sua resposta imune. O sistema imune ataca os vírions de HIV com anticorpos e células T citotóxicas (ver Figura 1.6 na página 8). Essas células eliminam grande parte dos vírions da população de HIV, mas nem todos. O motivo é que a população de HIV é geneticamente variável, e algumas de suas variantes são menos suscetíveis ao ataque do sistema imune. Os anticorpos e as células T citotóxicas reconhecem o HIV e as células por ele infecta- das ligando-se aos epítopos – pequenos fragmentos da proteína viral dispostos na super- fície do vírion ou da célula infectada. Os epítopos (também denominados determinantes antigênicos) são codificados pelos genesdo HIV, portanto mutações nesses genes podem alterá-los e capacitar o vírion mutante a escapar à detecção pelo arsenal de anticorpos e células T citotóxicas existente no hospedeiro. Quando a infecção progride da fase aguda para a crônica, a população de HIV já evoluiu. As variantes facilmente reconhecidas pela primeira onda do ataque imune desapareceram, persistindo as que são de difícil reconheci- mento (Price et al., 1997; Allen et al., 2000). A Figura 1.16 fornece um exemplo de uma mutação que ajuda os vírions de HIV a escapar da resposta imune de alguns pacientes. Tal mutação afeta o epítopo da proteína p24, que é um componente da cápsula que envolve o centro (core) do vírion de HIV. As células hospedeiras infectadas exibem esse epítopo em sua superfície juntamente com uma proteína do hospedeiro, denominada antígeno leucocitário humano, ou HLA (de human leucocyte antigen). Quando uma célula T citotóxica reconhece o epítopo estranho ao lado da própria proteína HLA, destrói a célula infectada. Em um estudo de vírions de mais de 300 pacientes, A. J. Leslie e colaboradores (2004) descobriram que, na maioria das linhagens de HIV, o terceiro aminoácido do epitopo é a treonina. No entanto, na maioria das linhagens de HIV de pacientes que contêm qualquer um de dois alelos específicos do loco HLA-B – B5801 ou B57 –, o terceiro aminoácido é a asparagina. Experimentos realizados em tubos de ensaio mostraram a causa disso. Leslie e colabo- radores coletaram linfócitos de um paciente possuidor do alelo B5801 e os expuseram a diferentes versões do epítopo da p24 (Figura 1.16a). As células do paciente reagiram muito mais fortemente com a versão que possuía treonina do que com a que tinha asparagina. Os linfócitos de pacientes que continham o alelo B57 mostraram um padrão semelhante. Leslie e colaboradores descobriram vários casos em que um indivíduo com o alelo B5801 ou com o B57 foi infectado pelo HIV de um hospedeiro que não possuía am- bos os alelos. Mediante amostragem periódica da população viral no novo hospedeiro, foi possível a esses pesquisadores documentar a evolução dessa população viral. No início da infecção, todos os vírions tinham treonina na terceira posição do epítopo da 400 800 1.200 1.600 0 10-9 10-7 10-5 TSTLQEQIAW TSNLQEQIAW Concentração do epitopo (M) R es po st a im un e Epitopo: Hospedeiro com B57 ou B5801 Mutação Eliminação pelas células T citotóxicas Mutação Transmissão Hospedeiro sem B57 e B5801 Tempo Tempo Eliminação pelas células T citotóxicas Transmissão Hospedeiro com o alelo HLA-B5801 (a) (b) Figura 1.16 Uma mutação de escape do HIV. (a) Esse gráfico mostra a força da resposta imune dos linfócitos de um paciente com HIV como uma função da concen- tração dos fragmentos protéicos (epítopos) em teste. Os dois fragmentos são variantes de uma pequena porção da proteína p24. Cada letra representa um amino- ácido: T = treonina, S = serina, N = asparagina, etc. As unidades da resposta imune correspondem ao número de células, por milhão, pro- duzindo interleucina gama. Segundo Leslie e colaboradores (2004). (b) Em hospedeiros que possuem o alelo HLA-B57 ou o HLA-B5801, a população de HIV evolui na direção de altas freqüências da variante N; em hospedeiros com outros ge- nótipos, evolui na direção de altas freqüências da variante T. * N. de R. T. No original, short-sighted evolution, no sentido de que a evolução por seleção natural, tal como no exem- plo aqui discutido, não antevê resultados futuros, mas apenas ajusta a população para as condições presentes. Análise Evolutiva 19 p24 (Figura 1.16b). Logo, contudo, os vírions mutantes apa- receram com asparagina nessa posição. Finalmente, os vírions com treonina foram extintos, permanecendo apenas os ví- rions com asparagina. Os pesquisadores também encontraram casos em que os indivíduos que não tinham os alelos B5801 e B57 se tornaram infectados pelo HIV de um hospedeiro com um desses alelos. A amostragem periódica desses pacien- tes mostrou que suas populações virais evoluíram em direção oposta. Uma vez que o sistema imune jamais reduz completamente a replicação do HIV, a população desse vírus, no interior de um hospedeiro, desenvolve-se durante toda a fase crônica da infec- ção. A população de HIV produz de 10 a 100 milhões de novos vírions por dia (Ho et al., 1995; Wei et al., 1995). Quando se re- plicam, esses vírions geram acidentalmente mutações que modi- ficam seus epítopos. Alguns dos vírions mutantes se reproduzem livremente, até que o sistema imune produza anticorpos e células T citotóxicas que reconheçam suas proteínas alteradas. Posterior- mente, esses mutantes desaparecem, e uma nova geração de ví- rions, com novos epítopos, ocupa automaticamente o seu lugar. Raj Shankarappa e colaboradores (1999), trabalhando no laboratório de James Mullins, registraram a evolução contínua da população de HIV durante a fase crônica da infecção em vários pacientes. Os dados de um desses pacientes aparecem na Figura 1.17. Inicialmente, olhe para a Figura 1.17a. Os re- feridos cientistas coletavam periodicamente os vírions de HIV do sangue do paciente e liam a seqüência de nucleotídeos de um segmento do gene da gp120. Essa proteína localiza-se no envelope externo do HIV, onde se inicia a fusão com as célu- las hospedeiras, mediante ligação à CD4 e à co-receptora (ver Figura 1.5 na página 7). O segmento gênico que os pesquisa- dores estudaram determina a co-receptora que o vírion usa e contém um epítopo marcado pelo sistema imune do hospe- deiro. A equipe anotou a seqüência nucleotídica da primeira amostra que obteve do paciente e comparou todas as amostras subseqüentes com essa. Durante os primeiros sete anos em que os pesquisadores acompanharam esse paciente, as seqüências foram de quase idênticas à seqüência de referência a diferentes em cerca de 8% de seus nucleotídeos. Agora, observe o que aconteceu entre o sexto e o oitavo ano. A diagonal parou de subir e se horizontalizou, ou seja, a taxa de evolução tornou-se extraordinariamente lenta. Por quê? A po- pulação viral parou de produzir a variação genética que abaste- ce a evolução por seleção natural? Provavelmente, não. A Figura 1.17b mostra que a concentração de vírions era alta nessa época. Com tantos vírions replicando-se, a população certamente con- tinuava a produzir genomas mutantes em uma taxa exacerbada. Então, mudou a maneira em que o genótipo viral influencia a sobrevivência e a reprodução? Provavelmente, sim. Até o séti- mo ano, era mais provável que os vírions cujos genótipos lhes proporcionavam novos epítopos sobrevivessem e proliferassem (ver Ross e Rodrigo, 2002); após o sétimo ano, essa vantagem aparentemente desapareceu. 0,025 0,050 0,075 0,100 0,000 D ist ân ci a ge né tic a 2 4 6 5 3 Anos decorridos desde que o paciente se tornou HIV-positivo 3TC d4T AZT 0 (a) Divergência da população fundadora (b) Carga viral (c) Contagens de células T Lo g do R N A v ira l p or m l 0 800 400 1.200 C él ul as T C D 4+ p or m m 3 Período de tempo durante o qual o paciente tomou drogas anti-retrovirais 2 4 6 8 10 12 Figura 1.17 Evolução da população de HIV no interior de um paciente. (a) Cada barra laranja representa um vírion amostrado do paciente durante o curso infeccioso; sua posição horizontal indica o momento da amostragem, e sua posição vertical, o quan- to é diferente geneticamente da primeira amostra. A linha preta mostra a tendência: os vírions amostrados posteriormente divergi- ram mais. (b) A carga viral do paciente aumentou no decorrer do tempo. (c) A contagem de células T CD4 do paciente continuou razoavelmente alta durantevários anos, depois caiu rapidamente. Segundo Shankarappa et al. (1999). 20 Scott Freeman & Jon C. Herron A Figura 1.17c mostra que, aproximadamente na época em que a taxa de evolução viral se tornou mais lenta, a contagem de células T CD4 do paciente diminuiu enorme- mente. No sexto ano, essa contagem era de 1.200 células por milímetro cúbico; em torno do oitavo ano, era menor do que 200. O sistema imune do paciente estava em colapso, significando que o corpo do paciente não mais produzia novos tipos de anticorpos e de células T citotóxicas. Isso libertava a população de HIV do agente seletivo que a forçava a evoluir. Não existia mais qualquer benefício em possuir novos epítopos. Em lugar disso, as linhagens mais capazes de replicação rápida simplesmente se propagavam, e as menos capazes tornavam-se raras (ver Williamson et al., 2005). A evolução da população de HIV parece contribuir para o colapso do sistema imune, no mínimo, de três modos. Primeiro, é a evolução contínua em direção a novos epítopos que possibilita à população viral manter-se bastante à frente da resposta imune, para continuar replicando-se em grande quantidade. Finalmente, conforme está descrito na Seção 1.1, a replicação contínua da população viral consome o suprimento de células T virgens e de memória, bem como destrói a capacidade do organismo para substituí-las. Segundo, a população viral, no interior da maioria dos hospedeiros, evolui em direção à replicação cada vez mais agressiva. Ryan Troyer e colaboradores (2005) obtiveram amostras seqüenciais de HIV de diversos pacientes não-tratados. Esses pesquisadores colocaram os vírions de cada amostra a crescer em linfócitos de um doador não-infectado. Adicionaram a cada placa de cultura uma das quatro linhagens-controle de HIV, contra a qual os vírions coletados do paciente teriam de competir. Nas placas, a linhagem viral que conseguiu re- plicar-se com maior eficiência tornou-se numericamente predominante. Os mencionados pesquisadores avaliaram a aptidão competitiva dos vírions das amostras dos pacientes com base em seu desempenho total contra as quatro linhagens-controle, mostrando os resultados na Figura 1.18. Cada cor representa as amostras seqüenciais de um determinado paciente. Dos oito casos, em sete a aptidão competitiva dos vírions do paciente aumentou constante- mente ao longo do tempo. Em relação a dois de seus pacientes, Troyer e colaboradores tam- bém testaram a competição de linhagens de amostras iniciais contra linhagens de amostras tardias. Essas últimas linhagens venceram sempre. Quanto mais tempo um paciente abrigar uma população de HIV, mais prejudiciais se tornam os vírions dessa população. Terceiro, em pelo menos 50% de todos os hospedeiros – e possivelmente muitos mais – evoluem linhagens de HIV que podem infectar células T virgens (Shankarappa et al., 1999; Moore et al., 2004). A capacidade de um vírion de HIV infectar um dado tipo de célula é determinada pela co-receptora que o vírion usa. Essa co-receptora, mostrada na Figura 1.5 na página 7, é a segunda das duas proteínas às quais o HIV se prende para se infiltrar em uma célula hospedeira. No início da maioria das infecções de HIV, a maior parte dos vírions da população de HIV usa como sua co-receptora a proteína CCR5, que é encontrada em células dendríticas, macrófagos e em células T citotóxicas, em repouso e reguladoras (ver Figura 1.6 na página 8). À medida que a infecção progride e a população de HIV evolui, freqüentemente surgem vírions que exploram uma co-receptora diferen- te, a proteína CXCR4, encontrada em células T virgens. Esses vírions, denominados X4, podem tornar-se mesmo numericamente predominantes. É o que aconteceu no paciente cuja infecção é detalhada na Figura 1.17. Os vírions X4 não existiam no início da infecção, tornaram-se fortemente predominantes entre o quinto e o oitavo ano e depois voltaram a rarear em torno do 11º ano. Uma vez que as células T virgens são as progenitoras das células T citotóxicas e de memó- ria, o surgimento de vírions que possam infectar e matar as células T virgens é uma má notícia para o hospedeiro. Hetty Blaak e colaboradores (2000) amostraram as populações virais de 16 pacientes com HIV para determinar se tais populações continham vírions X4. A seguir, durante o período decorrido entre um ano antes e um ano depois da data de amostragem, os pesquisadores calcularam a contagem média de células T auxiliares no sangue de pacientes com vírions X4, comparando-a com a dos pacientes sem esses vírions. Os respectivos resulta- dos são mostrados na Figura 1.19. As populações patogênicas evoluem no interior de hospedeiros individuais em resposta à seleção imposta pelo sistema imune desses hospedeiros. 0 40 80 120 0 2 4 6 Número de meses a partir do primeiro teste HIV-positivo A da pt ab ili da de c om pe tit iv a do s ví rio ns d o pa ci en te Figura 1.18 Na maioria dos hospedeiros, as populações de HIV evoluem em direção à repli- cação mais agressiva. Cada cor representa os vírions amostrados em série de um determinado hospedeiro. A aptidão competitiva reflete a capacidade de replicação dos vírions nos linfócitos de um doador não-infectado em presença de linhagens-controle. Dos oito pacientes, em sete a capacidade das populações de HIV para conti- nuarem competindo aumentou ao longo do tempo. Reproduzido de Troyer et al. (2005). A rápida evolução da população de HIV no interior de um hospedeiro acelera o colapso do seu sistema imune. Essa evolução é míope, porque também apressa a extinção da população de HIV. Análise Evolutiva 21 As contagens médias de células T nos pacientes sem linhagens virais X4 permaneceram razoavelmente constantes ao longo do tempo, ao passo que nos pacientes com linhagens X4 essas contagens diminuíram. Quando surgem vírions que debilitam gradualmente a capacidade do sistema imune para reabastecer seu estoque de células T, aparentemente esses vírions aceleram a falência do sistema imune. A evolução da população de HIV em um hospedeiro é míope (Levin e Bull, 1994; Le- vin, 1996). Os vírions não visam ao futuro, nem prevêem que, à medida que sua população evoluir, acabarão basicamente matando seu hospedeiro e desse modo causarão a própria extinção. Os vírions não podem visar ao futuro, pois são apenas diminutas máquinas mo- leculares imprevidentes. A evolução por seleção natural também não pode mirar o futuro, pois é somente um processo matemático que ocorre automaticamente. Em conseqüência, a população de HIV, em qualquer hospedeiro, evolui, em última análise, na direção de sua auto-extinção. A natureza efêmera da evolução do HIV é especialmente clara no caso dos vírions X4. As comparações dos vírions presentes nos hospedeiros infectados consecutivamente mostram que as linhagens de HIV que usam a co-receptora CXCR4 não são transmitidas a novos hospedeiros (Zhu et al., 1993; Clevestig et al., 2005). Os patógenos que não con- seguem contagiar novos hospedeiros não sobrevivem por muito tempo. Mesmo que não tomassem parte na destruição dos sistemas imunes de seus hospedeiros, as linhagens X4 estariam destinadas com certeza à extinção. Resumindo, o pensamento selecionista leva-nos à conclusão de que a infecção do HIV é fatal, pelo menos parcialmente, devido à evolução de curto prazo da população viral no interior do hospedeiro. As linhagens letais de HIV tornam-se aí predominantes, porque gozam de uma vantagem efêmera em sobrevivência e reprodução. Uma correlação entre letalidade e transmissão? A evolução de curto prazo talvez não seja a única razão da fatalidade das infecções do HIV. A evidência para essa afirmativa é a existência de linhagens raras de HIV que matam seus hospedeiros mais lentamente do que as linhagens comuns, se é que os
Compartilhar