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Curso de Especialização em Direito Público A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA NO CONTEXTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO __________________________________________Fernando José Gonçalves Acunha Introdução A Administração Pública brasileira contemporânea é conformada, em seus pilares básicos, pela Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Qualquer estudo que tenha por missão abordar, ainda que tangencialmente, a estruturação administrativa do Brasil, deverá valer-se, fundamentalmente, da Constituição. Mas o estudo da Constituição não é, e nem pode ser, a-histórico. As opções demonstradas pelo constituinte (originário e reformador, este de importância imensa para a feição contemporânea da Administração Pública no Brasil, como veremos) são fruto de um acúmulo de acontecimentos históricos e de uma sucessão de institutos jurídicos. O exame que se propõe, portanto, passa, primordialmente, por entender a Administração Pública no quadro do Estado e do constitucionalismo da modernidade, para que, então, torne-se possível uma abordagem coerente que traga luzes adequadas sobre nosso perfil administrativo- constitucional. A Constituição Federal brasileira, notoriamente dirigente – pois não se limita a estruturar o Estado e a Administração Pública, ou mesmo a indicar caminhos e perfilhar finalidades a serem alcançadas, já que, de certa forma, conduz e disciplina a atuação estatal nas mais diversas esferas da vida em sociedade – e garantista – já que traz uma série de enunciados que visam a disciplinar e outorgar aos indivíduos direitos de variados matizes –, insere-se num contexto paradigmático próprio, do Estado Democrático de Direito, o que lhe permite traçar o perfil de uma modalidade específica de Estado e de uma vertente bastante bem determinada de Administração Pública. Por isso é que este estudo será iniciado pela abordagem da evolução constitucional do Estado moderno, forma de organização política da sociedade intrinsecamente relacionada com a existência de uma Constituição (ao menos no sentido moderno do termo). O estudo do significado do constitucionalismo e dos sucessivos paradigmas constitucionais do Estado moderno será importante para que se possa encarar, num segundo passo, as distintas feições administrativas do aparato estatal, desde seu período absenteísta inicial, até a recente transformação (ainda em curso) de um Estado produtor de bens e serviços em um Estado regulador da economia e da sociedade. Traçado esse perfil dúplice do Estado e de suas relações com a sociedade e com a dinâmica da economia, num terceiro passo, o foco passará a recair sobre a atividade administrativa e sobre suas relações com as outras funções do Estado, avaliando, com uma perspectiva contemporânea, as intrincadas conexões que o princípio da separação de poderes (um dos pilares do constitucionalismo moderno) permite estabelecer entre as atividades administrativa, legislativa e jurisdicional. Será a oportunidade de ver, em relação às duas primeiras, a complexa tessitura de relações a que o princípio da legalidade (em profunda ressignificação, marcantemente pela centralidade que a Constituição ocupa no paradigma do 2 Estado Democrático de Direito) dá ensejo e a problemática advinda de institutos muito atuais, como a “regulação” econômica e social, em países em que o princípio da legalidade ocupa foro constitucional, como o Brasil. Em relação à função jurisdicional, será o tempo de evidenciar a centralidade do papel que a atuação dos juízes possui para a democracia, em virtude do destacado papel que os princípios jurídicos – dotados de mesma característica normativa em relação às regras – ocupam, atualmente, no quadro jurídico-constitucional brasileiro. Na sequência, será o tempo de avaliar aquilo que o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) chama de as “três formas de Administração Pública”, quais sejam: a Administração Pública Patrimonialista, a Administração Pública Burocrática e a Administração Pública Gerencial. Nesse ponto da exposição, o objetivo será a apresentação das distintas estruturações da Administração Pública e seus princípios informadores básicos, relacionando-as com os paradigmas constitucionais do Estado apresentados no primeiro tópico da exposição e com o que foi chamado, acima, de feições administrativas do Estado, expostas no segundo tópico do texto. O quinto passo será centrado de forma mais específica sobre o modelo de organização administrativa que a Constituição Federal de 1988 prescreveu para o Brasil. Não serão expostas minúcias do regime jurídico-administrativo ou dos entes, entidades e órgãos prescritos pela CF/1988, visto que a exposição visará a explorar as grandes linhas da estrutura da Administração Pública no Brasil, marcantemente em relação às especificidades que a ordenação administrativa possui numa Federação de vários níveis, como é o caso do nosso país. Pretende-se, ao final do texto, que o leitor possa compreender o quadro contemporâneo das relações entre Direito, Estado e Administração Pública, inserindo-se adequadamente no momento de intensas modificações paradigmáticas que permitam a (re)construção permanente dos institutos jurídicos ligados ao Direito Constitucional e ao Direito Administrativo. 1 Os paradigmas constitucionais do Estado moderno Como já dito acima, a relação entre Constituição e Administração Pública, no Brasil, é inquestionável. É a Constituição, entre nós, quem estabelece todas as bases do regime jurídico-administrativo, prescrevendo, ainda, as normas fundamentais das relações que a Administração manterá com a sociedade, com o mercado e assim por diante. Por isso, o passo inicial a ser dado está no campo constitucional, destinando-se a expor e a entender o período em que vivemos. Conquanto não seja rara a alusão a “Estados” em momentos históricos tão díspares quanto a Antiguidade Clássica, a Europa Medieval e a Idade Moderna, adotar-se-á, a concepção de que o Estado é uma específica forma de estruturação político-jurídica da sociedade que surge na Modernidade ocidental europeia (o marco de seu surgimento é a Paz de Westfália, de 1648), período e local que consagram os pressupostos necessários à configuração da figura do Estado como é entendido hoje. 3 Canotilho (2003, p. 89-90) diz que o Estado é uma forma histórica de estruturação do poder marcada pela existência de um poder político de comando (soberania), dirigido a um povo, num determinado território. É o mesmo autor quem refere que a organização desse Estado, ao qualificar-se como constitucional, tem como característica central constituir-se numa “tecnologia política de equilíbrio político-social através da qual se combateram dois „arbítrios‟ ligados a modelos anteriores, a saber: a autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais” (CANOTILHO, 2003, p. 90). Universalmente, os Estados contemporâneos organizam-se sob a forma constitucional. E isso, sem qualquer sombra de dúvidas, corresponde a uma vitória significativa de um movimento teórico chamado de constitucionalismo, que, ainda segundo Canotilho (2003, p. 51), “é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”, explicando que, assim, “o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos”. Constituição, Direito Constitucional e constitucionalismo, portanto, são três aspectos distintos que se voltam ao mesmo fenômeno. O constitucionalismo é a postura teórico- ideológica que afirma a organização constitucional comoa estruturação legítima, por excelência, do poder político, pregando a existência de um corpo de direitos e garantias fundamentais e de limites ao exercício do poder político como formas de se construir um Estado devidamente organizado. A Constituição é, exatamente, o documento que instrumentaliza, em cada particularidade nacional, essa conformação política, ao passo que o Direito Constitucional, como ramo do Direito, debruça-se sobre a matéria jurídica trazida pelo sistema constitucional, que é o seu objeto de estudo por excelência. Mas o Estado moderno não é uno, ou melhor, não é uma estrutura estática que tenha se mantido idêntica nos quase trezentos anos da Modernidade ocidental. A sucessão não ordenada de eventos históricos, a evolução do pensamento social, os “inputs” advindos de outros campos do conhecimento sobre o direito e a política, enfim, uma infinidade de razões distintas deu ensejo a um encadeamento de diferentes “paradigmas” de Estado constitucional. Um paradigma é um “pano de fundo não temático” que influencia, de forma direta, a compreensão que todos os atores sociais têm do direito numa determinada época (HABERMAS, 2003b, p. 131). Corresponde a um acúmulo de conhecimentos, pré- compreensões e entendimentos que auxilia a interpretação do direito e a própria identificação de problemas e questões a serem juridicamente tratadas. Martins (2008b, p. 7-8), explica a noção de paradigma na teoria habermasiana da seguinte forma: No entanto, a noção de paradigma possui outra acepção, mais restrita, embora não incompatível com os atributos do conceito delineado por Kuhn, que corresponde a um “pano de fundo”, ou seja, a uma série de determinações, preestabelecidas e não discutidas: um ponto de partida para os discursos jurídicos. Como constata Habermas, os juristas não somente interpretam a legislação vigente, mas também peroram sobre uma “pré-compreensão usualmente dominante da sociedade contemporânea”. Em consequência disso, a própria interpretação do direito é considerada uma resposta aos “desafios de uma situação social percebida de uma determinada maneira” (1997a, p. 123). Essa percepção específica e determinada de uma realidade social é ponto de partida para as interpretações das normas jurídicas, uma “pré-compreensão” 4 que perpassa o “trabalho rotineiro” de administração da justiça e da legislação. Como assinala Habermas, esse comportamento permite o diagnóstico de problemas, fornecendo parâmetros para a concretização do direito, em particular dos direitos fundamentais (1997a, p. 181). Os paradigmas contêm ideologias ou visões de mundo que fornecem uma série de pressupostos necessários à interpretação concreta de direitos. Por exemplo, conceitos jurídicos como liberdade e igualdade são extremamente dependentes dessa discussão paradigmática. As diferentes interpretações que liberais e socialistas chegaram o demonstra. A sucessão de paradigmas constitucionais do Estado moderno significa, assim, a sucessão de visões, interpretações e pré-compreensões que influencia a concepção que os atores sociais têm da própria Constituição e dos textos jurídicos a serem interpretados. Temas como a legalidade ou o conteúdo da igualdade, ambos de presença marcante em todos os paradigmas comentados, passam por interpretações e reinterpretações capazes de atualizar e modificar o seu sentido, a ponto de significar, hoje, algo completamente distinto daquilo que significaram antes. Passemos, então, a examinar os três distintos paradigmas constitucionais do Estado moderno, que são (a) o Estado Liberal, (b) o Estado Social, (c) o Estado Democrático de Direito. O constitucionalismo nasce liberal. Fruto de uma época em que os ideais que norteavam a luta revolucionária eram empunhados contra o Ancien Régime, com o objetivo de legitimar juridicamente (embora não, ainda, democraticamente) o exercício do poder, os movimentos constitucionais pretendiam, basicamente, a criação de uma ordem jurídico- institucional que garantisse a limitação do poder político e a liberdade individual de cada cidadão em face do Estado. Miranda (2002) trata a questão da seguinte forma: O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado Liberal, assente na idéia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade) (p. 47). Assim, desenvolve-se a luta pela consagração de princípios como a legalidade e a igualdade formal, pela proteção da propriedade privada e pela separação de poderes, institutos aos quais cumpriria o papel de simbolizar um marco de ruptura contra a ordem opressora, vencida pelos ideais revolucionários. Nesse período, como decorrência própria da desconfiança burguesa contra o Estado, o Direito Administrativo é visto como um direito excepcional, um direito defensivo (da sociedade em face do Estado), diferente do direito “comum” (direito privado), ao qual seria dado regulamentar as relações privadas. Ao direito excepcional caberia, apenas, a regulação de situações sui generis, sendo grande, exatamente por isso, como leciona Mello (2003, p. 37), o interesse dos doutrinadores franceses oitocentistas em encontrar critérios que permitissem segurança na aplicação do Direito Administrativo, identificando em quais situações específicas haveria lastro para sua incidência. A consagração de princípios como a separação de poderes, ou o estabelecimento de direitos de defesa e liberdade dos cidadãos, era uma imposição política da nova classe hegemônica, e deveria ser feita em bases que não pudessem sofrer contestações. É nesse 5 espírito que se concebe a sua inscrição em um documento formal, escrito e rígido, que trouxesse, simultaneamente, a limitação do poder político e os princípios sobre os quais haveria de se fundar a sociedade. Esse documento jurídico é a Constituição, que, dessa maneira, teria o papel fundamental de conformar o poder político e garantir a ampla liberdade da sociedade em face de um Estado limitado em suas possibilidades de atuação. Nesse sentido, a construção do modelo estatal e constitucional liberal deu-se em decorrência da vitoriosa campanha revolucionária burguesa no fim do século XVIII e no início do século XIX, e assentou-se em bases bastante estáveis por mais de um século. O período liberal apresenta certo consenso a respeito de quais seriam as matérias a serem alçadas ao nível constitucional. A modalidade típica de Constituição liberal consagrava a positivação das matérias relativas à disciplina e à limitação do político na sociedade, e à enunciação dos direitos individuais. A atividade administrativa, vista com desconfiança pelos particulares, passa longe de ser incentivada ou de ter mecanismos jurídicos à disposição; tratava-se, antes, de cerceá-la, proibi-la, ou, pelo menos, limitá-la, tanto quanto possível. Para Martins (2008b, p. 9), “as sociedades liberais do século XIX procuraram restringir, legalmente (norma geral e abstrata), a ação do Estado de maneira a garantir a liberdade (autonomia) individual de seus cidadãos, especialmente aqueles detentores de posses, tidos como os representantes da „melhor sociedade‟”. Conteúdo único concebido para a seara constitucional – o que contribuía para a brevidade e relativa simplicidade do texto das Constituições de então –, o consenso em torno desse pensamento contribuiu de forma intensa para a perenidade e a estabilidade das Constituições do período liberal. O período liberal também vai tratar da consagração dos direitos fundamentais. Com efeito, as Declarações de Direitos, marcadas pelo seu conteúdo absolutamente individuale privatista – espelho mesmo de uma concepção individualista burguesa vitoriosa pela via revolucionária – consagraram direitos fundamentais atinentes ao exercício das liberdades individuais dos cidadãos e à garantia de sua propriedade. Eram direitos de abstenção, oponíveis ao Poder Público, direitos negativos, de primeira geração, que marcavam o desejo da nova classe dominante de retirar completamente a influência do Estado da vida em sociedade, justamente pelo temor da concentração e da opressão no exercício do poder político e de sua demasiada interferência no campo das relações privadas. A igualdade, por exemplo, é entendida sob perspectiva formal, igualdade de todos perante a lei, em detrimento de quaisquer considerações materiais de desigualdade fática dos indivíduos, justamente porque o direito então buscado pretendia, apenas, garantir uma ordem única e geral, contrária aos direitos estamentais medievais. O Direito Administrativo, e a Administração Pública em si, não escapam a essa vertente ideológica. Mello (2003) analisa o nascimento da submissão do Estado ao Direito nos seguintes termos: O advento do Estado de Direito promoveu profunda subversão nestas idéias políticas, que eram juridicamente aceitas. Ao firmar a submissão do Estado, isto é, do Poder ao Direito e ao regular a ação dos governantes nas relações com os administrados, fundando assim o Direito Administrativo, este último veio trazer, em antítese ao período histórico precedente – o do Estado de 6 Polícia – justamente a disciplina do Poder, sua contenção e a inauguração dos direitos dos, já agora, administrados – não mais súditos (p. 40). As Constituições que emergem no liberalismo consagram, pode-se dizer sem exagero, uma sociedade “despolitizada”, limitando completamente a atuação estatal às funções clássicas de garantia da ordem social, defesa externa e administração da justiça, deixando à livre organização da sociedade (e do mercado) a regulação e a ordenação de todos os demais campos da vida social, inclusive, e preponderantemente, os aspectos materiais econômicos da vida dos indivíduos 1 . No que se refere ao princípio da legalidade e à separação de poderes, Di Pietro (2009, p. 30-31) assevera que o principal objetivo era submeter a Administração Pública à lei, expressão da vontade do Parlamento, único legitimado a estipular disposições com conteúdo normativo vinculante. A atividade normativa da Administração inexistia completamente, vez que cabia ao Executivo e ao Judiciário a simples tarefa de aplicar as leis, não de ditá-las. A legalidade, é interessante notar, era entendida no sentido da doutrina da vinculação negativa da Administração. Limitava completamente a atuação do Poder Público em relação aos cidadãos, protegendo, de forma quase absoluta, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, colocando-se, todavia, fora do espectro da lei, no tocante à discricionariedade administrativa, tudo aquilo que não se referisse aos direitos fundamentais dos indivíduos (DI PIETRO, 2009, p. 30-31). Entretanto, como já dito, a sucessão de acontecimentos históricos conduziu ao que se poderia chamar de uma saturação do modelo absenteísta do Estado na regulação da sociedade e na promoção do bem-estar dos indivíduos. Algumas razões básicas podem ser apontadas como motivadoras do colapso do sistema administrativo-constitucional liberal. A incapacidade estatal de dar respostas consistentes aos crescentes reclames sociais, no tradicional modelo de isolamento (aqui o binômio rígido Estado x Sociedade do período liberal clássico), constituiu-se em uma razão que justificava a opção pela mudança no sistema. O cenário de crise econômica que se desenhava desde o final da 1ª Guerra Mundial, com radical aprofundamento a partir da Quebra da Bolsa de Nova York de 1929 (cujos efeitos foram sentidos por décadas em todas as regiões do mundo), impunha, segundo se passou a entender, na época, a atuação dos Estados nacionais para controlar o caos socioeconômico do período. Tais respostas não poderiam ser dadas por Estados débeis, acostumados a épocas de não intervenção e abstencionismo, com limitados recursos jurídicos para intervir no campo que disseminava o descontentamento nessa época, a economia. O momento é ilustrado pela definição de Hobsbawm (2003), que, em trecho de sua obra sobre o século XX, coloca a passagem do Estado Liberal para o Estado Social nos seguintes termos: 1 “Ao Estado Liberal, sempre juridicamente controlado, não cabe exercer mais do que as seguintes funções: manter a ordem interna e conduzir a política exterior (ou seja, o fim do Estado nesse caso parece ser unicamente o de promover e manter a segurança necessária para que os indivíduos possam livremente desenvolver as suas potencialidades). Tudo o mais cabe à sociedade civil, dinamizada pela energia da multiplicidade de indivíduos livres e iguais” (CLÈVE, 2000, p. 35). 7 Em 1933, não era fácil acreditar, por exemplo, que onde a demanda de consumo, e portanto o consumo, caíssem em depressão, a taxa de juros cairia também o necessário para estimular o investimento, para que a demanda de investimento preenchesse o buraco deixado pela menor demanda de consumo. Com o desemprego nas alturas, não parecia plausível acreditar (como aparentemente acreditava o Tesouro britânico) que obras públicas não aumentariam o emprego, porque o dinheiro gasto nelas seria simplesmente desviado do setor privado, que de outro modo geraria o mesmo volume de empregos. Economistas que aconselhavam que se deixasse a economia em paz, governos cujos primeiros instintos, além de proteger o padrão ouro com políticas deflacionárias, era apegar-se à ortodoxia financeira, aos equilíbrios de orçamento e à redução de despesas, visivelmente não tornavam melhor a situação. Na verdade, à medida que continuava a Depressão, argumentava-se com considerável vigor, entre outros por J. M. Keynes – que em conseqüência disso se tornou o mais influente dos economistas dos quarenta anos seguintes –, que tais governos estavam piorando a Depressão. Aqueles entre nós que viveram os anos da Grande Depressão ainda acham impossível compreender como as ortodoxias do puro mercado livre, na época tão completamente desacreditadas, mais uma vez vieram a presidir um período global de Depressão em fins da década de 1980 e na de 1990, que, mais uma vez, não puderam entender nem resolver. Mesmo assim, esse estranho fenômeno deve lembrar-nos da grande característica da história que ele exemplifica: a incrível memória curta dos economistas teóricos e práticos. Também nos dá uma vívida ilustração da necessidade, para a sociedade, dos historiadores, que são os memorialistas profissionais do que seus colegas- cidadãos desejam esquecer (p. 107). Pretendia-se a mudança de perfil do Estado, que deveria deixar de se mostrar distante da esfera privada de relações jurídicas, sociais e econômicas, para passar a intervir ativamente na “sociedade civil”. E isso se fez com a adoção de uma postura completamente distinta do período precedente, seja sob o ponto de vista da economia (com a preponderância de um Estado produtor de bens e serviços, foco principal do segundo tópico deste texto), seja em termos de sua relação com a sociedade (os indivíduos passam a ser os “clientes” do Estado), seja, por fim, em termos da Administração Pública de então. Nessa linha, medidas legais e administrativas, como o controle estatal do fluxo cambial e do sistema financeiro, a presença do Estado na produção econômica (fundamentalmente na feição de agente produtor), o controle forte sobre o sistema de trabalho e das relações de empregoem geral, e a promoção e garantia de direitos fundamentais sociais (expressão que, mais tecnicamente, quer significar a enunciação e reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais, os conhecidos direitos de segunda geração, ou direitos positivos), significaram uma importante mudança no quadro de atribuições do Poder Público e de sua nova relação, agora não mais de afastamento, senão que de estreita proximidade com a sociedade civil. A mudança gradativa do Estado significou, como elemento lógico, uma mudança no perfil das Constituições então editadas, às quais caberia o papel de definir, em termos jurídicos, a configuração do novo tipo de sociedade política que se vinha desenhando. Passou- se a incorporar ao texto constitucional a regulação da intervenção e da direção estatal sobre a economia, e, gradativamente, a enunciação dos direitos fundamentais para além de sua vertente individual e política. 8 Sobre esse aspecto, é bom dizer que os “novos” direitos fundamentais não tornaram, em absoluto, os direitos individuais e políticos – os direitos do status libertatis, de primeira geração – menos importantes ou desatualizados2. Ao invés disso, serviu, por um lado, para ressignificá-los, dando nova dimensão a expressões como a “igualdade”; por outro lado, também foi útil para completar o quadro de enunciação normativo-constitucional dos direitos básicos do homem, agora já não mais restritos aos âmbitos tradicionalmente reconhecidos no século XIX e início do século XX. No que se refere à Administração Pública, a passagem para o Estado Social impactou decisivamente seu quadro de atribuições e os mecanismos jurídicos postos à sua disposição. Significou, inicialmente, a crise da separação estrita de poderes concebida no período liberal. Martins (2008b, p. 12) anota que a mudança para o Estado Social “abala o conceito de separação dos poderes na medida em que as tarefas sociais desenvolvidas pelo Executivo, bem como a ampliação do campo de apreciação jurisdicional, transpuseram as clássicas distinções entre os poderes”. Especificamente em relação ao Executivo, “mudança não somente reforçou a autonomia executiva e seu poder discricionário (já presentes na forma liberal de Estado), mas também legitimou a atividade legislativa do Poder Executivo, admitida inicialmente como exceção passando à regra”. Ainda que seja um ponto a ser explorado no segundo momento do texto, não é demais lembrar que, justamente no período do Estado Social, o Poder Público torna-se o promotor, por excelência, da “justiça social”, intervindo diretamente na economia no papel de produtor de bens e serviços. O Estado passa a ter “clientes” de seus produtos e atividades, definidas pelos organismos burocráticos sem a participação dos cidadãos 3 . O Estado Social, assim, é marcado pela inflação normativa advinda da Administração, pela enorme concentração de tarefas no Estado, pelas relações de clientelismo entre os indivíduos e o Poder Público e pela consagração de novos direitos que não se voltavam apenas ao aspecto formal dos cidadãos. Um Estado ativo, presente, produtor e concentrado nos meios materiais de vida da sociedade. Di Pietro (2009) assim se manifesta quanto ao Estado Social: Nesse período o acréscimo das funções a cargo do Estado trouxe como conseqüência o crescimento do aparelhamento administrativo e o fortalecimento do Poder Executivo, por ser este que assumiu as novas atribuições; isto representou sérios golpes à separação de poderes, especialmente em decorrência da função normativa que foi atribuída ao Poder Executivo, abrangendo, conforme o sistema jurídico, o poder de baixar regulamento autônomo, ou medida provisória, ou decreto-lei, ou ainda o poder de participar no processo de elaboração das leis. Além disso, 2 “Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de primeira (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, minimamente, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material, eqüitativa” (CARVALHO NETTO, 2004, p. 35). 3 “A prática do clientelismo, bem como o grande custo da manutenção de um imenso aparato técnico-burocrático (em detrimento, muitas vezes, da atividade para a qual fora criado) provocaram a crise do Estado social nos anos setenta do último século. A busca da igualdade substantiva por meio da garantia de direitos sociais prestacionais levou a uma autonomia da administração estatal frente aos cidadãos que passaram, então, a meros „clientes‟ de uma administração provedora de „bens‟” (MARTINS, 2008b, p. 10-11). 9 foram criados mecanismos de dependência administrativa e financeira do Legislativo e Judiciário em relação ao Executivo. Também a liberdade individual foi seriamente afetada pela nova concepção do Estado, tendo em vista a crescente intervenção, ora por meio de limitações ao exercício de direitos individuais, ora pela atuação direta no setor da atividade privada. Cresceu a intervenção no domínio econômico, cresceu o poder de polícia, que passou a atuar em todas as áreas da vida social e econômica, cresceu o rol de atividades assumidas pelo Estado como serviço público (p. 31-32). Com efeito, o Estado Social, a Administração Pública por ele conformada e as Constituições elaboradas no período de sua vigência significaram uma resposta à crise do liberalismo. Mas as várias atribuições materiais que passaram a fazer parte do rol de competências administrativas (como a prestação de uma ampla gama de serviços públicos e a exploração direta de atividade econômica em sentido estrito), assim como a característica unilateral e não participativa da formação do direito do período, conduziram à crise que o vitimou. Podemos falar, aqui, de uma crise de múltiplas feições, manifestada nos termos de uma crise fiscal, de uma crise de legitimação e de uma crise das categorias jurídicas do Estado Social. A crise fiscal, ou crise de financiamento do Estado Social, é aquela que evidenciará a incapacidade de o Estado continuar a atuar diretamente na economia com a função de prover bens e serviços para a sociedade. Será a crise básica que marcará a passagem de um Estado de caráter produtor (intervenção direta) para um Estado de caráter regulador (intervenção indireta). Quanto à crise de legitimação, problematiza-se a estruturação clientelista e unilateral das relações entre o Estado e a sociedade. Justen Filho (2002) assim se posiciona quanto à característica das relações entre Estado e indivíduos: A atribuição de incontáveis funções à estrutura estatal produzia não apenas a redução da autonomia privada, mas também da responsabilidade moral do indivíduo. É que a visão ampliativa das funções do Estado gerava concepções paternalistas que desoneravam os indivíduos. Significava a irrelevância da participação do particular para promover o princípio da dignidade da pessoa humana e os demais valores fundamentais. Aludir a solidariedade humana tornou-se quase despropositado, em face da ilusão de que algum órgão estatal se encarregaria de atender às necessidades alheias. Sob um certo ângulo, a afirmação de um Estado de Bem-Estar Social trazia consigo uma grande comodidade filosófica: a transplantação da responsabilidade socialdo indivíduo para o Estado. (...) A realidade evidenciou a falsidade da doce ilusão de que a supressão da autonomia individual resultaria na eliminação da pobreza e das desigualdades regionais. A revolução capaz de mudar o panorama de nossa realidade não se faz apenas ou preponderantemente em nível estatal, mas depende da participação ativa dos indivíduos e das organizações não estatais (p. 11). 10 A visão do Estado Social era, de certa forma, uma visão paternalista. Diante das demandas, apresentava respostas prontas por meio da consagração jurídica de direitos e prestações estatais. Não estava em construção, mas, somente, em aceitação. Dessa forma, no Estado Democrático de Direito, busca-se, de um lado, o afastamento da construção de uma esfera de relações de igualdade meramente formal, mas desatenta das condições materiais de vida do indivíduo (reação ao liberalismo); de outro, enfrenta-se uma perspectiva de Administração Pública que, sob o rótulo de provedora de bens, retira dos cidadãos a capacidade de decisão autônoma (reação ao Estado Social) 4 . Habermas (2003b) retrata a visão limitada que ambos os paradigmas apresentam nesse sentido, enfatizando a necessidade de se pensarem as autonomias pública e privada como reciprocamente necessárias e constitutivas: Os dois paradigmas compartilham a imagem produtivista de uma sociedade econômica apoiada no capitalismo industrial, cujo funcionamento, segundo uma das interpretações, preenche a expectativa de justiça social através da defesa autônoma e privada de interesses próprios; segundo a outra interpretação, isso acarreta a destruição da expectativa de justiça social. Os dois paradigmas concentram-se nas implicações normativas do funcionamento social de um status negativo protegido pelo direito e procuram saber se é suficiente garantir a autonomia privada através de direitos à liberdade ou se a emergência ou surgimento da autonomia privada tem que ser assegurada através da garantia de prestações sociais. Em ambos os casos, perde-se de vista o nexo interno que existe entre autonomia privada e autonomia do cidadão – e, com isso, o sentido democrático da auto- organização de uma comunidade jurídica. Entretanto, a disputa entre os dois paradigmas, que ainda perdura, limita-se à determinação dos pressupostos fáticos para o status de pessoas do direito em seu papel de destinatárias da ordem jurídica. Todavia, elas somente serão autônomas na medida em que puderem se entender também como autoras do direito, ao qual se submetem enquanto destinatárias (p. 145-146). O Estado Democrático de Direito aparece, fundamentalmente, como uma resposta concomitante à frieza liberal em relação às situações concretas de vida dos indivíduos e ao déficit democrático do Estado Social, relacionando, umbilicalmente, a autonomia privada e a autonomia pública dos indivíduos, demonstrando que apenas o respeito à esfera de liberdade individual é que pode habilitar os cidadãos a exercitarem seus direitos de participação na comunidade jurídica, como coautores que, exatamente por interferirem no processo de produção do direito, enxergam-no como legítimo, quando na condição de seus destinatários. Galuppo (2003) também se manifesta no seguinte sentido: Ao afirmarmos tratar-se dos direitos que os cidadãos precisam reconhecer uns aos outros, e não que o Estado precisa lhes atribuir, tocamos no próprio núcleo do Estado Democrático de Direito, que, ao contrário do Estado Liberal e do Estado Social, não possui uma regra pronta e acabada para a legitimidade de suas normas, mas reconhece que a democracia não é um estado, mas um processo que só ocorre pela interpenetração entre a 4 Para Di Pietro (2006), “procura-se substituir a idéia de Estado Legal, puramente formalista, por um Estado de Direito vinculado aos ideais de justiça. Pretende-se submeter o Estado ao Direito e não à lei em sentido apenas formal. Daí hoje falar em Estado Democrático de Direito, que compreende o aspecto da participação do cidadão (Estado Democrático) e o da justiça material (Estado de Direito)” (p. 32-33). 11 autonomia privada e a autonomia pública que se manifesta na sociedade civil, guardiã de sua legitimidade (p. 236-237). Martins (2008b, p. 14) refere que essa participação dos cidadãos dá-se sob formas multifacetadas, seja por intermédio de uma opinião pública que visa a influenciar o processo político decisório, seja pela participação por meio de procedimentos jurisdicionais e administrativos nos quais os indivíduos veiculem suas pretensões, reivindicações e interesses. Assim, “a gênese dos direitos é explicada pela participação comunicativa dos cidadãos, com iguais liberdades subjetivas na formação do direito que, por sua vez, deverá reservar espaço para um exercício discursivo de autonomia política” (MARTINS, 2008b, p. 15). A crise afeta, também, o direito entendido até o Estado Social. Apesar de a emergência normativa da teoria dos princípios ter se iniciado com o período precedente, é no Estado Democrático de Direito que a face complexa e simultaneamente constituída por regras e princípios do direito aparece. Dito de outro modo, o direito concebido no Estado Democrático é um direito constitucionalizado, um ordenamento complexo, marcado pela presença de regras e princípios como duas espécies normativas igualmente aplicáveis à vida dos indivíduos e do Estado 5 . Regla (2007, p. 667-670) chega a falar numa mudança paradigmática, em que o direito deixa de se vincular ao “império da lei” do positivismo em direção à “constitucionalização da ordem jurídica” do pós-positivismo, afirmando ser absolutamente necessário falar-se numa estrutura que congregue, ademais de regras, princípios jurídicos. Sobre o tema, a exposição de Carvalho Netto (2004) é relevante: Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto. Para tanto, é fundamental que o decisor saiba que a própria composição estrutural do ordenamento jurídico é mais complexa que a de um mero conjunto hierarquizado de regras, em que acreditava o positivismo jurídico: ordenamento de regras, ou seja, de normas aplicáveis à maneira do tudo ou nada, porque capazes de regular as suas próprias condições de aplicação na medida em que portadoras daquela estrutura descrita por Kelsen como a estrutura mesma da norma jurídica: “Se A, deve ser B.” Ora, os princípios são também normas jurídicas, muito embora não apresentem essa estrutura. Operam ativamente no ordenamento ao condicionarem a leitura das regras, suas contextualizações e inter-relações, e ao possibilitarem a integração construtiva da decisão adequada de um hard case. Os princípios, ao 5 Apesar de não ser tema de preocupação central do texto, cabe, aqui, uma referência aos perigos de se confundirem princípios e valores, algo bastante recorrente na teoria constitucional brasileira, de tradição fortemente amparada na teoria axiológica alemã de autores como Robert Alexy. É Habermas, entretanto, em sua discussão com Alexy, quem adverte os riscos de tal concepção, dizendo o seguinte: “A maneira de avaliar nossos valores e a maneira de decidir o que „é bom para nós‟ e o que „há de melhor‟ caso a caso,tudo isso se altera de um dia para o outro. Tão logo passássemos a considerar o princípio da igualdade jurídica meramente como um bem entre outros, os direitos individuais poderiam ser sacrificados caso a caso em favor de fins coletivos” (HABERMAS, 2004, p. 368). Para um exame sintético sobre o tema, cfr. Martins (2008a, p. 7). 12 contrário das regras, como demonstra Dworkin, podem ser contrários, sem se eliminarem reciprocamente. E, assim, subsistem no ordenamento princípios contrários que estão sempre em concorrência entre si para reger uma determinada situação. A sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto que tem diante de si é fundamental, portanto, para que possa encontrar a norma adequada a produzir justiça naquela situação específica. É precisamente a diferença entre os discursos legislativos de justificação, regidos pelas exigências de universalidade e abstração, e os discursos judiciais e executivos de aplicação, regidos pelas exigências de respeito às especificidades e à concretude de cada caso, ao densificarem normas gerais e abstratas na produção das normas individuais e concretas, que fornece o substrato do que Klaus Günther denomina senso de adequabilidade, que, no Estado Democrático de Direito, é de se exigir do concretizador do ordenamento ao tomar suas decisões (p. 38-39). Essa mudança de perspectiva jurídico-constitucional baseia-se em algumas constatações marcantes. Nos discursos jurídicos de aplicação, passam a ser levadas em conta as diversas possibilidades constantes de um único texto normativo, eis que o significado da palavra que integra a disposição jurídica é apenas determinado no caso concreto, o que aponta que o conteúdo do direito nunca é dado a priori, mas apenas especificável na concretude da sua aplicação. É o processo de identificar a norma adequada, tal como referido por Habermas (2003a, p. 269-270) em alusão às teorias de Dworkin e Günther. Ademais, no momento em que se pensa a respeito da determinação de sentido do texto, feita na realidade, é necessário contar com a participação dos interessados na produção do direito em concreto. Apenas eles podem falar da sua realidade e apenas eles próprios é que podem contar as suas demandas; em suma, apenas eles, interessados na decisão da causa, e diretamente afetados pela aplicação da norma, podem, legitimamente, auxiliar na definição da prestação estatal necessária, que vai satisfazer a disposição constitucional de direito fundamental e atender ao que determina a norma constitucional hermeneuticamente produzida. É o período da consagração dos direitos fundamentais de terceira geração, direitos difusos, individuais homogêneos, além do já mencionado realce à participação democrática dos cidadãos nos processos decisórios do Estado, já não mais conformados aos direitos políticos e individuais de formação liberal, mas marcantemente ligados ao amplo acesso à informação, à relevância das contribuições da sociedade para a determinação das decisões fundamentais. Essa vertente dialógica e pluralista do Estado Democrático de Direito irradia-se, necessariamente, sobre a Administração Pública. Aqui, ganha relevância a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões pela interveniência em audiências públicas, direito de petição em processos administrativos, acessos a documentos, certidões e informações de órgãos e entes públicos etc. A legalidade, também, é ressignificada, podendo ser entendida, contemporaneamente, como a demanda por uma atuação constitucional, não apenas lícita. O centro do ordenamento jurídico não é mais a lei, fetichisticamente encarada pelos positivistas, mas a Constituição. A Administração Pública deixa de estar submetida apenas a comandos legais expressos, passando a ter um dever de obediência à Constituição e a seus princípios, que trazem consigo o problema da determinabilidade de seus comandos e da segurança jurídica, reclamando uma postura cada vez mais compromissada do intérprete. 13 Enfatiza-se, nessa linha de argumentação, a necessidade de se adotar uma releitura da conformação da Administração Pública. Di Pietro (2009) traz os seguintes comentários ao tratar da releitura do Direito Administrativo no Estado Democrático de Direito: A conseqüência foi nova ampliação do princípio da legalidade, que passou a abranger, não apenas as leis e atos normativos do Executivo, com força de lei, mas também os valores e princípios contidos de forma expressa ou implícita na Constituição. A lei recuperou o seu conteúdo axiológico. Com isto, houve nova redução da discricionariedade administrativa, tendo em vista que a mesma diminui na mesma proporção em que se amplia a idéia de legalidade. Sob o ponto de vista da participação, inúmeros instrumentos surgiram, como a consagração do direito à informação, à publicidade e à motivação dos atos administrativos, para permitir a ampliação do controle sobre a Administração; o direito de denunciar irregularidades perante o Tribunal de Contas, o Legislativo, o Ministério Público e outros órgãos que funcionam como ouvidorias; participação do cidadão na fixação de políticas públicas; ampliação das ações coletivas para controle judicial da Administração Pública; participação no processo de elaboração das leis, por meio de plebiscito e referendum (p. 33-34). Sem medo de equívocos, pode-se dizer que o atual paradigma constitucional brasileiro de Administração Pública está inserido no (tipo ideal) conformado pelo Estado Democrático de Direito. Por certo, a Constituição Federal de 1988 ampliou sobremaneira as formas de interação entre os cidadãos e a Administração Pública e, como veremos adiante, modificou dramaticamente – a partir da atuação do constituinte reformador e do legislador infraconstitucional posterior – o perfil econômico do Estado. Constituição repleta de princípios que definem a própria concepção da Administração Pública no Brasil, a densificação de seus comandos nos casos concretos é uma tarefa cooperativa, empreendida nas instituições estatais e no seio da sociedade civil. Não se trata mais, no atual estágio constitucional brasileiro, de buscar responder aos anseios materiais de “clientes” não autônomos porque não autores das normas que os governarão, mas de construir um Estado que entenda que será legítimo apenas se for devidamente permeável à participação social e incentivador dessa interação. 2 As distintas perspectivas administrativas e econômicas do Estado moderno Propositadamente, um importante aspecto das modificações recentes do Estado contemporâneo foi deixado para exame específico nesta seção que se inicia. Trata-se da passagem do Estado produtor de bens e serviços em direção ao Estado Regulador, forma de organização econômico-social do Poder Público preconizada, no Brasil, após a implantação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) e da Emenda Constitucional n. 19/1998. Mas o que se quer dizer com as expressões “Estado produtor” e “Estado regulador”? A resposta à questão apenas virá com a adoção de uma adequada perspectiva histórica sobre o tema. Viu-se, acima, que o período liberal traz, idealmente, um Estado a que se chamou “absenteísta”, ou seja, que entende que o âmbito das relações privadas está completamente 14 fora de sua alçada de legítima atuação. É nesse “reino” dos particulares, inacessível ao Poder Público, que se estabelecem as relações econômicas e de produção de bens e serviços sociais, postas sob a regulação da “mão invisível” do mercado. A motivação puramente econômica dos agentes seria suficiente para atender a todas as necessidades dos indivíduos de forma natural, visto que as necessidades,identificadas como oportunidades de negócio, conduziriam os particulares a buscarem o seu atendimento. Nesse quando, a Administração Pública deveria tratar, apenas, das condições necessárias para que as relações privadas pudessem ser levadas a efeito com liberdade e igualdade (formal), condições essas referentes à aplicação das leis emanadas do Parlamento, à administração da justiça, à garantia de segurança pública interna e de manutenção de soberania e independência em relação a ameaças externas. Para os liberais, dessa forma, o Estado deveria abster-se de intervir nos âmbitos da sociedade civil, especialmente no mercado. Era o ideal do desenvolvimento de uma liberdade econômica absoluta, tão caro à burguesia vitoriosa nas revoluções do início da Era Moderna. Entretanto, a incapacidade de os agentes econômicos suprirem, com tal liberdade, as necessidades de enormes parcelas da população foi uma das razões que levou ao esgotamento do modelo liberal e à busca por uma atuação da Administração Pública que permitisse que todos os membros da sociedade tivessem acesso a meios de vida antes colocados à disposição apenas daqueles que tinham condições econômicas individuais suficientes para tanto. O mercado, nos anos 20 do século passado, demonstrou que a completa e absoluta liberdade dos agentes econômicos causa distorções. O Estado foi, então, chamado a atuar na correção das distorções do mercado 6 , mas foi muito além, assumindo o papel de coordenador central da vida econômica da sociedade. O período de transição é sintetizado num dos parágrafos introdutórios do PDRAE (BRASIL, 1995, p. 10) desta maneira: A Primeira Grande Guerra Mundial e a Grande Depressão foram o marco da crise do mercado e do Estado Liberal. Surge em seu lugar um novo formato de Estado, que assume um papel decisivo na promoção do desenvolvimento econômico e social. A partir desse momento, o Estado passa a desempenhar um papel estratégico na coordenação da economia capitalista, promovendo poupança forçada, alavancando o desenvolvimento econômico, corrigindo as distorções do mercado e garantindo uma distribuição de renda mais igualitária. Aparece, então – não sem disputas, ressalte-se, e não de forma idêntica em todos os lugares do mundo (os Estados Unidos serão uma notável exceção, visto que, lá, o Estado não assumiu funções produtivas, investindo na regulação, por suas agencies, desde o New Deal pós-crise de 1929) –, o Estado produtor de bens e serviços que marcou o período do Estado Social. Uma verdadeira virada paradigmática em termos de participação do Poder Público na economia e na sociedade foi processada, deixando o Estado de dar espaço à livre atuação do mercado pela assunção cada vez maior de tarefas econômicas produtivas. O Estado passou a ser o depositário de grande parte das demandas sociais. Trouxe para si tarefas tão diversas quanto a criação de um sistema de seguridade social, a regulamentação do mercado e das relações de trabalho entre as classes, o controle do fluxo de capitais, a formação de poupança nacional, a criação de uma rede redistributiva de renda, além, 6 Diz o PDRAE: “Dessa forma, se uma delas apresenta funcionamento irregular, é inevitável que nos deparemos com uma crise. Foi assim nos anos 20 e 30, em que claramente foi o mau funcionamento do mercado que trouxe em seu bojo uma crise econômica de grandes proporções” (BRASIL, 1995, p. 9-10). 15 fundamentalmente, da assunção de atividades diretas na produção de bens e serviços para a sociedade. Da era da não intervenção no mercado, passou-se à era da intervenção estatal direta sobre a economia. O mecanismo principal de atuação sobre o mercado foi a criação de uma pesada estrutura administrativa. Autarquias, fundações, empresas (para falar das pessoas jurídicas criadas no aparelho de Estado brasileiro), enfim, diversas entidades especializadas foram criadas ou autorizadas por lei para que o Estado tivesse ao seu dispor meios (pessoas jurídicas e recursos) capazes de ingressar na produção 7 . É interessante perceber que, nesse período histórico, o Estado não apenas assume o protagonismo econômico, como o faz por atuação direta. Há várias possibilidades de intervenção do Poder Público sobre a economia, que Grau apud Justen Filho (2002, p. 19-20) sistematiza nas três modalidades seguintes: (a) intervenção por absorção ou participação, (b) intervenção por direção, (c) intervenção por indução. No Estado Social, em especial no Brasil, conforme argumenta Justen Filho (2002, p. 20), a forma prioritária de atuação foi a primeira, caracterizada pelo fato de o Estado assumir uma participação direta, produtiva, por meio de entidades especialmente criadas para tal fim. Isso significava que a manifestação regulatória do Estado, conquanto presente no período, era uma maneira absolutamente secundária de intervenção. Até porque o Estado, visto com desconfiança pela sociedade liberal, torna-se aquele que desconfia, no estágio histórico subsequente, do próprio mercado, entendido como o espaço de expressão de interesses puramente egoísticos, descolados do atendimento de demandas públicas 8 . A preocupação com o lucro era entendida como incompatível com a satisfação de necessidades coletivas, e só o Estado, colocado no polo oposto em relação à sociedade, poderia desempenhar essa tarefa. O Estado Social hipertrofiado atingiu seu período de crise, todavia. Como já visto acima, não se tratou de uma crise de expressão única, mas multifacetada. O que importa para este tópico do texto, contudo, é sua face econômico-fiscal, que acarretou, basicamente, problemas de financiamento que impediram que o Estado continuasse a atender a todas as demandas que lhe eram dirigidas. Ademais, os aparatos burocráticos de Estado revelaram-se menos eficientes, sob o ponto de vista puramente econômico, conduzindo à necessidade de se 7 “A partir, sobretudo do fim da Segunda Grande Guerra, o Estado passou a ser chamado a interferir de forma mais efetiva na sociedade e na economia. Com o surgimento do Estado Democrático e Social, que passou a desempenhar tarefas de empresário, de investidor e de prestador de serviços públicos, verificou-se o início do agigantamento estatal e uma de suas conseqüências foi a criação de empresas estatais incumbidas de desempenhar diversas atividades, inclusive aquelas que no modelo anterior haviam sido atribuídas a empresas privadas concessionárias de serviços públicos” (FURTADO, 2010, p. 32). 8 “A manifestação privilegiada dessa concepção foi o desempenho imediato de atividades econômicas pelo Estado, concebido como a forma ótima de intervenção. Na terminologia de GRAU, privilegiava-se ou a atuação estatal ou a intervenção por absorção ou participação. Na medida em que incumbia ao Estado modelar a vida social e renovar as antigas estruturas econômicas, a fórmula ideal visualizada foi a de atribuir diretamente a organizações estatais o desempenho dessas atividades. De modo eventual e acessório, a competência estatal podia manifestar-se como uma atuação normativa. Sob esse ângulo, a regulação estatal exteriorizava-se como edição de atos normativos disciplinatórios do desempenho da atuação privada. Mas essa era uma manifestação reputada menor da competência interventiva, inclusive por vigorar a concepção de que toda atividade privada retrata manifestações puramente egoísticas, voltadas à realização exclusiva de intentos individualísticos. Portanto, a realização do bem-comum pressupunha a inevitável atuação direta do Estado. A regulação normativa destinava-se muito mais a limitar e restringir manifestações excessivas doindividualismo. Toda atuação ativa, apta a modificar o universo econômico e social, dependeria da participação direta de organismos estatais” (JUSTEN FILHO, 2002, p. 20-21). 16 repensar a forma de produção de bens e serviços para a coletividade. Por fim, a separação estrita entre sociedade (como a esfera privada por excelência) e Estado (como a esfera pública exclusiva) é desfeita, pela instituição de mecanismos de cooperação e pela emergência do que veio a ser conhecido como Terceiro Setor (a esfera pública não estatal). Justen Filho (2002, p. 19) chega a afirmar que o êxito das políticas públicas implantadas pelo Estado Social (chamado, por ele, de “Estado Providência”) foi, paradoxalmente, uma das causas de sua crise. Segundo anota, nesse momento histórico, a Administração gerou benefícios e vantagens que ocasionaram a multiplicação da população sem que os mecanismos de financiamento do Estado fossem igualmente incrementados. Essa é a fase da História ocidental que assiste, por exemplo, a um “envelhecimento” progressivo das populações que tiveram acesso a políticas de saúde, educação, distribuição de renda, alimentação e previdência não encontradas em épocas anteriores, o que colocou sob pressão financeira intensa os instrumentos – em especial de previdência e saúde pública – criados. Em vários outros setores, também, o Estado dispunha de recursos limitados, que não mais podiam atender plenamente a todas as atividades imputadas ao Estado, inviabilizando, inclusive, a elaboração de novos projetos e planos de investimento (JUSTEN FILHO, 2002, p. 20). De acordo com o autor, “a elevação dos passivos governamentais, proveniente de sucessivos prejuízos orçamentários, reduziu a capacidade estatal de executar satisfatoriamente os encargos que assumira”, pelo que “a manutenção dos projetos de satisfação do interesse coletivo demandava a existência de recursos de que o Estado não mais dispunha” (JUSTEN FILHO, 2002, p. 20). Em conclusão, aponta que “não é possível negar a ocorrência da crise, nem ignorar os efeitos trágicos disso derivados: o esfacelamento das estruturas estatais, a erosão das políticas públicas, a incapacidade estatal de cumprir suas funções mais essenciais” (JUSTEN FILHO, 2002, p. 20). Essa crise fiscal, que originou problemas internos de financiamento do Estado, foi, talvez como poucas, uma crise de ramificações internacionais expressivas. Faria (2002, p. 63- 65) centra-se em dois eventos fundamentais para que se possa entender os problemas financeiros que assolaram o mundo (e os Estados nacionais, em especial) nas décadas de 70 e 80, quais sejam: o fim do sistema de paridade internacional lastreado no ouro e as crises do petróleo de 1973/1974 e 1978/1979. Nas palavras do autor, Essas transformações foram deflagradas por diversos fatores convergentes, dos quais pelo menos dois merecem particular destaque para os objetivos deste trabalho. O primeiro desses fatores foi a crise do padrão monetário mundial, surgida com o fim do gold exchange standard, decidido unilateralmente pelo governo norte-americano. Iniciada em 1971 com a insustentabilidade da paridade dólar-ouro e com a subseqüente erosão do dólar como moeda-reserva internacional estável, essa crise levou à flutuação do câmbio, abriu caminho para a progressiva desorganização do sistema de regulação criado na metade dos anos 40 pelo acordo de Bretton Woods e possibilitou a abertura dos mercados internos das economias desenvolvidas aos produtos industrializados oriundos do Terceiro Mundo. O segundo fator foram os choques do petróleo de 1973/1974 e 1978/1979. Resultando, pela acumulação de seus efeitos, num aumento de cinco vezes o valor real do barril, eles desnivelaram subitamente os preços relativos dos bens e serviços; provocaram uma crise generalizada de lucratividade e diminuíram drasticamente os níveis de acumulação; acentuaram os desequilíbrios comerciais; alteraram as direções dos fluxos do sistema financeiro; potencializaram a instabilidade das taxas de câmbio e de juros; levaram ao 17 descontrole repentino dos balanços de pagamentos; agravaram ainda mais o já expressivo endividamento externo dos países em desenvolvimento; provocaram o aumento da inflação nas economias industrializadas; frearam o ritmo de crescimento dos países desenvolvidos; e, por fim, acabaram paralisando temporariamente os mercados (FARIA, 2002, p. 63-64). O PDRAE também tratou da questão. Segundo exposto pela Câmara da Reforma do Estado, a crise dos anos 70 foi sentida de forma mais forte nos anos 80, tendo se tornado “claro”, conforme pontua, “que a causa da desaceleração econômica nos países desenvolvidos e dos graves desequilíbrios na América Latina e no Leste Europeu era a crise do Estado, que não soubera processar de forma adequada a sobrecarga de demandas a ele dirigidas” (BRASIL, 1995, p. 10). Dessa forma, ainda de acordo com o PDRAE (BRASIL, 1995, p. 10-11), Não obstante, nos últimos 20 anos esse modelo [Estado Social] mostrou-se superado, vítima de distorções decorrentes da tendência observada em grupos de empresários e de funcionários, que buscam utilizar o Estado em seu próprio benefício, e vítima também da aceleração do desenvolvimento tecnológico e da globalização da economia mundial, que tornaram a competição entre as nações muito mais aguda. A crise do Estado define-se então (1) como uma crise fiscal, caracterizada pela crescente perda do crédito por parte do Estado e pela poupança pública que se torna negativa; (2) o esgotamento da estratégia estatizante de intervenção do Estado, a qual se reveste de várias formas: o Estado do bem-estar social nos países desenvolvidos, a estratégia de substituição de importações no terceiro mundo, e o estatismo nos países comunistas; e (3) a superação da forma de administrar o Estado, isto é, a superação da administração pública burocrática. Esse contexto levou a uma drástica mudança de concepção a respeito do aparelho do Estado. Evidentemente, o acúmulo histórico decorrente do liberalismo não indicava a solução de completa retirada do Poder Público do campo da atuação econômica, mas a crise fiscal teve como condão, segundo alegado pelos autores do tema, a necessidade de se repensar a forma pela qual o Estado relacionava-se com a economia e com a sociedade. O modelo proposto deveria afastar-se do absenteísmo liberal e do protagonismo produtivista do Estado Social, chegando-se, assim, à solução de um Estado que deveria “regular” o mercado e a satisfação de interesses sociais, induzindo, promovendo, premiando, restringindo, fiscalizando, enfim, exercendo atribuições muito mais próximas à atividade de polícia, fomento e intervenção indireta (DI PIETRO, 2009, p. 26) do que aquelas atinentes à produção de bens e serviços. Para Justen Filho (2002, p. 28), a passagem do Estado produtor para o Estado Regulador indica a desmobilização de recursos estatais materiais e humanos, desvinculando- os do desempenho direto e imediato de atividades materiais, em prol do que chama de “poder estatal de controle das atividades privadas”. É o período em que o Estado assiste a um rearranjo notável de suas estruturas administrativas, devolvendo à iniciativa privada o protagonismo econômico e social. Entretanto, tal não significaria uma redução das competências do Estado. Ao contrário, o Estado Regulador seria o modelo de Estado com uma enorme gama de atributos na economia, eis que se processa um exponencial aumento do controle e da fiscalização sobre as atividades privadas. Diz Justen Filho (2002, p. 29) que “as manifestações do Estado 18 Regulatório se traduzem na assunção pelo Estado de grandes parcelas de poder de controle sobre as atividadesprivadas”, pelo que “a regulação estatal peculiar ao novo modelo retrata-se na ampliação significativa das competências públicas atinentes ao controle-regulação das atividades desempenhadas pelos particulares”. Conclui, dizendo que se reduz “sensivelmente a margem de autonomia privada, produzindo-se aquele fenômeno de funcionalização das atividades desempenhadas pelos particulares, tal como anteriormente apontado” (JUSTEN FILHO, 2002, p. 29). O Estado Regulador, para desincumbir-se dos ônus produtivos e ver diminuído o impacto da crise fiscal e de produtividade dos organismos estatais indicada acima, estabelece alguns movimentos complementares. Inicialmente, como já dito, incrementa seus poderes de controle, fiscalização e normatização das atividades privadas. A regulação, entendida em sentido amplo, distingue-se do que, tradicionalmente, é chamado de “regulamentação”, compondo-se, em verdade, de um conjunto de medidas políticas de incentivo, premiação, estabelecimento de regras e limitações administrativas, fiscalização das atividades privadas, etc. Ela envolve o desempenho de várias competências públicas de forma conjunta, não se limitando ao estabelecimento infralegal de normas para regulamentar condutas. Por isso é que se pode dizer que o Estado Regulador possui uma feição distinta das tradicionais atribuições admitidas para o Estado até os anos 70. A regulação é entendida, ademais, num sentido que não se reduz à economia. Trata-se da regulação econômica e social, a que alude Di Pietro (2009, p. 22), segundo quem “a regulação constitui-se como o conjunto de regras de conduta e de controle da atividade econômica pública e privada e das atividades sociais não exclusivas do Extado, com a finalidade de proteger o interesse público”. Ao tratar das duas formas de regulação, Justen Filho (2002) vai adiante, explicando a feição regulatória do Estado nos seguintes termos: Com a drástica redução da atuação estatal direta, incrementou-se a concepção da regulação econômica como meio de controle das deficiências do mercado. No entanto, verificou-se que a realização de inúmeros outros fins, de natureza sociopolítica, também deveria ser tomada em vista pela regulação. A intervenção estatal de natureza regulatória não poderia restringir-se a preocupações meramente econômicas. O Estado não poderia ser concebido como um simples “corretor dos defeitos econômicos” do mercado, mas lhe incumbiria promover a satisfação de inúmeros outros interesses, relacionados a valores não econômicos. Assim, o elenco dos fins buscados através da regulação escapa facilmente de uma abordagem exclusivamente econômica. É necessário proteger o meio ambiente e os direitos de minorias, por exemplo. A racionalidade econômica poderia induzir a práticas ecologicamente reprováveis. Reconhece-se que o patrimônio do ser humano não se reduz aos bens econômicos, mas abrange inúmeros bens imateriais (p. 38). De outro lado, como já dito, o Estado privatiza suas empresas e entidades encarregadas de intervenção direta na atividade econômica. Ainda que não se possa dizer que é completamente incompatível com o modelo de um Estado Regulador o exercício subsidiário de atividade econômica em sentido estrito 9 , pontua Di Pietro (2009, p. 23) que tal papel 9 Subsidiariedade preconizada, entre outros, por autores como Furtado (2010, p. 38-39). Sobre a subsidiariedade, a definição de Di Pietro (2006, p. 33-34) é a seguinte: “Algumas idéias são inerentes ao princípio da subsidiariedade: de um lado, a de respeito aos direitos individuais, pelo reconhecimento de que a iniciativa 19 “somente será assumido por motivo de segurança nacional ou interesse coletivo definido em lei”. A onda de privatizações foi especialmente sentida no Brasil, na década de 90 do século passado. A reforma do aparelho do Estado visou a transposição da atividade econômica em sentido estrito para a iniciativa privada, entendida como aquela que teria melhores condições de exercer tais atribuições com a eficiência de um modelo que busca o lucro, a redução de despesas e os ganhos de escala. Ao Estado, reservaram-se as atividades econômicas em relação às quais razões de interesse público relevante (como a atinente ao monopólio do petróleo, nos termos do art. 177 da Constituição Federal) recomendavam que continuassem a ser prestadas diretamente pelo Estado. Mesmo a prestação de atividades públicas (serviços públicos), quando entendidas aquelas não exclusivas de Estado, ou seja, não correspondentes à manifestação de uma feição do poder do Estado (como a imposição e a arrecadação de tributos, o exercício do poder de polícia, e assim por diante), ganhou nova roupagem. Tratou-se do estabelecimento de parceria com o Terceiro Setor em relação às atividades que correspondem aos chamados espaços públicos não estatais, em que serviços públicos, como saúde, educação, cultura, pesquisa científica, entre outros, não são entendidos como atividades exclusivas do Estado, passando por aquilo que o PDRAE chamou de “processo de publicização” (BRASIL, 1995, p. 12-13)10. Nesse sentido, tratando da realidade brasileira, é o próprio Plano quem especifica, de forma resumida, os passos e objetivos que a reforma do aparelho do Estado buscou. Veja-se (BRASIL, 1995, p. 13): A reforma do Estado envolve múltiplos aspectos. O ajuste fiscal devolve ao Estado a capacidade de definir e implementar políticas públicas. Através da liberalização comercial, o Estado abandona a estratégia protecionista da substituição de importações. O programa de privatizações reflete a conscientização da gravidade da crise fiscal e da correlata limitação da capacidade do Estado de promover poupança forçada através das empresas estatais. Através desse programa transfere-se para o setor privado a tarefa da produção que, em princípio, este realiza de forma mais eficiente. Finalmente, através de um programa de publicização, transfere-se para o setor público não-estatal a produção dos serviços competitivos ou não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle. privada, seja através dos indivíduos, seja através das associações, tem primazia sobre a iniciativa estatal; em consonância com essa idéia, o Estado deve abster-se de exercer atividades que o particular tem condições de exercer por sua própria iniciativa e com seus próprios recursos; em conseqüência, sob esse aspecto, o princípio implica uma limitação à intervenção estatal. De outro lado, o Estado deve fomentar, coordenar, fiscalizar a iniciativa privada, de tal modo a permitir aos particulares, sempre que possível, o sucesso na condução de seus empreendimentos. E uma terceira idéia ligada ao princípio da subsidiariedade seria a de parceria entre público e privado, também dentro do objetivo de subsidiar a iniciativa privada, quando ela seja deficiente”. 10 “Como se percebe do trecho acima, a proposta do Estado gerencial não vira suas costas às questões sociais como a saúde, a educação e assistência pública, mas apenas deixa de tratá-las como questões de administração exclusivamente estatal. O Estado transfere tais responsabilidades às organizações da sociedade civil organizada, mantendo uma espécie de controle por intermédio de contratos de gestão. Trata-se de substituir a forma de administração burocrática weberiana calcada na prestação de serviços públicos por servidores estatais, atuando segundo formas rígidas e sujeitos a um controle burocrático hierarquizado eguiados pelo princípio da estrita legalidade. E, no âmbito da forma de administração gerencial, de se prestar serviços públicos por intermédio de agentes não-estatais, atuando segundo formas menos rígidas e sujeitas a um controle estatal quanto aos resultados, pautado pelo princípio da eficiência” (MARTINS, 2008b, p. 22-23). 20 Deste modo o Estado reduz seu papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços sociais como educação e saúde, que são essenciais para o desenvolvimento, na medida em que envolvem investimento em capital humano; para a democracia, na medida em que promovem cidadãos; e para uma distribuição de renda mais justa, que o mercado é incapaz de garantir, dada a oferta muito superior à demanda de mão-de-obra não-especializada. Como promotor desses serviços o Estado continuará a subsidiá-los, buscando, ao mesmo tempo, o controle social direto e a participação da sociedade. Nesta nova perspectiva, busca-se o fortalecimento das funções de regulação e de coordenação do Estado, particularmente no nível federal, e a progressiva descentralização vertical, para os níveis estadual e municipal, das funções executivas no campo da prestação de serviços sociais e de infra- estrutura. Com o estabelecimento de parcerias com o Terceiro Setor, e o incremento dos mecanismos de participação democrática no processo de tomada de decisões quanto a políticas públicas, o Estado Regulador busca quebrar o muro de separação entre Estado e sociedade civil anteriormente erigido. Di Pietro (2009, p. 46), critica, por exemplo, a falta de legitimidade que o modelo das agências reguladoras criou no Brasil, visto que, segundo expõe, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, aqui, a participação no processo de edição de normas regulamentares pelas agências não teria o cunho obrigatório e vinculante que se espera. A crítica bem sinaliza que, na nova feição de Estado, não se fala de legitimidade, participação e interação com a sociedade apenas como retórica discursiva desprovida de efeitos práticos, mas, em verdade, busca-se um modelo em que os destinatários das normas sejam entendidos como seus autores. Essa é a interseção entre o modelo jurídico- constitucional do Estado Democrático de Direito com a feição econômico-administrativa representada pelo Estado Regulador. 3 A função administrativa, o princípio da legalidade e a separação de poderes É tempo, a partir de agora, de avaliar as distintas funções (poderes) desempenhadas pelo Estado, tendo em vista que a Administração Pública é tradicionalmente entendida, em sentido objetivo (funcional), como o exercício daquilo que se chama “função administrativa”. Esta discussão traz uma série de temas fundamentais na compreensão contemporânea da relação entre os poderes do Estado, como os limites da atuação da Administração em vistas do princípio da legalidade e de suas ressignificações num ordenamento jurídico cada vez mais marcado pela presença dos princípios e da centralidade da Constituição, e dos desequilíbrios entre os poderes e suas repercussões sobre o princípio da separação de poderes, tradicional pilar do constitucionalismo moderno. As conceituações típicas das três funções do Estado separam três vertentes de atuação do poder. Trata-se da função administrativa, da função legislativa e da função jurisdicional. Para Martins (2008b, p. 5-6), a função (atividade) legislativa do Estado corresponde à fixação, 21 em lei, da vontade dos representantes do povo, prescrevendo comandos jurídicos em termos gerais e abstratos, aplicáveis a todos os cidadãos de uma determinada comunidade política 11 . Por sua vez, as funções jurisdicional e administrativa corresponderiam à aplicação da legislação aos casos concretos; todavia, a função jurisdicional pressuporia um conflito de interesses, com a atuação do Estado-juiz como terceiro imparcial e inerte – uma vez que atua apenas após provocação pelos interessados no conflito –, que ditaria o direito do caso concreto. A função administrativa 12 seria uma função de aplicação do direito a casos concretos em que a Administração é uma das partes interessadas (a responsável pela tutela do chamado “interesse público”), com capacidade de agir de ofício, sem necessária imparcialidade, cujos atos poderiam ser revistos pela posterior apreciação judicial provocada pelo interessado (apenas a jurisdição possui estabilidade em suas decisões, o que não ocorre com a Administração). Somam-se a essas a função de governo, tratada por Justen Filho (2009, p. 40-41) como aquela referente “a um conjunto de competências não relacionadas propriamente à satisfação de necessidades essenciais, vinculadas aos direitos fundamentais”, eis que “atinentes à existência do Estado e à formulação de escolhas políticas primárias”. Evidentemente, todas essas conceituações trazem consigo imensos problemas de ordem real e considerações críticas que merecem exame à luz de dois postulados fundamentais: a teoria da separação de poderes e o princípio da legalidade. Tratando do primeiro ponto, idealmente, a teoria da separação dos poderes 13 imaginou a existência de estruturas orgânicas distintas e separadas, no âmbito do Estado, para o exercício de cada uma das funções públicas. Essas estruturas orgânicas correspondem ao que se convencionou chamar de “poderes” (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, na clássica tripartição que remonta aos primórdios da Modernidade), aos quais 11 No Brasil, vige um critério formal para a definição das espécies legislativas, sendo considerados atos legislativos aqueles listados pelo art. 59 da Constituição Federal. Clève (2000, p. 70-71) é quem repele uma busca por definição material ou conteudística de lei, aludindo que “o conceito de lei, portanto, não deve ser tributário de um determinado conteúdo, ou de determinados atributos”, pelo que “a eleição de um critério formal para a conceituação da lei (a lei independente do conteúdo) significa apenas que não há um universo de objetos fenomênicos monopolizados pela lei (regra de direito) ou que a generalidade do preceito normativo não constitui dado indispensável para a caracterização do ato do Estado como ato legislativo”. Adverte, no entanto, que, para os específicos fins de impugnação judicial de constitucionalidade de um determinado ato legal, será relevante entender se o dispositivo possui generalidade ou não (CLÈVE, 2000, p. 74-75), o que não significa, todavia, que uma lei que veicule preceitos de efeitos concretos perca a sua característica, justamente por conta do critério formal adotado pela Constituição para conceituar os atos legislativos no Brasil. 12 Justen Filho (2009, p. 37) dá uma definição algo distinta da função administrativa. Para ele, “a função administrativa é o conjunto de poderes jurídicos destinados a promover a satisfação de interesses essenciais, relacionados com a promoção de direitos fundamentais, cujo desempenho exige uma organização estável e permanente e que se faz sob regime jurídico infralegal e submetido ao controle jurisdicional”. É interessante notar que o autor alude à existência de função administrativa governamental e não-governamental, entendendo que há entidades não ligadas à estrutura do Estado que também exercem atividades tipicamente administrativas (um dos exemplos pontuados é a OAB, com o perfil que lhe foi dado pelo STF no julgamento da ADI n. 3.026), o que reclama maior disciplina jurídica e controle efetivo (JUSTEN FILHO, 2009, p. 39-40). 13 Pontua Martins (2008a, p. 9-10) que a expressão “poder” possui uma difícil
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