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Ruth M. Ghittó Gauer A FUNDAÇÃO DA NORMA para além da racionalidade histórica e edÍPUCRS A FUNDAÇÃO DA NORMA para além da racionalidade histórica rncis Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Chanceler: Dom Dadeus Grings Reitor: Joaquim Clotet Vice-Reitor: Evilázio Teixeira Conselho Editorial: Antônio Carlos Hohlfeldt Elaine Turk Faria Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco Jaderson Costa da Costa Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente) José Antônio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini Ney Laert Vilar Calazans René Ernaini Gertz Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chittó Gauer EDIPUCRS: Jerônimo Carlos Santos Braga - Diretor Jorge Campos da Costa - Editor-chefe Ruth M. Chittó Gauer A FUNDAÇÃO DA NORMA para além da racionalidade histórica ediPUCRS Porto Alegre 2009 © EDIPUCRS, 2009 Capa: Vinícius de Almeida Xavier Ilustração da capa: Universidade de Coimbra. Arquivo. Diploma da Fundação da Universidade, 1290. Diagramação: Stephanie Schmidt Skuratowski Revisão linguística: do autor Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G267f Gauer, Ruth Maria Chittó A fundação da norma : para além da racionalidade histórica [recurso eletrônico] / Ruth M. Chittó Gauer. - Dados eletrônicos. - Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009. 175 p. ISBN: 978-85-7430-926-2 (On-line) Publicação Eletrônica Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/> 1. Direito. 2. Filosofia do Direito. 3. Normas Jurídicas. 4. Lévi-Strauss, Claude - Crítica e Interpretação. I. Título. CDD 340.1 Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS ediPUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33 Caixa Postal 1429 90619-900 Porto Alegre, RS - BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3711 E-mail: edipucrs@pucrs.br http://www.edipucrs.com.br Ruth M. Chittó Gauer chitto@pucrs.br Doutora em História Moderna e Contemporânea pela Universidade de Coimbra, Professora do Programa de Pós- Graduação em Ciências Criminais, Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL BRASIL. Para meus filhos Gabriel, Alexandre e Rosane e para Viviane e Vanessa, minhas netas. AGRADECIMENTOS A ajuda recebida para a escrita deste livro aconteceu de forma casual ela chegou por meio de muitas pessoas em momentos diversos, de encontros e debates, assim como de atividades acadêmicas desenvolvidas por conta de disciplinas que ministrei em Programas de Pós-Graduação da PUCRS, nos quais a contribuição dos alunos foi inestimável. Quero aqui mencionar, com ênfase, a importância de meus colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais por terem fornecido um terreno exemplar e generoso, o qual ajudou enormemente o diálogo com o direito, a psiquiatria e a filosofia. O registro de gratidão certamente não dimensiona a importância que esse grupo de pesquisadores e amigos representa para minha vida acadêmica. A todos devo o entendimento de que a ansiedade da incompletude acompanha a vontade de compreender a complexidade do ato de escrever. O projeto deste livro surgiu de reflexões iniciadas nos finais dos anos oitenta, início dos noventa, durante o período em que escrevi minha tese, no Instituto de História e Teoria das Ideias da Universidade de Coimbra, meu “lar” acadêmico em Portugal. Tenho a satisfação particular em reconhecer a influência crucial de ideias vindas de longas conversas e debates acadêmicos na outra margem do Atlântico, especialmente com os Professores Doutores Fernando Catroga e Rui Cunha Vide Martins. O mais relevante, no entanto, fruto de uma longa convivência, foi o de terem-me proporcionado a condição para perceber que a erudição deve receber o tempero do estilo. SUMÁRIO I A norma totalizadora frente à diferença....................................................... 9 II A fundação da norma: a metáfora sexual e a condição humana............16 III A sedução da norma: fato social total.........................................................28 IV Os deslocamentos da norma: reinvenção de termos...............................36 V A impessoalidade funda a categoria do indivíduo e redimensiona a norma...........................................................................................................................42 VI A crise do racionalismo e o retorno ao mito: cumplicidade com a psicanálise...................................................................................................................51 VII Crítica à razão totalizadora: um exemplo de época.................................. 60 VIII A racionalidade moderna frente à diferença: os pioneiros da etnopsiquiatra do Brasil...........................................................................................65 IX Da diferença perigosa ao perigo da igualdade totalizadora.................... 84 X A fixidez da norma frente ao fluxo contemporâneo.................................. 99 XI O fundamento do sistema de comunicação: a crença como norma ....114 XII A sedução da objetividade: natureza & cultura...................................... 129 XIII A Ilusão Totalizadora e a Violência da Fragmentação............................138 XIV Norma, ciência e autenticidade.................................................................. 148 XV Juridicidade, violência, mito e memória................................................... 154 BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................169 I A norma totalizadora frente à diferença Lévi-Strauss articulou várias técnicas oriundas da ciência moderna para demarcar o limite entre natureza e cultura como fundamento de suas investigações sobre as relações sociais. Buscou compreender o obscuro, o não aparente na aparência de uma “realidade” que se manifesta como significante de toda ordem social. A interpretação decorrente desse esforço pode ser denominada como uma espécie de jogo abstrato que se relaciona com a “realidade”, pois se articula com oposições binárias ligadas a estruturas mentais que revelam os processos cerebrais inerentes à lógica racional. Essa lógica é percebida não apenas quando se manifesta por meio da racionalidade científica, mas também quando analisamos os mitos e os ritos. O estruturalismo inaugurado pela escola sociológica francesa tem como representante mais conhecido Lévi-Strauss e propõe recuperar os processos que estavam latentes entre corpo e espírito: reconciliar o paradoxo significou afastar- se de Descartes e de seu dualismo, sem negar a racionalidade e a posição que o autor tomou ao tratar o fato social como coisa. Não se pode desenvolver uma análise satisfatória do estruturalismo sem levar em consideração que não apenas a atividade intelectual é importante para uma interpretação da sociedade, mas também a prática como um plano da percepção do sensível. Desse modo, Lévi- Strauss pôs fim ao divórcio entre inteligibilidade e sensibilidade, conciliando, de forma harmônica, a interminável busca de sentido do homem e o mundo construído por ele: um mundo configurado por formas, cores, sabores, texturas, odores, sentidos, sendo continuamente reinterpretado. A negação da natureza pode ser pensada como a inesgotável significação que torna sua presença uma totalidade material representificada na linguagem e demarcada,em certo sentido, em um jogo que não diz respeito ao confronto com o passado, como tradição histórica, mas a um desafio crítico relacionado ao campo da história e das ciências sociais. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 9 Aceitando, com Merleau-Ponty,1 que, em antropologia, a experiencia equivale a nossa inserção como sujeitos sociais em um todo cuja síntese já está feita e é laboriosamente procurada por nossa inteligência, pois vivemos na unidade de uma só vida, é necessário, então, reconhecer-se que a diferença que configura esse pensamento é circunscrita pela comprovação da ausência de totalidade da racionalidade. Poder-se-ia dizer que há muitas lições a se tirar desta posição do autor; no entanto, a síntese à que ele se refere somos nós, o aparelho de nosso ser social, que pode ser desfeito e refeito da mesma forma que podemos aprender a falar outras línguas. Na análise das estruturas elementares de parentesco, Lévi-Strauss abre a possibilidade de se pensar a fundação da norma quando busca não mais o universal de sobrevôo de um método estritamente objetivo, mas um universal lateral, cuja aquisição é possível por meio da experiência etnológica, incessante prova de si pelo outro e do outro por si. Essa experiência alargada referida pelo autor2 é construída por um sistema de referencia que inclui todas as diferenças. Tais diferenças não se constituem necessariamente em outros, trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro. Sob esse aspecto é possível marcar a distância entre Merleau-Ponty e Foucault. Para o primeiro, a etnologia levava ao alargamento da racionalidade porque desembocava na ontologia. Com efeito, superando a 1 1 MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss à Claude Levi-Strauss, Os Pensadores, Sao Paulo, Abril Cultural, 1975, p. 383-396. 2 MERLEAU-PONTY, op. cit., p. 363-365. A metafísica (e a metafísica nas ciências humanas) emerge quando se põe o problema da alteridade. No entanto, ao contrário do pensamento francês contemporâneo, que é herdeiro de uma problemática nitidamente merleaupontyana, a questão do Outro e do Mesmo, da diferença e da identidade, levam a uma interrogação radical da racionalidade estreita apresentada pelo saber ocidental. Para Merleau-Ponty, a antropologia, tomando a alteridade como objeto, fornece à filosofia um instrumento para o alargamento da razão, para a convivência dos incompatíveis, para um universal constituído por relações de complementaridade. Sabemos que, contrariamente a essa tentativa, o pensamento francês contemporâneo exacerbou a alteridade, rumou para as diferenças absolutas, cortes e rupturas que dominam as práticas e teorias humanas, reagindo contra um certo hegelianismo presente em Merleau-Ponty, e usando como arma o elogio da esquizofrenia derivada do mundo esquizofrênico. No ensaio Em toda e em nenhuma parte, Merleau-Ponty se refere à China vista em uma fotografia e à China vivida pelos Chineses - a primeira é exótica, pitoresca, distante, porque diferente; a segunda é uma outra maneira de alcançar uma relação com o ser, um projeto social e político que também nos diz respeito e por intermédio do qual nos comunicamos com o que é diferente de nós e que, conosco, forma a unidade de uma “universalidade oblíqua”. A abertura de Les Mots e les Choses mantém a China vista em sua distância fotográfica: a enciclopédia borgiana, rompendo o que é familiar ao nosso pensamento, determina a impossibilidade definitiva de alcançar o outro. 10 Ruth M. Chittó Gauer dicotomia sujeito-objeto, a estrutura revelada pelo etnólogo e generalizada pelas outras ciências deixava claro que não há dados nem essências (pontos fixos e completos a serem marcados e explicitados), mas que o real (vínculo sujeito- objeto) se configura em um processo contínuo de reestruturação, contendo em si a possibilidade de transformação e um devir apenas sentido, isto é, uma história. Na busca pela compreensão da verdade, os modernos3 tentaram impor a violência da visão totalitária construída com a precisão da ciência. Nesta visão surge a lei, no sentido dado pelo direito natural moderno, que englobou a norma e, para além desta, o fato e o valor. Fato, valor e a norma passam a ser compreendidos como lei no pensamento iluminista. No entanto, na nova visão de mundo que os ocidentais ajudaram a consolidar como força dominante4 e que, conforme Bergson, "desta forma possibilitou que o pensamento moderno se firmasse em larga medida, como diferença”, ainda, segundo ele, "deve então reconhecer-se que a diferença que configura esse pensamento está circunscrita pela comprovação de uma "nova verdade”,5 precisamente a que é ditada pela 3 BAUMER, Franklin L Baumer, O Pensamento Europeu Moderno, v. I, Vila Nova de Gaia, Edições 70, 1990, p. 39. 4 BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno, v. I, Vila Nova de Gaia, Edições 70, 1990, p. 39; Maurice Merleau-Ponty, Elogio da Filosofia, p. 38. O pensamento ocidental tem-se caracterizado por desvalorizar ontologicamente a imagem e psicologicamente a função da imaginação. Em muitos momentos a imaginação é vista como responsável por erros e falsidades. Bergson, ao abrir novas dimensões para um continuun da consciência, ensaia uma ruptura, mas esta, segundo Gilbert Durand (As Estruturas Antropológicas do Imaginário, São Paulo, Martins Fontes, 1997), não se estabelece, pois ele ainda reduz a imagem à memória, uma espécie de contador da existência, que funciona mal no abandono do sonho, mas que volta a organizar-se pela atenção perceptiva da vida. Tanto a tendência de miniaturização da imagem quanto a recordação dela comentem o erro de “coisificar” a imagem e seu dinamismo, alienando a sua função principal que é conhecer, mais do que ser. Durand acredita que, em Bergson, a imagem sempre aparece como sombra do objeto, ou ainda como um objeto fantasma, sem consequências. Sendo assim, os objetos imaginários sempre foram tomados como duvidosos, como fomentadores do erro. A desvalorização da imagem não corresponde, de modo algum, ao papel que ela desempenha no campo das motivações culturais. As teorias que falam sobre a imagem, para Durand, destroem-na, pois são uma teoria da imaginação sem imagens. 5 BERGSON, Henri, Matéria e Memória, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 290. No entanto, é preciso lembrar que Bergson postulou a existência de uma misteriosa intuição e assim permitiu transferir o espírito ao coração das coisas a fim de fundar a sua unidade. Para Arthur Miller, Bergson convidou todo mundo a transpor o objetivismo e o tédio do reino enigmático, o ‘balanço vital’. Eis o motivo que levou Miller a afirmar que o autor foi o filósofo dos artistas do início do século XX. No entanto, a gênese traçada pelas obras de Bergson revela que “é a nossa própria história que contamos a nós mesmos, um mito (grifo nosso), natural através do qual exprimimos o nosso acordo com todas as formas de ser. Não somos a pedra mas ela entra na nossa vida, se mexe, desenvolve seu íntimo, se revela a si própria através de nós. O que julgamos ser coincidência é coexistência” (Intuitions de Génie: images et crétivité dans les sciences et les arts, Paris, Flammarion, 1996, pp. 369-370). A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 11 ciência. Isso que significa que os cientistas dessa época, ao tentarem compreender os fenômenos cósmicos desvinculando-os da crença religiosa, não impediram que se sacralizasse uma nova crença, justamente a crença na “verdade” científica. Compõe a verdade científica o conjunto de leis elaborado pelos modernos e contemporâneos, com a função primordial de normatizar as sociedades. Há nesta racionalização a pretensão de eliminar a fé, o mito e as crenças em todosos eventos que não pudessem ser explicados pela racionalidade científica. No campo das humanidades, a problemática da comprovação científica se fez presente a partir do século XIX, criando muitos espaços de debate. O mundo acadêmico caracterizou de diversas formas as diferenças entre o que se convencionou chamar de humanidades e de ciências humanas. Partimos da premissa, ainda que para fins de melhor compreensão, de que a diferença entre humanidades e ciências humanas é complexa. O enfoque da diferença é, portanto, apenas visto como uma questão de especificidade. Ao corpus antigo, que circunscreve as humanidades desde os gregos e que foi revigorado na Renascença, corresponde, grosso modo, o que denomino humanidades. O papel pedagógico dessa concepção estruturou a formação cultural no Ocidente, juntamente com uma visão fundamentalista. Acreditava-se que o conhecimento produzido pelos clássicos construiria um “novo” homem. As ciências humanas datam do século XIX. Mesmo no período iluminista, não se descolaram do conhecimento antigo, no entanto nascem com forte vínculo com a “realidade”, que permite a sua “evolução”. É fundamental lembrar que os critérios epistemológicos das ciências humanas variam muito. A ideia de que as humanidades trariam lições de vida, tal como pensam muitos historiadores e pedagogos, pode se constituir em um problema. Há que se pensar em incluir tanto as disciplinas voltadas ao conhecimento quanto as artes, a literatura e outras. A ideia de que nessas disciplinas se modifica o sujeito, no ato de conhecer, constitui-se como o traço mais visível nas humanidades, e também se constata nas ciências humanas. As dicotomias criadas tanto pelos adeptos do empirismo como pelos da metafísica não salvaram o homem de ser mutilado, 12 Ruth M. Chittó Gauer dando margem ao inumano. Para Merleau-Ponty6, a metafísica nas ciências humanas emerge quando se coloca o problema da alteridade. A antropologia, tomando a alteridade como objeto, fornece à filosofia um instrumento para o alargamento da razão, para a convivência dos incompatíveis, para um universal constituído por relações de complementaridade. A divisão tradicional entre as ciências humanas, empírico-formais e exatas, passou a sofrer vários abalos. A teoria da relatividade e a física, desde os finais do século XIX, alteraram tanto a posição do observado quanto a do observador, diminuindo, assim, a distância entre as ciências humanas e algumas outras ciências. Podemos citar quatro autores que consideramos exemplos emblemáticos e contundentes desse fato: a) Durkheim, quando tratou os fenômenos sociais como coisa; b) Freud, ao tentar chegar às condições físico-químicas da psique; c) Lévi-Strauss, formalizando as relações sociais mediante o uso da teoria dos conjuntos; d) Foucault, deslocando a análise do macro para o micro; logo, deslocando simultaneamente o lugar do observador e do objeto a ser observado. Essas experiências se constituíram em grande sucesso. Certamente os resultados das interpretações dos autores acima citados revelaram-se mais importantes do que a quebra de normas científicas que permitiu a ampliação da análise. O esforço em preservar as fronteiras do conhecimento é um dos grandes problemas enfrentados pelas Universidades quando buscam a inovação. A base do pensamento das pesquisas conhecidas como “de ponta” reside no fato de que a linguagem técnica de uma área permite a ampliação de outra área. Esse exemplo pode ser constatado historicamente. Para tanto, basta pensarmos no século XVII, no qual se construiu a matriz das atuais ciências denominadas “exatas” ou “duras”. A geometria alcançou o papel de fornecedor de paradigmas para todo o conhecimento que se pretendesse científico. Nos finais do século XIX, a biologia passou a explicar, para alguns darwinistas, como Tylor, Spencer e Webb, que a sociedade evoluía em fases sucessivas, ou seja, a história das sociedades também estava sujeita às leis da natureza, tendendo a seguir linhas 6 MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss à Claude Lévi-Strauss. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975. P. 368 A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 13 de desenvolvimento semelhantes, independentemente da localização espaço- temporal. Logo, necessariamente, a sociedade passaria da selvageria à barbárie, e, enfim, à civilização. Há, no entanto, que se ter presente que as linguagens - palavras, conceitos - não têm transparência suficiente para expressar o próprio ato criativo; portanto, a arte é imprescindível. No século XX, os linguistas, no apogeu do estruturalismo, incluíram o rigor das demais ciências. A importância do estruturalismo reside na nova possibilidade que oferece: a linguagem de uma área permite revolucionar outras áreas. Ao lado desse enfoque a antropologia, ao transmitir a preocupação com as significações e com a maneira como poderiam ser vistas pelos diferentes agentes sociais, abriu a possibilidade de revolucionar a percepção das relações humanas. Os exemplos nos levam a pensar que a possibilidade de inovação está associada à abertura de espaços experimentais para que se testem linguagens fora de seus lugares de origem, buscando, desse modo, o afrouxamento do método e, assim, a ampliação das perspectivas de surgimento de novas hipóteses - o ato criativo. Um dos exemplos mais significativos da utilização de conceitos de diferentes campos de saber aplicados a um saber específico pode ser encontrado na obra de Marcel Mauss. Na visão de Mauss7, o fato social não é uma regularidade compacta, mas um sistema eficaz de signos ou uma rede de valores simbólicos que se insere no individual mais profundo. Contudo, a regulação pensada como norma que circunscreve o indivíduo não o suprime. O “verdadeiro” , escreve o autor, não é a prece nem o direito, mas o homem como cimento afetivo. Esse homem pode ser “apreendido” pela palavra - a norma, a negação, o Não, é expresso pela palavra. A análise de Merleau-Ponty8 é fundamental quando lembra, em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, que “por mais que a palavra, como explica Saussure, receba de outros seu sentido, no momento, porém, de produzir-se, o que há de exprimir não é mais diferido, contraído de suas relações; imprimi-se e atinamos com alguma coisa” . Há ainda que lembrar que o próprio Merleau-Ponty afirma, logo em seguida, que “devemos, pois, dizer da linguagem em sua relação com o sentido o que Simone Beauvoir diz do corpo 7 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, v. I, São Paulo, E.P.U./EDUSP, 1974. 8 MAUSS, Marcel, op. cit., p. 363-365. 14 Ruth M. Chittó Gauer em sua relação com o espírito: que não é primeiro nem segundo”. Nessa perspectiva as estruturas sociais representadas pelas diferentes normas instituídas devem ser analisadas de forma que se abandone a ideia de que tenham surgido “naturalmente”, tal como acreditavam alguns pensadores do século XIX. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 15 II A fundação da norma: a metáfora sexual e a condição humana Na tradição ocidental contemporânea, o casamento é assumido como um ato individual, uma escolha psicológica, marcada pela liberdade de escolha, que revela preferências, interesses, sentimentos, entre outros fatores. Sob essa estrutura, marcada pelo individualismo criado pelo direito natural moderno, encontramos o sistema de parentesco atual, que, além de ser marcado pela ausência de laços de consanguinidade - pais, irmãos, tios, entre outros -, constitui a estrutura no sistema da família nuclear. Toda e qualquer escolha dá- se, portanto, com base na exclusão do outro consanguíneo. A ser assim, a liberdade de escolhanão excluiu o átomo inicial fundante da sociedade, a proibição do incesto, norma estrutural do vínculo familiar. O poder da norma vista pela interpretação de Lévi-Strauss é um fator estrutural sem o qual não se compreende a lógica e o sentido da sociedade. Otávio Paz9 defende a tese de que os escritos de Lévi-Strauss são importantes em dimensões como a antropológica, por exemplo, ao analisarem a estrutura de parentesco, os mitos, o pensamento selvagem e a filosófica, uma vez que a concepção antropológica como parte de uma futura semiologia e suas reflexões sobre o pensamento (selvagem e civilizado) revelam, de certo modo, uma desconfiança em relação à filosofia. Toda a obra de Lévi-Strauss, porém, dialoga com o pensamento filosófico, em especial com a fenomenologia e se inspira, em grande parte, nos autores clássicos; podemos notar, contudo, uma predileção por Bergson, Proust, Mauss, Saussure e Breton, presentes de forma significativa no conjunto da obra. As influências de tais pensadores são especialmente perceptíveis quando Lévi-Strauss apresenta seu diálogo contínuo entre o concreto e o abstrato. A afirmativa de que a sociedade constitui-se em um sistema total de relações, que engloba tanto os aspectos materiais quanto o jurídico, o religioso e o artístico, está baseada no “fato social total”, desenvolvido por Mauss. O tema central dos trabalhos de Lévi-Strauss centra-se na busca do entendimento sobre 9 PAZ, Otávio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo, São Paulo, Perspectiva, 1977, p. 8 . 16 Ruth M. Chittó Gauer a passagem da natureza para a cultura, passagem que ocorre com a fundação da norma. Podemos pensar o sistema de relações instituído pela norma. Segundo alguns de seus intérpretes, a fundação da norma se dá como um processo de violência. O autor busca compreender o lugar do homem no sistema da natureza. No campo da estética, particularmente, estudos sobre a arte indo-americana e as ideias indígenas sobre a música, a pintura, a poesia e o mito, refutam o pensamento sobre barbárie ou selvageria utilizado pela civilização ocidental para denominar as diferenças. A contribuição de Lévi-Strauss, em uma obra que pretende ser apenas antropológica, é ainda extremamente significativa em vários campos de saber cujas bases se encontram na premissa da unidade do pensamento (da filosofia), embora se trate de uma filosofia antifilosófica. Poderíamos, metaforicamente, aproximar o pensamento de Lévi-Strauss daquele do geólogo que busca a explicação dos conteúdos aparentes no que está encoberto. Os exemplos mais significativos disso são a linguagem e a paisagem, esta última vista pelo autor como sendo diacrônica e sincrônica ao mesmo tempo. A história condensada nas idades geológicas da terra é também um entrelaçado de relações. Um corte vertical, que revela o oculto, as capas invisíveis, é uma estrutura que determina e dá sentido às aparências superficiais. Lévi-Strauss busca inspiração no marxismo e em Freud para compreender as estruturas não aparentes da sociedade e da psique humana. A compreensão do visível é dada pelo oculto, isto é, pela busca da relação entre o sensível e o racional, (um monismo) em si mesma uma busca da racionalidade do inconsciente, um super-racionalismo. Podemos identificar, na obra de Lévi-Strauss, além de Marcel Mauss,10 a presença marcante de Saussure,11 no qual busca a compreensão sobre a linguística. A obra de Lévi-Strauss revela ainda coincidências e discrepâncias com 12relação à posição culturalista de Franz Boas e ao funcionalismo de Malinowski12 e Radcliffe-Brown.13 Os primeiros trabalhos de Lévi-Strauss foram concebidos 10 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, v. I, São Paulo, E.P.U./EDUSP, 1974. 11 SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral, Lisboa, Dom Quixote, 1995. 12 MALINOWSKI, Bronislaw. Journal d ’ethnographe, Paris, Editions Du Seuil, 1985. 13 RADCLIFFE-BROWN, Alfred. El método de la antropologia social, Barcelona, Anagrama, 1975. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 17 conforme a antropologia anglo-americana. Foram as ideias de Mauss, no entanto, que o prepararam para saltar do funcionalismo ao estruturalismo. Lévi-Strauss concebe a sociedade como um conjunto de signos, como uma estrutura. Passa da ideia de sociedade como uma totalidade de funções à de um sistema de comunicações, sistema sempre normatizado. As posições de Lévi- Strauss confrontam o funcionalismo, o historicismo e a fenomenologia. Compreende a estrutura não só como um fenômeno resultante da associação dos homens, mas como um sistema marcado por coesão interna. Cada sistema (parentesco, mitologias, classificação, entre outros) é como uma linguagem que pode ser traduzida à linguagem de outro sistema. Lévi-Strauss, dito de outro modo, pensa a estrutura como um sistema, e cada sistema é regido por um código que permite (caso decifrado) sua tradução a outro sistema. Para ele as categorias inconscientes não são irracionais ou funcionais, mas apresentam uma racionalidade imanente. A linguagem é um sistema de relações, seus elementos (oração, palavra, fonema) são valorizados ao serem considerados em relação com os outros. O signo tem um caráter dual: significante (som), significado (sentido), o significante que precede e excede o significado. O fonema não tem significado próprio, mas participa da significação; sua função significativa consiste na designação de uma relação de alteridade ou oposição em relação aos outros fonemas. Sua relação e sua posição junto aos outros fonemas no interior do vocábulo tornam possível a significação. O fonema é um campo de relações, uma estrutura. Lévi-Strauss se propôs aplicar a linguística à antropologia. Assim como os fonemas, as relações de parentesco são elementos de significação, logo, apenas adquirem significação participando de um sistema. Tanto os fonemas quanto as relações de parentesco são elaborações do espírito no nível do pensamento inconsciente. No que se refere à fundação da norma, Lévi-Strauss a associa à estrutura de parentesco e afirma que é atemporal, portanto, ahistórica; desse modo, a repetição das formas das regras de matrimônio em todas as sociedades faz pensar, como no caso da fonologia, que os fenômenos visíveis são o produto do jogo de leis gerais, ainda que tais leis estejam ocultas. O método utilizado pelo autor se funda mais em analogia do que em identidade. Se a linguagem (e a sociedade inteira: ritos, arte, economia, leis, 18 Ruth M. Chittó Gauer religião) é um sistema de signos, o que significam os signos? Um símbolo nos remete a outro símbolo. Esta concepção da linguagem termina em uma disjuntiva: se apenas a linguagem tem sentido, o universo não-linguístico carece de sentido e de realidade, ou então tudo é linguagem (dos átomos até os astros). Essa crítica, de acordo Otavio Paz, não se aplica inteiramente a Lévi- Strauss, cujo tema central é o das relações entre o universo do discurso e a realidade não-verbal, o pensamento e as coisas, a significação e a não- significação.14 Ao contrário de seus predecessores, Lévi-Strauss, em seus estudos sobre o parentesco, não pretende explicar a proibição do incesto a partir das regras matrimoniais, mas serve-se da primeira para tornar inteligíveis as segundas. É possível fazer muitas analogias: por exemplo, a universalidade da proibição em suas várias modalidades é análoga à universalidade da linguagem (diferente de idiomas). A proibição também não aparece entre os animais, não tendo, portanto, uma origem biológica ou instintiva. Trata-se de uma complexa estrutura inconsciente, como a linguagem. Apesar das inúmeras interpretações míticas, religiosas e filosóficasnão temos uma teoria racional que explique a origem e a vigência da proibição. Lévi-Strauss rechaça todas as teorias que pretendem explicar o enigma do tabu do incesto, desde as finalistas e eugenéticas até a de Freud. A proibição do desejo pela mãe e o assassinato do pai - poder e punição - não correspondem a nenhuma realidade histórica ou antropológica, são um sonho simbólico, não origem, mas consequência da proibição. A metamorfose do som bruto em fonema se reproduz na metamorfose da sexualidade animal em sistema de matrimônio. Em ambas, a regra, binária (isto sim, aquilo não), seleciona e combina (signos verbais e mulheres). As normas do matrimônio e os sistemas de parentesco constituem-se em uma espécie de linguagem, um conjunto de operações que transmitem mensagens. Para Lévi-Strauss, as mulheres (como as palavras) são signos (e não só valor), elementos desse sistema de significações que é o sistema de parentesco. Partindo da premissa de que todas as sociedades conhecem e praticam a norma, carregada de interpretações filosóficas, jurídicas, 14 PAZ, Otávio. op. cit., p. 17. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 19 religiosas e míticas, por outro lado não temos uma teoria racional que dê conta de sua vigência. A questão fundamental relacionada à norma é a tentativa de compreensão da norma primordial, a norma proibitiva, inflexível, considerada a fonte de todas as normas sociais, de toda moral e de toda punição. Há que se ter presente a posição de Lévi-Strauss: para o autor, a fundação da norma se deu com a negação. A proibição do incesto, uma norma inflexível, fonte de todo limite, portanto, de todas as leis, segundo o autor,15 foi o primeiro Não que o homem opôs à natureza. Esse tabu, embora pareça não ter justificação biológica, nem razão de ser, é a raiz de toda proibição, constitui-se ao mesmo tempo na norma, no fato e no valor. Esse Não contém um Sim: a proibição não apenas separa a sexualidade animal da sexualidade social, mas, como na linguagem, este Sim funda o homem, constitui a sociedade. Para Lévi-Strauss, estamos diante de uma operação inconsciente do espírito humano que, em si mesma, carece de sentido ou de fundamento, mas não de utilidade: graças a ela, à linguagem, ao trabalho e ao mito os homens são homens. A pergunta sobre o fundamento do tabu do incesto se resolve na pergunta sobre a significação do homem, e esta, na significação do espírito, que não se defronta consigo mesmo. Faz-se necessário compreender, agora, símbolos, metáfora, equações, a posição, o significante e o significado, o espírito: algo que é nada. Frente à análise sobre a fundação da norma, Lévi-Strauss busca responder a negação da natureza. Neste aspecto se percebe o fundamento mais importante de suas reflexões, ou seja, alcançar uma generalidade universal. Se for possível encontrar essa generalização, é na própria diferença que a encontramos. Neste aspecto faz-se necessário admitir que as diferenças não constituem dado natural, mas uma organização sistemática que se compreende por meio de uma análise estrutural. Logo, deve-se formular a seguinte pergunta: é possível elaborar uma estrutura geral das estruturas? Se há um sistema de diferenças, pode-se dizer que não há uma oposição, pelo menos lógica, entre a ordem natural e a ordem 15 PAZ, Otávio, op. cit., p. 19 2 0 Ruth M. Chittó Gauer cultural. Esta oposição entre natureza e cultura pode ser negada. Faz-se necessário ressaltar, ainda, que esta é a oposição entre lei e universalidade, obrigação e necessidade. Se a explicação dos fenômenos sociais deve ser procurada em leis universais que regem as atividades do inconsciente, corre-se o risco de perder a compreensão do individual. Para Lévi-Strauss, o inconsciente seria o mediador entre o eu e o outro. Em ambos os casos, o mesmo problema se apresenta, o da comunicação procurada, algumas vezes entre um eu subjetivo e um eu objetivante, outras vezes entre um eu objetivo e um outro subjetivizado. Nos dois casos também a procura positiva dos itinerários inconscientes deste encontro, traçado na estrutura inata do espírito humano, na história das diferentes sociedades e na irreversibilidade dos indivíduos, é a sua condição para o êxito. Lévi-Strauss16 define o êxito da seguinte forma: “se, como o cremos, a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas que são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, ‘primitivos’ e ‘civilizados’, é necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição e outros costumes, sob a condição, naturalmente, de levar a análise bastante longe”. O objetivo do autor parece ligado à busca de um inventário de possibilidades inconscientes de cada relação, no qual a compatibilidade e a incompatibilidade que cada uma dessas relações mantêm com todas as outras fornecem uma arquitetura lógica para desenvolvimentos históricos que podem ser imprevisíveis, sem nunca se caracterizarem como arbitrários. O paradoxo apresentado pelo autor é querer reconciliar a etnologia e a história, no próprio momento em que a concepção que ele possui da primeira leva à desvalorização da segunda. O fato de querer conciliar uma tal situação demonstra a sua consciência sobre o limite de tal proposta. Retomemos o tema da norma primordial sob outro ângulo: seguindo a preocupação da busca das estruturas de parentesco por meio da lógica dos sistemas científicos, Lévi-Strauss, em Estruturas Elementares de Parentesco (1949), enfrentando o mesmo enigma que Freud se propusera resolver em 1913, em Totem e Tabu, afirma a existência de um evento originário, fundador da sociedade humana. Tal evento originário, para Lévi-Strauss, seria o da proibição 16 LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história, Lisboa, Presença, 1952, p. 133. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 21 do incesto, com a consequente regulamentação da troca de mulheres, necessária e imposta pela exogamia, adotada com vistas ao estabelecimento de alianças entre os grupos humanos. Essa troca constitui-se, para o autor, além de uma estrutura subjacente a todo sistema de parentesco e a todo sistema social primitivo, o momento da passagem da natureza à cultura. Ao nível das estruturas elementares, de resto, esse universal, que sintetiza a proibição do incesto e a exogamia, representa o lugar onde se articula o modelo sincrônico, estrutural, de caráter trans-eventual. E é a partir daqui que se organizam as proposições teóricas que servem como suporte para o método de análise estrutural em antropologia. Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto constitui o vínculo originário que une a esfera biológica à social, estando situado entre ambas, sem pertencer integralmente a uma ou outra. Ponto de encontro e articulação, portanto, entre natureza e cultura, ponto no qual se assenta a ordem social construída pelo homem. Assim, essa proibição “não é de origem puramente cultural, nem de origem puramente natural, nem tampouco é uma combinação de elementos compósitos: constitui, ao contrário, o passo fundamental graças ao qual - e, sobretudo no qual - realiza-se a passagem natureza-cultura. Tudo o que é universal no homem pertence à ordem da natureza e é caracterizado pela espontaneidade (...). Tudo o que está submetido a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular” .17 Por meio dos mecanismos de trocas, que obedecem a uma rigorosa e complexa lógica instituída em nível inconsciente (aqui é conceituado de modo radicalmente diverso do freudiano), e nos quais as mulheres constituem o objeto de troca por excelência, todo o sistema socialfunda-se em um complexo sistema de comunicação cuja estrutura, dada desde o inconsciente, ocorre em pelo menos três níveis: comunicação através das mulheres, comunicação através dos bens e dos serviços, comunicação por meio 18das mensagens.18 Na verdade, todo sistema cultural seria um sistema de comunicação, comunicação normatizada, que deve ser decodificado para a compreensão de seus elementos básicos e estruturantes. Embora Lévi-Strauss 17 LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), Petrópolis, Vozes, 1982, p p .70-71. 18 MICELA, Rosaria. Antropologia e Psicanálise, São Paulo, Brasiliense, 1984. 2 2 Ruth M. Chittó Gauer tenha afirmado, em suas conclusões sobre identidade, que esta "é uma entidade abstrata sem existência real, muito embora seja indispensável como ponto de 19referência",19 não é exagero dizer que, para a maior parte dos homens, a humanidade, como ponto de referência coletivo, é um espaço em branco no mapa das emoções. Este aspecto leva a considerar, necessariamente, o fato de que o planejamento de organizações, que contemple apenas a racionalidade e os elementos racionais, pode-se revelar altamente inoperante. Há, no entanto, uma variável a levar em conta: assim como as transformações de relações profissionais são substituíveis nas sociedades complexas, é possível enquadrar nesse modelo, ao menos “idealmente”, a permuta da própria nacionalidade. Mas, para isso, é fundamental que se trate de sociedades na quais o indivíduo é, pelos mais variados fatores, muito atomizado. Nesses casos, sua singularidade, elevada a um plano de destaque, faz com que a decisão sobre suas relações se encontre ao nível do eu. Tal atomização criou situações sociais nas quais se detecta a revolta dos fatos contra os códigos e um sistema de justiça que não satisfaz. A atomização das decisões quebra a lógica da reciprocidade, pois o nível de “harmonia” estruturante na conduta fundada pelo Não foi deslocado para a impessoalidade totalizadora em que a reciprocidade não encontra espaço. A norma, pensada como estrutura, seguindo a reflexão do autor, encontra-se fora de nós, nos sistemas naturais e sociais, e em nós como função simbólica. As observações realizadas por Lévi-Strauss permitiram que fossem decodificados os sistemas contemporâneos de parentesco. Nestes sistemas a determinação do cônjuge fica a cargo de condicionamentos diversos e complexos a exemplo da demografia, da economia, ou, ainda, de posturas psicológicas. A passagem às estruturas complexas do parentesco, ou seja, àquelas de onde provêm, em particular, nossos sistemas de parentesco, deve ser definida em perspectivas com variantes complexas que envolvem as trocas e as normas. Frente a essa complexidade Lévi-Strauss encaminha uma abordagem histórica das instituições da Idade Média e das instituições indo-européias e semíticas: a análise histórica imporá a distinção entre uma cultura que proíbe absolutamente o incesto, sendo a negação simples, direta ou imediata da natureza, e uma cultura - aquela que está 19 LÉVI-STRAUSS, Claude. (Org.), La Identidad, Paris, Grasset, 1977, pp. 11-39. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 23 na origem dos sistemas de parentesco contemporâneos - que joga ardilosamente com a natureza e algumas vezes rodeiam a proibição do incesto. Segundo 20Merleau-Ponty,20 “precisamente este tipo de cultura mostrou-se capaz de enfrentar um corpo a corpo com a natureza e criar a ciência, a dominação técnica e a história acumulativa”. Podemos complementar lembrando que tal cultura passou a normatizar essas relações com a mesma complexidade com que as trocas continuam a se realizar. Considerando que, com o surgimento do indivíduo moderno, a normatização sofreu alterações significativas, não se pode negar a grande contribuição que essa “nova” categoria social trouxe à sociedade moderna, que se caracteriza pelo rompimento de “amarras que o prendiam à sociedade 21tradicional” .21 Essa contribuição se refere aos princípios de organização, aos valores, ao surgimento do direito natural, ao direito subjetivo, vinculado à qualidade única do ser humano, agora separado do ser social e político. O indivíduo passa a aparecer no plano das representações filosóficas como sujeito autônomo, em todas as instâncias da vida. Caracteriza-se pelo surgimento de uma intimidade, que irá se diferenciar nas diversas formas de habitar, nas escolhas de vida, bem como em novos hábitos determinados por atitudes individuais, tais como a leitura silenciosa (textos de edificação moral, sonhos românticos), nas relações sociais, na autonomia apontada pelo anonimato das multidões, na libertação representada pelo acesso ao mercado através das trocas econômicas. A autonomia constitui uma marca da modernidade, caracterizada pela emancipação do indivíduo. Logo, a autonomia aparece para o indivíduo livre. Se, com Descartes, há a apresentação da figura do sujeito cognoscente, consciente de si mesmo, que coloca a natureza perante si, como objeto de conhecimento, com Hobbes e Rousseau se reconstitui a realidade social partindo-se da ideia de que todos os indivíduos são livres e se associam de forma voluntária mediante contratos sociais que paulatinamente estabelecem, mesmo que não estejam convencidos das circunstâncias. Esta ideia demarca as instituições, principalmente o direito, na medida em que percebe o todo social como produto da associação voluntária e livre dos indivíduos. MERLEAU-PONTY Maurice. De Mauss à Claude Lévi-Strauss, op. cit. p. 365-366. 21 MERLEAU-PONTY Maurice. De Mauss à Claude Lévi-Strauss, op cit. 24 Ruth M. Chittó Gauer Do ponto de vista sócio-histórico, a figura do indivíduo é formada a partir de uma progressiva interiorização de várias normas de conduta, de capacidades de 22autocontrole e de auto-restrição. As análises de Norbert Elias22 apresentam como, a partir dos séculos XV e XVI, vão se constituindo, no conjunto da sociedade, as maneiras de educação, modos de agir, que poderão representar não apenas a “fachada” dos indivíduos, mas também máscaras de proteção. Outro fator reside no surgimento da consciência de uma interioridade, que foi se configurando em nossas evidências fundamentais. Portanto, a categoria indivíduo se caracteriza por uma reivindicação tanto da independência individual, como do amor conjugal, contrapondo-se a uma lógica guiada pela posição hierárquica e pela razão econômica, anteriormente determinantes. O modo de vida urbano abriu espaço para o anonimato e, com ele, para o afrouxamento do controle social tradicional. Foi nos centros urbanos modernos que o indivíduo desvinculou-se dos laços de dependência, das hierarquias tanto sociais quanto familiares, características das sociedades tradicionais. Se nas comunidades tradicionais cada pessoa se situava em um lugar determinado pela hierarquia estruturante, no mundo urbano individualizado, ao contrário, o lugar fixo abre espaço para a mobilidade, que se apresenta como base para a liberdade. Este desenvolvimento urbano não ocorreu sem a perspectiva econômica fundada no desenvolvimento do mercado, este por si só constitui espaço para a liberdade, na medida em que as trocas não se dão por posição social, não obedecem a uma lógica exterior, mas antes de tudo respondem a acordos entre indivíduos. Os acordos no mundo contemporâneo foram regulamentados pelo direito o qual normatiza todas as relações sociais inseridas institucionalmente. Para além desta regulamentação o direito regulamenta as mais íntimas das ações sociais no mundo atual. 22 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro, Zahar, 1997, pp. 13-79. A Fundação da Norma: para além da racionalidadehistórica 25 Historiadores e sociólogos como Tocqueville,23 Simmel24 e a sua posteridade da Escola de Chicago, Norbert Elias25 e Louis Dumont,26 buscaram descrever esta lógica de individualização, apontando os diversos processos que simultaneamente a provocam, a conformam e dela decorrem. Em diferentes graus todos são sensíveis à ambivalência apontada pela modernidade, que se, por um lado, produz o indivíduo em sua autonomia, por outro o expõe. Quanto maior for a liberdade, mais necessária será a interiorização de um determinado número de obrigações, e mais essa necessidade surgirá, paradoxalmente, como encargo muito difícil de ser cumprido. O paradoxo da liberdade impõe um preço: quanto maior a liberdade, maior seu custo, quanto maior o individualismo, maior a socialização. Não por acaso Norbert Ellias coloca o indivíduo em relação com a sociedade em sua totalidade. Essa individualização crescente configura uma sociedade crescente, na medida em que, quanto mais nos individualizamos, mais nos socializamos, isso sob o prisma da norma social. Segundo Foucault27, a nossa sociedade funciona por normas, com as quais cada um deve se conformar; assim, não por acaso, dizemos que a liberdade tem seu custo. Ao mesmo tempo em que a norma social limita a ação dos indivíduos, ela, paradoxalmente, também é desejada. Há na liberdade individual uma crença de verdade que Foucault considera ser um dos grandes temas privilegiados pelos relatos legitimadores do presente. Foucault assinala que não são as condições políticas e econômicas da existência que constituem, em si mesmas, os obstáculos a desmontar e a decodificar em prol da busca da verdade, mas sim certos domínios de saber, domínios nos quais, para o autor, se formam o sujeito e as relações com a verdade. Neste sentido, afirma que “só se desembaraçando desses grandes temas do sujeito, do conhecimento, ao mesmo tempo originário e absoluto, utilizando eventualmente o 28modelo nietzscheano, se poderá fazer uma história da verdade”.28 Com a atual TOCQUEVILLE, Aléxis de. O Antigo Regime e a Revolução, Brasília, UNB, 1979. 24 SOUZA, Jessé; OELZE, Berthold. (Orgs.), Simmel e a Modernidade, Brasília, Editora da UNB, 1998. 25 ELIAS, Norbert, op. cit. 26 DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985. 27 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro, Ed. Nau, 1999. 28 FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 27; 142. 2 6 Ruth M. Chittó Gauer mutação no que diz respeito ao lugar da experiência, hoje “acelerada” de modo irreversível, é possível falar da incerteza da liberdade, mesmo das vinculadas às leis científicas. O que podemos constatar é que, durante o século XX, mais especificamente no pós-guerra, a vida em sociedade passou a se caracterizar por um significativo aumento de normas. A ampliação da normalização contemporânea pode ser verificada em diferentes aspectos que vão desde o planejamento urbano às normas de higiene, aspectos do modo de vida e a forma como são construídas as habitações, considerado o aspecto mais significativo. A emancipação foi pensada pelos reformadores sociais como um ideal de emancipação das populações. Esta forma de autonomia está posta na sociedade salarial, na medida em que tal norma origina comportamentos racionalizados que englobam as atividades em geral. A racionalização rompeu com as formas de solidariedade das sociedades tradicionais. O indivíduo se atomiza. O único laço que permanece é o de natureza institucional, a partir da emergência das necessidades de leis e de regulamentos. Isso aponta para o fato de que quanto mais livres somos, mais necessitamos de regulamentações; esta socialidade, portanto, é produto da própria liberdade. O indivíduo frente ao outro é um ser igual em direitos, e isso não se apresenta pura e simplesmente como proclamação teórica e jurídica, mas constitui experiência de todos os dias. A igualdade, deste modo, não é somente um valor, mas uma prática cotidiana que exige um aumento contínuo da liberdade e de sua limitação. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 27 III A sedução da norma: fato social total Pensar a norma como fato social total implica compreendermos a lógica, a linguagem do direito, da arte e da religião como constituintes de projeções do 29social, tal como referido por Lévi-Strauss:29 “Não seria conveniente esperar que as ciências particulares tivessem aprofundado, para cada um desses códigos, seu modo de organização e sua função diferencial, permitindo, desta maneira, compreender a natureza das relações que eles mantêm uns com os outros” . Sob o risco de sermos acusados de paradoxais, parece que, na teoria do fato social total, a noção de totalidade é menos importante do que a maneira bem particular como Mauss a concebe: “folheada, poder-se-ia dizer, e formada de uma multidão 30de planos distintos e justaposto Ao invés de aparecer como um postulado, a totalidade social se manifesta na experiência, instância privilegiada que pode ser apreendida no nível da observação, em ocasiões bem determinadas: “por 31exemplo quando se agita a totalidade da sociedade e de suas instituições”.31 Entendemos que essa totalidade não suprime o caráter específico dos fenômenos, eles permanecem ao mesmo tempo jurídicos, religiosos, econômicos, estéticos, morfológicos ou outros. Nesse sentido é que Mauss influenciou Lévi- Strauss. Para o primeiro “a totalidade consiste, em suma, na rede de inter- relações funcionais em todos os planos”.32 Se, como diz Mauss, os fatos sociais não são fragmentos esparsos e isolados, o direito como outro conhecimento especializado pode ser visto como fato social total. Ao contrário da análise sociológica que embasava as interpretações sobre os eventos sociais publicadas anteriormente, segundo a teoria proposta por Mauss corpo, alma, sociedade, tudo está inter-relacionado, ligado, tudo se mistura, por princípio e por fim, a percepção deve ser do grupo por inteiro e o seu comportamento é, também, integral. Se o essencial se constitui no “movimento como um todo”, o aspecto vivo, o instante fugidio em que a sociedade e os homens tomam consciência de si 29 LEVI-STRAUSS, Claude, Antropologia estrutural dois, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976, p. 14. 30 LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 14-15. 31 LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 14-15. 32 LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 14-15. 2 8 Ruth M. Chittó Gauer mesmos e de sua situação perante outros deve ser a única garantia de que a análise preliminar, levada até as categorias do inconsciente, nada deixou escapar. Mesmo assim Lévi-Strauss afirma que “a prova permanecerá bem ilusória: não saberemos jamais se o outro, com o qual não podemos, apesar de tudo, confundir-nos opera, a partir dos elementos de sua existência social, uma síntese que coincide exatamente com a que elaboramos”. O autor reconhece, entretanto, que alguns dos fatos sociais totais pertencem às ciências em particular: economia, direito, ciência política, história. Todavia, estas disciplinas consideram principalmente os fatos que estão mais próximos de nós, oferecendo-nos, portanto, um interesse privilegiado. Por outro lado se faz necessário compreender que estas ciências não poderão construir perspectivas gerais se não levarem em conta os inventários empíricos da antropologia. Há, no entanto, uma segunda dificuldade no que se refere à condição de pensar a norma como fato social total: a extensão do caráter de signo a todos os fenômenos sociais. O exemplo citado por Lévi-Strauss34 propõe uma questão: “quando consideramos um sistema de crenças - digamos o totemismo - poderíamos acrescentaro direito, a justiça, a liberdade - uma forma de organização social, a pergunta que nos fazemos é: o que tudo isso significa?” Para respondê-la, esforçamo-nos por traduzir em nossa linguagem regras primitivamente dada em uma linguagem diferente. Neste caso, é essencial perceber que Lévi-Strauss propõe interpretar signos e não, como muitos pensam, objetos. O signo, em sua visão, é o definido como aquilo que substitui alguma coisa para alguém. Podemos fazer uma analogia perguntando: o que substitui a norma, pensada como tradição, e para quem ela é substituível? Sabemos que o domínio da norma está impregnado de significação; desse modo, nos diz respeito de forma total. Não podemos estudar os deuses e ignorar suas imagens, nem estudar os ritos sem analisar os objetos e as substâncias que o oficiante utiliza e manipula, ou ainda estudar as normas sociais, independentemente das coisas que lhes correspondem, assim como não podemos, também, estudar a norma desvinculada da especificidade social em 33LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 16-17. 34 LEVI-STRAUSS Claude, op. cit., pp. 17, 18, 19. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 29 que se insere. Esta especificidade deve levar em conta não apenas o espaço, mas fundamentalmente o tempo traduzido pelo ritmo social imprimido. Quando se comunicam os homens conversam, escrevem, gesticulam, criam regras e normas para que essa comunicação se efetive: quem se comunica com quem? Quando? Onde? Em que condições e em que tempo? As respostas a essas questões devem ser buscadas, segundo as premissas que apresentamos, junto ao significante. Tudo são símbolos e signos que se colocam como intermediários entre indivíduos e sociedades. A certeza passada por Lévi-Strauss sobre a necessidade, ao menos provisoriamente, do isolamento dos fenômenos sociais dos demais campos do saber, a exemplo da antropologia filosófica e da biologia, se deve ao fato de que, segundo ele, “sabemos que de fato e até mesmo de direito, a emergência da cultura permanecerá um mistério para o homem enquanto ele não conseguir determinar, no nível biológico, as modificações de estrutura e de funcionamento do cérebro. Destas transformações, a cultura representa simultaneamente o resultado e o modo social de apreensão - criando, ao mesmo tempo, o meio intersubjetivo indispensável para que elas prossigam. Se bem que anatômicas e fisiológicas essas modificações não podem ser 35definidas nem estudadas apenas em relação ao indivíduo”.35 é importante salientar que tal reflexão foi apresentada pelo autor na primeira metade do século XX. As pesquisas realizadas por outros antropólogos após a segunda metade do século XX trouxeram várias outras contribuições para o campo da interpretação. No campo da antropologia a mitologia, segundo Geertz,36 tornou-se dispensável após o aumento do volume de comunicação e da integração entre os seres humanos. Esse aumento da comunicação em nível mundial não necessariamente tornou a vida mais fácil. Para o antropólogo norte-americano um dos principais deveres dos antropólogos (e dos cientistas sociais, de maneira geral) neste início de século é tentar fazer com que as diversas sociedades (que são cada vez mais complexas e envolvem cada vez mais pessoas) sejam capazes de atingir algum entendimento entre si. Essa é uma das mais relevantes 35 LEVI-STRAUSS Claude, op. cit., p. 22. 36 GEERTZ, Clifford, Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz originalmente publicada na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001. 30 Ruth M. Chittó Gauer lições de Geertz. Depois de Claude Lévi-Strauss, Geertz é, provavelmente, o antropólogo cujas ideias causaram maior impacto após a segunda metade do século XX, não apenas para a própria teoria e prática antropológicas, mas também fora de sua área, em disciplinas como a psicologia, a história e a teoria literária. Criador da chamada antropologia hermenêutica ou interpretativa, Geertz conduziu extensas pesquisas de campo que deram origem a livros escritos essencialmente sob a forma de ensaio. Suas pesquisas ocorreram na Indonésia e no Marrocos. Seu primeiro estudo tinha por objetivo entender a religião em Java. No final, foi incapaz de se restringir a apenas um aspecto daquela sociedade. Geertz entendeu que os estudos dessas sociedades específicas não poderiam ser extirpados e analisados separadamente da sociedade em geral, desconsiderando, entre outras coisas, a própria passagem do tempo. A antropologia de matriz norte-americana é, de acordo com ele, um estudo que pretende entender "quem as pessoas de determinada formação cultural acham que são, o que elas fazem e por que razões elas crêem que fazem o que 38fazem?' Uma de suas metáforas preferidas para definir o que faz a antropologia interpretativa é a da leitura das sociedades como textos ou como análogas a textos. A interpretação se dá em todos os momentos do estudo, da leitura do "texto" cheio de significados que é a sociedade à escritura do texto/ensaio do antropólogo, interpretado por sua vez por aqueles que não passaram pelas experiências do autor do texto escrito. Na entrevista, Geertz fala do panorama da antropologia atual, daquilo que vê como o dever do antropólogo tanto hoje quanto no futuro, dos limites da interpretação e de como a onda de globalização estaria afetando as diversas culturas. Na opinião de Geertz, o estudo de sociedades complexas e muito grandes, a exemplo do Brasil e da Índia, torna a análise muito problemática. Explica que, em primeiro lugar, o antropólogo lida com uma gama maior de sociedades, não apenas as chamadas sociedades simples. Em segundo lugar, o mundo é agora muito mais integrado e desenvolvido, logo, tudo é conectado a tudo o mais de forma bastante complicada. A antropologia não pode mais ser uma ciência 37 GEERTZ Clifford, Nova Luz sobre a Antropologia, São Paulo, Jorge Zahar, 2001. 38 GEERTZ Clifford, Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz originalmente publicada na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001. 0 7 A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 31 completamente geral, que estuda tudo, que diz estudar o "Homem". Ela tem que perceber qual é, em um lugar como a Índia ou a Indonésia, o Marrocos ou o Brasil, o seu papel particular na interpretação do que ocorre. E isso deve ser realizado ao lado de outras disciplinas, como economia, direito, política, história, literatura. Todas essas questões devem ser levadas em consideração, e a antropologia deve encontrar seu lugar e sua contribuição em meio a esses outros campos. O niilismo não faz parte das crenças de Geertz: afirma ele que se fosse niilista, nem começaria a interpretar, não tentaria ao menos começar a entender os outros. Geertz diz: “acho que há uma diferença entre o niilismo e uma simples ausência de certeza. É verdade que quase todas as interpretações antropológicas tenham por fim um resíduo de incerteza, de vagueza, indeterm inação, contingência. Mas isso não é niilismo, isso é o modo como se vê o mundo quando se é realmente um niilista. Neste caso o niilista não se importará com nada, não tentará buscar compreender nada, não interpretará nada. A análise interpretativa da qual fala Geertz, possui sua matriz de pensamento na hermenêutica. A interpretação utilizada pelo autor vem acompanhada do aspecto dialógico na medida em que pensa a cultura como movimento. A experiência de compreender outras culturas assemelha-se mais a entender um provérbio ou ler um poema do que alcançar uma comunhão. Um dos objetos mais apropriados para interpretar as sociedades complexas é, sem dúvida, a análise de suas normas, regras, hábitos e leis sociais; elasfazem parte do repertório da antropologia, porém o direito permite a utilização de modelos lógicos nem sempre encontrados em outras áreas. A hermenêutica utilizada por antropólogos vem, historicamente, se esforçando para explicar as diferenças em geral, assim como as diferenças existentes no campo relativo às formas de normatização das relações sociais. Há muitas regras e costumes no interior de todas as sociedades que não são leis, mesmo assim são respeitadas, da mesma forma que certos hábitos que têm efeito social na estrutura das sociedades são respeitados, ainda que não estejam escritos em códigos de direito. Esse fato não significa que os indivíduos obedeçam às regras intuitivamente ou mesmo sem questionar. Muitos juristas, a exemplo de Hans Kelsen, demonstraram que a 39 KELSEN Hans, In: SHIRLEY, Robert W. Antropologia jurídica, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 10. 32 Ruth M. Chittó Gauer natureza fundamental do direito é o poder que tem a sociedade de aplicar sanções ou punir uma conduta disruptiva ou “ilegal” . O autor refere que “em qualquer sociedade há regras primárias, isto é, sobre o comportamento do indivíduo, e regras secundárias, normas da sociedade referentes às primárias, ou seja, fórmulas sociais para aplicar sanções àquelas que não obedecem às regras primárias” .40 Segundo Shirley o antropólogo Paul Bohannan propôs uma visão semelhante quando escreveu que a maioria das sociedades tem “dupla institucionalização”, isto é, instituições sobre conduta e instituição para punir condutas extravagantes. Podemos pensar em instituições que fazem as leis e instituições que aplicam a lei. As primeiras representam o conjunto das forças sociais e as segundas, forças políticas estruturadas pelas instituições. Em que pese as diferenças entre sociedades simples e sociedades complexas, esses dois planos compõem as estruturas sociais. Se a questão da diferença pautou as pesquisas da escola idealista de antropologia legal, a qual insiste em que as sociedades sem estado possuem regras amplas sobre como os comportamentos sociais devem ser pautados, por outro lado, é também correto afirmar que essas regras por vezes são manipuladas, subjugadas e ignoradas. A ausência de controle interno em qualquer sociedade exige o desenvolvimento de outras formas de controle social. Na constatação de diferenças entre sociedade simples e sociedade complexa há que se levar em conta que nas primeiras as sanções, exílio, ostracismo ou morte, são evocados para frustrar o que o criminoso poderia vir a fazer e não como simples ato punitivo, como no caso das sociedades modernas. Há no campo da antropologia um campo de pesquisa muito desenvolvido que é a do direito comparado. Comparar os diferentes tipos de instituições jurídicas que não as das sociedades modernas ocidentais leva ao conhecimento de estruturas normativas com formas diferenciadas que se equivalem às estruturas das instituições modernas. O domínio tradicional do estudo da diferença no mundo ocidental ocupou um ponto central na reflexão de Heidegger desde Ser e Tempo, obra em que, como crítico da metafísica (ou do humanismo, se preferido for), questiona a noção de ser (apenas como simples presença) própria da objetividade. Em especial, 40 SHIRLEY, Robert W. Antropologia jurídica, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 10 A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 33 Heidegger problematizou as reais possibilidades de tal noção descrever/compreender a existência e a história do homem. O ser da metafísica é o ser mutilado, que está escondido no ente-presença (esquecido na presença) e condicionado como fundamento, fato estável e uno (Sujeito ideal da ciência, esquecido da subjetividade). O pensamento da diferença, para Heidegger, reabilita o ser estabelecendo suas conexões (diferenciantes) como ente, rememora o ser e o ente para além da presença, colocando em comunicação objetividade e subjetividade. Heidegger anunciou a não coincidência do horizonte da presença e do ente-presente, ou seja, nega o ser como fundamento, plenitude da presença e estabilidade una, considerando-o com um “evento” (um acontecimento temporal) de um horizonte histórico sem repetição, sem estruturas, igual e eventual. O estar-aí (o ser-no-mundo) é o ser-para-a-morte que vive continuamente a possibilidade de não existir mais. De acordo com Vattimo, Heidegger não considera Nietzsche um pensador da diferença porque julga que este último não problematizou (“o porquê da instituição”) a diferença, apenas a rememorou, desconsiderando seu caráter de eventualidade factualizada no horizonte histórico. Para Heidegger, quando Nietzsche escreveu que “do próprio ser já não há mais nada” e falou da “metafísica como história do ser", transformou o ser homem-sujeito-consciência em envio e transmissão histórico-destinal (a história com história da humanidade, fundada e consagrada no gênero humano) submetida à tirania do significante 41sobre o significado, da objetividade sobre a subjetividade41 e, sob essas premissas, a tirania dos modelos modernos não deixou de se situar no contexto da Estupidez.42 Há, no entanto, que salientar a concepção de devir na ótica dos modernos. Ao contrário de Geertz, para Ortega y Gasset43 o mundo contemporâneo significa o niilismo, enquanto a temporalidade, afirma o autor,44 significa “o querer criador de um novo âmbito de realidade”, que “mostra também um momento 41 VATTIMO, Gianni, op. cit., p. 71-92. 42 GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão.Rio de Janeiro: Lúmen & Júris, 2006. 43 GASSET, José Ortega y, Meditações do Quixote, São Paulo, Livro Ibero-Americano, 1977, p. 162. Ver ainda La rebelión de las massas (1930), Obras, v. VI, Madrid, Alianza Editorial, 1946. 44 GASSET, Ortega y, op. cit. 3 4 Ruth M. Chittó Gauer ‘escandalosamente temporário’, não sujeito a mudanças, mas também sem normas ou raízes”. O século XX, conforme apresentado por Ortega y Gasset na obra A Rebelião das Massas, era o primeiro período da história que não encontrava qualquer padrão no passado. Rompera até com a cultura moderna, ou pelo menos recusava-se a considerá-la definitiva, como fizera o século XIX. Com esta análise em mente, podemos pensar na desmoralização da cultura europeia. No final do século XIX, o devir era uma das categorias principais do pensamento, no sentido tanto decadente quanto criativo, e Nietzsche não estava só quando sentia o advento de uma nova era, caracterizada por uma reapreciação de valores e por uma nova, mas perigosa, abertura do pensamento e da cultura. A morte do homem retratada pela robótica é um exemplo significativo da coisificação da humanidade, já há muito diagnosticada por Simmel45 quando analisou o papel do dinheiro na sociedade e a separação entre as culturas subjetiva e objetiva - fenômeno geral e característico da modernidade ocidental, sendo que, segundo o autor, a economia monetária e a mediação das relações humanas por meio do dinheiro é fundamento das duas. A influência que Simmel recebeu de Nietzsche, Max Weber e Karl Marx revelam sua visão acerca da coisificação do ser humano, resultado do domínio das coisas sobre o homem. O caráter fetichista da produção de mercadorias no capitalismo, revelado por Marx, é um exemplo deste fenômeno. O destino trágico, na significação que nos interessa, aponta para o fato peculiar de que as forças destruidoras mobilizadas contra um ser foram produzidas pelas tendências mais profundas deste mesmo ser, cujo movimento na sociedade, afinal, se dá com base na liberdade e é uma forma de lidar com os constrangimentos e obrigações impostos pela moral, pela ética e pelo direito. 45 SOUZA, Jessé; OELZE, Berthold.(Orgs.), Simmel e a Modernidade, Brasília, Editora da UNB, 1998, p. 10. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 35 IV Os deslocamentos da norma: reinvenção de termos Para Mauss o direito é o modo de organizar as expectativas coletivas, fazer com que os indivíduos sejam respeitados. Os fenômenos jurídicos são os fenômenos morais organizados. A consciência moral introduz a consciência na concepção jurídica46. Há consciência e conhecimento latente em todo o direito, pois nem tudo pode ser formulado. Para o autor os direitos costumeiros são, de alguma forma, uma mistura de direito público e direito privado, de direito não formulado e direito formulado. Segundo a análise, o autor refere que às funções, às honras, aos cargos, aos direitos acrescenta-se a pessoa moral47. Assim como na passagem natureza-cultura, o Não, negativa que contém um Sim afirmativo, o qual permitiu a circulação de mulheres e criou a instituição familiar, a história do direito antigo permitiu a compreensão das transformações da moral, da família, entre outras, e, com elas, de toda a sociedade. Esta forma de instituição, a família, ainda permanece com suas especificidades nas diferentes sociedades contemporâneas, forneceu a transição para a moral e para o próprio direito. A moral e a prática das trocas utilizadas pelas sociedades que precederam as nossas guardam traços importantes de seu princípio fundador. Na opinião de 48Mauss,48 ”vivemos em sociedades que distinguem fortemente (a oposição é agora criticada por alguns juristas) os direitos reais e os direitos pessoais, as pessoas e as coisas”. Esta separação é fundamental: ela constitui a condição mesma de uma parte de nosso sistema de propriedade, de alienação e de troca. Do mesmo modo, nossas antigas civilizações, como a semítica, a grega e a romana, distinguem claramente entre a obrigação e a prestação não gratuita, por um lado, e a dádiva por outro. Mas não seriam tais distinções muito recentes nos direitos das grandes civilizações? “A pergunta feita pelo autor é respondida após minucioso exame sobre a sobrevivência dos princípios do direito indo-europeu, romano, hindu e germânico, muito antigo” .49 Dentro da tradição indo-européia encontramos o culto aos antepassados nas sociedades latina e helênica, culto MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, v. I, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, p. 234. 47 MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, v. I, op cit. p. 234. 48 MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, v. II, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, p. 131-132. 49 MAUSS, Marcel, op. cit. 36 Ruth M. Chittó Gauer cujo objetivo era o de reafirmar os papéis sociais (pai, mãe), assim como a importância das coisas, propriedade, herança, autoridade, traços que se mantiveram na época clássica. O direito de propriedade e de sucessão nasceu enraizado nos costumes, não foi obra de legisladores, estruturou-se nos mitos, a exemplo do poder que se liga à ideia de pai em geral e não apenas de paternidade biológica. O pátrio poder é uma das peças fundamentais para se entender a antiga concepção da família, da propriedade, da herança, da autoridade e da punição. Encontramos no vocabulário das sociedades indo- 50européias50 a “Patria Potestas” que se constitui no poder que se liga à ideia de pai em geral, assim como o termo “Paternus” é o adjetivo derivado de “Pater” que exprime o pai físico e pessoal. Encontramos um terceiro adjetivo vinculado a “Pater”, “Patricius”, o descendente de pais livres. Esses diferentes significados estão relacionados à natureza sagrada dos papéis sociais oriundos da família: se a natureza concede ao filho a maioridade, esta só lhe é conferida, de fato, quando os rituais sagrados legitimarem tal situação. Considerando a origem etimológica do termo latino “Pater” , a forma mais genuína é o nome de “Pai”, “Pater” , do sânscrito “Pitar” . O termo “Pater” é a qualificação permanente do Deus Supremo dos indo-europeus, figura do nome divino de Júpiter. A forma latina se originou de inovação: “Dyen Pater”, que é lido como “Pai Celeste”, do mesmo modo que o vocativo grego “Zeü Páter” , em sua origem, exclui a relação de paternidade física, pois estamos longe do parentesco estritamente físico e “Pater” não designa o pai no sentido pessoal. “Atta” educa a criança, daí a diferença entre “Atta”e “Pater” . A “Pátria Potestas” é o poder que se liga à ideia de pai em geral. “Patrius” se refere ao pai não físico, liga-se à relação de parentesco. “Paternus” é o adjetivo derivado de “Pater” ; “Patricius”, o que, como já vimos, descende de pais livres, exprimindo uma hierarquia pessoal. As origens etimológicas permitem que interpretemos a ligação da religião doméstica com a natureza: o pai seria o chefe do culto e o filho, seu auxiliar nas funções sagradas. A hierarquia estabelecida vincula-se apenas a determinado tempo, a maioridade biológica, portanto natural; a morte do pai, contudo, não separa os filhos, que se mantinham unidos ao lar paterno e que 50 ' 'BENVENISTE, Emile, Le vocabulaire dês instituitions indo-européennes, v. I, Paris, Éd. Minuit, 1969, pp. 207-212. A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 37 se submetiam à sua autoridade. Essa presença ausente do pai morto cria o culto doméstico. Sob este aspecto, é mais viável pensarmos em “pátrio poder’ do que em “poder paterno”. A religião, ao contrário da natureza, não concede a maioridade aos filhos. Entre os direitos analisados, o exemplo do contrato mais antigo do direito romano é, segundo Mauss, o nexum, que já se destacava do fundo de contratos coletivos e também das antigas dádivas. Seguindo a análise, deparamo-nos com a seguinte afirmativa:51 “há um vínculo nas coisas, além dos vínculos mágicos e religiosos, das palavras e dos gestos do formalismo jurídico”. Este vínculo é marcado por alguns termos antigos do direito dos latinos e dos povos itálicos. As coisas não são os seres inertes que o direito de Justiniano e nossos direitos entendem: “Antes de tudo, elas fazem parte da família: a família romana compreende as res e não somente as pessoas”.52 Ainda que tenha sua definição no Digesto, segundo Mauss, é bastante notável que, quanto mais remontamos à antiguidade, mais o sentido da palavra família denote as res que dela fazem parte, a ponto de designar mesmo os viveres e os meios de subsistência familiar. A melhor etimologia de família é, sem dúvida, a que aproxima do sânscrito dhaman, casa. Outros termos de direito, além de família e res, prestam-se para este estudo. Quase todos os termos do contrato e da obrigação, bem como um certo número de formas desses contratos, parecem associar-se a esse sistema de “vínculos” espirituais criados pelo fato bruto, o nexum, o “vínculo” de direito, que parte tanto das coisas como dos homens.53 O contratante é primeiramente reus; é antes de tudo o homem que recebeu a res de outro, e que se torna, a esse título, seu réus, isto é, o indivíduo que está a ele ligado pela própria coisa, ou seja, por seu espírito. A etimologia já fora proposta antes, embora tenha sido eliminada, a pretexto de não fazer sentido algum; no entanto, para uma análise atenta ela oferece um sentido muito claro. Como observa Mauss,54 “reus é originariamente um genitivo em os de res e substitui rei-jetos. É o homem que é possuído pela 51 MAUSS, Marcel, op. cit., pp. 135-136. 52 MAUSS, Marcel, op. cit., pp. 135-136. 53 MAUSS, Marcel, op. cit., pp. 133-138. 54 MAUSS, MarceL, op. cit., p. 139. 38 Ruth M. Chittó Gauer coisa” . Há autores que traduzem res por “processo”, e rei-jetos por “implicado no processo”. Mas essa tradução é arbitrária, supondo que o termo res é, sobretudo, um termo processual. Para Mauss,
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