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Filosofia Rio de Janeiro UVA 2017 Wellington Trotta Filosofia Rio de Janeiro UVA 2017 Copyright © UVA 2017 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. ISBN: 978-85-69287-50-6 Autoria do Conteúdo Wellington Trotta Projeto Gráfico UVA Diagramação Cristina Lima Revisão Janaína Senna Isis Batista Clarissa Penna Lydianna Lima Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA. Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho. T858 Trotta, Wellington. Filosofia [livro eletrônico] / Wellington Trotta. – Rio de Janeiro : UVA, 2017. 1,3 MB. ISBN 978-85-69287-50-6 Disponível também impresso. 1. Filosofia. I. Universidade Veiga de Almeida. II. Título. CDD – 100 “Receio, porém, que, quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e em estar morto! Se isso é verdadeiro, bem estranho seria que, assim pensando, durante toda sua vida, que não tendo presente ao espírito senão aquela preocupação, quando a morte vem, venha a irritar-se com a presença daquilo que até então tivera presente no pensamento e de que fizera sua ocupação!” (PLATÃO, Fédon, 64a) “E também é justo chamar a filosofia de ciência da verdade, por- que o fim da ciência teorética é a verdade, enquanto o fim da prá- tica é a ação. (Com efeito, os que visam à ação, mesmo que obser- vem como estão as coisas, não tendem ao conhecimento do que é eterno, mas só do que é relativo à determinada circunstância e num determinado momento). Ora, não conhecemos a verdade sem conhecer a causa.” (ARISTÓTELES, Metafísica, 883b) “Uma opinião é uma representação subjetiva, um pensamento qualquer, uma fantasia que eu posso ter dum modo e outros de outro modo; uma opinião é coisa minha, nunca é uma ideia uni- versal que exista em si para si. Mas a filosofia não contém nenhu- ma opinião, porque não existem opiniões filosóficas [...] A filoso- fia é a ciência objetiva da verdade, é a ciência da sua necessidade: é o conceito por conceitos, não é opinar nem deduzir uma opinião de outra.” (HEGEL, Introdução à história da filosofia, 1974, p. 51) “Quem quiser seriamente tornar-se filósofo deve uma vez na vida retirar-se para dentro de si mesmo e em si tentar o derrube de todas as ciências existentes e a sua reconstrução. A filosofia é um assunto inteiramente pessoal de quem filosofa. Trata-se [...] de seu saber em busca do universal — mas de um saber cientifico genuíno, pelo qual ele desde o início e em cada passo se responsa- biliza absolutamente em virtude das suas razões absolutamente evidentes. Só posso tornar-me verdadeiro filósofo pela minha li- vre decisão de querer viver para este objetivo.” (HUSSERL, Confe rências de Paris, 1990, p. 10) SUMÁRIO Prefácio.................................................................................................................11 Apresentação..............................................................................................................13 Sobre o autor...............................................................................................................19 Capítulo 1 - Algumas noções elementares..................21 Noções preliminares...................................................................................22 Origem da filosofia......................................................................................24 Relevância do estudo da filosofia.........................................................27 Áreas de reflexão filosófica.........................................................................28 Metafísica....................................................................................28 Gnosiologia..................................................................................29 Lógica.............................................................................................29 Estética...........................................................................................30 Ética.................................................................................................30 Filosofia política.................................................................................31 Epistemologia...............................................................................32 Referências......................................................................................................33 Capítulo 2 - Condição humana.......................................35 Natureza e cultura: conceitos.................................................................36 Sentido de trabalho.......................................................................40 Ideia de linguagem........................................................................45 Relações entre técnica e sociedade....................................................49 Conceito de técnica........................................................................49 Noção de sociedade.....................................................................52 Socialização................................................................................56 O mito do progresso técnico..................................................60 O homem: uma perspectiva filosófica.................................................64 Referências......................................................................................................70 Capítulo 3 - A propedêutica filosófica.............................73 Distinção entre as formas de leituras da realidade............................74 Distinção entre conhecimento e pensamento...................................91 Introdução à lógica como iniciação filosófica.....................................96 Princípios que regem o pensamento, segundo a lógica formal....................................................................................................99 Elementos que constituem a preocupação da lógica formal.................................................................................................100 Noções sobre a questão do método..........................................106 Algumas palavras sobre Aristóteles.........................................112 Referências....................................................................................................114 Capítulo 4 - Elaboração do pensamento filosófico.......117 Filosofia e realidade....................................................................................118 Tales, Anaximandro e Anaxímenes: primeiro princípio da realidade............................................................................................120 Os grandes sistemas filosóficos: Platão e Aristóteles.........122 Estoicismo e seu sistema a partir da física.............................129 A questão do método e os fundamentos da razão.........................137 Francis Bacon: a teoria dos ídolos e o pensamento científico............................................................................................140 René Descartes e a dúvida metódica......................................149 Immanuel Kant e a crítica da razão...........................................156 Hegel: dialética como linguagem da realidade...................164 A complexidade do pensamento contemporâneo........................175Positivismo, marxismo e fenomenologia: últimas totalidades contemporâneas............................................................................177 Augusto Comte: formulador do positivismo.........................180 Karl Marx: a ideologia como oposição à ciência.................190 Acerca da fenomenologia como última totalidade em filosofia...............................................................................................202 Friedrich Nietzsche e as três críticas fundamentais............218 Relação entre conceito e conhecimento, segundo Deleuze e Guattari...........................................................................................222 Referências....................................................................................................230 Capítulo 5 - Epistemologia, conceito de ética e suas demarcações e globalização..........................................239 Problemas epistemológicos....................................................................240 Conceito de ética e suas demarcações................................................258 Aristóteles e a felicidade como supremo bem.................................260 Kant e imperativo categórico como devem em si...............266 Hegel e a filosofia do direito como ideia ético-política.......277 Marx e a crítica ao individualismo como valor.....................289 Demarcação da ética husserliana: relação entre o lógico e o ético.....................................................................................................310 Habermas e a teoria do agir comunicativo............................322 Algumas considerações sobre o problema “felicidade”.....325 Globalização, neoliberalismo e a ética utilitarista...........................330 Globalização e suas origens....................................................................330 Globalização e neoliberalismo...............................................................334 Globalização e utilitarismo...........................................................338 Referências....................................................................................................342 Considerações finais ......................................................350 10 11 PREFÁCIO A falta que faz Faz sentido estudar filosofia atualmente? Caro leitor, se a sua resposta for positiva, você estará reconhecendo a importância dessa área do co- nhecimento. Por quê? Porque vivemos um novo tempo do mundo, com inquietações, esgotamentos e renascimentos. Vivemos uma época em que a informação e o conhecimento circulam com grande velocidade e violência, dando-nos a oportunidade de ler e refletir sobre tudo e to- dos. Porém, será que estamos realmente refletindo ou apenas reprodu- zindo opiniões? Inquietações devem conferir sentido às nossas leituras e, nesse horizonte, precisamos buscar de forma discreta e persistente o sentido de todas as coisas que existem, assim como fizeram os gregos e os filósofos posteriores. O que o autor nos propõe é um pensar à maneira filosófica, para que se desenvolva uma postura investigativa típica da trajetória acadêmica para enfrentarmos os grandes desafios da vida com a consciência de nossa história, de nosso lugar. Aqui podemos dar os primeiros passos em filosofia. A filosofia, em si mesma, já é uma ideia sedutora. Assim, vale adiantar que, neste livro, você mergulhará no universo da problematização fi- losófica sobre a condição humana na dimensão da temporalidade, da cultura; sobre os diferentes tipos de conhecimento, o entendimento do senso comum, o conhecimento científico e o saber filosófico; sobre a realidade e sua relação com o real e a verdade; sobre concepções éticas e a instigante discussão sobre o fenômeno da globalização, entre outros. Como nos alertou certa vez José Saramago, na sociedade atual falta a filosofia como espaço, lugar, método de reflexão — falta-nos reflexão. 12 Considerando isso, o autor nos sugere uma trajetória em pontos impor- tantes da filosofia, em um diálogo proveitoso que tempera o rigor con- ceitual com exemplos cotidianos da nossa cultura. E é nesse contexto, nesse diálogo, que fortaleceremos as condições de possibilidade para a construção de um pensamento realmente reflexivo. Boa leitura! Prof.ª Clara Brum. (Advogada, graduada em Comunicação Social, Direito e Filosofia, pós-graduada em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj, pós-graduada em Mediação Pedagógica em EAD pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-RJ e mestre em Filo- sofia pela Uerj. Leciona Filosofia na UVA, bem como o módulo de humanística em cursos preparatórios para concurso público na forma da Res. nº 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ). 13 APRESENTAÇÃO O presente livro tem a finalidade de auxiliar o leitor no estudo de Filosofia. Nesse caso, este trabalho está dividido em cinco capítulos e seus respectivos tópicos, introdução e conclusão. A saber: o Capítulo 1, Algumas noções elementares, bem pequeno, tem como objetivo si- tuar o leitor no universo filosófico com algumas notas esclarecedoras quanto aos conteúdos da filosofia, sem esquecer aspectos como sua origem, relevância, áreas de reflexão etc. No Capítulo 2, Condição humana, não se partirá da pergunta por que somente o homem é o único ser vivo racional, uma vez que essa con- dição está dada pela natureza, e pesquisar sobre a origem desse dado foge ao intento deste livro. Contudo, refletir sobre essa especificidade humana é fundamental para compreender as relações existentes entre natureza, cultura, linguagem, trabalho, técnicas etc., além da compre- ensão sobre o homem sob um olhar filosófico. Esse núcleo de pro- blemas é fundamental por tratar-se da reflexão acerca da condição humana e no que consiste o ser humano e, por outra, sua humanidade. Isso é o bastante para direcionar reflexões válidas e propositivas, se não definitivas, ou, pelo menos, razoáveis. O Capítulo 3, intitulado A propedêutica filosófica, faz uma análise sobre a urgência de compreendermos os fundamentos do pensamento filosófico, visto que tentaremos convencer o leitor de que só existem dois tipos de conhecimentos, a saber: os da experiência sensível ime- diata, denominados de senso comum, e os demonstráveis, chamados de científicos e filosóficos, derivados da demonstração pelos métodos indutivo e dedutivo. Outrossim, desejamos marcar as diferenças das leituras que são feitas sobre a realidade a partir do senso comum, da religião, da arte, da ciência e da filosofia, além de estudar os aspectos elementares da lógica como um saber filosófico que faculta o entendi- 14 mento de que a filosofia não é o reino da opinião, mas um instrumento de pura racionalidade com o qual se obtém uma interpretação rigorosa da realidade, primando pela demonstração argumentativa. No Capítulo 4, Elaboração do pensamento filosófico, ressaltamos a importância do pensamento filosófico enquanto leitura necessária à compreensão do que chamamos de realidade pelo esforço de separar as conquistas da filosofia dos embustes ideológicos, apresentando as principais correntes filosóficas do pensamento antigo, especificamen- te a cosmologia, o platonismo, o aristotelismo e o estoicismo. Outros objetos de reflexão desse capítulo são a questão do método e os fun- damentos da razão. À primeira vista pode parecer um tema repetiti- vo. Contudo, compreendemos que, nesse capítulo, desenvolveremos o tema com algumas peculiaridades ignoradas ou mal resolvidas até agora, por isso cremos ser preciso aprofundar a reflexão sobre esse objeto. Por fim, embora ingrato quanto à dificuldade da problemática, esperamos ter sucesso ao estudar o último tópico, A complexidade do pensamento contemporâneo; primeiro porque nele estamos mer- gulhados, segundo pelas desconexões entre as escolas filosóficas que fazem parte do mundo contemporâneo, tornando-se um desafiopara aqueles que o estudam. Por fim, no Capítulo 5, Epistemologia, conceitos de ética e suas de- marcações e globalização, discutiremos problemas concernentes ao universo da epistemologia e, para tanto, iremos nos valer de autores importantes, como Bachelard, Popper, Husserl, Bergson, entre outros, sempre em uma perspectiva dialética em que as refutações mútuas são necessárias para se extrair uma ideia central da ciência enquanto problema. No segundo tópico, refletiremos sobre o conceito de ética enquanto área da filosofia cujo propósito é refletir sobre os atos do mundo moral; a esse respeito, iremos nos apoiar sobre autores fun- damentais como Aristóteles, Kant, Hegel, Marx e outros. É importante 15 ponderar que, na investigação sobre o universo ético, também toma- mos como problema ligado a esse ramo da filosofia os referenciais gnosio lógicos, que tratam do conhecimento, e o leitor se deparará com nossa abordagem um tanto ousada ao relacionarmos o plano lógico com a esfera ética. Por último, investigaremos a natureza, os benefí- cios e malefícios da glo balização e o movimento mundial dos merca- dos nacionais em que pese à luta por hegemonias e autopreservação; para isso, dividimos o último tópico em três partes, a saber: as origens da globalização, liberalismo e globalização e utilitarismo e globaliza- ção. Os capítulos vão tomando densidade à medida que nossas investiga- ções vão se ampliando, por isso os capítulos 4 e 5 são mais longos que os outros, por conta da quantidade de elementos complexos que os envolvem, somente isso. Quanto ao emprego do método deste trabalho1, podemos perguntar: qual a finalidade do método no campo da reflexão filosófica? Elaborar 1 Segundo Gödel (1906-1978), “se o conjunto axiomático de uma teoria é consistente, então nela existem teoremas que não podem ser demonstrados ou negados, e nesse caso não existe procedimento construtivo que demonstre que determinada teoria é consis- tente”. Bem, diante desse paradoxo, somos obrigados a acreditar que não há saída para a demonstração de qualquer verdade teórica, ou mesmo a menor possibilidade de dis- cussão, pois, se o matemático austríaco estiver correto, o pensamento pode ser enges- sado. Todavia, o processo lógico-matemático não pode ser tomado como expressão de demonstração da verdade de algo como essencial pura e simplesmente. Entendemos que o seu valor está em ajudar na explicação do que o método dialético intuiu e conseguiu pela descomplicação do conceito, visibilizando o que estava oculto. Esse oculto que não é um ponto específico, mas um conjunto de impressões que se assemelha a um entulho que precisa ser removido para que o ente se apresente como ele é (HEIDEGGER, 2008, p. 26-30), e, ao se apresentar como é, nossas concepções são desinvertidas e passamos a considerar o que outrora ignorávamos, perdidamente. Pois bem, o teorema de Gödel é essa inflexão fantástica que ainda clama por solução, que não pode ser dada pela ma- temática sozinha, sob pena de ser considerada como instrumento puramente formal, 16 meios, técnicas, critérios, princípios, procedimentos etc., que assegu- rem a validade dos resultados obtidos nesses campos dos saberes, com isso criando, também, formas expositivas desses mesmos resulta- dos construídos ou descobertos. Assim, sendo a metodologia um cam- po da lógica que investiga os métodos de pesquisa, o método aplicado neste livro pode ser chamado de método etimológico-crítico-histórico. Contudo, em que consiste esse método? Primeiro, em investigar os conceitos nucleares dos problemas do ponto de vista da relação etimo- lógico-semântica, o que compreende o estudo da origem do conceito e como ele é pensado hoje; segundo, em analisar determinado conceito cujos elementos constitutivos se pretende desnudar por meio da crí- tica; terceiro, em não esquecer que os conceitos são historicamente criados no campo das relações sociais. Logo, a clareza desse método já se encontra na exposição das linhas que se seguem. Pedimos perdão caso o texto pareça enfadonho, mas é fundamental como forma de estudar os problemas elencados, porquanto é um de- safio às imposições temáticas da disciplina de Filosofia da UVA. Igual- mente é preciso destacar que esse método visa a um rigor que facilite sua compreensão quanto aos temas filosóficos. Talvez esse método seja imperfeito em virtude de sua natureza experimental, mas nos ex- ao passo que, graças ao seu advento, o mundo se tornou bem melhor. No entanto, não é isso que está entre parênteses. O que está suspenso no ar é isolar a epistemologia de suas implicações políticas, que, por sua vez, redundam em problemas de natureza ética e, portanto, políticas. Nesse particular, somos obrigados, provisoriamente, a concordar com Thomas Kuhn (1922-1996), que afirma que há um momento em que o pensamento fornecido pela ciência normal é insuficiente para dar conta de problemas que necessitam de novas construções explicativas, por isso a ciência revolucionária tem que ser pensada sob a ótica de quebra de sistema, ou melhor, a caminho de nova estrutura (KUHN, 2006, p. 23-32). Essa nova estrutura epistemológica pode se inspirar no modelo platônico-aris- totélico de não separar as instâncias ontológica da gnosiológica, até porque os problemas não se constituem como eventos isolados, mas como sistemas complexos necessitantes de conceitos também complexos. 17 perimentos é que surgem os grandes progressos no cam- po dos saberes. Por fim, outra preocupação metodológica é aliar o rigor da investigação conceitual à exposição clara e elegante. Oxalá possamos atingir nosso intento. Sempre que publicamos um texto, temos o sentimento de imensa incompletude que ele carrega, sobretudo quando se trata de filosofia e, especificamente, de um apanhado histórico e conceitual dela mesma; confessamos que esta- mos apreensivos quanto aos resultados do esforço empre- gado ao longo das próximas páginas. O conjunto do presente livro tem textos originais e outros já publicados sob a forma de artigos destinados a jornais e revistas, além de algumas passagens dos nossos livros. Os textos já publicados que ora utilizamos foram todos muito alterados porque não conseguimos manter o mes- mo texto quando os tomamos como referências, pois mu- damos tanto até que o editor nos imprense contra parede, exigindo o trabalho. Aprendemos que nada é definitivo ou igual — o grande Heráclito já assinalou que ninguém se banha duas vezes na mesma água de um rio, em razão de tudo ser um fluxo contínuo, e contínuo é o pensamento no ato de refletir. Lemos os textos muitas vezes com o propósito de ofere- cer, ao conjunto, uma ideia de unidade, coerência, conti- nuidade e o mais importante: conteúdo conceitual expres- so em uma cultura filosófica não enciclopédica, porque isso é um atributo de gigantes como Hegel e Aristóteles, mas com o mínimo de saberes necessários ao universo fi- losófico. Portanto, quanto a esse detalhe, agradecemos às 18 leituras críticas feitas pelos amigos Prof.ª Clara Brum, Prof. João André Fernandes, Prof. Grassia Pastore e o artista plástico e poeta Marcanto- nio Costa. Esperamos ter atendido às expectativas da UVA por meio do seu corpo editorial, a quem agradecemos pelo convite, que muito nos honrou. Aproveitamos para dedicar este livro ao querido leitor e, em especial, aos meus pais — in memorian —, além de Lea Trotta Galante, Nathalia Andrião Trotta e Alcinéa Andrião Trotta. 19 SOBRE O AUTOR Wellington Trotta é carioca, tem 54 anos e cursou, orgulhosamente, no ensino médio, a Escola Normal da Mabe para formação de profes- sores de 1ª à 4ª série do antigo primário. Possui graduação em Direito pela Universidade Gama Filho – UGF e em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Ja- neiro – IFCH-Uerj, mestrado em Ciência Política pelo Instituto deFilo- sofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IF- CS-UFRJ, nas áreas de política e epistemologia, doutorado em Filosofia pelo – IFCS-UFRJ, na área de filosofia prática (ética, filosofia política e filosofia do direito), e pós-doutorado pela mesma instituição, na área de filosofia prática, com a pesquisa referente ao Conceito de ética no pensamento de Edmund Husserl, sob a supervisão do Prof. Dr. Aquiles C. Guimarães. Atualmente, cursa o doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá – Unesa, na linha de pesquisa Direitos fundamentais: novos direitos, sob a orientação do Prof. Dr. Rafael Mario Iorio Filho. No momento, leciona Filosofia na UVA e Unesa. 20 21 CAPÍTULO 1 ALGUMAS NOÇÕES ELEMENTARES Este capítulo tem por objetivo, prezado leitor, situar você no universo filosófico, com algumas notas esclarecedoras quanto aos conteúdos da filosofia, sem esquecer aspectos como sua origem, ramos, relevância, significado etc. Algumas noções elementares 22 ...................................................................................................................................................................................................................... NOÇÕES PRELIMINARES Desejo começar nosso diálogo que se dará ao longo das páginas deste livro com uma instigante e terrível pergunta sobre a existência da filosofia: no que consiste a importân- cia da filosofia, para nós, ocidentais do século XXI, uma vez que possuímos a ciência como saber que corresponde às necessidades da vida material, além de desvelar as rea- lidades naturais e sociais, e a religião judaico-cristã como expressão da vida espiritual voltada à transcendência? Do ponto de vista de uma retrospectiva histórica, a ciência construiu um cortejo de conhecimentos técnico-objetivos e metodologias de investigações rigorosas que garantem seu sucesso na busca da verdade que se propõe conhecer, ao lado do progresso da vida material, deixando ao cris- tianismo a religiosidade transcendente que, por conta dos valores profundos do amor e da fé, inspiram o coração humano às melhores práticas nas relações sociais. Nesse sentido, à primeira vista, a filosofia tornou-se anacrôni- ca porque, como um saber que nasceu na Grécia Antiga, buscava responder de forma racional às perguntas sobre a realidade em face da qual os mitos titubeavam, assim como, ao contrário da sabedoria mítica, procurava um sa- ber moral capaz de convencer racionalmente os cérebros da necessidade de um padrão virtuoso de condutas nas relações humanas. É bom frisar que a filosofia nasce sob o signo da razão, e seu projeto é racionalizar a vida em todas as suas possibilidades. 23Noções preliminares ...................................................................................................................................................................................................................... Todavia, esse suposto anacronismo é apenas aparente, e, em virtude da evidência dos fatos, a filosofia ainda per- manece válida por conta de sua relevante reflexão críti- co-analítica, da importante capacidade de argumentação lógico-dedutiva e da liberdade reflexiva que ela represen- ta. Logo, esses aspectos justificam o lugar da filosofia no mundo contemporâneo. O lugar da filosofia é evidente porque pensa e elabora perguntas inteligentes com o propósito de obter respos- tas racionais e razoáveis, isto é, respectivamente, obser- vações puramente lógicas ao lado de proposições logica- mente plausíveis. Por outro lado, o pensar do ponto de vista filosófico é o único capaz de ir além de si e ainda fundamentar outras leituras da realidade, como ciência, religião e arte, ao mesmo tempo em que diz um não ao senso comum. Por essas e outras razões, a filosofia nunca será superada, pois suas especificidades partem de ope- rações como abstração, reflexão, crítica, argumentação, conceituação e formulação de princípios que expressam a realidade, muito embora seja patente, dentro da esfera fi- losófica, que as respostas postas como conceitos possam e devam ser aperfeiçoadas no processo histórico entre as correntes teóricas por meio da discussão de ideias. Por fim, a filosofia tem sua sorte na existência humana, pois, ao lado da ciência, arte e religião, pergunta e responde, ao mesmo tempo, quanto aos fundamentos desses saberes, tornando-se, respectivamente, filosofia da ciência, filosofia da arte e filosofia da religião. A filosofia está atrelada à existência humana, por isso sua longevidade é garantida. ...................................................................................................................................................................................................................... Algumas noções elementares 24 ...................................................................................................................................................................................................................... ORIGEM DA FILOSOFIA Segundo os resultados das investigações históricas acerca da origem da filosofia, sem medo de errar, pode-se dizer que o local do seu surgimento foi a Grécia Antiga, espe- cialmente nas colônias gregas espalhadas pelo Mar Egeu, isso por conta do desenvolvimento econômico e condição geográfica dessas cidades, o que favoreceu o contato com muitos outros povos, possibilitando acumular conheci- mentos e rearranjá-los de maneira lógica, pondo-os à pro- va pela reflexão, auxiliada pelo método dedutivo, uma vez que os gregos elevaram a matemática e outros saberes ao mais alto grau de abstração. Embora os aspectos acima expostos sejam consideráveis, não se pode esquecer a importância das críticas que os filósofos gregos fizeram ao conjunto dos mitos que or- ganizavam os valores, o cotidiano das pessoas e as for- mas de pensar e apreender a realidade. Nesse sentido, a filosofia nasce sob a égide da cosmologia em detrimento da teogonia2, ou seja, os primeiros filósofos, sendo mate- máticos, geógrafos e astrônomos, procuraram pesquisar a natureza a partir dela mesma e, com isso, rechaçaram as interpretações existentes nas teogonias dos poetas, mes- 2 Narrativa própria das religiões politeístas acerca do nascimento dos deuses e suas genealogias, bem como a organização religiosa de um povo po- liteísta, sem ignorar o fato de os deuses interferirem diretamente nas vi- das dos indivíduos. Ressaltamos, porém, que hoje os mitos são estudados e muito valorados do ponto de vista do estudo da psiquê humana, basta lermos os importantes trabalhos de Carl Jung (1875-1961). 25Origem da filosofia ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ tres das verdades divinas, que cederam lugar aos filóso- fos, mestres das verdades descobertas. Nessa encruzilhada cultural decisiva para a civilização grega e a própria humanidade, nasce com a filosofia o ter- mo logos — λόγος — que tem múltiplos significados, como “discurso compreensível”, “explicação coerente sobre algo” etc. É comumente conhecido por razão, um discurso calculado, pensado, racional, em oposição ao mito — my- thus/μύθος —, palavra que expressava um universo muito rico de significados, mas que, grosso modo, é tomado por um discurso poético repleto de metáforas que tinha por fim dizer a realidade a partir do elemento divino, em últi- ma instância, uma narrativa em que o poeta — aedo/ἀοιδός —, acompanhado de sua cítara, cantao nascimento, os fei- tos e o ordenamento da realidade por parte dos deuses. O aedo é o poeta andante que, pela magia da palavra ao narrar a epopeia dos deuses, educa os homens a partir dos sentimentos e valores divinos. Em oposição a esse con- junto de elementos, o logos terá três funções muito im- portantes no destino da filosofia como forma racional de explicar a realidade, a saber: 1. combater os mitos; 2. re- futar a opinião vista enquanto senso comum — doxa/δόξα —; 3. livrar o homem da paixão — pathos/πάθος —, por ela representar excesso ou desmedida. Mais complexo do que se costuma pensar, a filosofia não surge apenas como novo saber, mas como um sistema explicativo que deveria pôr fim ao universo mítico em razão deste não explicar a realidade, mas representá-la fora da dimensão humana. Então: crítica às teogonias e refutação ao senso comum; comércio pujante e desenvolvimento econômico; condi- ção geográfica enquanto rota de navegações; espírito de ...................................................................................................................................................................................................................... Algumas noções elementares 26 ...................................................................................................................................................................................................................... curiosidade; culto à proporção; cultivo da abstração por meio da reflexão; amor ao debate e sede de conhecer, tudo isso fez dos gregos um povo amante da sabedoria; aliás, o termo filosofia — Φιλοσοφία — significa “amigo do saber”: filo/Φιλο, “amizade”; sofia/σοφία, “sabedoria”. Uma observação importante: o fato de a filosofia ter nas- cido ou sido criada, surgida ou inventada pelos gregos não significa que os povos anteriores aos helenos3 não tenham refletido sobre a vida, natureza, morte, conhecimento etc. A originalidade dos filósofos gregos repousa, sobretudo, na forma pela qual eles realizaram esse fenômeno cultu- ral de pensar, visto que a diferença consiste no fato de os filósofos gregos pensarem o pensamento, genuinamente, e por elaborarem meios à demonstração de suas proposi- ções. Por isso, é correto afirmar que a filosofia, além de ser constituída por áreas de reflexão, objetos de reflexão, também possui toda uma técnica de exploração conceitual e de exposição de enunciados; assim, a filosofia é o reino do conceito, e não da mera opinião. Resta destacar que a filosofia nasce com o propósito de conhecer o elemento primário que daria causa à vida, à natureza etc. Originalmente grega, ela desponta como um saber que perguntava pela matéria natural ou substância sobre o que é isso que cerca o ser humano e suas peculia- ridades intrínsecas ou próprias, diferenciando-se das con- tribuições dos povos que antecederam aos gregos. Apenas uma provocação: a filosofia já nasce dividida em si mesma e aquilo que se chamará de ciência, isto é, da reflexão à investigação experimental. 3 Relativo aos antigos helenos, pequena tribo que viveu na região do Epiro (noroeste da Grécia) e que deu origem ao povo grego, ou indivíduo dessa tribo, Hélade (Grécia). O termo grego tem sua origem no latim. 27Relevância do estudo da filosofia ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ RELEVÂNCIA DO ESTUDO DA FILOSOFIA A relevância da filosofia já está dada por ela mesma quan- do é tomada como fundamento último das outras formas de compreender a realidade, mas, além disso, a importân- cia de se estudar filosofia tem uma natureza específica, que é pensar descortinando o universo majestoso de múl- tiplos elementos cognitivos, ao mesmo tempo em que de- senvolve o espírito crítico, a capacidade reflexiva, a radica- lidade pela abstração, o rigor crítico, a clareza expositiva e a sistemática demonstração de um postulado. Dessa for- ma, o filosofar é um ato complexo que exige habilidades específicas e um gosto salutar por querer compreender o funcionamento das coisas, visto que, para Aristóteles, o sábio procura compreender a ordem e as causas dos fenô- menos, bem como pôr ordem nas coisas. A relevância de se estudar filosofia nos aproxima do diálo- go privilegiado e permanente com estudiosos importantes do cenário filosófico, que são os filósofos, mestres que construíram e constroem esse saber necessário às forma- ções intelectual e moral capazes de nos distinguir de um saber opinativo e vulgar, que não está preocupado com fundamentos e pouco afeito ao rigor sobre a pesquisa de um fenômeno e à exposição de uma ideia. ...................................................................................................................................................................................................................... 28 ...................................................................................................................................................................................................................... Algumas noções elementares ÁREAS DE REFLEXÃO FILOSÓFICA Sendo a filosofia um universo vasto de objetos e preocu- pações, desde o seu nascimento os filósofos procuraram delimitar as áreas da reflexão filosófica com o propósi- to de marcar o problema a ser estudado, além de obter, seguramente, os resultados do esforço intelectual, muito embora essa divisão tenha ficado mais clara a partir do período moderno da filosofia, que começa, simbolicamen- te, com René Descartes (1596-1650). Levando em conta o caráter propedêutico4 deste trabalho, consideramos importante apresentar, em linhas gerais, os principais ramos da filosofia, são eles: a) metafísica; b) teoria do conhecimento; c) lógica; d) estética; e) ética; f) filosofia política; g) epistemologia. Isso para destacar as áreas mais diretamente importantes aos nossos cursos. A – Metafísica A palavra metafísica vem do grego τα μετά Φυσικά (“depois da física”) e foi cunhada pelo filósofo Andrônico de Rodes, que, por volta do séc. I a.C., organizou a obra de Aris- tóteles (384-322 a.C.). Esse termo, empregado no livro de 4 “Corpo de ensinamentos introdutórios ou básicos de uma disciplina; ciência preliminar, introdução. Conjunto de estudos nas áreas humana e científica que precedem, como fase preparatória e indispensável, os cur- sos superiores de especialização profissional ou intelectual.” (HOUAISS, 2001). As disciplinas propedêuticas são essenciais a uma boa formação intelectual. Áreas de reflexão filosófica ...................................................................................................................................................................................................................... 29 ...................................................................................................................................................................................................................... Aristóteles chamado Filosofia primeira, deveu-se ao fato de ele estar posto depois de outro, denominado Filosofia natural ou Física. Por isso, a metafísica pode ser pensada como filosofia primeira, por estudar a natureza dos primei- ros princípios, além de fornecer os fundamentos últimos de todas as ciências particulares, bem como ser tomada enquanto reflexão dos princípios que precedem às expe- riências, porquanto a metafísica enaltece a reflexão como natureza essencial do homem. Ressaltamos que a metafí- sica pergunta pelos significadose diversos modos do ser. B – Gnosiologia Conhecida pela expressão teoria do conhecimento, o vo- cábulo gnosiologia foi cunhado em 1653 por Johann Mi- craelius (1597-1658), no seu livro Léxico de termos filo sóficos e de filosofias ordinárias (Lexicon philosophicum terminorum philosophie usitatorum). Precisamente, a gno- siologia tem como preocupação refletir acerca das condi- ções de possibilidades do conhecimento, investigando a complexa relação entre sujeito e objeto, ou seja, analisa a natureza, a origem e os limites do ato de conhecer pelo sujeito cognoscente e o objeto a ser conhecido. C – Lógica Lógica é um campo da filosofia que investiga as formas de pensar de um modo geral como indução, dedução, hipóte- se, inferência etc., tendo por fim separar o falso do verda- deiro no que concerne às operações mentais, ou, segundo Aristóteles (384-322 a.C.), “ciência da demonstração e do saber demonstrativo” (1987, I, 24). Atribui-se a Aristóteles a paternidade da lógica em virtude de o conjunto dos seus escritos analíticos estarem organizados em seis livros, cuja ...................................................................................................................................................................................................................... 30 ...................................................................................................................................................................................................................... Algumas noções elementares obra é denominada de Órganon, muito embora outros fi- lósofos, como Platão (428-348 a.C.), por exemplo, já tives- sem pensado, estudado e discutido os problemas quanto ao pensamento e sua expressividade. D – Estética É uma área da filosofia que está voltada à reflexão so- bre o significado de beleza do ponto de vista das artes, e não especificamente da beleza humana, podendo ser também chamada de filosofia da arte. Esse termo aparece pela primeira vez em 1750, por meio do teórico alemão Alexander Baumgarten (1714-1762), com o seu livro Esté tica — aisthētiké (“fenômeno”) αισθητική —, “que defendia a tese de que são objetos da arte as representações confu- sas, mas claras, isto é, sensíveis mas ‘perfeitas’, enquanto são objeto do conhecimento racional as representações distintas — os conceitos” (ABBAGNANO, 1982, p. 367). O problema “beleza humana”, é estudado pela antropologia e pela história. E – Ética Ética é um ramo da filosofia cuja preocupação consiste em operar uma reflexão sobre a conduta humana do ponto de vista dos valores morais, destacando como tais os signifi- cados de moral, virtude, amizade, justiça, bem, certo, erra- do etc. O termo ética vem do grego ethos/ήθος, rodeado de múltiplos sentidos, mas que, para os fins deste trabalho, tanto pode ser “costumes” como “tradição que organiza um grupo social da melhor forma possível”, assim como “a doutrina do caráter moral”, ou seja, saber que procura analisar os problemas morais e extrair princípios de con- duta. Ressaltamos que Sócrates (471-399 a.C.), Platão e, Áreas de reflexão filosófica ...................................................................................................................................................................................................................... 31 ...................................................................................................................................................................................................................... sobretudo, Aristóteles são os grandes iniciadores dessa disciplina filosófica. Por outro lado, não se pode esquecer que os sofistas, dramaturgos e políticos da velha Grécia, já debatiam os problemas do universo ético. Uma obser- vação importante: muitos estudiosos, no lugar do termo ética, empregam a expressão filosofia moral. F – Filosofia política A palavra política tem muitas implicações, em razão dos seus múltiplos significados, tendo sua origem no termo grego pólis/πολης, isto é, “cidade”, espaço em que os in- divíduos moravam, trabalhavam, divertiam-se e organiza- vam-se em um sentido comunitário em contrário à vida rural, o que se denomina hoje urbano. Entretanto, o gran- de significado de pólis relaciona-se a um tipo de cidade na qual a administração do espaço comum não está afeta ao palácio, uma vez que não existe rei, e muito menos ao templo, em virtude de o sacerdote não ter poderes divi- nos, somente encargos cívicos. Nesse sentido, política tem sua origem no termo πολίτικα, que significa “universo dos indivíduos associa dos”, podendo também significar politi- kê/πολιτικής, “ciência dos negócios da pólis” (Estado); por outra, política/πολιτική como “conselho”, ou, ainda, como politeía/πολιτεία, no sentido de “governo”, de “administrar”. Dessa forma, filosofia política é um ramo da filosofia que pergunta pelo significado de associação política, qual a melhor associação política e no que consiste a ideia de um Estado ou governo no âmbito do bem comum, ou mes- mo na persecução da justiça como fim último da vida em sociedade baseada na equidade enquanto forma de pro- porcionalidade. 32 ...................................................................................................................................................................................................................... Algumas noções elementares G – Epistemologia Do ponto de vista etimológico, a palavra epistemologia é composta dos termos gregos episteme/ἐπιστήμη (“conheci- mento científico”, portanto “ciência”) e logos/λόγος (“dis- curso racional de”). Logo, do ponto de vista semântico, epistemologia é uma disciplina filosófica que investiga a natureza do conhecimento científico, isto é, sua origem, significado, limites, fins, implicações etc. Enquanto a gno- siologia investiga as condições de possibilidades do co- nhecimento em geral, a epistemologia, por outro lado, re- flete não só sobre o conhecimento científico como estuda seus possíveis métodos e ferramentas de verificação dos objetos das ciências. Do ponto de vista mais profundo, a epistemologia estuda o pensamento científico enquanto estética distinta dos pensamentos religioso e filosófico. É necessário, ainda, dizer que a reflexão no campo episte- mológico não é neutra como se pensa, porque as ciências estão afetas às implicações políticas do significado de neu- tralidade científica. 33 ...................................................................................................................................................................................................................... REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Tradução de Al- fredo Boasi. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ARISTÓTELES. Analíticos posteriores. Tradução de Pinha- randa Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1987. CHAUÍ. M. Introdução à história da filosofia: dos pré-so- cráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Le tras, 2002. v. 1. HEGEL, G. Introdução à história da filosofia. Tradução de Joaquim de Carvalho. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1974. HEIDEGGER, M. Parmênides. Tradução de Sérgio Mário Wrublevski. Petrópolis: Vozes, 2008. HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua por tuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. HUISNMAN, D. Dicionário dos filósofos. Tradução de Claudia Berlinder. São Paulo: Martins Fontes, 2001. KUHN, T. O caminho desde a estrutura: ensaios fi losóficos 1970-1993. Tradução de Cezar Mortari. São Paulo: Unesp, 2006. ...................................................................................................................................................................................................................... 34 ......................................................................................................................................................................................................................Algumas noções elementares LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filo sofia. Tradução de Fátima Sá Correia et al. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Áreas de reflexão filosófica ...................................................................................................................................................................................................................... 35 ...................................................................................................................................................................................................................... CAPÍTULO 2 CONDIÇÃO HUMANA Não iniciaremos indagando por que somente o homem é o único ser vivo racional, pois essa condição está dada pela natureza, e pesquisar sobre a origem desse dado foge ao intento deste livro. Contudo, refletir sobre essa especificidade humana é fundamental para compreender as relações existentes entre natureza, cultura, linguagem, trabalho, técnicas etc., além da compreensão sobre o ho- mem sob um olhar filosófico. Esse núcleo de problemas é fundamental para a reflexão acerca da condição humana e no que consistem o ser humano e sua humanidade. Isso é o bastante para direcionar reflexões válidas e propositi- vas, se não definitivas, ou, pelo menos, razoáveis. Portan- to, este capítulo está dividido em três tópicos, a saber: 1) natureza e cultura: conceitos; 2) relações entre técnica e sociedade; 3) o homem: uma perspectiva filosófica. 36 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana NATUREZA E CULTURA: CONCEITOS Não é preciso ser um filósofo para perceber a existência dos planos da natureza e da cultura, embora seja urgente- mente necessária uma boa fundamentação filosófica para se compreender no que consistem esses conceitos e qual a relação existente entre ambos, além de entender as limi- tações impostas pela própria realidade. Ainda que não pa- reça, o ser humano vive, concomitantemente, na natureza e na cultura, mesmo que geralmente não se distinga qual a dimensão que precede uma à outra. Antes de prosseguir na reflexão sobre o ser humano entre natureza e cultura, é preciso saber no que consistem esses conceitos a partir do método empregado na Introdução, ou seja, fazer uma pesquisa etimológica do termo, com- preender o seu significado semântico e situar crítica e his- toricamente o problema. O termo “natureza” tem sua origem na palavra latina natu- ra, proveniente do verbo nascere, que significa “nascimen- to”, passando, mais tarde, a ser entendida como tudo aquilo que existe independentemente do homem. O vocábulo natu- ra, por sua vez, tem sua origem no grego physis/φύσις, cujo significado refere-se ao que nasce e cresce espontaneamen- te, no tocante aos animais e vegetais. Dessa forma, os anti- gos gregos e romanos entendiam natureza como dimensão distinta do espaço humano habitada pelos diversos seres vivos, além de mares, rios, ilhas etc., e/ou a ideia de nature- 37Natureza e cultura: conceitos ...................................................................................................................................................................................................................... za quanto ao sentido próprio de cada objeto, a respeito das suas qualidades e suas características definidoras. Do ponto de vista semântico, natureza tem múltiplos sen- tidos, dos quais os mais importantes são: 1. o mundo material, espaço aquele em que vive o ser humano e existe independentemente das ativi- dades humanas; 2. conjunto de elementos (mares, montanhas, árvores, animais etc.) do mundo natu- ral; 3. a realidade, em detrimento de quaisquer arti- fícios ou efeitos artísticos; 4. combinação específica das qualidades originais, constitucionais ou nativas de um indivíduo, animal ou coisa; caráter inato.5 Contudo, contemporaneamente, entende-se por natureza o espaço natural onde vivem todos os seres vivos, incluin- do o próprio ser humano, destacando que o “universo” humano é uma construção de sua inteligência no processo histórico, alterando, inclusive, a própria natureza, visto que dela ele retira, pela força de trabalho, os elementos indispensáveis à existência humana. Nesse caso, nasce o que os estudiosos chamam de cultura. Em respeito ao método de investigação deste livro, o ter- mo cultura origina-se do latim cultūra,ae, que se refere ao ato de “cultivar”, “tratar”, “lavrar” e, por decorrência, “ve- nerar”, no sentido físico e moral. No caso semântico, é o: [...] conjunto de padrões de comportamento, cren- ças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social; forma ou etapa evolutiva das tra- dições e valores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico); complexo de ativi- 5 HOUAISS, 2001. 38 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana dades, instituições, padrões sociais ligados à cria- ção e difusão das belas-artes, ciências humanas e afins.6 Cultura, segundo a primeira definição abrangente na an- tropologia, é todo aquele complexo que inclui o conhecimen- to, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade. (TYLOR, 1920, p. 01). Apesar de esse conceito de cultura desenvolvido por Edward Tylor em sua obra Cultura primitiva (Primitive culture), de 1871, ser criticado por filiar-se às teorias evo- lucionistas, cremos que, como pontapé inicial, tem gran- de importância pelo fato de apresentar a ideia de cultura como tudo aquilo criado ou construído pelo homem no processo histórico, inclusive transformando a natureza de um modo geral e, especialmente, as suas condições natu- rais, indo de encontro às imposições da natureza sobre o ser humano. Podemos ponderar, sem prejuízo quanto ao conceito de cultura conforme novas pesquisas na antropologia, que cultura associa-se ao conjunto de valores, costumes, pa- drão moral, técnicas, invenções, instrumentos, artes, ciên- cia, filosofia, religião e tudo o que diz respeito ao universo humano, enfatizando que o trabalho e a linguagem fazem do ser humano um animal cultural (culturae animalia) — porque não diferente na natureza? 6 HOUAISS, 2001. 39Natureza e cultura: conceitos ...................................................................................................................................................................................................................... Dessa forma, o homem é o único ser vivo que tem duas dimensões: aquela em que é um ser natural, fazendo par- te da natureza ao lado de outras espécies, e a outra que o diferencia dos demais seres viventes como um ser que pertence ao mundo cultural, construído pelo trabalho ao longo dos milênios. Logo, pode-se pensar, sem receio, que o ser humano tem dois corpos. O primeiro é o natural, aquele constituído pelas moléculas do mundo biológico e suas consequentes necessidades, e o segundo, cultural, é erigido pela força dos tempos e pelas relações sociais determinadas historicamente. Por isso, o homem parece ser um animal meio sem jeito, pois, ao mesmo tempo em que está aferrado ao império da natureza, esta pode ser ou não controlada pelas conquistas culturais; nesse caso, o ser humano é o único ser vivo que se supera socialmente ao longo da história, o único que altera, destrói e preserva a natureza. Cultura tem o sentido originário de expressar um conjun- to de valores que representaria o olhar simbólico desta oudaquela formação social; por outro lado, cultura é um conjunto de valores que marca uma dada formação social e, nesse caso, é a síntese de elementos que constituem a tradição e o olhar de um indivíduo dentro do seu grupo social para fora dele, que de alguma forma o liga aos ou- tros membros de sua sociedade. A cultura nos determina e dimensiona o nosso papel na sociedade, ao mesmo tempo em que nos particulariza ante outras formações sociais. Em síntese, a cultura é o elemento de identidade dos indi- víduos, grupos e classes sociais, porque o processo cultu- ral se caracteriza como um processo histórico de forma- ção de identidades, que constrói e ratifica valores que se tornam parâmetros para uma vida de interação social. Po- 40 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana de-se dizer que o processo cultural é a base psico-histórica da interação social, pois sua propriedade básica destina-se a garantir um mínimo de sociabilidade. Por isso, somos o que somos pelos valores culturais que defendemos e nos formamos, porquanto a cultura7 é um processo sociopolí- tico-econômico que constrói e ratifica comportamentos, é a base material da vida social. Ao se apropriar da sentença de Aristóteles quanto ao fato de o homem ser um animal político, e daí pensá-lo como ser cultural, queremos dizer que o ser humano é um ani- mal8 biocultural, que vem transformando objetos naturais em culturais, na medida em que estes fazem parte da con- dição humana transformada pelo processo de trabalho. Nesse caso, fazem-se necessárias duas ou mais palavri- nhas sobre esse instigante problema. Sentido de trabalho Trabalho é um termo cuja origem vem da palavra latina tri- palǐum, que se referia a um instrumento de colheita de trigo que, mais tarde, tornou-se uma máquina de tortura. Dessa forma, a ideia de trabalho, desde a antiguidade greco-ro- mana, passando pelo livro Gênesis do Velho Testamento, traz a ideia de sacrifício, de atividade penosa exercida por muitos, ao mesmo tempo imposta pela aristocracia, que 7 Cultura indica o conjunto de comportamentos, crenças, valores espirituais e materiais partilhados pelos membros de uma sociedade. A cultura, do ponto de vista da antropologia, designa a palavra como um conjunto de características que diferenciam as sociedades entre si. A partir dessa ideia, cultura é o conjunto de objetos como a língua, hábitos, sentimentos e ati- tudes. Contudo, as sociedades, por não serem homogêneas, fazem com que existam subculturas e suas peculiaridades. 8 Do latim anìmal,-ális, “tudo que tem vida”, “que é animado”; animália; como adjetivo, o étimo é o adjetivo latino animális, -e, “que tem vida”. 41Natureza e cultura: conceitos ...................................................................................................................................................................................................................... vivia no ócio por expressão de sua superioridade de li- nhagem. Trabalhar, no mundo antigo, era uma atividade aviltante desempenhada pelos “homens vis”, “sem alma”, “sem talento para uma vida digna e feliz”. Todavia, com o advento da Reforma Protestante no século XVI, a ideia de trabalho é progressivamente dessataniza- da, ao ponto de sua plena legitimidade prática ser tradu- zida positivamente do ponto de vista político no livro do filósofo inglês John Locke (1632-1704), Segundo tratado sobre o governo civil, publicado em 1690. Nesse livro, Locke defende que o trabalho, e não a extensão de uma propriedade, é a fonte de toda riqueza e a plena realização do homem. Por isso, esse filósofo defende a concepção de que a ideia de propriedade passa pelos conceitos de liber- dade, posses e bem-estar, ou seja, Locke também conclui que a liberdade passa pela posse do homem sobre sua força de trabalho, seus bens, seu corpo e os resultados de sua ação sobre a natureza com propósito de garantir sua existência (LOCKE, 1973, p. 42). A partir desse entendimento e em contrário à maldição do trabalho escravo, nasce o conceito de trabalho-ofício como prática diária e intrínseca à espécie humana enquan- to fonte criadora e responsável pela prosperidade como recompensa dos seus esforços. Nesse sentido, o calvinis- mo teve extrema importância, uma vez que ensinava que a prosperidade do indivíduo está ligada à dádiva de Deus, pois o Senhor recompensa aquele que honestamente vive do seu labor e leva uma vida voltada à severidade de hábi- tos comedidos e gastos parcimoniosos.9 9 “Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o con- solo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os olhos de Deus. (Coram Deo!) Ver Gen. 1.28; Col. 1.1 e ss.” (CALVINO, 2000, p. 77). 42 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana Esses e outros elementos tornam-se características ful- crais do pensamento incipiente da burguesia sistematiza- do pelos liberais10 europeus dos séculos XVIII a XIX, que imprimem a concepção de que o trabalho é a legitimação da propriedade que o homem tem sobre si, sobre seus bens e sobre o produto do trabalho. Dessa forma, a nas- cente burguesia como classe começa a se organizar para obter direitos político-econômicos, alia-se ao protestantis- mo contra a Igreja Católica e promove revoluções signifi- cativas no seio de muitos países europeus, abrindo cami- nho para novas etapas político-econômicas até desalojar a aristocracia guerreira feudal do poder político do Estado moderno. Com a valoração do trabalho até tornar-se eixo da produção capitalista, a aristocracia perde poder em prol da burguesia necessitante de leis que assegurem o comércio, as atividades financeiras e, futuramente, a in- dustrialização como maciça produção de bens e expansão de novas formas de organização produtiva. A partir dos trabalhos teóricos de Locke, dos teólogos Martin Lutero (1483-1546) e Jean Calvino (1509-1564) na apologética do novo homem, dos pensadores econômicos, com destaque para Adam Smith (1723-1790), David Ricar- do (1772-1823) e Karl Marx 1818-1883), entre outros, nas- 10 Liberalismo é uma escola do pensamento jurídico-político europeu que surge por volta do final do século XVIII e defende como princípios a liber- dade, a igualdade jurídica, a desconcentração do poder do Estado em três funções (legislativo, executivo e judiciário), a representação parlamentar, o Estado de direito em que todos estejam sob a autoridade da lei, a livre iniciativa econômica etc. Do ponto de vista da progressão histórica, hoje as democracias modernas tentam implementar, por meio de políticas pú- blicas, o Estado Democrático de Direito. 43Natureza e cultura: conceitos ...................................................................................................................................................................................................................... ce uma nova reflexão sobre o papel do trabalho como agente do progresso humano em razão de sua reconcei- tuação enquanto atividade transformadora da realidade natural, individual e social. Não é sem razão que a concep- ção de trabalho do ponto de vista da física é uma “grande- za definida como o produto da magnitude de uma força e a distância percorrida pelo ponto de aplicação da força na direção desta”11. Isso implica ser o trabalho uma força transformadora que levou Marx a distinguir trabalho de força de trabalho, isso em uma perspectiva de ação sobre a natureza enquanto empregofísico-mental na obtenção de um determinado resultado. Com base em Aristóteles, acertadamente Marx (2013, p. 255) pondera que força de trabalho é potência, enquanto trabalho é ato, efetividade. Nesse sentido, o trabalho é uma ação humana que trans- forma o seu ambiente à medida que transforma o próprio homem, pois, ao mudar a natureza como fonte primária de riquezas, os homens mudam suas condições existen- ciais. Por isso, o trabalho na espécie humana é pensado antes de ser executado, ao contrário de outros animais gregários, que estão submetidos às férreas condições na- turais e nunca mudam “suas ações sobre o entorno”. Por outro lado, o trabalho humano transformou a natureza e, sendo uma atividade criadora, ensejou outra “natureza” ao ser humano, isto é, a cultura. Se existe um elemento que faz do ser humano um animal superior aos demais, esse é a sua capacidade de trabalhar, o que, como ativida- de criadora, faz do homem contemporâneo um ser dife- rente do homem antigo. 11 HOUAISS, 2001. 44 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana Contudo, por mais que muitas correntes teóricas políticas, como o socialismo,12 por exemplo, afirmem que o traba- lho tornou-se um objeto do capital, uma mercadoria igual a tantas outras para o capital, sem dúvida alguma o ser humano contemporâneo pode ser reconhecido nele, na es- pecificidade de trabalhador, e o trabalho alça o status de exercício da dignidade da pessoa humana. Essa dignidade consiste em o homem poder ser livre, e o trabalho liberto do reino das necessidades talvez expresse suas potencia- lidades e, nele, o ser humano alcance sua realização en- quanto pessoa digna como ser social e moral. Por fim, sendo o trabalho toda atividade produtiva e cria- dora exercida pelo homem com determinados fins, muito diferente da perspectiva do senso comum, começa, em se tratando da sociedade brasileira, a ser percebido como fonte da realização pessoal, do prazer e da felicidade em virtude do momento em que se executa o trabalho segun- do as inclinações, expectativas, desejos e recompensas da atividade exercida. O trabalho, sendo uma atividade físico- -mental, meio de explorar racionalmente a natureza para satisfações de necessidades humanas vitais, emprego de habilidades para os fins da vida econômica, ao lado da lin- guagem, é a catapulta que nos arremessa à cultura, ao uni- verso humano propriamente dito, pois, se a cultura pode ser resumida como o conjunto das criações humanas, ela só pôde existir por força do trabalho, ao mesmo tempo em que o trabalho se refaz como elemento da cultura, não sen- do tão somente uma atividade animal para garantir a vida biológica. Não, o trabalho, na dimensão humana, adquire 12 Socialismo é uma escola do pensamento político europeu que com- preende serem os homens iguais em direitos, deveres e oportunidades econômicas, com isso sendo um movimento político-social em prol do trabalhador. 45Natureza e cultura: conceitos ...................................................................................................................................................................................................................... novas propriedades poderosas, das quais se destacam as artes e as ciências, assim como os esportes e o lazer. Se o trabalho faz do homem ser capaz de transformar tudo o que toca, um Midas13 cultural, a linguagem ratifica a con- cepção do homem como ser racional, o homo sapiens. Ideia de linguagem Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua por tuguesa (HOUAISS, 2001), o termo “linguagem” tem sua origem no vocábulo provençal lenguatge, que, por sua vez, influenciou a língua francesa por meio da palavra langage. Contudo, conforme o Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagnano (1982), existem outras origens a par- tir dos vocábulos grego logos/λόγος (discurso racional) e o latino sermon (“fala”, “conversação”). Entendemos que Abbagnano esteja correto porque tanto fala como conver- sação compreendem ato de entendimento, que, para tal, necessita obviamente de comunicação, logo a linguagem se faz presente enquanto códigos linguísticos com fins à apreensão do que A deseja dizer a B, e a compreensão que este obteve do discurso daquele. Nesse sentido, também procede quanto ao logos na sua polissemia conceitual. Ainda conforme Abbagnano, linguagem é: [...] em geral, o uso de signos intersubjetivos, que são os que possibilitam a comunicação. Por uso entende-se: l. possibilidade de escolha (instituição, mutação, correção) dos signos; 2. possibilidade de combinação de tais signos de maneiras limitadas e repetíveis (1982, p. 615). 13 Midas é um personagem da mitologia grega que transformava em ouro tudo aquilo que tocava. 46 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana De outra forma, para o Vocabulário técnico e crítico da filosofia, de André Lalande, linguagem é “função de ex- pressão verbal do pensamento, quer interior ou exterior [...] No sentido mais amplo, todo o sistema de signos que podem servir de meio de comunicação” (1999, p. 626-627). De acordo com os dois dicionaristas do ponto de vista fi- losófico, linguagem é o conjunto de elementos conven- cionais (signos) gráficos, sonoros, gestuais etc. que visa à comunicação, que buscando a possibilidade de falantes e ouvintes se entenderem sobre um determinado objeto, fenômeno, conceito, problema etc. Portanto, o ato de co- municação implica entendimento sobre o que se está con- versando, discutindo, discursando etc. Importante destacar que um grande problema do ato de comunicação entre os indivíduos parte, geralmente, da fal- ta de um sistema razoável de elementos intelectivos que estabeleçam formas estruturadas de um padrão que per- mita entendimento, compreensão etc., eliminando, assim, ruídos prejudiciais ao diálogo. Contudo, foi por meio da comunicação, enquanto invenção humana fabulosa, que o ser humano pôde se constituir como humanidade; pôde criar a história e dela fazer uso para contar e refletir acer- ca do seu processo de progressão no que tange aos costu- mes, aos hábitos, aos sentimentos, à sensibilidade, ao en- tendimento e a tudo o que faz do homem um ser cultural — et culturae: um inventor de realidades, um construtor de técnicas que possibilitaram a ele ser o único animal que fez uma revolução “por si” e “em si mesmo”, distancian- do-se dos outros animais à medida que se tornou senhor do seu destino e responsável por erigir sistemas comple- xos de leituras da realidade, como arte, religião, filosofia e ciência. 47Natureza e cultura: conceitos ...................................................................................................................................................................................................................... Se o trabalho foi aquela máquina inventada pelo homem com o propósito de extrair sustento da natureza e como sistema de técnicas visando a soluções quanto a esses e outros problemas em diversos campos do fazer humano, a linguagem, ao seu lado, fez do homem um ser racional. Óbvio que a linguagem visa à comunicação, mas às vezes não parece; a comunicação só foi e é possível graças à ca- pacidade mental do ser humano de abstração, de reflexão, de crítica, de análise, de investigação e de demonstração. A linguagem, sendo um instrumento de falas, pressupõe indivíduos racionais e, com isso, assim como a razão de- senvolveu a linguagem, esta acelerou os processos racio- nais nos seres humanos, criando sistemasracionais de fa- las, que são as línguas, e outros sistemas de comunicação. Nesse sentido, a partir de Nietzsche (1846-1900), novos estudos refizeram a imagem que se tinha dos velhos sofis- tas da Grécia Antiga, que deixaram de ser pejorativamente falastrões cobradores de ensino, passando à condição de filósofos-filólogos interessados na gramática grega com o escopo de ensinar retórica aos seus alunos para que pu- dessem falar de forma a serem entendidos. No estudo da linguagem, o século XIX edificou a linguística como a ciência que fornece estudos importantes sobre os sistemas de línguas e processos de comunicação como ato de racionalidade, sem esquecer que a filosofia da linguagem examina em que medida a linguagem visa à comunicação ou, acima de tudo, tem por objetivo desenvolver a ampla ca- pacidade cognitiva do homem. Assim, destaca-se Ferdinand de Saussure (1857-1913), com a publicação póstuma de sua grande obra Curso de linguística em geral, de 1916. ...................................................................................................................................................................................................................... 48 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana Ao que nos parece, esse ato de racionalidade construiu a comunicação, as relações sociais e a própria política como centro dialogal especializado capaz de solucionar confli- tos por meio de técnicas institucionais, ou seja, meios ju- rídicos que fazem com que os homens socialmente solu- cionem conflitos a partir de normas jurídicas previamente estabelecidas como técnicas capazes de antever proble- mas e disciplinar determinadas condutas. Desejamos ponderar que a comunicação, mesmo sendo um conjunto de códigos linguísticos, também não deixa de ser uma técnica, ou um sistema de técnicas, que faculta a compreensão entre falantes e ouvintes, por isso, sem entrar em especificidades inoperantes para os fins deste trabalho, três podem ser as funções básicas da linguagem, a saber: 1. cognitiva, que é representação de fatos, fenô- menos, realidade etc.; 2. expressividade, sendo a expres- são e suscitação de sentimentos; 3. comunicativa, que é a comunicação de algo, levantamento de objeções etc. As- sim, concordando com Jürgen Habermas (1929), pode-se dizer que a linguagem passa a ser explorada como fonte primária da integração social (2010, p. 35), ou, ainda, que: [...] atores na qualidade de falantes e ouvintes — tentam negociar interpretações comuns da situação e harmonizar entre si os seus respectivos planos através do processo de entendimento. (HABERMAS, 2010, p. 35). Por fim, não podemos deixar de enfatizar que toda comu- nicação é um ato racional, porque implica jogos de racio- cínios que são lógicos em si mesmos. 49Relações entre técnica e sociedade ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ RELAÇÕES ENTRE TÉCNICA E SOCIEDADE No que consiste a sociedade? O que consolida a organiza- ção social? O que mantém coesa a sociedade? Qual a na- tureza da ordem? Por que os homens são capazes de co- operar? Será que a ordem se desenvolveu por intermédio dos padrões sociais que estabelecemos? A desigualdade na sociedade é inerente à natureza da organização? Cons- tatamos que o homem é um ser social, por isso as ciências sociais14 não estudam o homem a partir do ser individual, mas no seu contexto coletivo, dentro de uma estrutura, e se preocupa justamente com o homem e suas representa- ções coletivas. É importante estabelecer, nesse caso, o que comumente se entende por sociedade e técnica. Conceito de técnica A palavra “técnica” tem sua origem no grego tékhné/τέχνη, que significa “arte”,15 “ofício”, “destreza”, “habilidade es- pecial para tratar com objetos”, que pode implicar ou não a criatividade. Assim, do ponto de vista semântico, a téc- nica é pensada como um: 14 Por ciências sociais se entende um conjunto de ciências que pertence ao quadro das ciências humanas cuja especificidade é de estudar o homem em uma perspectiva social (sociologia) e política do ponto de vista das instituições políticas, sobretudo o Estado (ciência política), e investigar as condições bioculturais que fazem com que grupos/sociedades vivam de tal maneira e outros vivam de formas diversas (antropologia). 15 Do latim ars, artis, “maneira de ser ou de agir”, “habilidade natural ou adquirida”, “arte”, “conhecimento técnico”. Contudo, arte toma historica- mente uma forma de olhar a realidade e interpretá-la. Para muitos estu- diosos, ela é a mais sublime das invenções humanas. 50 ...................................................................................................................................................................................................................... Condição humana [...] conjunto de procedimentos ligados a uma arte ou ciência; maneira de tratar detalhes técnicos (como faz um escritor) ou de usar os movimentos do corpo (como faz um dançarino); jeito, perícia em qualquer ação ou movimento.16 Dessa forma, pelo menos em alguns aspectos, o conceito atual de técnica ainda guarda alguns elementos da com- preensão grega de técnica como arte, apesar de atualmen- te o entendimento de técnica, de uma maneira geral, estar desvinculado do seu sentido originário de criatividade, em favor de um fazer irrefletido, repetido e “fabricativo”. Todavia, retomamos o conceito de técnica extraído de tékhné/τέχνη com o propósito de destacar os muitos sa- beres que os homens possuem e como eles os aplicam no cotidiano, portanto o artesão, ao lado do intelectual, é res- ponsável pelas inúmeras transformações que os homens operaram e operam na natureza e no universo cultural, passando pela materialização da sociedade até os nossos dias, diante dos nossos muitos desafios. As técnicas nasceram das necessidades de os homens so- lucionarem problemas postos pela natureza, assim como imposições da vida social. Dessa forma, não se separam técnicas da produção e do trabalho; aliás, técnica e traba- lho são elementos fundamentais da produção, podendo ser representados da seguinte forma: produção, distribui- ção e comercialização de bens importantes à manutenção da vida humana, por isso os sistemas produtivos se suce- dem historicamente, em virtude de os homens aperfeiçoa- rem esse determinado conjunto de técnicas. 16 HOUAISS, 2001. 51Relações entre técnica e sociedade ...................................................................................................................................................................................................................... Segundo esse ponto de vista, o modo de produção capi- talista tem representado idealmente os grandes esforços que lá atrás os europeus realizaram quando fizeram a re- volução científica a partir do século XVII, impulsionando assombrosamente as mais variadas técnicas, não só pro- dutivas como as imperantes no mundo militar, na esfera naval, nos meios de transporte e comunicação, na maximi- zação da produção até a automatização do trabalho. Não sem motivo que Marx e Friedrich Engels (1820-1895), no Manifesto comunista, de 1848, elogiam os maravilhosos feitos da industrialização como etapa superior do modo de produção capitalista, sem olvidar as mazelas que esse modelo produtivo trouxe
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