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07625 A INFÂNCIA E A VIOLÊNCIA NO CONTEXTO DA FAMÍLIA PATRIARCAL BRASILEIRA E SUA REPRESENTAÇÃO EM INFÂNCIA, DE GRACILIANO RAMOS, E O MEU PÉ DE LARANJA LIMA, DE JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS THE CHILDHOOD AND THE VIOLENCE IN THE BRAZILIAN PATRIARCHAL FAMILY AND ITS REPRESENTATION IN INFÂNCIA, BY GRACILIANO DE RAMOS, AND O MEU PÉ DE LARANJA LIMA, BY JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS. Aluno-autor: Helton Marques Orientador: Gilberto Figueiredo Martins Universidade Estadual Paulista – UNESP Faculdade de Ciências e Letras de Assis Letras hm_palmital@hotmail.com Palavras chaves: Literatura e violência; infância; família patriarcal brasileira. Keywords: Literature and violence; childhood; Brazilian patriarchal family. Introdução Graciliano Ramos era um escritor extremamente cuidadoso quanto à forma. Reescrevia seus livros sem cessar, só os dando a público quando estivessem enxutos, livres de quaisquer excessos. E foi justamente com toda essa cautela que Graciliano escreveu o romance Infância, livro de memórias, publicado em 1945, com o propósito de denunciar o encontro da criança com a violência. José Mauro de Vasconcelos, por sua vez, desenvolveu um estilo simples e emotivo, cujos livros transportam os leitores a um mundo de ternura e de alta sensibilidade. Em 1968, publicou sua mais conhecida obra, intitulada O meu pé de laranja lima, que relata a vida trágica de uma criança que enfrenta a incompreensão, a ausência de amor e a necessidade extrema de um amigo. Tendo em vista essas duas importantes obras da Literatura Brasileira, é possível traçar um paralelo entre ambas, com o propósito de destacar as semelhanças e diferenças de tratamento literário dado ao assunto da infância e da violência no contexto da família patriarcal no Brasil. Sendo assim, com relação à trama de Infância é importante considerar que se trata de uma história narrada por um narrador autodiegético, o qual relembra fatos ocorridos em sua infância, marcada pela violência e opressão. Logo no quarto capítulo, intitulado “Um cinturão”, o narrador tenta evidenciar os sofrimentos da criança sob a violência patriarcal. A narrativa mostra como o protagonista, ainda um menino, é castigado violentamente pelo pai, simplesmente porque este não encontra seu cinturão e põe a culpa no filho, o qual não sabe onde o referido objeto está: “Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo (...). A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor.” (1953: 32, 33). No entanto, o próprio pai é que havia perdido o cinturão, quando lhe desprendeu a fivela ao deitar-se na rede para dormir. Além dessa passagem, há também o episódio em que a mãe do menino maltratado castiga-o violentamente, usando uma corda de nó para surrá-lo e deixando hematomas no corpo da criança: “Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas.” (1953: 30). 07626 Como ilustrado acima, a criança protagonista é alvo da violência física dentro do próprio espaço familiar. Quando se analisa o romance em questão, observa-se que o menino maltratado teve uma infância marcada por uma conjuntivite que o impedia de enxergar durante semanas. Momentaneamente cego, o menino reflete sobre a visibilidade do seu corpo, desajeitado ao vestir-se e tateante ao dar passadas pela casa. Era verbalmente agredido e humilhado pela mãe, que o chamava de “bezerro encourado” e “cabra cega”: “Sem dúvida o meu aspecto era desagradável, inspirava repugnância. E a gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerro-encourado e cabra-cega (...) Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família: comparado ao bicho infeliz, considerei-me um pupilo enfadonho, aceito a custo. Zanguei-me, permanecendo extraordinariamente calmo, depois serenei.” (1953: 131, 132). Não obstante, além de a criança imprecavida sofrer humilhações físicas e psicológicas dentro da própria estrutura da família patriarcal, também é alvo de zombarias e xingamentos de todos os tipos, tanto pelos fregueses da loja do pai, como pelos colegas de sala de aula e até mesmo por alguns professores, como ilustram, respectivamente, os trechos transcritos abaixo: “Entre os indivíduos que freqüentavam a loja, havia um particularmente desagradável: Fernando. Esse monstro sentia prazer em matirizar-me (...) Eu tinha o juízo fraco e em vão tentava emendar-me: provocava risos, muxoxos, palavrões (...) Sempre me dei mal: as risadas cresciam, os muxoxos engrossavam, Fernando se tornava mais feroz. Inútil reagir.” (1953: 198). “Notei a singularidade quando principiaram a elogiar o meu paletó cor de macaco. Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me (...) Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei.” (1953: 197). “Vozes impacientes subiam, transformavam-se em gritos, furavam-me os ouvidos; as minhas mãos suadas se encolhiam, experimentando nas palmas o rigor das pancadas; uma corda me apertava a garganta, suprimia a fala...”. (1953: 105). De modo geral, em Infância, o relato se concentra nos momentos difíceis da socialização de seu pequeno protagonista, um menino fraco e tímido que se vê constantemente humilhado e batido pelos mais velhos, de modo especial pelos próprios pais. Podemos afirmar que Infância é um retrato da violência e do autoritarismo que caracterizam a sociedade brasileira de 1945. A partir da reelaboração literária de sua própria experiência, o autor procura refletir sobre a relação do indivíduo com o poder: o menino se acha diante das agruras da Lei, seja ela paterna ou estatal. A partir da difícil existência da criança no patriarcal sertão nordestino, observa-se o poder manifestando-se em suas formas mais cruéis e opressoras. Com relação a O meu pé de laranja lima, é importante considerar que também se trata de uma história contada por um narrador autodiegético, o qual relembra fatos ocorridos em sua infância cheia de imaginação e encantamentos, porém marcada pela infelicidade e solidão. Zezé, narrador-personagem da trama, era pobre e carente, porém extremamente inteligente e sensível. Não encontrando na família a ternura e o afeto de que necessitava, entregou o seu amor às pequenas coisas, mas em especial a Xuxuruca ou Minguinho, que era o seu pé de Laranja Lima, que se torna o seu grande confessor, amigo e companheiro de brincadeiras. Com Minguinho, Zezé protege-se do mundo real com uma barreira feita de brincadeiras, canções e da doce ilusão da inocência. Numa manhã de Natal, Zezé se encontra sentado à porta de casa, ora com o olhar fixo na parede, ora observando o olhar triste de seu pai, sentado na cadeira de balanço após procurar emprego e voltar desanimado. Então, no afã de tentar confortar o coração do pai, Zezé começa a cantar baixinho a música do tango que aprendera com a profissão que o pai sem saber ele já desenvolvia: ajudante de cantor: 07627 “Eu quero uma mulher bem nua, bem nua eu quero ter...”. (15ª ed.: 140). Seu pai o indaga onde aprendera a música e, num acesso de ira, o manda repetir, interrompendo-o a bofetadas, que continuam na medida em que a autoridade paterna exige a repetição, até serem interrompidas pelos gritos de dor e desprezo do menino: “Assassino!...”. O grito deixa o pai ainda mais furioso, fazendo-o pegar um cinto com duas rodelas de metal, que zunia o corpo da criança. A sessão de pancadaria termina somente quando a irmã mais velha, Glória, segura os braços do pai. A surra foi tão forte que Zezé desmaiou e, quando despertou, lembra que: “... ardia em febre. Mamãe e Glória estavam à minha cabeceira e me diziam coisas carinhosas. Na sala haviamovimento de muita gente (...) depois eu soube que queriam chamar o médico, mas não ficava bem.”. (15ª ed.: 142). Outra cena narrada por Zezé ilustra novamente sua irmã Glória defendendo-o da violência física, da qual ele sempre era vítima. Após uma sessão de pancadaria praticada dessa vez pelos irmãos, Zezé narra como Glória reagiu: “_Um dia vocês matam essa criança e eu quero ver! Vocês são uns monstros sem coração. (…) Ele não estava fazendo nada. Vocês é que provocaram. Quando eu saí ele estava quietinho fazendo o seu balão. Vocês não têm é coração. Como se pode bater tanto num irmão? (…) Tirou minha camisa e ficou lavando as manchas e os lanhos do meu corpo.” (15ª ed.: 136-137). Como evidenciam os trechos transcritos acima, a criança protagonista da trama de O meu pé de laranja lima é alvo da violência física e psicológica dentro do próprio espaço familiar, assim como o menino oprimido de Infância. Desse modo, portanto, torna-se viável analisar ambas as obras, com o intuito de destacar as semelhanças e diferenças de tratamento literário dado ao assunto da infância e da violência no contexto da família patriarcal brasileira. Objetivos Tendo em vista a representação da infância e da violência nos romances Infância, de Graciliano Ramos, e O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, o principal objetivo desta pesquisa se resume no levantamento de episódios que evidenciam cenas de violência em relação aos protagonistas das tramas. Em um segundo momento, torna-se viável elaborar um estudo comparativo entre as duas obras, a fim de destacar as semelhanças e diferenças do tratamento literário dado ao tema da infância e da violência no contexto da família patriarcal no Brasil. Fundamentação teórica A pesquisa é desenvolvida com base em dois livros teóricos. O primeiro privilegia a obra de Graciliano Ramos como escritor de memórias. Trata-se do livro Graciliano Ramos e a fala das memórias, de José Ubireval Alencar Guimarães. Nesta obra, o autor chega à conclusão de que “o mundo de Graciliano Ramos foi de aturdimento pela incompreensão, pela violência e pelas injustiças vividas ou testemunhadas. A fala do homem vai caracterizar o ensimesmamento, o enclausuramento absorvido e a solidão por que há de lutar a criança pela vida afora, a fim de sublimar todo esse mundo dissoluto.”. O segundo livro que dá suporte a esta pesquisa se intitula Casa Grande e Senzala. Neste livro, Gilberto Freyre reflete sobre como a estrutura arquitetônica da Casa-Grande expressaria o modo de organização social e política que se instaurou no Brasil, como no caso do patriarcalismo, onde o 07628 patriarca da terra era tido como o dono de tudo que nela se encontrasse, como escravos, parentes, filhos, esposa, etc. Portanto, trata-se de um livro que fornece elementos que servem de apoio ao debate e à reflexão crítica sobre o assunto pesquisado. Metodologia O presente trabalho leva em consideração o levantamento da fortuna crítica dos romances Infância e O meu pé de laranja lima para avaliar o atual estado da questão pesquisada. Em seguida, é realizado um estudo de como a infância e a violência são representadas nas duas histórias, destacando as semelhanças e diferenças entre ambas as formas de representação. Resultados Os resultados desta pesquisa revelam as formas de representação da infância e da violência em duas obras de autores diferentes da Literatura Brasileira, mas que se aproximam ao tratarem de fatos ocorridos em suas infâncias, vividas no contexto da família patriarcal e marcadas por momentos de forte opressão e solidão. Discussões Este trabalho permite uma discussão pertinente sobre como a violência foi uma característica marcante no decorrer da História Social do Brasil, principalmente dentro do contexto da família patriarcal, representadas nos enredos de Infância e O meu pé de laranja lima. Conclusões Podemos concluir, portanto, que as diversas expressões da infância e da violência são de extrema relevância nos romances Infância e O meu pé de laranja lima, uma vez que os protagonistas das tramas têm uma infância infeliz, marcada pela violência, em suas diversas formas de realização no contexto do patriarcado brasileiro. 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