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Existem Valores Universais ? Desidério Murcho

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TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
2. Existem valores universais? 
Desidério Murcho 
Universidade Federal de Ouro Preto 
Em áreas como a sociologia, a história e a física, recorre-se a inquéritos de rua, consulta de 
documentos, observações rigorosas e experiências laboratoriais. Usa-se estes e outros mé-
todos empíricos porque são as melhores maneiras de saber o que se quer saber nessas áre-
as. Por exemplo, para saber qual é a percentagem de mulheres que, num dado país, frequen-
ta a universidade, comparativamente ao universo total de alunos universitários, é preciso 
recorrer a dados empíricos; não há maneira de descobri-lo se nos limitarmos a pensar. No 
caso das ciências formais, como a matemática e a lógica, ocorre o inverso: não há como sa-
ber o que se quer usando métodos empíricos; a observação, a experimentação laboratorial e 
os inquéritos de rua são inadequados para saber se o último teorema de Fermat, por exem-
plo, é verdadeiro. Para isso, é preciso procurar uma demonstração matemática, que é um 
método não-empírico de prova. 
 A filosofia não é um estudo empírico, como a sociologia, porque trata de problemas 
que não podem ser adequadamente investigados usando métodos empíricos; e também não 
é uma ciência formal porque os seus problemas não podem ser adequadamente investigados 
usando apenas os métodos de prova matemática ou lógica. Daí que, literalmente interpreta-
da, a pergunta “Existem valores universais?” não seja filosófica. Estritamente falando, o que 
está em questão nesta pergunta é saber se encontramos alguns valores partilhados por todas 
as pessoas de todas as sociedades e ao longo de toda a história. Ora, só empiricamente se 
pode estudar tal coisa, recorrendo a registos históricos e arqueológicos, para saber se, por 
exemplo, as pessoas do antigo Egipto partilhavam pelo menos alguns valores connosco, e se 
nós partilhamos alguns valores com os esquimós do século XV. Contudo, a pergunta está 
associada a aspectos que são filosóficos, e são esses aspectos que iremos esclarecer. 
1. Um raciocínio inválido 
Dizer que não há valores universais, numa certa acepção, é dizer que, com respeito aos valo-
res, não há uma concordância universal entre pessoas de diferentes sociedades, nem ao lon-
go da história. Por exemplo, muitos europeus do século XVI não consideravam a escravatu-
ra imoral, assim como muitos gregos, romanos e egípcios da Antiguidade; hoje, pelo contrá-
rio, a maior parte das pessoas na maior parte do mundo considera-a imoral. (Usamos “mo-
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ral” e “ética” como sinónimos. A palavra “moral” tem como raiz o termo latino moralis, que 
Cícero usou para traduzir a palavra grega ethicos e que nós traduzimos directamente por 
“ética”; por esta e outras razões, quase nenhum filósofo distingue hoje a ética da moral.) 
 Descobrir se realmente existe uma completa variabilidade de valores exige um estu-
do empírico aturado; por isso, é uma tarefa da sociologia, da antropologia e da história. Não 
basta ter em mente um punhado de exemplos em que há discordância quanto aos valores 
para estabelecer a tese empírica de que não há valores universais. Isto porque se houver dis-
cordância quanto a alguns valores mas concordância quanto a outros, a tese de que não há 
valores universais será falsa. Por exemplo, talvez em algumas sociedades as pessoas consi-
derem a escravatura imoral e noutras não, mas talvez em todas as sociedades o homicídio 
indiscriminado seja considerado imoral. 
 Estabelecer ou refutar a tese da universalidade dos valores, entendida deste modo, 
não é uma tarefa filosófica, pois trata-se de uma questão empírica. O que podemos fazer em 
filosofia é perguntar: que significado filosófico teria essa ausência de universalidade dos va-
lores, se acaso a descobríssemos empiricamente? O que nos diria isso sobre a natureza dos 
valores? 
 Ora, a surpresa é que, caso a tese empírica de que não há valores universais se reve-
lasse verdadeira, isso quase nada de interessante nos diria quanto à natureza dos valores. 
Para ver porquê, considere-se o seguinte raciocínio: 
Ao longo da história, e percorrendo várias sociedades, há uma imensa discordância 
quanto aos valores, ou seja, não há valores universais; logo, os valores são relativos. 
A conclusão deste raciocínio é ambígua entre duas interpretações. Numa, o raciocínio é cir-
cular e desinteressante; noutra, não é circular, mas é inválido. 
 Na interpretação circular, a conclusão quer apenas dizer que os valores são relativos, 
na acepção de não haver valores universais. Ou seja, repete o que se afirma na premissa: que 
não encontramos um só valor que todas as sociedades aceitem. Nesta interpretação, a con-
clusão nada nos diz de interessante que não tenha já sido dito na premissa, e nada nos diz 
sobre a natureza dos valores. 
 Na interpretação não-circular, a conclusão quer dizer que os valores são relativos no 
sentido de não ser em si verdadeiro nem falso que, por exemplo, a escravatura é imoral, ou 
que é imoral o homicídio indiscriminado — ao invés, para umas sociedades é verdadeiro 
que o homicídio é imoral, e é moral para outras. A ideia aqui é inferir uma conclusão filosó-
fica quanto à natureza dos valores partindo do facto empírico de não haver valores univer-
sais. Neste caso, temos uma conclusão muitíssimo interessante, e o raciocínio certamente 
não é circular; contudo, é inválido, ou seja, a premissa não sustenta a conclusão. 
 Quando um raciocínio é válido, não há maneira alguma de a conclusão ser falsa se as 
premissas forem todas verdadeiras. É por isso que queremos raciocínios válidos: se as pre-
missas forem todas verdadeiras, o raciocínio prova que a conclusão é verdadeira. No nosso 
caso, contudo, o raciocínio não é válido, o que significa que mesmo imaginando que a pre-
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missa é verdadeira, isso não prova que a conclusão também o seja. Mesmo quem não sabe 
lógica consegue compreender que o raciocínio é inválido, pensando noutros casos em que 
aplicamos a mesma maneira de pensar. Por exemplo: 
Ao longo da história, e em diferentes sociedades, pessoas diferentes tiveram opiniões 
diferentes quanto à forma da Terra: enquanto algumas pensavam que era esférica, 
outras pensavam que era plana; logo, a forma da Terra é relativa, não é em si esférica 
nem plana — é esférica naquelas sociedades que pensam que é esférica, e plana nas 
outras. 
Este argumento é inválido, e é-o pela mesma razão que é inválido o outro argumento sobre 
os valores: porque procura inferir uma conclusão quanto à natureza de algo partindo apenas 
das opiniões que as pessoas têm acerca disso. Ora, uma vez que os seres humanos são falí-
veis, com base exclusivamente nas suas opiniões nada de interessante se conclui validamen-
te — e ainda menos se conclui caso essas opiniões não resultem de um estudo cuidadoso, 
mas antes do preconceito, da tradição e do pensamento irreflectido. 
 Assim, não se conclui validamente do hipotético facto empírico de haver uma dis-
cordância universal quanto aos valores que estes são relativos no sentido filosófico indicado. 
Talvez a discordância resulte apenas da dificuldade do assunto, ou talvez os seres humanos 
se limitem a aceitar os valores que lhes foram transmitidos pela sociedade em que vivem, 
sem reflectirem adequadamente acerca da sua plausibilidade ou razão de ser. Ou seja, há 
explicações alternativas plausíveis para o hipotético facto empírico de não haver valores 
universais, e o raciocínio indicado não nos dá uma boa razão para aceitar uma delas em de-
trimento das outras. 
2. A falácia factualista 
O tipo de erro aqui cometido é bastante comum, e ilustra a falácia factualista. Neste género 
de falácias, conclui-se invalidamente uma tese filosófica partindo de premissas factuais ex-
cessivamente fracas para estabelecê-la. Neste caso, procura-seconcluir uma tese filosófica 
sobre a natureza dos valores partindo exclusivamente das opiniões das pessoas sobre os va-
lores. Não só não se conclui validamente que os valores são relativos, no sentido filosófico, 
do simples facto hipotético de não haver valores universais, como também não se conclui 
validamente que a escravatura não é imoral, por exemplo, do facto hipotético de todas as 
pessoas de todas as culturas e ao longo de toda a história pensarem que não é imoral. 
 Em geral, dada uma ideia qualquer, não se conclui validamente que é verdadeira só 
porque toda a gente pensa que é verdadeira, nem se conclui que não é verdadeira nem falsa 
só porque não há consenso sobre se é uma coisa ou outra e porque é difícil saber quem tem 
razão. Nem as discordâncias das pessoas, nem as concordâncias, nem as dificuldades em 
encontrar concordâncias são guias adequados da verdade, nem da falsidade — precisamente 
porque as pessoas podem estar todas enganadas. 
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 É tão falacioso concluir que os valores são relativos, em qualquer acepção filosófica 
substancial, partindo apenas da variabilidade empírica de valores, como é falacioso concluir 
que são objectivos ou não-relativos, em qualquer acepção filosófica substancial, partindo 
apenas da universalidade empírica dos valores. Do simples facto de todas as pessoas de to-
das as sociedades e ao longo de toda a história pensarem que o homicídio é imoral, por 
exemplo, não se conclui validamente que o homicídio é imoral. Universalidade, no sentido 
empírico, é muito diferente de objectividade ou não-relatividade, em qualquer acepção filo-
sófica robusta, tal como a variabilidade empírica é muito diferente da ausência de objectivi-
dade, na mesma acepção filosófica. 
 Uma manifestação particularmente enganadora da falácia factualista está presente 
quando se conclui, da suposta discordância universal quanto aos valores entre sociedades, 
que a escravatura é imoral para umas sociedades e não para outras. “Imoral para” é uma ex-
pressão sofística, pois quer apenas dizer que uma dada sociedade, ou uma pessoa, considera 
que tal coisa é imoral. Por exemplo, afirmar que a escravatura é imoral para os europeus do 
século XXI, é apenas dizer que os europeus do século XXI consideram a escravatura imoral. 
Uma vez que as pessoas não são moralmente infalíveis, nada de interessante se conclui va-
lidamente do facto empírico de os europeus terem essa opinião sobre a imoralidade da es-
cravatura; mas se dissermos que a escravatura é imoral para eles, parece que dizemos algo 
directamente sobre a imoralidade da escravatura e não meramente sobre a opinião deles. 
Esta maneira de falar, quando não é deliberadamente concebida para enganar, manifesta fal-
ta de primor. Em qualquer dos casos, é falacioso concluir que os valores são relativos com 
base exclusivamente na premissa de que para diferentes sociedades, diferentes práticas são 
imorais. 
3. Verificacionismo 
Vejamos outra maneira de tentar concluir que os valores são relativos. Neste caso, ao invés 
de se partir do hipotético facto empírico de não haver valores universais, parte-se de uma 
premissa filosófica. A ideia é fazer notar que, no que respeita a factos, há sempre métodos 
de verificação para saber quem tem razão, e é por isso que encontramos consensos nos de-
partamentos de física das universidades, mas não na ética. (Para efeitos de discussão, admi-
timos a falsidade empírica de que há falta de consenso na ética filosófica; na verdade, há vá-
rios consensos. Por exemplo, todos os filósofos consideram hoje que é imoral excluir as mu-
lheres das universidades, como se fazia até há relativamente pouco tempo.) Todavia, tais 
métodos não existem no caso dos valores, e é por isso que os valores são relativos. Assim, o 
que sustenta a tese filosófica de que os valores são relativos (no sentido de não serem ver-
dadeiros nem falsos, mas antes verdadeiros para umas pessoas e falsos para outras) é outra 
tese filosófica: a ideia verificacionista de que só é verdadeiro o que podemos verificar que é 
verdadeiro. 
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 Porém, o verificacionismo é inequivocamente falso. Se só fosse verdadeiro o que po-
demos verificar que é verdadeiro, não seria verdadeiro que no deserto do Sara existem exac-
tamente n grãos de areia neste preciso momento, pois não podemos verificar tal coisa, e não 
seria também verdadeiro que existirão (ou não) extraterrestres inteligentes numa galáxia a 
biliões de anos-luz de distância depois de os seres humanos se terem extinguido, porque 
também não podemos verificá-lo. Esta posição verificacionista é antropocêntrica, supondo 
que o Universo se conforma ao que podemos saber dele, como se fôssemos deuses; a verda-
de, porém, é que o Universo é o que é, na sua maior parte, independentemente dos seres 
humanos, pois já existia antes de cá termos chegado e continuará quase certamente a existir 
depois de termos abalado. 
 Uma versão menos implausível de verificacionismo rejeita a ideia de que só é verda-
deiro o que podemos realmente verificar que é verdadeiro — mas insiste que só é verdadei-
ro o que se pode verificar que é verdadeiro, seja por nós ou não, e mesmo que só se possa 
verificar em princípio, e não de facto. Assim, seria verdadeiro que neste momento há exac-
tamente n grãos de areia no deserto do Sara porque esse número é em princípio verificável, 
ainda que não seja verificado de facto. O que isto significa é que só existem exactamente n 
grãos de areia no deserto do Sara porque poderíamos, em princípio, contá-los — ainda que 
na prática não desejemos fazê-lo. 
 Esta posição é ainda antropocêntrica, pois supõe que só há um determinado número 
de grãos de areia se pudermos em princípio (ainda que não na prática) saber quantos são. E 
não explica por que razão o Universo depende do que podemos saber em princípio. Ao con-
trário do que defende o verificacionista, é muito mais plausível pensar que o Universo é o 
que é, independentemente de podermos sabê-lo; afinal, temos fortes razões para pensar que 
o aparecimento dos seres humanos no Universo foi um acontecimento muitíssimo recente, 
bastante tardio na história do Universo. Caso o Universo dependesse dos seres humanos 
para ser de um modo ou de outro, não poderia ter existido antes dos seres humanos, o que 
é inequivocamente falso. 
 Talvez o defensor do verificacionismo consiga responder adequadamente à acusação 
de antropocentrismo; talvez possa insistir, por exemplo, que a sua posição diz respeito ao 
que é verdadeiro, e não ao que é real. O seu ponto de vista não seria então que no deserto 
do Sara não há um número n de grãos de areia a menos que possamos em princípio contá-
los, mas antes que nenhuma afirmação como “Há n grãos de areia no deserto do Sara” será 
verdadeira a menos que possamos em princípio verificá-la; a ideia é que o número de grãos 
de areia do Sara não dependeria de nós, mas a verdade da afirmação dependeria de nós. 
 A dificuldade desta versão de verificacionismo é confundir a diferença entre uma 
afirmação ser verdadeira e haver alguém que sabe que é verdadeira. Considere-se uma afir-
mação sobre algo que nunca poderemos, nem sequer em princípio, verificar, como a seguin-
te: 
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Houve um planeta numa galáxia cinquenta milhões de galáxias afastada da Via Lác-
tea que teve um deserto há seiscentos milhões de anos com duzentos biliões de 
grãos de areia. 
É um truísmo que se não temos boas razões para pensar que é verdadeira, então não temos 
boas razões para pensar que é verdadeira. Porém, é falso que se não temos boas razões para 
pensar que é verdadeira, então não é verdadeira. Isto porque para que a afirmação seja ver-
dadeira basta que tenha existido um planeta numa galáxia cinquenta milhões de galáxias 
afastada da Via Láctea que teve umdeserto há seiscentos milhões de anos com duzentos 
biliões de grãos de areia — não é preciso que os seres humanos, ou quaisquer outros seres, 
consigam saber que é verdadeira. 
 Talvez o verificacionista tenha uma resposta razoável para esta objecção. Todavia, é 
mais difícil ver como poderá responder à objecção de que o verificacionismo é incoerente ou 
irrelevante. Esta objecção começa por fazer notar que se entendermos a verificação tendo 
como modelo a verificação empírica (contar grãos de areia, por exemplo, ou verificar se te-
mos leite no frigorífico), ao mesmo tempo que declaramos que as afirmações morais são 
relativas porque não podem ser verificadas dessa maneira, nem sequer em princípio, então o 
verificacionismo é incoerente porque a afirmação verificacionista também não pode ser veri-
ficada dessa maneira. Assim, se o verificacionismo fosse verdadeiro, não seria verdadeiro 
porque não poderíamos verificar, nem sequer em princípio, que seria verdadeiro. Isto torna-
ria o verificacionismo incoerente: uma posição filosófica que, se fosse verdadeira, implicaria 
que essa própria posição não seria verdadeira. (Note-se que, apesar do ar paradoxal, não se 
trata de um paradoxo, mas de uma prova, por redução ao absurdo, de que a posição verifica-
cionista não é verdadeira: supor a sua verdade permite concluir validamente a sua falsidade. 
Para que fosse um paradoxo seria preciso que a suposição de que a posição verificacionista é 
falsa permitisse concluir validamente que é verdadeira. Porém, isso não acontece.) 
 A resposta óbvia do verificacionista é negar que tenha em mente um conceito tão 
restrito de verificação; ao invés, ele entende por “verificação” qualquer boa razão para pen-
sar que algo é verdadeiro. Assim, no caso de afirmações empíricas como a de que há leite no 
frigorífico, a verificação da verdade da afirmação consiste em abrir o frigorífico e ver; no caso 
de afirmações matemáticas como a de que o último teorema de Fermat é verdadeiro, a veri-
ficação consiste numa demonstração matemática complexa, com várias páginas. Assim, o 
verificacionismo escapa da acusação de incoerência porque podemos verificar a sua verdade, 
caso aceitemos que verificar consiste apenas em ter boas razões ou argumentos. 
 A primeira dificuldade desta posição é continuar a confundir o conceito de ter boas 
razões para pensar que algo é verdadeiro com ser realmente verdadeiro. Infelizmente, as 
duas coisas nem sempre coincidem, pois temos muitas vezes excelentes razões para pensar 
que algo é verdadeiro quando, afinal, é falso. O azar epistémico é corriqueiro: um investiga-
dor criminal, por exemplo, examina cuidadosamente todas as provas e conclui muito razoa-
velmente que quem cometeu o crime foi o Francisco; mas acontece que ele está inocente, 
apesar de todas as provas apontarem objectivamente para ele. 
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 Contudo, deixemos de lado esta incapacidade de todas as versões de verificacionis-
mo para distinguir entre ter boas razões para pensar que algo é verdadeiro e algo ser real-
mente verdadeiro. A posição verificacionista, entendida nesses termos, enfrenta outra difi-
culdade mais específica: é irrelevante no que respeita ao relativismo quanto aos valores. Re-
cordemos que tudo começou com a rejeição verificacionista de que as afirmações morais 
possam ser verdadeiras ou falsas, invocando o argumento de que não podemos verificar se 
são verdadeiras ou falsas. Num sentido restrito, empírico, de verificação, talvez isso seja 
verdadeiro; contudo, neste sentido agora alargado de verificação, isso é certamente falso: 
afinal, toda a história da discussão ética em filosofia é precisamente a história da descoberta 
e discussão de vários argumentos a favor e contra várias afirmações morais. Não é pura e 
simplesmente verdadeiro que não temos boas razões a favor da ideia de que é imoral excluir 
as mulheres das universidades, por exemplo; é precisamente porque temos boas razões a 
favor dessa ideia que ela gera um largo consenso entre os eticistas. 
 Em conclusão, se entendermos o conceito de verificação num sentido enfraquecido, 
salvamos certamente o verificacionismo da acusação de incoerência. Contudo, ficamos com 
uma teoria irrelevante no que respeita à suposta relatividade dos valores, pois no mesmís-
simo sentido enfraquecido em que podemos verificar que o verificacionismo é uma teoria 
verdadeira, podemos verificar que é imoral excluir as mulheres das universidades. 
4. Dependência 
Vejamos outra maneira de defender o relativismo quanto aos valores. Imagine-se que não há 
seres humanos. Nesse caso, as verdades da física permanecem sem qualquer alteração: a 
gravidade continua a ser o que é e os átomos de hidrogénio continuam a ter as propriedades 
que têm. Contudo, nenhum valor subsistirá — precisamente porque não haverá seres hu-
manos. A ideia é defender que esta inexistência de valores na ausência de seres humanos 
mostra que os valores são relativos, num sentido profundo e importante. 
 Todavia, este raciocínio enfrenta sérias dificuldades. A primeira é que é literalmente 
falso que nenhum valor subsistiria na ausência dos seres humanos. Os seres humanos valo-
rizam, por exemplo, a água — pois sem água não podemos sobreviver, e com carência de 
água não podemos viver bem. Certamente que a água não é o género de valor em que pen-
samos quando não nos falta; pensamos na saúde quando estamos doentes, ou na amizade e 
solidariedade quando nos falta, ou na justiça quando nos vemos rodeados de injustiça, e 
podemos pensar nos valores do altruísmo e da generosidade — mas não na água, desde que 
a tenhamos. Todavia, do facto de não pensarmos na água quando não nos falta, isso não sig-
nifica que não a valorizamos. Ora, nós não somos os únicos seres que valorizam a água; 
quaisquer outros organismos biológicos que dependam da água a valorizam, ainda que se-
jam incapazes de exprimi-lo linguisticamente de maneira explícita e articulada. E é de crer 
que continuariam a valorizá-la na ausência dos seres humanos, tal como já a valorizavam 
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antes de termos chegado a este planeta. Consequentemente, é literalmente falso que ne-
nhum valor subsistiria caso não existissem seres humanos, ou caso estes se extinguissem. 
 Uma resposta a esta objecção é admitir que os outros seres não deixariam de valori-
zar coisas, mas os valores especificamente humanos, como a justiça, não existiriam na nossa 
ausência. Porém, esta resposta limita-se a pôr a nu a dificuldade mais séria que enfrenta a 
posição agora em discussão: é que o desaparecimento dos valores especificamente humanos 
em resultado da nossa ausência é irrelevante no que respeita à relatividade dos valores, em 
qualquer acepção que não seja banal. A ideia do defensor do relativismo é que este desapa-
recimento dos valores exclusivamente humanos na ausência dos seres humanos significaria 
que tais valores careceriam de objectividade, digamos, ou seriam de algum modo ilusórios; 
como se costuma dizer nas zonas mais anémicas da cultura académica, seriam meras “cons-
truções” humanas. Porém, a inexistência de valores na ausência de seres humanos não im-
plica que esses valores careçam de objectividade, tal como a inexistência de fígados e pul-
mões humanos na ausência de seres humanos não implica que tais órgãos careçam de objec-
tividade. A medicina, por exemplo, é uma ciência perfeitamente objectiva, que estuda fenó-
menos perfeitamente sólidos e não meras “construções” humanas, apesar de o seu objecto 
de estudo depender da existência de seres humanos. (Uma curiosidade linguística é o uso 
antropocêntrico de “medicina” apenas para falar da medicina que tem por objecto os seres 
humanos, usando-se “medicina veterinária” para a que tem por objecto os outros animais.) 
 Em conclusão, os valores não dependem todos dos seres humanos, por um lado — 
algunsdependem de outros agentes valorativos. Por outro lado, mesmo os valores que re-
almente dependem dos seres humanos não perdem, somente por esse facto, qualquer objec-
tividade. 
5. Valores 
O argumento verificacionista e o argumento da dependência partilham uma perspectiva so-
bre a natureza dos valores que não foi explicitamente formulada. Trata-se da ideia de que há 
um abismo hiante entre factos e valores; os primeiros são objectivos, mas não os segundos. 
Porém, há razões para pensar que este suposto abismo, ainda que exista, não é tão profundo 
que permita concluir que os valores são relativos, em qualquer acepção significativa. 
 Seja qual for a concepção de facto que se tenha, é certamente de aceitar que um facto 
sobre John e Robert Kennedy é que eram irmãos biológicos. E há muitos outros factos do 
mesmo tipo, como a velocidade da luz ou as cores. Os factos deste tipo envolvem proprie-
dades relacionais. Chamamos “propriedades” às características ou atributos das coisas. Por 
exemplo, uma rosa vermelha tem a propriedade de ser vermelha, e Sócrates tinha a proprie-
dade ser grego. Um planeta tem uma dada massa, e essa propriedade não é relacional por-
que não relaciona uma coisa com outra, nem consigo mesma. Já a propriedade que John tem 
de ser irmão biológico de Robert Kennedy é relacional precisamente porque o relaciona com 
Robert. 
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 Muitas das propriedades que à primeira vista não parecem relacionais são-no de fac-
to. A propriedade de ser branco, por exemplo, é relacional sem o parecer: uma rosa é branca 
porque reflecte a luz que nela incide de uma certa maneira; absorve alguns comprimentos 
de onda mas não outros. A cor é uma relação entre a estrutura da superfície da rosa, que 
determina a maneira como reflecte a luz recebida, e a luz que nela incide — se nenhuma luz 
incidir nela, não reflecte luz branca, e se nela incidir luz verde, reflecte luz verde. 
 As propriedades relacionais não são todas relativas, no sentido de carecerem de ob-
jectividade; pelo contrário, muitas são objectivas e até estudadas cientificamente. Na biolo-
gia, por exemplo, estudamos a ancestralidade comum dos seres vivos, que é uma proprieda-
de relacional — tal como as cores, que estudamos na física, são também relacionais. A pro-
priedade relacional que John tinha de ser irmão biológico de Robert Kennedy é perfeitamen-
te objectiva: diz respeito, objectiva e factualmente, a ambos e aos seus antecessores imedia-
tos comuns. 
 Os valores são propriedades relacionais porque são relações entre os agentes capazes 
de valorizar e o que eles valorizam. Por exemplo, John Kennedy valoriza a água; isto é uma 
relação entre ele e a água. Neste caso, ele tem uma boa razão para valorizá-la: é que sem 
água, morre. Isto significa que alguns dos nossos valores estão ancorados na nossa natureza 
humana, por um lado, e, por outro, na natureza das coisas que valorizamos. É porque a 
água tem certas propriedades químicas que pode ser usada pelos organismos biológicos em 
geral, e em particular pelos seres humanos; e é porque os seres humanos são organismos 
biológicos com certas características que precisam de água para sobreviver. Caso o ácido sul-
fúrico tivesse as propriedades da água, ou caso os seres humanos tivessem outra biologia, 
valorizaríamos o ácido sulfúrico como bebida comum, mas não a água. 
 Valorizamos algumas coisas e actividades apenas instrumentalmente, como meios 
para outras coisas ou actividades que valorizamos, e valorizamos outras instrumentalmente, 
mas também em si mesmas. Por exemplo, uma pessoa valoriza a actividade física apenas 
instrumentalmente, como um meio para manter a sua saúde e bem-estar, ao passo que ou-
tra a valoriza também em si mesma, além de a valorizar instrumentalmente, porque gosta 
pura e simplesmente de nadar, por exemplo. Os valores finais ou últimos são aquelas coisas 
ou actividades que valorizamos por si mesmas: a felicidade e o bem-estar, as relações hu-
manas compensadoras, as artes e as ciências. Alguns valores finais, numa concepção menos 
exigente, são também instrumentais, como é o caso da ciência; caso tenhamos uma concep-
ção mais exigente, consideraremos que os valores finais nunca são simultaneamente ins-
trumentais. Neste caso, a felicidade surge como o candidato mais plausível a valor final — 
mas ficamos com a tarefa de especificar melhor se temos em mente uma concepção mais 
solipsista e interna de felicidade, ou se pelo contrário consideramos que uma ligação pro-
funda e adequada à realidade, incluindo a realidade social, é uma componente fundamental 
da felicidade genuína. 
 Uma pessoa pode enganar-se, pensando que uma coisa ou actividade é instrumen-
talmente adequada para outra coisa que ela valoriza quando, na verdade, não o é. Por exem-
plo, uma pessoa pensa que praticar uma dada actividade física é bom para aliviar as dores 
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que sente regularmente no pescoço — mas está enganada e essa actividade é inócua ou 
mesmo prejudicial. Também neste aspecto os valores não são relativos no sentido de carece-
rem de objectividade; pelo contrário, uma dada coisa ou actividade é objectivamente um 
meio adequado — ou não — para outra coisa que valorizamos. 
 Porque valorizamos várias coisas e actividades, enfrentamos conflitos de valores: va-
lorizamos duas ou mais coisas que são incompatíveis. Por exemplo, uma mulher valoriza o 
prazer imediato e fácil de fumar, mas valoriza também a sua saúde. Dado que as mulheres 
têm uma probabilidade mais elevada de contrair cancro devido ao tabaco, ela enfrenta um 
conflito de valores: gostaria de poder satisfazer essas duas coisas que valoriza mas ao satis-
fazer uma arrisca-se a perder a outra. Também neste aspecto os valores não são relativos, no 
sentido de carecerem de objectividade; pelo contrário, quando dois ou mais valores são in-
compatíveis, são objectivamente incompatíveis. 
 Dois dos papéis importantes que a racionalidade desempenha nos valores tornam-se 
assim manifestos. Por um lado, só racionalmente podemos determinar se o que pensamos 
ser um meio adequado para uma dada finalidade o é realmente ou não; consultar exclusiva-
mente e em todos os contextos as nossas inclinações, hábitos e costumes da nossa socieda-
de é um método inadequado e quase sempre irracional. Por outro, quando temos conflitos 
de valores, só racionalmente podemos tentar saná-los de uma maneira adequada. Assim, 
um exame elementar dos valores não aponta na direcção desejada do relativismo; antes re-
vela alguns aspectos inequivocamente objectivos. 
 O argumento verificacionista começa por conceber os valores como se fossem meras 
projecções humanas, sem existência real — porque não podem ser verificados ou porque 
desapareceriam caso os seres humanos não existissem. Todavia, aquilo que os seres huma-
nos valorizam — pensando que responde adequadamente às suas necessidades — ou lhes 
responde realmente ou não, e isso é um facto objectivo, mas relacional, como qualquer ou-
tro. Em muitos casos, e num sentido lato de “verificação”, podemos até verificar se os seres 
humanos estão enganados quando valorizam algo. 
 Quanto à ideia de que os valores carecem de objectividade porque não existiriam 
caso os seres humanos não existissem, é como pensar que a relação biológica de ancestrali-
dade comum entre dois irmãos carece de objectividade porque, caso um deles não existisse, 
o outro não poderia ser irmão do primeiro. Claro que a relação biológica de ancestralidade, 
como qualquer relação, não existe a menos que as coisas que a relação relaciona existam; 
mas isto não tem qualquer impacto na suposta carência de objectividade dessa relação. Por 
isso, da ideia de que os valores especificamente humanos não existiriam caso os seres hu-
manos não existissem, nada se conclui validamente quanto à sua suposta relatividade. 
6. Racionalidadelimitada 
Poderão os valores ser relativos, no sentido de carecerem de objectividade, precisamente 
porque carecem de racionalidade última e são algo arbitrários? Não se trata de negar que a 
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TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
racionalidade tem um papel importante a desempenhar quando temos conflitos de valores, 
ou quando temos de determinar os melhores meios para as finalidades que visamos; trata-se 
antes de insistir que, no que respeita às finalidades últimas, a razão é inerte, digamos assim, 
não desempenhando qualquer papel relevante. Deste ponto de vista, a racionalidade teria 
um papel a desempenhar apenas no que respeita à articulação das finalidades instrumentais 
com as últimas, e no que respeita à resolução, ou tentativa de resolução, dos conflitos de 
valores. No que respeita às finalidades últimas, contudo, a racionalidade seria muda. Isto é, 
se uma pessoa valoriza algo, há trabalho racional para fazer no que respeita à descoberta dos 
melhores meios para atingir isso que ela valoriza, e para tentar resolver conflitos de valores 
que possam emergir. Porém, se estiver em causa um valor último, algo que a pessoa valoriza 
não-instrumentalmente, nada há de racional a fazer quanto a isso: não há qualquer exame 
ou discussão que se possa fazer. Gostos não se discutem. 
 A dificuldade desta posição é a imagem piramidal rígida em que se apoia. Certamen-
te que distinguimos finalidades últimas de instrumentais, mas isso não significa que as 
primeiras estejam rigidamente estabelecidas, de uma vez por todas, nem significa que sejam 
imunes à revisão. Pelo contrário, as nossas finalidades últimas podem mudar, e mudam 
efectivamente muitas vezes, em função da nossa reflexão. Isto acontece não só porque te-
mos várias finalidades e descobrimos por vezes que dávamos menos destaque ao que temos 
agora boas razões para dar mais destaque, mas também porque a relação entre as finalida-
des últimas e instrumentais não é rígida: por vezes, uma finalidade ou conjunto de finalida-
des instrumentais influenciam ou obrigam a rever uma ou outra das nossas finalidades úl-
timas. Por exemplo, uma pessoa dedica-se a uma actividade instrumentalmente, apenas 
para ganhar dinheiro ou prestígio, ou apenas porque é algo que toda a gente faz; gradual-
mente, porém, começa a dar-se conta de que essa actividade a realiza como ser humano e 
que tem em si um valor fundamental de que anteriormente não se apercebera. 
 Assim, a dificuldade desta posição é apoiar-se numa imagem enganadora da nossa 
estrutura de valores. É um pouco como pensar que, dada a estrutura axiomática de uma te-
oria lógica ou matemática, isso significa que essa teoria é insusceptível de ser revista. Pelo 
contrário, o que acontece amiúde é que os axiomas são postos em questão quando deles 
resultam teoremas inesperados que temos razões independentes para pensar que são falsos, 
por exemplo; além disso, alguns axiomas são escolhidos não porque sejam particularmente 
óbvios em si, mas porque sem eles não conseguimos obter os resultados que nos parecem 
fundamentais. Há assim uma influência mútua entre axiomas e teoremas, entre pontos de 
partida e resultados obtidos, que é bastante mais interdependente do que o sugere a ima-
gem rígida da pirâmide com os axiomas imutáveis no topo e os teoremas que deles decor-
rem. E se isto acontece no domínio rarefeito das teorias matemáticas e lógicas, ainda mais 
obviamente acontecerá no caso sublunar da nossa estrutura valorativa. 
 Em conclusão, o argumento invocado para pensar que a razão é muda no que respei-
ta aos valores últimos é inadequado. Talvez a razão seja realmente muda; porém, o argu-
mento que o estabelecer terá de aceitar o papel que a racionalidade amiúde desempenha na 
revisão e reavaliação — contínuas e desejáveis — dos nossos valores últimos. 
!25
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
7. Deus 
Na ideia de que os valores carecem de objectividade porque não existiriam caso os seres 
humanos não existissem e na ideia de que a racionalidade é inerte no que respeita aos valo-
res últimos, encontramos um tema comum: a tentativa de encontrar valores que não depen-
dam dos seres humanos. No primeiro caso, é como se os seres humanos não fossem deste 
mundo, de maneira que os factos acerca de nós e das nossas preferências não seriam, diga-
mos, verdadeiramente factos, mas antes ficções ou narrativas sem uma ancoragem forte na 
realidade; a prova de que tais factos fantasmagóricos não seriam firmes seria precisamente a 
ideia de que sem nós nenhum desses pseudofactos existiria. No segundo caso, exige-se que 
a racionalidade estabeleça teoremas, digamos, partindo de nada que nos inclua a nós, com 
as nossas preferências e a nossa natureza biológica, social e emocional; a prova de que os 
valores não teriam firmeza objectiva seria precisamente a impossibilidade de fazer tal coisa. 
A ideia subjacente, nos dois casos, é que se os valores tivessem uma existência objectiva, 
teriam de ser independentes dos seres humanos, como os átomos de hidrogénio ou a Pró-
xima do Centauro. E é aqui que entra a divindade cristã: ela garantiria a realidade dos valo-
res, que deixariam assim de depender de nós. Consequentemente, se levantarmos a hipóte-
se de essa divindade ser apenas uma fantasia humana, ficamos com a ideia de que sem Deus 
tudo é permitido, no sentido em que nenhum valor objectivo restará (ainda que restem va-
lores relativos a diferentes sociedades). A ideia é insistir que Deus é o garante do valor; sem 
a sua existência, o valor desapareceria do mundo como uma vela que se apaga numa tem-
pestade. Será esta ideia plausível? 
 Dado que os valores são relações entre os seres humanos e diferentes aspectos da 
realidade, não se vê que possam desaparecer, seja por que razão for, desde que os seres hu-
manos e esses aspectos da realidade existam. Por exemplo, os seres humanos não podem 
deixar de valorizar a água enquanto dependerem dela para existir — quer Deus exista, quer 
não. E não se vê por que razão na ausência de Deus haveríamos de parar de valorizar o amor 
e a honestidade, a simpatia e a cooperação — pois estes são valores que contribuem decisi-
vamente para uma vida humana melhor, e mesmo sem Deus com certeza que continuaría-
mos interessados numa vida humana melhor. 
 O que isto significa é que Deus tem uma única maneira de criar valores: criar coisas 
que agentes capazes de valorizar valorizem, e criar esses agentes. É impossível Deus criar 
valores como quem cria uma montanha ou uma árvore porque os valores são relacionais. 
Do mesmo modo, Deus tem uma única maneira de criar um conjunto de duas árvores, que 
é criar as duas árvores; é impossível criar o conjunto das duas árvores sem criar as árvores, 
porque um conjunto de duas árvores não é como uma montanha ou outra entidade desse 
tipo, além das duas árvores. Um conjunto de duas árvores esgota-se metafisicamente nas 
duas árvores, o que significa que nem é possível criar o conjunto sem criar as duas árvores, 
nem é possível criar as duas árvores sem criar o conjunto. Ora, o mesmo acontece no caso 
dos valores: nem é possível criar valores sem criar coisas que sejam valorizadas por agentes 
!26
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
capazes de valorizar e sem criar esses agentes, nem é possível criar esses agentes e essas 
coisas sem criar valores. Consequentemente, o valor esgota-se metafisicamente na relação 
existente entre os agentes capazes de valorizar e as coisas valorizadas por eles; não depende 
directamente de Deus. Só indirectamente os valores podem depender de Deus: se Deus não 
criar agentes nem o que eles valorizam, não haverá valores. Isto significa que a hipótese da 
inexistência de Deus não tem como consequência a aniquilação dos valores. Ao invés, é a 
hipótese da nossa inexistência, juntamente com a inexistência de quaisquer outros agentes 
capazes de valorizar, que temcomo consequência a aniquilação dos valores. Deus é tão in-
capaz de criar valores sem criar agentes capazes de valorizar e as coisas que eles valorizam, 
como é incapaz de criar um cubo que não tenha seis faces. 
 Todavia, uma ideia menos implausível seria defender que sem Deus não há valores 
superlativos, ainda que se aceite que os valores humanos mais pedestres subsistiriam desde 
que subsistam os seres humanos. A dificuldade desta ideia é que tais coisas de valor super-
lativo serão humanamente inertes a menos que tenhamos boas razões para valorizá-las — 
directa ou indirectamente. Se conseguirmos compreender tais coisas superlativas, e ver o 
seu valor, seremos capazes de valorizá-las directamente; se forem assim tão superlativas, 
contudo, talvez não consigamos compreendê-las, caso em que teremos de valorizá-las indi-
rectamente porque valorizamos Deus e consideramos que Deus as valoriza. Isto significa 
que tais coisas de valor superlativo, além do humano, serão inertes para os seres humanos a 
menos que possamos valorizá-las, directa ou indirectamente. 
 A única ideia metafisicamente plausível, vagamente na direcção da fundamentação 
religiosa do valor, é a seguinte: Deus dá-nos uma razão para valorizar instrumentalmente 
coisas que de outro modo não teríamos razão para valorizar. Esta é a ideia que parece estar 
presente quando se pensa que sem Deus tudo seria permitido. A ideia seria que violar uma 
criança, por exemplo, tornar-se-ia permissível caso Deus não existisse; mas porquê? Porque 
quem pensa isto nada vê de errado na violação em si; apenas pensa que é prudencialmente 
uma má ideia porque Deus irá castigar-nos se a praticarmos, seja porque nos manda para o 
Inferno seja porque nos retira a possibilidade de viver no Paraíso. Este ponto de vista nada 
tem de errado, metafisicamente, quanto à estrutura do valor; é realmente verdadeiro que se 
não houvesse valor algum numa vida humana generosa e condigna, teríamos de valorizar 
coisas exteriores a esse tipo de vida para nos entregarmos a ela. A dificuldade desta perspec-
tiva é a implausibilidade do seu ponto de partida, além da radical patologia dos afectos que 
parece manifestar. 
 Começando por este último aspecto, para que uma pessoa não veja o valor intrínseco 
de valores humanos pedestres como o respeito pela integridade alheia, a generosidade e a 
simpatia, é preciso que tenha uma patologia grave dos afectos humanos comuns; por outras 
palavras, é preciso que seja um psicopata, ou próximo disso. E, claro, se esta pessoa pensar 
que toda a humanidade é como ela, não vê como poderá a sociedade funcionar com um mí-
nimo de decência humana a menos que a ameaça do Inferno ou a promessa do Paraíso este-
jam presentes. Quem considerar que não é uma boa ideia fundar a nossa filosofia do valor 
em perspectivas que emanam de afectos patologicamente distorcidos, rejeitará firmemente 
!27
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
esta perspectiva. Em qualquer caso, a verdade histórica é que a ameaça do Inferno e a pro-
messa do Paraíso não impediram os seres humanos de cometer as maiores atrocidades. 
 Quanto ao ponto de partida desta posição, a dificuldade é explicar como poderia al-
guém valorizar as coisas que Deus lhe garantirá caso não ande por aí a violar crianças, sem 
ao mesmo tempo valorizar as coisas comuns que tornam uma vida humana melhor. Qual-
quer concepção razoável que se tenha das coisas valiosas do Paraíso implica que as coisas 
pedestres de uma vida humana têm igualmente valor. Por exemplo, uma pessoa que valorize 
a beatitude da contemplação eterna da face de Deus certamente terá de valorizar também a 
beatitude mais pedestre da bondade graciosa ou da apreciação das artes. Consequentemen-
te, a ideia de que não há valor algum nas coisas humanas pedestres, a menos que sejam ins-
trumentalmente valiosas para fugir do Inferno e conseguir o Paraíso, é mais do que implau-
sível: é incoerente. 
 Em conclusão, a ideia de que os valores possam ser aniquilados — devido à inexis-
tência de Deus ou a outra coisa qualquer — ao mesmo tempo que os seres humanos conti-
nuam a existir é incoerente. Se não o parece é talvez porque quem a defende tem uma con-
cepção mágica dos valores, como se fossem coisas invisíveis e do outro mundo, criadas por 
Deus, que depois os seres humanos percepcionam sobrenaturalmente. Os valores não são 
isso, nem poderiam ser. Quando uma obra de arte é valorizada por ser bela, por exemplo, 
para que tal valorização seja adequada, tem de ser devido à relação entre as propriedades 
relevantes da obra de arte, vistas como belas, e a reacção de quem a examina. O valor da 
obra de arte não pode ser como um véu místico que a cobre e que desapareceria caso Deus 
desaparecesse, porque isso não teria qualquer relação relevante com a percepção visual da 
obra de arte nem com a reacção humana a tal percepção: seria, na melhor das hipóteses, 
uma coincidência aleatória que a obra de arte tivesse essa aura e que alguns seres humanos 
a captassem pensando sempre erradamente que captavam a própria obra de arte. 
 Além disso, mesmo que concedamos momentaneamente a inteligibilidade da ideia 
de que Deus é o garante dos valores, Deus não poderia servir de fundamento às nossas va-
lorizações e preferências, a menos que nós mesmos valorizássemos Deus e o que Deus valo-
riza. Para ver porquê, imagine-se que Deus é o fundamento do valor, mas que valoriza tudo 
ao contrário de nós: o homicídio, o estupro, a mentira e a guerra. Deus valoriza a existência 
mais desumana que possamos imaginar, plena de sofrimento e sem paliativos. Como é evi-
dente, não teríamos, somente por isso, uma boa razão para valorizar tal existência. 
 Claro que não é assim que se concebe o que Deus valoriza, nomeadamente nas reli-
giões cristãs: Deus valoriza os valores humanos — demasiado humanos, e ainda bem — do 
amor e da generosidade, da humildade epistémica e da honestidade. A questão é que é só 
porque já valorizamos essas coisas que nos parece relevante que Deus as valorize também; 
não é porque Deus as valoriza que as valorizamos. O que isto significa é que Deus desem-
penha um papel muito mais epistémico do que metafísico; ou seja, não é o fundamento dos 
valores, mas antes um guia que talvez nos ajude a reflectir melhor para descobrir o que tem 
realmente valor para nós, contrastando com o que parece ter valor mas não tem. 
!28
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
 No pensamento religioso acontece com o conceito de valor o que acontece com o 
conceito de verdade: começa-se por sacralizá-lo, de tal modo que fica irreconhecível e in-
compreensível, rodeado de um matagal lexical que esconde uma magia verbal vazia. É então 
desse conceito sobrenatural, transcendente, superlativo — o Valor com letra maiúscula e 
muita submissão acrítica da nossa parte — que se diz ter propriedades que os valores hu-
manos pedestres não podem, supostamente, ter: uma objectividade, uma transcendência, 
uma permanência para lá de toda a contingência humana. Será esta concepção religiosa de 
valor plausível, ou relevante? 
 Começando pela relevância, já se vê que a menos que tal Valor Superlativo tenha al-
guma relação com as nossas vidas humanas — em que temos de tomar decisões, construir 
laços emocionais com os nossos semelhantes, lidar com pessoas de moralidade duvidosa e 
fazer escolhas moralmente significativas quanto aos caminhos que queremos seguir — é 
pura e simplesmente irrelevante. Se o Valor Superlativo nenhuma relação tem com a mora-
lidade do aborto ou do estupro, com os nossos deveres profissionais, familiares e humanos, 
o termo pomposo “Valor Superlativo” carece de semântica, nada quer dizer de relevante; e 
se tiver alguma conexão com esses valores que realmente contam numa vida humana, é só 
devido a essa conexão que tal Valor Superlativo é relevante. Consequentemente, não é o Va-
lor Superlativo que fundamenta o valor, mas antesos valores humanos pedestres que dão 
vida ao vazio conceptual que é o mal imaginado Valor Supremo. Outra maneira de ver a pri-
oridade irrevogável dos valores humanos pedestres é imaginar que se argumenta que a ge-
nerosidade e o amor não são afinal valores genuínos porque carecem da tal conexão miste-
riosa com o Valor Supremo; isso muda alguma coisa na nossa escolha de valores? Não; con-
tinuaremos a preferir a generosidade e o amor à ganância e ao ódio, pela simples razão de 
que é isso que conduz a uma vida humana melhor. Consequentemente, a concepção religio-
sa de valor — entendida deste modo intelectualizado, abstracto, místico — é pura e sim-
plesmente irrelevante, tenha ou não alguma conexão com os valores humanos pedestres. 
 Resta perguntar se tal concepção religiosa do valor é plausível. E a resposta é que 
está longe de ser sequer inteligível, que é um pecado pior do que não ser plausível. O valor 
não é algo como uma montanha ou uma cadeira, algo como um objecto, ainda que sem loca-
lização no espaço nem no tempo, talvez localizado no Céu. Conceber o valor desse modo é 
cometer um erro categorial, análogo a uma compreensão equivocada do conceito de irmão, 
que não é algo como uma cadeira, mas antes uma relação — invisível, se olharmos apenas 
para um dos irmãos, pois é a relação que esse irmão tem com outra pessoa com a qual parti-
lha os mesmos progenitores. A concepção religiosa de valor viola a concepção mínima inici-
al do que é um valor: uma relação entre o agente que valoriza e a coisa ou actividade que ele 
valoriza. 
 Assim, há boas razões para pensar que é incoerente a ideia de que Deus é o funda-
mento e o garante dos valores; e, caso não o seja, é pelo menos indiferente, pois se não va-
lorizarmos nós o que Deus valoriza, ou o próprio Deus, todas as suas valorizações serão 
para nós pior do que inertes: será irracional adoptá-las. Ora, se temos de valorizar o que 
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TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
Deus valoriza, ou o próprio Deus, para que as suas valorizações nos digam respeito, isto 
significa que são as nossas valorizações o fundamento do valor, e não as de Deus. 
 Historicamente, é curioso que a ideia conceptualmente difícil de sustentar de que 
sem Deus tudo seria permitido tenha sido tão popular entre alguns intelectuais europeus 
dos séculos XIX e XX. Educados na religião cristã, e acreditando que Deus é o fundamento 
do valor, esses intelectuais não foram apenas incapazes de ver que as ideias religiosas acerca 
da moralidade que receberam com o leite materno são difíceis de tornar minimamente plau-
síveis; foram também incapazes de reflectir sobre dois factos históricos banais. Primeiro, 
que a maior parte da humanidade, ao longo da maior parte da história, viveu sem ter a di-
vindade cristã como referência, sem perder por isso os seus valores. Claro que nas socieda-
des humanas não-cristãs outras divindades eram objecto de crença, mas estas nem sempre 
desempenharam um papel de relevo no que diz respeito aos valores. Segundo, que ao longo 
da história da filosofia, de Sócrates a Immanuel Kant e John Stuart Mill, vários foram os au-
tores que reflectiram sobre os fundamentos do valor e que não deram a Deus qualquer pa-
pel metafísico de relevo nessa matéria. 
8. Contexto 
Na ideia de que os valores são relativos há pelo menos alguma verdade: os seres humanos 
nem sempre são dados ao estudo cuidadoso e sistemático dos valores, acabando por adoptar 
aqueles em que por acaso foram educados e recusando-se a estudá-los aturadamente para 
ver se são realmente adequados. Quando isto acontece, mesmo que os próprios valores não 
sejam relativos no sentido de carecerem de objectividade, as convicções que as pessoas têm 
sobre eles são efectivamente subjectivas — porque foram adquiridas sem um estudo atento 
e sistemático. Todavia, o mesmo acontece em qualquer área sobre a qual os seres humanos 
emitam opiniões ou formem convicções sem um estudo adequado. Uma pessoa que emita 
opiniões infundadas sobre a melhor maneira de curar uma perna partida manifesta posições 
subjectivas — contudo, a questão não é subjectiva. Consequentemente, do simples facto de 
as pessoas terem posições subjectivas quanto aos valores não se infere validamente que os 
valores são, em si, subjectivos. Além disso, mesmo que estudemos adequadamente as coi-
sas, somos falíveis; por isso, não é de esperar que as pessoas nunca se enganem quanto aos 
valores. 
 Contudo, para efeitos de argumentação, admitamos que os valores humanos são 
sempre fruto de um estudo cuidadoso e sistemático, e que além disso os seres humanos 
nunca ou raramente se enganam quanto a eles. Nesse caso, não seria de esperar que encon-
trássemos nas várias sociedades humanas, ao longo do tempo e por todo o planeta, um am-
plo acordo no que respeita aos valores? Afinal, nem todas as sociedades desenvolveram es-
tudos aprofundados de aritmética, mas nenhuma rejeita que dois mais dois seja quatro. Por 
que razão aceitam então algumas sociedades o infanticídio, por exemplo, quando outras o 
condenam tão veementemente? A resposta que o relativista sugere a esta pergunta é que 
!30
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
isso acontece precisamente porque os valores são relativos, ao contrário dos factos e das 
verdades aritméticas. 
 Todavia, há razões para pensar que tal resposta será apressada se não for precedida 
de um exame cuidadoso para ver se as diferenças de valores acaso não ocorrerão apenas, ou 
quase exclusivamente, com respeito não a valores últimos, mas antes a valores instrumen-
tais. Uma vez que, pela sua natureza, os valores instrumentais são sensíveis ao contexto, 
encontrar neles uma ampla variação indica apenas que, em contextos diferentes, é adequado 
valorizar instrumentalmente coisas diferentes, a fim de promover os mesmos valores últi-
mos. Por exemplo, num contexto em que não há outra maneira de combater adequadamen-
te o sarampo a não ser vacinar as crianças, é adequado vaciná-las — porque julgamos que o 
mal menor de as assustar e fazer sofrer ligeiramente com a picada da seringa é compensado 
pela vantagem de não contrair a doença. Todavia, num contexto em que erradicámos com-
pletamente o sarampo, seria cruel vacinar as crianças em vão. Em ambos os casos, contudo, 
temos os mesmos valores últimos, mudando apenas os valores instrumentais em função do 
contexto. 
 Ora, diferentes sociedades estão por vezes em contextos diferentes, e é de esperar 
que os seus valores instrumentais respondam adequadamente a essas diferenças — ainda 
que alguns valores fundamentais sejam os mesmos. Um exame superficial de diferentes va-
lores de diferentes sociedades irá então destacar as diferenças e esconder as semelhanças 
porque não levámos o inquérito suficientemente longe para ver o porquê das diferenças. 
Seria surpreendente que seres biológicos aproximadamente com as mesmas características 
gerais não tivessem uma vasta paleta de valores comuns, mas não é de estranhar que em 
diferentes contextos adoptemos diferentes valores instrumentais, visando pelo menos em 
parte os mesmos valores últimos. 
 Considere-se, por exemplo, o infanticídio. Em sociedades predominantemente agrí-
colas, que valorizam a conquista e a expansão territorial, e com índices de mortalidade in-
fantil muito elevados devido às doenças que os animais domesticados nos transmitiram, o 
infanticídio será fortemente condenado. Em sociedades de caçadores-recolectores com re-
cursos muitíssimo limitados, que tornam a explosão populacional indesejável, e com índices 
inferiores de mortalidade infantil porque não têm doenças transmitidas pelos animais do-
mesticados, o infanticídio poderá ser tolerado. Este conflito de valores, contudo, esconde 
uma concordância profunda: em ambos os casos, trata-se de tentar fazer o que será melhor 
para todos, ou menos mau, naquele contexto. Num caso, isso significa tentar expandir a po-pulação, para que mais braços possam dedicar-se ao amanho das terras e à pastorícia; nou-
tro, significa limitar a expansão populacional para manter o equilíbrio entre o número de 
bocas a alimentar, o número de caçadores e os recursos naturais. 
 Uma vez que os valores não trazem consigo um rótulo que os identifique ora como 
instrumentais ora como últimos, é fácil pensar erradamente que os valores da nossa própria 
sociedade que entretanto se cristalizaram pela força do hábito são últimos, quando afinal 
são meramente instrumentais. Depois, ao olhar para outras sociedades que, em diferentes 
contextos, adoptaram diferentes costumes, ficamos com a ilusão de que não partilhamos 
!31
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
com elas valores fundamentais, quando na verdade só não partilhamos valores instrumen-
tais que, pela sua própria natureza, respondem ao contexto em que nos encontramos. 
 É por esta razão, entre outras, que é tão importante o contacto com sociedades mui-
tíssimo diferentes da nossa, seja directamente, seja por via da literatura e dos estudos an-
tropológicos. Ao contactar com valores bastante diferentes dos nossos, a integridade inte-
lectual e humana obriga-nos a perguntar se o que nos foi transmitido de maneira dogmática 
como um valor último não será afinal meramente instrumental, dando-nos a ilusão de que 
não há outras maneiras de viver uma vida humana realizada e compensadora a não ser da 
maneira restrita como fomos educados. 
 Em conclusão, para que o argumento relativista seja bem-sucedido, não basta mos-
trar que encontramos diferentes valores em diferentes sociedades; tem de mostrar também 
que esses valores são realmente últimos e não meramente instrumentais. Além disso, basta-
ria encontrar um só valor último comum a todas as sociedades para que o argumento relati-
vista fosse derrotado. 
9. Desacordo profundo 
Nas sociedades industrializadas contemporâneas assiste-se a desacordos morais aparente-
mente profundos, com respeito a temas como o casamento de pessoas do mesmo sexo e o 
suicídio assistido. A dificuldade de chegarmos a um consenso nestes casos talvez não prove 
a relatividade dos valores aqui em questão, mas sugere que talvez sejam relativos. A ideia é 
que se não o fossem, conseguiríamos encontrar um consenso, tal como o conseguimos nou-
tros casos — a legitimidade da autoridade do estado, por exemplo, a igualdade das mulheres 
e a condenação do racismo. Caso se continue a negar a relatividade dos valores, como se 
explica então este tipo de discordâncias? Não vale a pena invocar diferentes contextos, uma 
vez que se trata agora de sociedades que estão aproximadamente no mesmo contexto: as 
sociedades europeias ou fortemente influenciadas pela cultura europeia. 
 Talvez estas discordâncias profundas permitam concluir adequadamente que pelo 
menos alguns valores são relativos. Todavia, antes de fazê-lo será preciso excluir factores 
proeminentes que provocam falhas profundas no uso humano da racionalidade. Um desses 
factores é o dogmatismo, que dá origem à racionalização: a procura de razões fantasiosas 
para sustentar as convicções que não estamos dispostos a pôr genuinamente em questão. 
Ora, no que respeita aos valores, não temos apenas os fracassos gerais e habituais da racio-
nalidade humana; algo mais faz os seres humanos ter um especial apego aos valores em que 
foram educados, quase sempre dogmaticamente. Esse algo é a importância especial que as 
normas uniformes têm no caso dos valores. A importância das normas uniformes ilustra-se 
facilmente com o exemplo do uso de capacetes protectores nos jogadores de hóquei em pa-
tins. 
 Dada a natureza daquele desporto, as lesões cerebrais constituem um risco sério 
para todos os praticantes. Contudo, o uso de capacetes é muitíssimo limitador, pois o des-
!32
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
portista perde visão lateral e audição. Se todos usarem capacetes, estas perdas não são rele-
vantes, pois todos ficam igualmente limitados. Contudo, se o uso dos capacetes não for 
obrigatório, logo aparecem desportistas que aceitam o risco em troca da vantagem competi-
tiva relativamente aos colegas que usarem capacete. Como todos os desportistas acabam por 
descobrir a vantagem competitiva de não usar capacete, todos o abandonam. O resultado 
final é então desastroso, pois agora que ninguém usa capacete, ninguém tem vantagem 
competitiva, e todos têm o risco acrescido de lesões cerebrais graves. Ou seja: nenhuma 
vantagem competitiva, e toda a desvantagem do risco acrescido. 
 Este caso ilustra a importância de ter normas uniformes. Em muitos casos, ficamos 
todos pior sem elas. Nesses casos, não podemos deixar as coisas à escolha livre de cada um. 
Porém, não precisamos de normas uniformes em todos os casos. A confusão consiste então 
em pensar que, quanto aos valores, qualquer tradição que tenhamos recebido tem de ser 
mantida como norma uniforme, sob pena de ficarmos todos pior se deixarmos as coisas à 
escolha livre de cada um. É o caso, precisamente, do casamento entre pessoas do mesmo 
sexo: se não o permitirmos, estaremos a dificultar desnecessariamente a vida das pessoas 
homossexuais, sem que os heterossexuais ganhem seja o que for; se o permitirmos, nada de 
mau acontece aos heterossexuais, mas os casais do mesmo sexo terão uma vida melhor. 
Contudo, a reacção irracional é pensar que o mundo vai acabar, ou que a instituição do ca-
samento heterossexual ficará em risco, caso as pessoas do mesmo sexo possam casar. Esta 
reacção confunde as coisas, pensando erradamente que a norma do casamento, como a 
norma do uso de capacetes, tem de ser uniforme. 
 Assim, a discordância moral profunda perde a sua força como argumento a favor do 
relativismo porque muitos seres humanos insistem irracionalmente em impor normas uni-
formes mesmo nos casos em que não precisamos delas para viver melhor. 
10. Conclusão 
Não nascemos sabendo o que tem mais valor para nós mesmos; aprendemo-lo pela experi-
ência, e erramos muitas vezes. Mesmo que aceitemos a tese aristotélica de que o único valor 
último é a felicidade, não sabemos bem o que nos faz felizes, nem o que é ser feliz; e mes-
mo que o soubéssemos com toda a clareza, não seria fácil saber quais são os meios mais 
adequados para atingi-la. 
 A dificuldade principal da tese de que os valores são relativos é a aparente incompa-
tibilidade com estas banalidades acerca das nossas limitações epistémicas no que respeita 
ao valor. Aparentemente, se os valores fossem meras “construções” humanas, no mesmís-
simo sentido em que uma ficção literária é inequivocamente uma construção humana, pode-
ríamos decidir ad libitum fosse o que fosse acerca dos valores; dado que uma das coisas mais 
óbvias que todos valorizamos é a nossa própria felicidade, todos decidiríamos ser felizes, e 
seríamos só por isso felizes, tal como numa ficção literária decido chamar “Jacinto Teles” ao 
protagonista e ele imediatamente se chama efectivamente “Jacinto Teles”. Uma vez que isto 
!33
TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
não acontece, parece haver algo de profundamente errado na ideia de que os valores são me-
ras “construções” humanas. 
 Assim, se interpretarmos a pergunta “Existem valores universais?” como sinónima 
de “Existem valores não-relativos?”, a resposta inicial mais plausível é “Sim”. A dificuldade 
está em descobri-los. E é precisamente devido a essa dificuldade que essa é a resposta mais 
plausível. 
Postscript 
A discussão anterior está longe de ser a palavra final sobre o tema; ao invés, visa apenas 
ajudar a dar os primeiros passos na discussão, evitando confusões elementares e dando pis-
tas desejavelmente profícuas. Para cada argumento e para cada objecção que apresentámos 
há respostas plausíveis e razoáveis — às quais, por sua vez, é possível responder com novos 
argumentos e objecções. 
 Não provámos, de modo algum,a objectividade dos valores; nem provámos que não 
há maneiras adequadas de defender a relatividade dos valores. Apenas mostrámos que al-
gumas das maneiras mais populares de o fazer enfrentam dificuldades importantes. Isto 
significa que para desenvolver adequadamente uma posição relativista quanto aos valores é 
preciso ter respostas sólidas a todas as dificuldades aqui apresentadas. E isso é exactamente 
o que procuram fazer aqueles filósofos contemporâneos que defendem alguma versão, ge-
ralmente bastante enfraquecida, de relativismo dos valores. 
 A área da filosofia onde estudamos a objectividade dos valores morais é a metaética, 
uma disciplina da ética. Porém, o tema da natureza dos valores é relativamente independen-
te das preocupações mais locais da metaética; pertence à metafísica do valor, que inclui os 
valores estéticos. 
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TODOS OS SONHOS DO MUNDO — DESIDÉRIO MURCHO
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