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RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 1 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO DE PAPEL. ARTIGO 1.727 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 . EFEITOS. Interpretação do Código Civil de 2002 com eticidade, socialidade e operabilidade, como ensina Miguel Reale. Reconhecimento de efeitos a união estável paralela ao casamento de papel, como medida que visa evitar o enriquecimento ilícito. DERAM PARCIAL PROVIMENTO. APELAÇÃO CÍVEL OITAVA CÂMARA CÍVEL Nº 70014248603 COMARCA DE VIAMÃO S.L.G. .. APELANTE; R.E.B. .. APELADO. A CÓR DÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar parcial provimento ao apelo. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA E DES. JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE. Porto Alegre, 27 de abril de 2006. DES. RUI PORTANOVA, Relator. RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 2 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA R E L AT ÓRI O DES. RUI PORTANOVA (RELATOR) - Trata-se de apelação interposta por SILVANA L. G. contra sentença que julgou improcedente a ação de dissolução de união estável que moveu contra RENATO E. B. Alega incontroverso que o relacionamento havido entre as partes caracterizou união estável, inobstante o apelado ostentar o estado civil de casado. Afirma que a prova documental demonstra claramente que as partes viveram como um casal publicamente, e que a divergência acerca do marco inicial da união é despicienda para efeitos da partilha, pois os bens foram adquiridos na constância da união. Por fim, argumenta ter direito a alimentos, porquanto teve que ficar em casa para o apelado trabalhar e prover o sustento do casal. Requer o provimento do apelo. Vieram contra-razões 9fls. 333/344). O Ministério Público, neste grau de jurisdição manifesta-se pelo improvimento do apelo. RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 3 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA É o relatório. V O TO S DES. RUI PORTANOVA (RELATOR) - União Dúplice. Não pode haver dúvida: a apelante manteve um relacionamento afetivo com o apelado. Já desde a contestação o relacionamento é afirmado por RENATO: “Cumpre salientar, primeiramente, que a demandante sempre soube, desde o início do relacionamento com o demandado, que este se tratava de pessoa casada, com filhos (...).” (fl. 49, grifei) O que restou de dúvida são os seguintes pontos: a qualidade de tal relacionamento e a data de início. No que diz com a qualidade do relacionamento dois são os temas em debate. O primeiro diz com o fato de RENATO se manter casado com outra mulher. O segundo, diz com a própria definição e consistência da relação entre a apelante SILVANA e o apelado RENATO. RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 4 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Vejamos, de início a questão pertinente ao fato de RENATO se manter casado. Tome-se em conta os termos da inicial (já quando qualifica o réu como casado), o relato da testemunha José Fernando (f.244) e as fotos que acompanharam a contestação e ver-se-á que o apelado manteve, na verdade, uma união paralela. Com efeito, durante o tempo que durou o relacionamento com SILVANA, RENATO mantinha a sua união surgida com o casamento com LENI. A consistência da união entre RENATO e SILVANA era absolutamente igual aquela própria de um casamento e união estável. Restou bastante provado que as partes viviam, como se casados fossem, sob o mesmo teto. É possível dizer que, do ponto de vista da prova destes autos, RENATO vivia mais tempo com SILVANA do que com sua esposa LENI. O mesmo se pode dizer em relação à convivência. Tanto viviam como marido e mulher, que também encontramos um grande número de fotos dando conta da participação de RENATO em eventos festivos com a família de SILVANA. Na verdade, do ponto de vista da graduação afetiva, é lícito afirmar que a prova mostra mais afeição de RENATO por SILVANA do que em relação a sua esposa. Aqui vale a pena notar a grande quantidade de bilhetes e poesias que aparecem nas folhas 29 a 34. RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 5 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Enfim, não fosse a manutenção do casamento de papel, sobrariam poucas razões para se contestar a existência de união estável entre SILVANA e RENATO. Seja como for, não há como negar, RENATO tinha uma união estável com SILVANA e mantinha um casamento com LENI. Trata-se de hipótese conceituada pelo Código Civil de 2002 de concubinato. A saber: “Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar constituem concubinato.” Com efeito, as relações entre SILVANA e RENATO não eram eventuais. Eram constantes e contínuas. Não estamos falando de uma relação momentânea, furtiva e casual. Pelo contrário. Vimos que eles viviam como se fossem marido e mulher. No mesmo rumo, SILVANA e RENATO estavam impedidos de casar, em face da manutenção (pelo menos no papel) do casamento entre RENATO E LENI. Logo, estamos diante de um concubinato. Por lástima, alguns intérpretes do novo Código Civil, continuam lendo e entendendo o concubinato, como se fossem intérpretes do revogado Código de 1916. RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 6 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Contudo, não se pode perder de vista as lições a respeito do novo Código Civil advindas do mestre Miguel Reale. Como diz o grande jurista brasileiro, “A substituição de um Código Civil por outro não se reduz à troca de uma lei por outra, porque significa, antes de mais nada, o advento de um novo paradigma cultural, tomada a palavra paradigma no sentido de que lhe dá Thomas Kuhn, como uma idéia-mestra, ou melhor, um conjunto de idéias-mestras que torna necessário proceder à revisão de muitas teses havidas como assentes, quer para substituí-las, quer para retificá-las” (negritei). Na lição do mestre, é indispensável estar atento para o fato de que “trata-se do superamento dos pressupostos histórico-doutrinários do Código Civil de 1916, que do ponto de vista cultural se enquadra no século XIX...” (Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro, org. Judith Marins- Costa, Prefácio, p. IX). Contudo, volte-se a Miguel Reale, e veremos que o novo Código não pode ser lido com as mesmas lentes dos passados que engendraram a interpretação do Código revogado. Tome-se a página que segue a citação supra do mesmo Prefácio, e ver-se-á que o mestre ensina que não podemos perder de vista que o novo diploma civil deve ser lido com, pelo menos, três diretrizes: (1) sentido social, “sob certos aspectos, até mesmo socializantes” (destaca Miguel Reale), (2) “forte impacto de natureza ética a fim que se possa realizar a justiça social” e (3) “cláusulas abertas que favoreça a adequação à justiça do caso concreto, RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 7 ESTADO DO RIO GRANDEDO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA em vez de opção sistemática por um rigorismo formal que bloqueia a força expansiva dos valores jurídicos”. É com esse rumo que o presente processo deve se entendido. Por evidente não estou a dizer que Código Civil de 2002 legitimou, do ponto de vista do Direito Civil a bigamia. Por evidente, do ponto de vista geral de nossa cultura, continuamos monogamistas. Contudo, não se pode perder de vista que o tema concubinato é tratado pelo Código Civil de 2002 dentro do mesmo título reservado ao tema da união estável. Ademais, o Código Civil de 2002 não diz que a existência do concubinato não gera efeito civil nenhum. Não é dito que estamos diante de um fato ou ato ilícito. O Código Civil de 2002 apenas conceitua. Ou seja, é lícito concluir que estamos diante de uma das diretrizes traçadas por Miguel Reale, qual seja, concubinato, no novo Código Civil é uma cláusula aberta, a qual devemos preencher com uma análise “socializante”, “ética” e com atenção às peculiaridade do “caso concreto”. Ora, voltando-se ao concreto do presente caso, temos que SILVANA viveu com RENATO como se fossem casados. Logo, é licito presumir que SILVANA, tanto quanto LENI , contribuiu para a constituição do patrimônio adquirido durante persistiu a união. Vale a pena notar que, a não se dar a SILVANA o mesmo direito de presunção que dispõe LENI, estaremos violando um dos mandamentos RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 8 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA éticos mais sagrados do direito de todos os tempos, qual seja, o de vedação ao enriquecimento ilícito. Com efeito, se ambas, SILVAVA e LENI, viveram durante o mesmo tempo como se casadas fossem com RENATO, seria injusto (e ilícito) permitir que somente LENI e RENATO obtivessem vantagens patrimoniais, por um fato próprio e exclusivo de SILVANA. Ao contrário do pedido pela autora-apelante, não estou reconhecendo direito a percepção de alimentos. Trata-se de pessoa jovem que, sem dúvida, não deve permanecer na dependência financeira de RENATO. Contudo, pelas razões expostas acima, ou seja com base na lei e doutrina de Miguel Reale, estou reconhecendo em favor de SILVANA, ao símile de uma união estável, efeito patrimonial durante o tempo em que durou a sua relação com RENATO. Com isso, estou presumindo que, durante este relacionamento, SILVANA, juntamente com RENATO e LENI, colaborou para a construção do patrimônio, adquirido por RENATO. Meação (“Triação”) Não há dúvida que se comunicam os bens adquiridos no curso da união entre, a teor da combinação dos artigos 1.658 e 1.725, ambos do Código Civil de 2002: “Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.” RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 9 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA “Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.” No caso, há união dúplice. Ou seja, há um período em que houve casamento e união estável concomitantes. Por isso, tudo o que RENATO adquiriu com a esposa e com a companheira nesse período forma um patrimônio comum dos três, a ser dividido entre os três (1/3 para a esposa, 1/3 para a companheira e 1/3 pertencente par RENATO). Logo, a meação (ou “triação”) da companheira corresponde a 1/3 do patrimônio formado no período em que houve união estável concomitante ao casamento. Vale a pena ressaltar que não é só Judiciário gaúcho que inaugura esse novo entendimento. Já há decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, em que também foi reconhecida a união dúplice. Um destas decisões está assim ementada: “Deve o juiz encarregado de julgar ação que versa sobre a meação de homem com hábitos incomuns e que manteve vida concubinária dúplice por mais de trinta anos, guiar-se pelos princípios gerais de direito (arts. 4º da LICC e 126 do Código de Processo Civil). Dividir a meação significa decisão de justiça social (art. 226, §3º, da Constituição Federal). Provimento do recurso, em parte, da autora para atribuir-lhe 25% do patrimônio do “de cujus”, prejudicado os demais recursos.” RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 10 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Permito-me transcrever algumas passagens do voto do Desembargador ÊNIO SANTARELLI ZULIANI, em razão das similaridades entre esses casos de união dúplice: “(...) exigindo rigorosa avaliação da conduta incomum do solteirão convicto que, sem assumir os compromissos dos homens normais, dominou e dirigiu a existência de duas mulheres com perfis similares por quase três décadas. (...) A r. sentença está afinada com a jurisprudência moderna. Surgiu de uma política social o direito das concubinas. Os juízes não poderiam fechar os olhos diante da realidade, como se não fosse maioria o relacionamento informar com fim dramático e injusto. A lógica da moral judiciária recomendava julgamentos favoráveis às companheiras que, iguais em tudo às esposas com papel passado em Cartório, ficavam à mercê da sorte com o término da união. Justamente por esse enfoque é que não tem sentido descartar o direito da autora porque Amilcar não dormia todas as noites em sua casa. (...) O sentido de entidade familiar de uma relação de pessoas deve, neste caso, ser extraído da atitude da mulher e não pela opção de um homem de hábitos extravagantes. Importa que Anésia acreditou e viveu uma vida a dois e isso ficou provado pelo inabalável projeto de produzir uma comunhão de interesses recíprocos, com assistência mútua e conjugação de esforços. Aí a estrutura da entidade familiar que o Estado protege (§3º do art. 226 da Constituição Federal).” Enfim, é possível reconhecer a existência de união dúplice e dela retirar efeitos. RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 11 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ressalte-se que somente será objeto de divisão entre esposa e companheira a fração do patrimônio total que foi adquirida no período de convivência comum do casamento de papel e da união estável. SILVANA não tem direito a parte de qualquer bem adquirido antes do início da união com RENATO. Duração da União Estável. Por fim, cumpre decidir a respeito do tempo de relacionamento. Tanto a sentença como o parecer do Ministério Público neste grau de jurisdição mostram bem como a inicial e o depoimento pessoal da autora discrepam quanto ao início do relacionamento. No ponto, para incidência da presunção de contribuição deve prevalecer o tempo referido na inicial, qual seja fevereiro de 1996 até março de 2002. ANTE O EXPOSTO, dou parcial provimento ao apelo para: (a) reconhecer que SILVANA e RENATO viveram em união estável entre fevereiro de 1996 e março de 2002; (b) reconhecer o direito de SILVANA à terça parte dos bens onerosamente adquiridos pelo casal na vigência da união. Inverto os ônus sucumbenciais. RP Nº 70014248603 2006/CÍVEL 12 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA (REVISOR) - De acordo. DES. JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE- De acordo. IMPORTANTE. O Relator está à disposição das partes, Ministério Público, Advogados e Juízes que atuaram no presente processo, para, caso desejem, discussão do acórdão. Telefone (51) 32.10.62.51 E-mail portanova@tj.rs.gov.br Julgador(a) de 1º Grau: NIRIA GOMES FRANCESCHINA
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