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Universidade de São Paulo Departamento de Filosofia Primeiro Semestre de 2014 Erotismo, sexualidade e gênero: Curso ministrado por Vladimir Safatle Composto por 12 aulas Textos base das aulas Erotismo, sexualidade e gênero Aula 1 Nesta história da doença (...) discute-se francamente as relações sexuais, os órgãos e funções sexuais são chamadas por seu nome correto. Com isto, o leitor poderá se convencer, após minha exposição, que não recuei da discussão de tais assuntos em tal linguagem com uma garota. Devo então também me justificar desta acusação? Eu reivindico simplesmente os direitos do ginecologista ou ainda direitos muito mais modestos. Seria índice de estranha e perversa lubricidade supor que conversas parecidas seriam um bom meio de excitação sexual 1 . Estas são algumas afirmações do psicanalista Sigmund Freud que vocês poderão encontrar na páginas introdutórias à apresentação de um caso de histeria escrito em 1905 e conhecido como “o caso Dora”. Tais afirmações são interessantes por expor uma transformação a respeito do ato de falar sobre sexo que irá marcar todo o século XX. Enquanto médico, Freud pede a si mesmo o direito de discutir francamente as relações sexuais, os órgãos, chamando as funções sexuais por seu nome correto. Esse falar franco não é, no entanto, o falar franco que, por exemplo, os libertinos do século XVIII conheceram, com sua crença de que o que é da ordem do sexual deveria habitar todos os poros do discurso a fim de que o desejo seja incitado por sua revelação discursiva. Qualquer um que já leu Sade sabe que o ato de falar e descrever é, neste caso, o principalmente movimento capaz de excitar o desejo. Os libertinos do século XVIII, animados à sua maneira pela crença no esclarecimento produzido pela razão, não gozam em silêncio. Mas, como disse, o falar franco de Freud é outro. Ele não é animado pela descoberta de formas de incitação aos prazeres. Não, Freud prefere ficar ao lado dos ginecologistas a ser confundindo com alguém que suporta essa estranha e perversa lubricidade dos que usam da descrição direta da atividade sexual para seduzir uma garota. Ele prefere uma fala “seca e direta”, capaz de dar aos órgãos sexuais seus nomes técnicos e comunicar seus nomes quando estes são desconhecidos pela paciente. Uma fala que descreve as perversões “sem indignação”. Ou seja, como já disse Foucault, esta fala é uma vontade de saber baseada na submissão da sexualidade ao modo de descrição de uma ciência, uma scientia sexualis. Esta talvez fosse uma das mais impressionantes invenções da modernidade: uma ciência da sexualidade, um discurso científico sobre o que devo fazer para não ter uma sexualidade patológica. Mas aqui começa um problema importante. Pois o que precisa acontecer à experiência dos nossos desejos para que ela possa ser objeto de uma ciência? Não de uma literatura (que é um regime de explicitação discursiva próprio), não de uma arte erótica, mas de uma ciência. Pois ser objeto de uma ciência significa assumir uma certa metamorfose. Como os objetos da físicas, a sexualidade deverá poder ser mensurada, quantificada, calculada. Poderei então dizer, por 1 FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 186 exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá, como alguns de seus critérios diagnósticos, como lemos no mais recente manual de psiquiatria (o DSM-V): ausência ou redução de excitação sexual durante a atividade sexual em aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma forma, no transtorno de desejo sexual masculino hipoativo, encontraremos uma persistente ou recorrente deficiência de pensamentos, fantasias e desejos por atividade sexual durante, no mínimo, seis meses. Transtornos de ejaculação precoce serão divididos em três grupos: suave (se a ejaculação ocorrer entre 30 segundos ou 1 minutos após a penetração), moderado (entre 15 e 30 segundos) severo (quando ocorre antes da penetração ou em até 15 segundos após a penetração). Foi pensando na generalização desse modo de saber sobre a sexualidade que alguém como Georges Bataille escreveu: Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a dar números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos olhos? O que o homem significa a nossas olhos se coloca sem dúvida para além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais2. É muito provável que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre sexo, não pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique a natureza quase literária de seus relatos de caso. Mas sua posição expressa outra importante ideia presente no desejo de transformar o que é da ordem do sexual em objeto de um discurso científico, a saber, a crença de que o falar franco sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto- determinação. É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito dotado de uma história (a história do meu desejo), de um corpo (o regime de prazeres próprio ao meu corpo) e, principalmente, de uma identidade. Isto talvez nos explique porque nossas sociedades ocidentais precisam tanto defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso no qual o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados”3. Se Freud pode se vangloriar de não ter recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota de não mais do que quinze anos, é porque ele já faz parte de uma época na qual falar de sexo é talvez a forma privilegiada de revelar a verdade sobre os sujeitos e suas posições existenciais, prometer uma certa felicidade através da constituição de uma relação autônoma consigo mesmo. Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da sexualidade nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade. Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma história e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade equivaleria a uma construção que não seria simplesmente fruto de, digamos, um projeto individual, mas da internalização das categorias do discurso de uma 2 BATAILLE, Georges, A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180 3 FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15 ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um sistema do conhecimento psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de raciocínio e argumentação”4. Ou seja, assim o problema da sexualidade não se encontra na identificação de uma espécie de libido natural que deve se fazer sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de modos de produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um discurso social fortemente normativo como a ciência. O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a invenção da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre apenas em meados do século XIX com o estabelecimentodo quadro das perversões através destes grandes tratados psiquiátricos como o Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós podemos dizer que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século XIX. Claro que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas não a concepção, tão evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma identidade social em toda sua extensão, fazendo com que o conjunto dos atos, de modos de percepção sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um homossexual. Por exemplo, haviam práticas homossexuais na Grécia antiga, mas elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na Grécia era se alguém desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se alguém era ou não capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como Foucault dirá: O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro que se consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais importante do que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de prazeres aos quais se poderia abandonar voluntariamente5. Isto significa que, em última instância, a homossexualidade como identidade é uma invenção que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construção produzida por uma forma de circulação do discurso psiquiátrico e médico que tem na ideia de “sexualidade” seu dispositivo principal. Sexo e filosofia Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o problema a experiência sexual produzida no interior de um projeto filosófico específico, a saber, este animado por Michel Foucault. A partir de certo momento, como veremos no decorrer deste curso, Foucault entenderá que todos aqueles que gostariam de compreender melhor como as estruturas de poder funcionam na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a emergência da 4 DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32 5 FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244 sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo momento, nos pareceu fundamental não apenas dizer que fazemos sexo, mas que temos uma sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço público, se fazer reconhecer a partir dela, era um problema político da mais alta importância. Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre sexo seria um problema filosófico? Por que sexo e os discursos que o envolvem seriam objetos de investigação propriamente filosófica? Ou seja, não um problema ligado à psicologia e a reflexão sobre seus modos de intervenção clínica, não um problema sociológico ligado a práticas sociais de codificação de comportamentos de interação, não um problema biológico ligado a modos de reprodução, mas um problema filosófico. Porque vocês poderiam se perguntar se não seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras áreas de saber, ao invés de discuti-lo em um curso de filosofia. “A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha”6. Esta frase é de um filósofo da ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de Michel Foucault. Talvez ela seja a melhor frase para aqueles que começam um curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto próprio à filosofia. Se descartarmos a visão historiográfica que dirá ser a filosofia a reflexão sobre os textos que definem o campo da tradição filosófica, definição ruim não apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensão da gênese da chamada “tradição filosófica” (gênese que admite textos até então completamente fora do dito debate intratextual da tradição filosófica), então ficamos com uma questão central. Ela se enuncia da seguinte forma: haveria de fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosóficos”, assim como falamos que existem objetos e fenômenos próprios à economia, à teoria literária e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um filósofo falar de um texto literário, fazer considerações sobre um problema econômico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao fazer isto, ele deixaria de ser filósofo? Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosófico: ele não tem objetos que lhe sejam próprios. De certa forma, podemos dizer que a filosofia é um discurso vazio pois não há objetos propriamente filosóficos, o que talvez nos explique porque não pode haver, por exemplo, teoria do conhecimento sem reflexões aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos, uma ciência empírica, não há estética sem crítica de arte, filosofia política sem ciência política, mesmo ontologia sem lógica. Em todos estes casos a filosofia toma de empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo desenvolvimento não lhe compete diretamente. Mas não haver objetos propriamente filosóficos não significa afirmar inexistir questões propriamente filosóficos. Há um modo de construir questões que é próprio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer objeto. Tal modelo filosófico de construção de questões nos permite identificar e pensar certos problemas que não poderiam ser pensados de maneira adequada fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a caraterística maior de uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou 6 CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000, p. 12 um objeto é um evento. Ou seja, não se trata simplesmente de descrever funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de vida que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a filosofia trata. Por isto, não seria incorreto dizer que toda questão filosófica é necessariamente vinculada a um evento histórico, ela é a ressonância filosófica de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da física moderna. Ela é a elaboração, até as últimas consequências, da dissolução do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como fruto das aspirações emancipadoras da Revolução Francesa. Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosófico quando ele aparecer como um evento. E a boa questão talvez seja: em que condições “sexo” e, principalmente, falar de sexo pode aparecer como um evento, como um acontecimento capaz de produzir reconfigurações profundas em nossa forma de vida? A continuidade do erotismo Podemos dizer que a filosofia do século XX conheceu três maneira diferentes de ver no sexo uma formade evento. A primeira está nesta forma de centrar as discussões sobre sexo em uma genealogia da sexualidade. Assim, ao falarmos sobre sexo, perguntaremos sobre como tal fala produz individualidades a partir de discursos sociais que procuram legitimar formas diversas de intervenção. Procuraremos entender como tais discursos foram formados, como eles demonstram a natureza produtiva do poder. Isto nos permitirá pensar o poder não apenas como uma forma de coerção imposta que nos coage de fora, mas principalmente como um modo de produzir formas de vida, de dar forma a nossos desejos, sejam nossos desejos de normas, sejam nossos desejos de transgressões. Nesta chave, mostraremos como o aparecimento da sexualidade com sua ciência nos expõe as verdadeiras artimanhas do que significa falar de sexo para alguém, principalmente para alguém que se coloca na posição de detentor de um saber. Voltemos, por exemplo, ao caso de Freud e Dora. Ao falar francamente sobre sexo com uma garota, Freud não apenas escuta. Ele a ensina como falar, em que condições seu desejo pode ser colocado em discurso, qual história ele deve contar, qual conflito ele deve assumir. Falar não é apenas liberar. Falar é também internalizar uma gramática do desejo. Por isto, o simples atos de falar de sexo dentro de um quadro discursivo marcado pelos eixos de uma ciência já é uma forma do poder operar, não este poder que se expressaria através de uma pretensa submissão da minha vontade à vontade do médico. Mas o poder como o que opera em nós dois, seja através do desejo de falar, seja através do desejo de escutar, como o que define as condições do que significa falar e escutar. Mas o século XX conheceu também outras duas formas de compreender sexo como evento. Cada uma delas operou a partir de um conceito. Assim, ao falar sobre sexo não nos focaremos mais na genealogia da sexualidade mas, por exemplo, na força explosiva do que devemos entender por “erotismo”. Esta é a estratégia que vocês encontrarão em outro filósofo francês, de uma geração anterior à Foucault, a saber, Georges Bataille. É dele definições como: O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) Trata- se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade que esse mundo é capaz (...) A própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tão grande que se compara a seu contrário, ao sofrimento7. Não é difícil perceber como estamos longe do conceito foucaultiano de sexualidade. Não procuraremos mais saber como, através da assunção de uma sexualidade, constituímos formas, definindo nossa individualidade e nossa identidade. Individualidade que funda um mundo descontínuo, pois mundo composto por esses átomos sociais que são os indivíduos modernos com seus sistemas particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de interesses através de contratos, de limites, de cálculos. Interesses, por sua vez, submetidos à lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Bataille acredita que é tarefa filosófica fundamental fornecer as coordenadas para uma crítica da modernidade capaz de demonstrar como o advento do sujeito moderno se realiza, necessariamente, através da organização de uma sociedade composta por indivíduos. Os indivíduos são a unidade mínima da vida social e tais indivíduos se relacionam a coisas a partir de sua utilidade suposta. O mundo da sociedade dos indivíduos é o mundo das coisas úteis ou inúteis, mundo das coisas que produzem prazer ou desprazer. Mas, principalmente, mundo no qual as relações entre pessoas segue a mesma lógica que as relações às coisas. Mundo de pessoas úteis ou inúteis, mundo de pessoas que produzem prazer ou desprazer. Mundo no qual posso avaliar relações entre pessoas da mesma forma que avalio processos financeiros baseados em investimentos (“É, eu investi muito”) e rentabilidade (“Não tive nenhum retorno”). Ou seja, mundo no qual a lógica calculadora do trabalho no interior da indústria capitalista fornece o fundamento para todas as formas de experiência social. Este mundo, dirá Bataille, desconhece duas experiências fundamentais, que tecem entre si relações profundas: o erotismo e o sagrado. Pois o erotismo e o sagrado seriam fenômenos sociais capazes de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que esse mundo é capaz. Isso significa que estaríamos diante de fenômenos irracionais a 7 BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43 partir da lógica utilitarista que guia os indivíduos e suas relações. Vale para o sagrado, o que Bataille diz sobre o erotismo: O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco8. Veremos nas nossas próximas aulas o que pode significar uma experiência do erotismo e do sagrado pensada desta forma. Por enquanto, vale a pena insistir em um ponto. Através da construção de uma noção de “erotismo” desta natureza, Bataille quer pensar com o sexo pode produzir um evento impensável no interior de nossas sociedades capitalistas, nessas mesmas sociedades que mais de um crítica descreveu como sociedades hedonistas. Ele quer mostrar como as sociedades capitalistas não são apenas economicamente injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da exclusão de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força. Notemos como há, aqui, ao mesmo tempo, uma tentativa de retornar à experiências pré-modernas do sagrado e do erotismo para fornecer o fundamento da crítica social no capitalismo avançado. Mas este retorno é animado por um evento histórico preciso. Como veremos, a experiência pré- moderna só aparece à Bataille desta forma porque ela é vista a partir dos olhos de alguém animado por uma profunda experiência estética de ruptura ligada ao modernismo, em especial ao surrealismo. O mesmo surrealismo do qual Bataille representava a versão não-oficial, em conflito contínuo com aquela representada por André Breton. Neste sentido, através da reflexão filosófica sobre o sexo, Bataille procura pensar um evento que teria a força de, ao mesmo tempo, fornecer a explicação sobre porque sofremos no interior das formas de vida hegemônica do capitalismo e abrir a vida social para o impacto de experiências estéticas maiores da primeira metade do século XX. Gênero A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha força nas últimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo uso do conceito de “gênero”. Foi a filósofa norte-americana Judith Butler quem se responsabilizou pela transformação de um conceito psiquiátrico em forte conceito de orientação para práticas de transformação social. Seu verdadeiro inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de (vejam só vocês) 1968 intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de construção de identidades de gênero através da articulação entre processos sociais, nomeação familiar e questões biológicas. Judith Butler, por sua vez, irá levar às últimas às últimas consequências a distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero (construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura,até porque 8 Idem, p. 55 gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré- discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual a cultura age”9. Tal noção de gênero como ante-câmara de produção da ‘natureza sexual’ permite a Butler, entre outras coisas, defender o caráter ideológico de uma noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “a pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por ele”10. Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de uma teoria da ação política, teoria que procura entender a maneira com que sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço produzindo novas formas, não apenas como eles são sujeitados às normas e completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero é um “modo de ser despossuido”11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz no outro. Daí uma afirmação como: A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos12. Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado pelo advento das exigências de reconhecimento do que, até então, estava expulso do universo do humano. Do que era visto como patológico, doentio e, por isto, sem direito à existência, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A modificação da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de gênero foi um acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos colocaria diante da compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano. Notem então como no caso do uso desses três conceitos (erotismo, sexualidade e gênero) por três filósofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith Butler) em três momentos intelectuais distintos vemos três estratégias diferentes, embora não completamente divergentes, da filosofia se voltar para uma matéria que lhe é exterior, problematizando aspectos de um mesmo fenômeno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso será organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigatória de vocês: “O erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “História da sexualidade”, de Michel Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O 9 BUTLER, Judith ; Gender trouble ,New York : Routledge, 1999, p. 11 10 idem, p. 10 11 Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19 12 Idem, p. 25 curso será, em larga medida, uma apresentação comentada desses três livros, ou de trechos deles. Mas é fundamental que vocês os leiam integralmente para que a experiência do comentário possa funcionar. Ao ler tais livros, lembrem como esses três filósofos tecem, ainda, relações profundas de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua obra, o mesmo vale para Judith Butler sobre Foucault. Há, entre os três, uma interessante circulação de pensamento que não se dá sobre a forma tradicional da influência ou da continuidade. Há uma circulação de pensamento por exploração de possibilidades não trilhadas, como se uma experiência de pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar alguns fios descosidos que poderão entrar em tramas completamente diferentes. Esses que leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem não ser os leitores mais fieis, mas são certamente os melhores, os únicos que compreendem o texto filosófico como um processo aberto de invenção. As vezes, a infidelidade é a maneira que o pensamento tem de afirmar sua produtividade. Fidelidade nunca foi uma virtude filosófica, embora a pura e simples incapacidade de entrar nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser algo a se vangloriar. Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposição uma forma de fazer comentário filosófico que não é apenas a imersão na textualidade interna de certos textos da tradição, mas que seja a capacidade de identificar e constituir problemas filosóficos. De fato, vocês aprenderão técnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de leitura de textos da tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita a autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele não define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início. Por isto, talvez seja interessante aproveitar o início do curso de vocês e mostrar algo diferente do que normalmente nos mostraríamos. Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de boa parte de vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho. Erotismo, sexualidade e gênero Aula 2 Na aula de hoje, vamos começar nosso módulo dedicado ao conceito de “erotismo” a partir de Georges Bataille. Gostaria de, inicialmente, apresentar Bataille e, em um segundo momento, tecer algumas considerações gerais sobre sua experiência intelectual. “Eu sou um filósofo... até certo ponto”. Talvez essa frase de Bataille (1897- 1962) seja uma boa maneira de começarmos a nos introduzir a sua obra multifacetada. Composta de vários livros de literatura (como, por exemplo, A história do olho e Madame Edwarda, livros que passaram à história da literatura devido a sua maneira explícita de falar de sexo e que parecem se colocar na linha direta de produções como as de Sade, dos libertinos franceses, entre outros), sua obra não é, no entanto, a obra de um escritor. Seus romances são a elaboração literária de uma problematização filosófica, um pouco como os romances de Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo de “romance de tese” em sua obra literária, já que a literatura aparece quase como um regime discursivo de explicitação de proposições filosóficas. No entanto, sua produção filosófica também não parece se enquadrar claramente no modelo de produção que poderíamos esperar de textos filosóficos. Por exemplo, a parte alguns escritos sobre Nietzsche e dois artigos sobre Hegel, não encontraremos textos diretamente dedicados ao comentário da obra de outros filósofos. Sua formaçãonão foi típica de um filósofo. Ela se deu na Ecole des Chartes, de Paris, de onde saiu como arquivista e bibliotecário com uma tese sobre o manuscrito A ordem da cavalaria, o que explica, entre outros, porque encontraremos em sua produção textos técnicos sobre numismática. Durante praticamente toda sua vida, Bataille foi arquivista da Biblioteca Nacional, ficando completamente à margem da vida universitária. Esta formação híbrida, assim como uma grande abertura de interesses, pode explicar porque os temas de sua filosofia muitas vezes se constroem em um campo de interface entre a antropologia, a teologia, a estética e a filosofia. O que lhe fornece uma capacidade não negligenciável de elaborar temas filosóficos até então inexistentes, como este que versa sobre o erotismo e suas relações com o sagrado. Se voltarmos os olhos para o sistema de influências presente na obra de Bataille veremos, ao menos, duas influências maiores vindas do campo da filosofia. A primeira é Nietzsche. De fato, a peculiaridade da recepção de Nietzsche na França seria incompreensível sem o impacto dos textos de Bataille e sua maneira de, nos anos trinta, demonstrar a incompatibilidade entre o filósofo alemão e o nazismo que procurava à sua maneira recuperá-lo. Já a segunda influência filosófica é Hegel, mas um Hegel muito peculiar pois descoberto através dos cursos de Alexandre Kojève. Kojève foi um emigrante russo responsável, nos anos trinta, por um seminário de leituras da Fenomenologia do Espírito na Escola Prática de Altos Estudos. Entre os alunos de seu curso encontravam-se: Bataille, Jacques Lacan, Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil e de forma mais esporádica Jean-Paul Sartre e André Breton. Como vocês podem ver, uma boa parte da núcleo do pensamento francês dos anos 30 e 40 estava presente ao mesmo seminário, aprendendo um modo de leitura dos textos hegelianos que privilegiava questões ligadas ao desejo, à luta por reconhecimento, à morte e ao fim da história. Bataille seguiu de maneira assídua os seminários, de 1933 a 1940, sendo a única formação filosófica de longa duração que teve. Mas além da influências filosóficas, devemos salientar ainda outras duas matrizes para a constituição de seu pensamento. A primeira vem do surrealismo e das aspirações abertas pelo modernismo estético. Desde de meados dos anos vinte, Bataille participa assiduamente das discussões a respeito do surrealismo, animadas principalmente por André Breton. No entanto, suas relações com Breton são tensas e logo serão levadas à ruptura. Bataille se vê em uma posição mais radical do que a de Breton, que ele compreende como uma porta- estandarte de uma versão “oficial” e “institucionalizada”. A seu respeito, Breton dirá: “O Sr. Bataille faz profissão de querer considerar apenas o que há de mais vil, mais desencorajador e corrompido e ele convida o homem, a fim de evitar que ele se torne útil ao que quer que seja de determinado a correr absurdamente com ele em direção a algumas casas provinciais assombradas, mais vis que as moscas mais viciosas, mais rançoso que salões de cabelereiro”13. Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica da realidade social em prol de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o que teria sido recalcado pelos processos de racionalização na modernidade, como o inconsciente, o infantil e o arcaico. Neste sentido, a experiência modernista é um paradoxal apelo à recuperação do que foi expulso do nosso tempo histórico. Recuperação da capacidade de escrever como um criança, sem objetivo e em completa errância; escrever com as condensações, os deslocamentos e as associações próprias às formações do inconsciente; escrever deixando retornar experiências sociais que a modernidade quer marcar com o selo do arcaismo. Dentro desse horizonte, a posição de Bataille consiste em explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexão sobre a potência de uma escrita da transgressão. Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma vertente do surrealismo que se constituirá através de revistas como Documents, Minotaure e, principalmente, Acéphale. Talvez a síntese do espírito de tais revistas se encontre na capa de Acéphale, desenhada por André Masson. Nela, encontramos um desenho inspirado no Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci. Mas, pelas mãos de Masson, ele perde sua cabeça, ganha uma caveira no lugar de seu sexo, suas vísceras estão expostas e nas mãos ele carrega um coração em chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença renascentista no humanismo e na razão que se expressa no equilíbrio sereno da boa forma perde sua cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a paixão que queima e a morte ligada ao sexo. O que não nos surpreende se lembrarmos como Bataille escreve o primeiro texto da revista anunciando: “Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito tarde para tentar ser razoável e instruido – o que levou a uma vida sem atrativos. Secretamente ou não, faz-se necessário se transformar em algo totalmente outro ou cessar de ser”. 13 BRETON, André; MAnifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132 Lembrem como, na aula passada, eu falara sobre a solidariedade entre todo verdadeiro projeto filosófico e a elaboração, até as últimas consequências, de um acontecimento. Aqui, nós encontramos um bom exemplo do que significar ter a consciência de estar diante de um acontecimento. Ele se dá sobre a forma de um momento de abandono. Um abandono impulsionado, principalmente, pela consciência de se viver em uma época de esgotamento estético à procura de superação. A arte aparece como uma experiência marcada pela procura em sintetizar novas formas capazes de nos desacostumar de uma realidade que, longe de ser naturalizada, é uma construção social responsável pelo empobrecimento da vida do homem moderno. Por isto, ela nos levará não apenas a uma nova ordem, mas, principalmente, à destruição da figura atual do homem. Daí porque o gesto estético por excelência é a decapitação, a perda do centro que define uma hierarquia. Por fim, o terceiro campo de influência do pensamento de Bataille deriva da antropologia de Marcel Mauss e da psicanálise de Sigmund Freud. Vale a pena lembrar que Bataille fundará, juntamente com Michel Leiris, Roger Caillois e Pierre Klossoviski uma espécie de sociedade secreta chamada “Colégio de sociologia”. Nela, era questão de desenvolver um saber capaz de fazer não apenas uma antropologia da sociedades primitivas, mas principalmente uma antropologia das sociedades modernas, colocando à luz aquilo que, em nossas sociedades, não se deixa pensar a partir de explicações utilitaristas. Para tanto, Bataille se serve principalmente de conceitos de Marcel Mauss, como dádiva, dom, mana, fato social total, entre tantos outros. Ele também não deixa de se apoiar em Freud a fim de construir um conceito que fará fortuna na psicanálise, através principalmente de Jacques Lacan, a saber, o conceito de gozo. Um crítica da sociedade do trabalho Uma forma possível de começar a compreender o sentido da experiência intelectual de Georges Bataille é prestando atenção no modo de funcionamento de sua crítica social. Como vocês podem imaginar, ela não é apenas uma crítica social, mas ao mesmo tempo, crítica da razão e crítica do sujeito. Ou seja, ela compreende que a única maneira de fazer uma verdadeira crítica social não é contentando-se com a denúncia das condições de exploração e injustiça econômica. A verdadeira crítica precisa, ao mesmo tempo, estar atenta para a maneira com que nossa realidade social só será modificada à condição de nos livrarmos de um conceito de razão onde esta aparece principalmentecomo um modo instrumental de dominação e de um conceito de sujeito profundamente alienante. Em vários momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas ocidentais são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho. O trabalho aparece como atividade fundamental para a constituição das identidades sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Neste sentido, lembremos de duas características maiores do trabalho. Primeiro, o trabalho fornece um modelo fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades sociais intersubjetivamente partilhadas, isto devido ao fato dele ser (juntamente com o desejo e a linguagem) um dos eixos de constituição daquilo que podemos entender por “forma de vida”. Tal expressão realiza exigências maiores de autenticidade. Procuro realizar, através do trabalho, a expressão de algo que definiria minha autenticidade, a singularidade do meu estilo. No entanto, e este é o segundo ponto, o trabalho aparece como modalidade privilegiada de formação em direção à autonomia. Não é por acaso que compreendemos a maturação psicológica como este momento em que, entre outras coisas, deixamos de brincar e começamos a trabalhar. Pois a maturação implica mutação no padrão de atividades subjetiva. Ou seja, a expectativa de realização conjunta de exigências de expressão e formação é elemento definidor dos valores que mobilizamos na avaliação social do trabalho. Pois trata-se de dar conta de uma dupla demanda presente na definição moderna de liberdade. Dupla demanda referente à constituição da autonomia e à manifestação social da autenticidade. Por sua vez, o fracasso em realizar tais expectativas explica muito do espectro de sofrimentos que ainda encontramos na vida social. Se o trabalho tem esta dimensão formadora é porque ele é uma das versões mais bem acabadas de certo processo de auto-governo. Só aqueles capazes de se auto-governar são capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx, através do trabalho, aprendemos a impor uma lei à vontade, lei que deve ser reconhecida por mim como expressão da minha própria vontade. Esta vontade que submete outras vontades e que aparece assim para o sujeito com um dever que ele mesmo põe para si, dever que lhe permite relativizar as exigências imediatas de auto-satisfação, é um fator decisivo na constituição da noção moderna de autonomia. Por isto, só aqueles capazes de trabalhar são autônomos; não apenas no sentido material de serem capazes de prover seus próprios sustentos, mas no sentido moral de serem capazes de impor para si mesmo uma lei de conduta que é a expressão de sua própria vontade. E se lembramos da ideia de Rousseau14, para quem a verdadeira liberdade é a capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, ser legislador de si mesmo, então seremos obrigados a dizer que o trabalho é exercício mais importante para a liberdade. Para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle socialmente validado não é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento que seja, como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisão social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produção e que produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas, não se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor que ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim mesmo quando organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela sociedade do trabalho. Por isto, ele precisará lembrar: 14 Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000 O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à eficácia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo, não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de refreá-los15. Nesta citação, vemos Bataille introduzir uma oposição importante. Há um modelo de cálculo derivado da lógica do trabalho. Tal modelo é indissociável da noção de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades são calculadas tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto do início dos anos 30, intitulado “A noção de dispêndio”. Nele, lemos: A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se deixa limitar, por um lado, à aquisição (praticamente à produção) e à conservação dos bens e , por outro, à reprodução e à conservação das vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular deve ser redutível, para ser válido, às necessidades fundamentais da produção e da conservação16. Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de descrição da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas principalmente como o princípio fundamental de definição da natureza dos sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a conservação de seus bens e a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de suas ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas também suas ações relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas acaba ganhando a forma de relações entre coisas: “a humanidade, no tempo humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”17. Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo” aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como: A atividade humana não é inteiramente irredutível a processos de reprodução e de conservação, e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo necessário para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da 15 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64 16 BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20 17 Idem; O erotismo, p. 184 vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto, simplesmente da condição fundamental desta última. A segunda parte é representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviadada finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições primitivas, têm em si mesmas seu fim18. Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruição que, do ponto de vista das exigências econômicas de produção e maximização, são simplesmente irracionais. Mas, ao menos neste momento, gostaria de desdobrar a ideia de que a atividade sexual seria um exemplo privilegiado de atividade improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem expressa em uma afirmação como: Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual, uma incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado. Na medida em que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve não apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele mesmo o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideração desviou o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de si19. O excesso e os números Notem, inicialmente, a peculiaridade da construção de Bataille. Primeiro, trata-se de dizer que há uma incompatibilidade entre a lógica do trabalho e a vida sexual. Isto exige não apenas aceitar desvincular a vida sexual dos imperativos de reprodução (pois se sexo servisse principalmente para a reprodução, então ele entraria sem maiores problemas no interior das exigências de conservação das sociedades), mas também, e este é o passo mais singular, desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar, como afinal sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um complemento através do uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Não por outra razão, mais ou menos à mesma época, filósofos ligados à Escola de Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor Adorno, lembravam como as sociedades capitalistas não podiam ser compreendidas como sociedades repressivas em relação às exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de contínua incitação à sexualidade, sociedades nas quais o poder fornece, ao mesmo tempo, o paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento das sociedades de consumo, a experiência do prazer é um argumento constantemente presente para o fortalecimento da coesão social. Por uma razão desta natureza, Bataille procura pensar a experiência sexual como aquilo que não se encaixa dentro da racionalidade instrumental dos que procuram maximizar seus prazeres e se afastar de seus desprazeres. Por 18 Idem; A parte maldita, p. 21 19 Idem; O erotismo, p. 188 isto, sua incompatibilidade com o trabalho não é simplesmente derivada da ideia de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o tempo profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles não tem medida comum, eles não seguem a mesma lógica. Sua relação é de completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, não sabe como habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro. Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, não significa dizer que o erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenômenos, sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que não se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não é a lógica dos objetos mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo. Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do trabalho e da lógica utilitária. Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em tudo o que parece inumano no sexo: A sexualidade, qualificada de imunda, de bestial, é mesmo o que mais se opõe à redução do homem à coisa: o orgulho íntimo de um homem se liga a sua virilidade. Ela não responde de modo algum em nós àquilo que é o animal negado, mas ao que o animal tem de íntimo e de incomensurável. É mesmo nela que não podemos ser reduzidos como bois à força de trabalho, ao instrumento, à coisa20. Inumano é o que o homem precisou expulsar para ter uma imagem na qual reconheça as normas aos quais a vida social o vinculou, como a animalidade. Tal animalidade não é o selvagem, mas o incomensurável, o que não se descreve como descrevemos um instrumento. Isso explica, em nosso texto, a indignação de Bataille com estudos “sobre a vida sexual” como os Relatórios Kinsey. Alfred Kinsey foi um biólogo e “sexólogo” norte-americano responsável por estudos sobre o comportamento sexual masculino e feminino que marcaram os anos cinquenta. Seu estudos procuraram criar escalas (como uma que definia tendências homossexuais e heterossexuais a partir de uma escala de 0 a 6) e organizar comportamentos a partir de variáveis de ocupação, idade, religião, entre tantas outras. Bataille se insurge contra a ideia de que poderíamos falar de sexo como se estivéssemos diante de um objeto do mundo físico. Ou seja, uma ciência da sexualidade é, para Bataille, impossível. Pois a ciência é um regime de descrição que não se diferencia do padrão de racionalidade que encontramos no mundo do trabalho. Mas podemos dizer que, para Bataille, uma ciência da sexualidade é impossível porque, primeiro: “não podemos em geral participar da pedra, da 20 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 183 tábua, mas participamos da nudez da mulher que enlaçamos”21. Ou seja, não há um observador indiferente aos fenômenos ligados à sexo, pois eles provocam necessariamente nossa participação. Olhar para eles, descrevê-los é entrar em um regime de participação e de implicação, como participaríamos e nos implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém próximo. Por isto, o discurso que crê descrever fenômenos sexuais como se fossem coletados por observadores imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificação. Nossa descrição do que é da ordem do sexual sempre será uma descrição sexualmente investida, libidinalmente interessada. Melhor procurar um regime de discurso que possa lidar melhor com tal realidade. Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo não pode ser, para Bataille, reduzi-lo a dados estatísticos. Não que eles não sejam precisos, eles são simplesmente irrelevantes: Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a dar números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos olhos? O que o homem significa a nossos olhos se coloca sem dúvida para além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais22. Consciência de si e soberania Em uma citação anterior, vimos Bataille a afirmar que desconsideração pela natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de si. Seria interessante perguntar-se aqui porque vincular a revelação do sexo à consciência de si. Normalmente, poderíamos pensar no contrário, a saber, que a natureza excessiva da vida sexual é o avesso de toda consciênciade si, pois ela nos colocaria em um regime de descontrole e inconsciência, de distância em relação a algo como um “si mesmo”, como quem se entrega à servidão de algo que lhe ultrapassa e lhe subjuga. No entanto, Bataille afirma que o reconhecimento da natureza excessiva da vida sexual é condição para quebrarmos o círculo de alienação no qual se encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho, enquanto objetos de um discurso científico objetificador e acedermos à condição de consciência de si emancipada. Este conceito de consciência de si é profundamente vinculado a um outro conceito importante de Bataille, a saber, o conceito de soberania. Normalmente, o conceito de soberania é utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do poder. O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. O rei é soberano porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressão da sua vontade. Por isto, ele pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e 21 Idem, p. 179 22 Idem, p. 180. Ou ainda: “la science a pour objet de fonder l’homogénéité des phénomènes ; elle est, en un certain sens, une des fonctions eminentes de l’homogénéité. Ainsi, les éléments hétérogènes qui sont exclus par cette dernière se trouvent également exclus du champ de l'attention scientifique : par principe même, la science ne peut pas connaître d'éléments hétérogènes en tant que tels” (BATAILLE, Georges; ) suspendê-la quando entender dever ser o caso. O soberano é aquele que pode estar dentro ou fora da lei, aplicá-la ou suspendê-la, porque é dele que emana o poder. Por outro lado, o soberano é aquele que pode consumir as riquezas sem trabalhar, enquanto aquele submetido à servidão produz riquezas sem consumi- las. Ou seja, a soberania pressupõe o descolamento entre gozo e trabalho, pois se baseia no direito ao gozo desvinculado de toda atividade laboral. Do ponto de vista da lógica econômica, o soberano é improdutivo. Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se encontra no centro do poder político para transformá-lo em um conceito capaz de descrever a posição subjetiva de quem não se encontra mais em posição de alienação e servidão. Mas o paradoxal no uso batailleano do conceito de soberania é que ele não descreve alguma experiência de dominação baseada na sobreposição da vontade do Outro à minha vontade. Ao contrário, soberano é aquele capaz de depor toda vontade de domínio, todo projeto, porque ele tem a segurança de que nenhuma vontade de domínio vinda do Outro poderá lhe submeter. Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”23, ou ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não ser esse tempo presente”. Desta forma, a improdutividade do soberano se transforma na descrição de uma posição subjetiva na qual a liberação do tempo e das coisas é indissociável de uma experiência de emancipação. Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente”24. Pois só assim, não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo do presente em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que sempre é feita para que um outro, este sim em posição soberana, possa consumir o que produzo. Não há trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho, há sempre um soberano que pode viver no instante. Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de habitar outro tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, próprio ao milagre: Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável (o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a 23 BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248 24 Idem, p. 289 humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada; enfim, sob a forma de glória25. Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por Bataille, característica que veremos com mais calma na próxima aula, é sua posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria política o soberano é aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei, mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de Bataille, o homem soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de transgressão. Ele pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressão da lei”26. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as posições, as práticas interditadas são continuamente colocadas em questão e profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo que se desnuda na experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”27. Veremos melhor este ponto na aula que vem Mas Bataille também acrescenta algo à noção de soberania, a saber, a ideia de que a consciência de si soberana não é a realização final de uma identidade reconquistada. O verdadeiro soberano não é aquele que se deleita na segurança de sua própria identidade. Ele é aquele que depôs todo desejo de auto- identidade. O verdadeiro soberano é aquele que não teme se perder, que não teme ser habitado pelo profundamente heterogêneo, isto a fim de se abrir a uma experiência que, do ponto de vista da utilidade, da produção, da conservação de si e do domínio dos objetos, é completamente irracional. Essa consciência de si é fundada na capacidade de transformar a relação a si em uma relação que não será relação homogênea, mas uma relação heterogênea. Veremos na aula que vem como a experiência do erotismo nos coloca no caminho em direção a tal consciência. 25 Idem, p. 249 26 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60 27 FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264 Erotismo, sexualidade e gênero Aula 3 Na aula de hoje, daremos continuidade ao nosso módulo dedicado ao conceito de erotismo, em Georges Bataille. Gostaria de discorrer sobre três temas centrais no pensamento de Bataille, a saber, a) a função e o sentido da relação entre erotismo e morte, b) o fundamento da ideia de uma sobreposição entre erotismo e sagrado, c) o conceito de transgressão. Na aula passada, terminamos através de uma discussão sobre o conceito de soberania. Bataille afirmara, em dado momento, que a desconsideração pela natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de si. Eu sugeri que, compreendera relação entre sexo e consciência de si, ou seja, sexo como uma forma de tomar consciência de si mesmo, passava por organizar discussões a respeito da maneira com que Bataille compreende ser possível superar o círculo de alienação no qual se encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho, enquanto objetos de um discurso científico objetificador. Se confrontar-se com a natureza excessiva da vida sexual é condição para tomar consciência de si mesmo, é porque, ao menos para Bataille, há algo na experiência sexual que nos coloca nas vias da soberania. Sendo assim, o conceito de soberania aparece como um operador importante para compreendermos o que está em jogo na ideia de erotismo. Lembremos mais uma vez, normalmente, o conceito de soberania é utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do poder. O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. Do lugar do rei, Bataille sublinha duas características principais: sua posição, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, assim como a preferência pelo uso improdutivo da riqueza (já que o uso produtivo seria ligado à acumulação, processo próprio à ascensão da mentalidade burguesa). Bataille chegará a dizer: “economicamente, a atitude soberana se traduz pelo uso do excedente para fins improdutivos”28. O exemplo mais claro desse uso improdutivo da riqueza próprio à soberania nos é dado pelo fenômeno social do potlatch (“nutrir” ou “consumir” em chinook), que pode ser encontrado em tribos norte-americanas, na Melanésia e na Nova Guiné. É o antropólogo Marcel Mauss que descreve o fenômeno como uma “prestação total do tipo agonístico”. Mauss quer dar conta desses fenômenos sociais baseados na obrigação de retribuir o presente recebido, obrigação de retribuir um dom como forma de afirmar o prestígio e o poder de um clã, chefe ou tribo. Tal obrigação pode chegar: “à destruição puramente suntuária das riquezas acumuladas para eclipsar o chefe rival”29. Ou seja, a fim de engajar rivais em uma relação soberana, um chefe pode, por exemplo presentear ou simplesmente destruir parte significativa de sua riqueza, degolar escravos, jogar fora bens preciosos a fim de obrigar seu rival a fazer o mesmo em maior escala. Bataille segue uma colocação de Mauss a respeito do caráter 28 BATAILLE, Georges; La souveranéité, p. 326 29 MAUSS, Marcel; Sociologia e antropologia, p. 192 paradigmático de tal atividade: Pesquisas mais aprofundadas mostram um número bastante considerável de formas intermediárias entre essas trocas com rivalidade exasperada, com destruição de riquezas, como as do noroeste americano e da Melanésia, e outras com emulação mais moderada em que os contratantes rivalizam em presentes: assim rivalizamos em nossos brindes de fim de ano, em nossos festins, bodas, em nossos simples convites para jantar, e sentimo-nos ainda obrigados a nos revanchieren, como dizem os alemães30. Com tais características em mente, Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se encontra no centro do poder político para transformá- lo em um conceito capaz de descrever a posição de todo e qualquer sujeito que não se encontre mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira com vocês que o conceito batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele não descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete às coisas à condição de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o tempo ao tempo do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que não domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de dominar para se defender. Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”31, ou ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não ser esse tempo presente”. Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente”32. Pois só assim, não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo do presente em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que sempre é feita para que um outro, este sim em posição soberana, possa consumir o que produzo. Não há trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho, há sempre um soberano que pode viver no instante. Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de habitar outro tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, próprio ao milagre: Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável 30 MAUSS, idem, p. 193 31 BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248 32 Idem, p. 289 (o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada; enfim, sob a forma de glória33. Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por Bataille é sua posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria política o soberano é aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei, mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de Bataille, o homem soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de transgressão. Ele pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressão da lei”34. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as posições, as práticas interditadas são continuamente colocadas em questão e profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo que se desnuda na experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”35. O erotismo, a continuidade e a heterogeneidade A discussão sobre a natureza improdutiva do uso do excesso na soberania serve para adentrarmos no sentido da relação, tão salientada por Bataille, entre erotismo e morte. “Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte”36. Com esta frase, Bataille começa seu livro. Ela demonstra com clareza a ideia de que, para pensar a essência do erotismo, devemos compreender como a vida serve-se da morte com uma de suas figuras, como ela transforma a morte em aprovação da atividade vital. Neste ponto, juntam-se dos níveis de argumentação: um ligado a teoria social, outro ligado à algo que poderíamos chamar de “filosofia da natureza”. O nível ligado à teoria social já foi adiantado desde nossa última aula. As sociedades capitalistas modernas são sociedades baseadas na redução do espectrodas atividades humanas à figura do trabalho, assim como na redução da experiência subjetiva à figura do indivíduo. Por um lado, o trabalho é a tarefa de uma coletividade, no tempo do trabalho, a coletividade deve se opor a esses movimentos que nos fazem nos abandonarmos ao universo violento do excesso, a saber, a relação sexual e a morte. A morte é a mais forte desordem contra o mundo do trabalho. Por outro lado, indivíduos são seres descontínuos, ou seja, que definem sua identidade da mesma forma que países definem suas fronteiras: estabelecendo limites, usando a identidade como sistema defensivo contra a submissão ao outro. Do ponto de vista do desejo, indivíduos são fundamentados em sistemas particulares de interesses que se fazem reconhecer a partir de acordos entre outros sistemas particulares. Daí porque as relações entre 33 Idem, p. 249 34 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60 35 FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264 36 BATAILLE, Goerges; O erotismo, p. 35 indivíduos serão, em larga medida, relações inspiradas nas relações contratuais. Mesmo o casamento será compreendido como um contrato. Pois o contrato é a expressão máxima de um modelo de vínculo entre indivíduos portadores de interesses que devem ser restringidos mutuamente pelos interesses de outros indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se através da ficção jurídica de um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de serem socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta condição. Ficção que, por sua vez, deve se alimentar da elevação do medo a afeto central do vínculo político (medo da despossessão de meus bens, medo da morte violenta, medo da invasão de minha privacidade etc.). No entanto, dirá Bataille, indivíduos não conhecem o erotismo, já que: “o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito-o dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) trata-se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que este mundo é capaz”37. Ou seja, a experiência do erotismo pressupõe a capacidade de sair da ordem descontínua das individualidades. Por isto, do ponto de vista da preservação das individualidades, o erotismo sempre será violento e invasivo: “o que significa o erotismo dos corpos, senão uma violação do ser dos parceiros?” pois “A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua”38. Esta violência própria ao erotismo é, no entanto, procura de passagem de um estado de descontinuidade à continuidade, procura de supressão dos limites e dos indivíduos. Por ter esta característica de supressão violenta dos indivíduos e de seus sistemas de organização de experiência e afetos o erotismo, ao menos segundo Bataille, encontra sua fonte na morte. A morte, enquanto supressão de um ser descontínuo, é o limite do qual o erotismo sempre se aproxima, podemos mesmo, em certos casos, alcançá-lo. Ela é a força que faz do erotismo uma experiência na qual os seres se livram de formas antigas e configuram novas formas. Pode parecer haver algo de passadista nesta maneira batailleana de contrapor o advento da individualidade moderna e o erotismo. Pois tudo se passaria como se Bataille procurasse fenômenos sociais nos quais a figura do indivíduo consciente de seus interesses e insubmisso a práticas ritualizadas não poderia ser encontrada, isto a fim de insidiosamente pregar uma crítica da modernidade através de alguma forma de retorno a estágios pré-modernos de individuação. Daí porque, por exemplo, ele precisaria insistir tanto no vínculo entre sagrado e erotismo. Pois as sociedades para as quais a experiência religiosa aparece como paradigma para toda e qualquer experiência social, sociedades na qual a religião ocupa um lugar central na vida social, dando o sentido para práticas na esfera da economia, da política, da produção cultural e na vida afetiva., seriam as únicas capazes de garantir algo da ordem da experiência dessa continuidade tanto procurada por Bataille. Estaria Bataille a pregar alguma 37 Idem, p. 42 38 Idem, p. 41 forma de volta de nossas sociedades a esses estágios pré-modernos e, aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados? Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais experiências ainda estão presentes em nossas sociedades, mas sob uma forma distorcida e profundamente destrutiva. Para a geração de Bataille, fenômenos como a ascensão do nazismo e do fascismo foram ocasiões para compreender como o processo de formação das individualidades modernas era agenciado de forma tal a produzir sujeitos indefesos à sedução dos regimes totalitários. Não por outra razão, Bataille foi um dos primeiros a sugerir uma análise psicológica do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicológica do fascismo”. Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da produção é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construção de uma estrutura social na qual relações e valores são baseadas na utilidade e na quantificação. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos. “Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa comensurabilidade (as relações humanas podem ser mantidas por uma redução a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de situações definidas)”39. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a exclusão do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é inconsciente, ou seja, sem forma própria de apreensão pela consciência. Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo, já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente heterogêneo em relação ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibição social de contato que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo heterogêneo, preso entre a glória e a decadência, entre o puro e o impuro (como a própria palavra sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto, produzir tanto atração quanto repulsão e se apresentam a nós através da força violenta do choque. Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar, pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instância dirigente representada pela autoridade do líder. Cria-se assim uma soberania presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz uma soberania assentada na experiência da dominação. Esta dominação, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da dominação, revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se transforma no uso do heterogêneo como astúcia última da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille crê que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que não se submete a 39 BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p.
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