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Curso Integral Erotismo, sexualidade etc

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Universidade de São Paulo 
Departamento de Filosofia 
Primeiro Semestre de 2014 
 
 
 
 
 
 
 
Erotismo, sexualidade e gênero: 
Curso ministrado por 
Vladimir Safatle 
 
 
 
 
 
 
 
Composto por 12 aulas 
Textos base das aulas 
 
 
 
 
Erotismo, sexualidade e gênero 
Aula 1 
 
 
 
Nesta história da doença (...) discute-se francamente as relações sexuais, os 
órgãos e funções sexuais são chamadas por seu nome correto. Com isto, o 
leitor poderá se convencer, após minha exposição, que não recuei da discussão 
de tais assuntos em tal linguagem com uma garota. Devo então também me 
justificar desta acusação? Eu reivindico simplesmente os direitos do 
ginecologista ou ainda direitos muito mais modestos. Seria índice de estranha 
e perversa lubricidade supor que conversas parecidas seriam um bom meio de 
excitação sexual
1
. 
 
 Estas são algumas afirmações do psicanalista Sigmund Freud que vocês 
poderão encontrar na páginas introdutórias à apresentação de um caso de histeria 
escrito em 1905 e conhecido como “o caso Dora”. Tais afirmações são interessantes 
por expor uma transformação a respeito do ato de falar sobre sexo que irá marcar todo 
o século XX. Enquanto médico, Freud pede a si mesmo o direito de discutir 
francamente as relações sexuais, os órgãos, chamando as funções sexuais por seu 
nome correto. Esse falar franco não é, no entanto, o falar franco que, por exemplo, os 
libertinos do século XVIII conheceram, com sua crença de que o que é da ordem do 
sexual deveria habitar todos os poros do discurso a fim de que o desejo seja incitado 
por sua revelação discursiva. Qualquer um que já leu Sade sabe que o ato de falar e 
descrever é, neste caso, o principalmente movimento capaz de excitar o desejo. Os 
libertinos do século XVIII, animados à sua maneira pela crença no esclarecimento 
produzido pela razão, não gozam em silêncio. 
 Mas, como disse, o falar franco de Freud é outro. Ele não é animado pela 
descoberta de formas de incitação aos prazeres. Não, Freud prefere ficar ao lado 
dos ginecologistas a ser confundindo com alguém que suporta essa estranha e 
perversa lubricidade dos que usam da descrição direta da atividade sexual para 
seduzir uma garota. Ele prefere uma fala “seca e direta”, capaz de dar aos órgãos 
sexuais seus nomes técnicos e comunicar seus nomes quando estes são 
desconhecidos pela paciente. Uma fala que descreve as perversões “sem 
indignação”. Ou seja, como já disse Foucault, esta fala é uma vontade de saber 
baseada na submissão da sexualidade ao modo de descrição de uma ciência, uma 
scientia sexualis. Esta talvez fosse uma das mais impressionantes invenções da 
modernidade: uma ciência da sexualidade, um discurso científico sobre o que 
devo fazer para não ter uma sexualidade patológica. 
Mas aqui começa um problema importante. Pois o que precisa acontecer à 
experiência dos nossos desejos para que ela possa ser objeto de uma ciência? 
Não de uma literatura (que é um regime de explicitação discursiva próprio), não 
de uma arte erótica, mas de uma ciência. Pois ser objeto de uma ciência significa 
assumir uma certa metamorfose. Como os objetos da físicas, a sexualidade 
deverá poder ser mensurada, quantificada, calculada. Poderei então dizer, por 
 
1
 FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt: 
Fischer, 1999, p. 186 
exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá, como 
alguns de seus critérios diagnósticos, como lemos no mais recente manual de 
psiquiatria (o DSM-V): ausência ou redução de excitação sexual durante a 
atividade sexual em aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma 
forma, no transtorno de desejo sexual masculino hipoativo, encontraremos uma 
persistente ou recorrente deficiência de pensamentos, fantasias e desejos por 
atividade sexual durante, no mínimo, seis meses. Transtornos de ejaculação 
precoce serão divididos em três grupos: suave (se a ejaculação ocorrer entre 30 
segundos ou 1 minutos após a penetração), moderado (entre 15 e 30 segundos) 
severo (quando ocorre antes da penetração ou em até 15 segundos após a 
penetração). Foi pensando na generalização desse modo de saber sobre a 
sexualidade que alguém como Georges Bataille escreveu: 
 
Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a 
dar números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos 
olhos? O que o homem significa a nossas olhos se coloca sem dúvida para 
além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a 
um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais2. 
 
É muito provável que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre 
sexo, não pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique 
a natureza quase literária de seus relatos de caso. Mas sua posição expressa 
outra importante ideia presente no desejo de transformar o que é da ordem do 
sexual em objeto de um discurso científico, a saber, a crença de que o falar franco 
sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos 
relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos. 
Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo 
como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto-
determinação. É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito 
dotado de uma história (a história do meu desejo), de um corpo (o regime de 
prazeres próprio ao meu corpo) e, principalmente, de uma identidade. Isto 
talvez nos explique porque nossas sociedades ocidentais precisam tanto 
defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso no qual o 
sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um outro 
dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados”3. Se Freud pode se 
vangloriar de não ter recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota 
de não mais do que quinze anos, é porque ele já faz parte de uma época na qual 
falar de sexo é talvez a forma privilegiada de revelar a verdade sobre os sujeitos 
e suas posições existenciais, prometer uma certa felicidade através da 
constituição de uma relação autônoma consigo mesmo. 
Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da 
sexualidade nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade. 
Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma 
história e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade 
equivaleria a uma construção que não seria simplesmente fruto de, digamos, um 
projeto individual, mas da internalização das categorias do discurso de uma 
 
2
 BATAILLE, Georges, A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180 
3
 FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15 
ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e 
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus 
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um 
sistema do conhecimento psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de 
raciocínio e argumentação”4. Ou seja, assim o problema da sexualidade não se 
encontra na identificação de uma espécie de libido natural que deve se fazer 
sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de modos de 
produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um 
discurso social fortemente normativo como a ciência. 
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a 
invenção da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre 
apenas em meados do século XIX com o estabelecimentodo quadro das 
perversões através destes grandes tratados psiquiátricos como o 
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós podemos dizer 
que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós 
podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século 
XIX. Claro que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas 
não a concepção, tão evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma 
identidade social em toda sua extensão, fazendo com que o conjunto dos atos, de 
modos de percepção sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um 
homossexual. Por exemplo, haviam práticas homossexuais na Grécia antiga, mas 
elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual 
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por 
pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na 
Grécia era se alguém desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se 
alguém era ou não capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como 
Foucault dirá: 
 
O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro 
que se consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais 
importante do que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de 
prazeres aos quais se poderia abandonar voluntariamente5. 
 
 Isto significa que, em última instância, a homossexualidade como 
identidade é uma invenção que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construção 
produzida por uma forma de circulação do discurso psiquiátrico e médico que 
tem na ideia de “sexualidade” seu dispositivo principal. 
 
Sexo e filosofia 
 
 Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o 
problema a experiência sexual produzida no interior de um projeto filosófico 
específico, a saber, este animado por Michel Foucault. A partir de certo momento, 
como veremos no decorrer deste curso, Foucault entenderá que todos aqueles 
que gostariam de compreender melhor como as estruturas de poder funcionam 
na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a emergência da 
 
4
 DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32 
5
 FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244 
sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo 
momento, nos pareceu fundamental não apenas dizer que fazemos sexo, mas que 
temos uma sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço público, se fazer 
reconhecer a partir dela, era um problema político da mais alta importância. 
 Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre 
sexo seria um problema filosófico? Por que sexo e os discursos que o envolvem 
seriam objetos de investigação propriamente filosófica? Ou seja, não um 
problema ligado à psicologia e a reflexão sobre seus modos de intervenção 
clínica, não um problema sociológico ligado a práticas sociais de codificação de 
comportamentos de interação, não um problema biológico ligado a modos de 
reprodução, mas um problema filosófico. Porque vocês poderiam se perguntar se 
não seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras áreas de saber, ao 
invés de discuti-lo em um curso de filosofia. 
 “A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, 
ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha”6. Esta 
frase é de um filósofo da ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de 
Michel Foucault. Talvez ela seja a melhor frase para aqueles que começam um 
curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto 
próprio à filosofia. Se descartarmos a visão historiográfica que dirá ser a filosofia 
a reflexão sobre os textos que definem o campo da tradição filosófica, definição 
ruim não apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensão da 
gênese da chamada “tradição filosófica” (gênese que admite textos até então 
completamente fora do dito debate intratextual da tradição filosófica), então 
ficamos com uma questão central. Ela se enuncia da seguinte forma: haveria de 
fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosóficos”, 
assim como falamos que existem objetos e fenômenos próprios à economia, à 
teoria literária e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um 
filósofo falar de um texto literário, fazer considerações sobre um problema 
econômico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao 
fazer isto, ele deixaria de ser filósofo? 
 Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for 
estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosófico: ele não 
tem objetos que lhe sejam próprios. De certa forma, podemos dizer que a 
filosofia é um discurso vazio pois não há objetos propriamente filosóficos, o que 
talvez nos explique porque não pode haver, por exemplo, teoria do 
conhecimento sem reflexões aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos, 
uma ciência empírica, não há estética sem crítica de arte, filosofia política sem 
ciência política, mesmo ontologia sem lógica. Em todos estes casos a filosofia 
toma de empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo 
desenvolvimento não lhe compete diretamente. 
Mas não haver objetos propriamente filosóficos não significa afirmar 
inexistir questões propriamente filosóficos. Há um modo de construir questões 
que é próprio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer 
objeto. Tal modelo filosófico de construção de questões nos permite identificar e 
pensar certos problemas que não poderiam ser pensados de maneira adequada 
fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a caraterística maior de 
uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou 
 
6
 CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000, p. 12 
um objeto é um evento. Ou seja, não se trata simplesmente de descrever 
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões 
de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia 
tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos 
produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo 
possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que 
problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma 
de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura 
o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de vida 
que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um 
mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a 
filosofia trata. Por isto, não seria incorreto dizer que toda questão filosófica é 
necessariamente vinculada a um evento histórico, ela é a ressonância filosófica 
de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da 
física moderna. Ela é a elaboração, até as últimas consequências, da dissolução 
do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço 
homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como 
fruto das aspirações emancipadoras da Revolução Francesa. 
 Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosófico quando ele 
aparecer como um evento. E a boa questão talvez seja: em que condições “sexo” 
e, principalmente, falar de sexo pode aparecer como um evento, como um 
acontecimento capaz de produzir reconfigurações profundas em nossa forma de 
vida? 
 
A continuidade do erotismo 
 
Podemos dizer que a filosofia do século XX conheceu três maneira 
diferentes de ver no sexo uma formade evento. A primeira está nesta forma de 
centrar as discussões sobre sexo em uma genealogia da sexualidade. Assim, ao 
falarmos sobre sexo, perguntaremos sobre como tal fala produz individualidades 
a partir de discursos sociais que procuram legitimar formas diversas de 
intervenção. Procuraremos entender como tais discursos foram formados, como 
eles demonstram a natureza produtiva do poder. Isto nos permitirá pensar o 
poder não apenas como uma forma de coerção imposta que nos coage de fora, 
mas principalmente como um modo de produzir formas de vida, de dar forma a 
nossos desejos, sejam nossos desejos de normas, sejam nossos desejos de 
transgressões. Nesta chave, mostraremos como o aparecimento da sexualidade 
com sua ciência nos expõe as verdadeiras artimanhas do que significa falar de 
sexo para alguém, principalmente para alguém que se coloca na posição de 
detentor de um saber. 
Voltemos, por exemplo, ao caso de Freud e Dora. Ao falar francamente 
sobre sexo com uma garota, Freud não apenas escuta. Ele a ensina como falar, em 
que condições seu desejo pode ser colocado em discurso, qual história ele deve 
contar, qual conflito ele deve assumir. Falar não é apenas liberar. Falar é também 
internalizar uma gramática do desejo. Por isto, o simples atos de falar de sexo 
dentro de um quadro discursivo marcado pelos eixos de uma ciência já é uma 
forma do poder operar, não este poder que se expressaria através de uma 
pretensa submissão da minha vontade à vontade do médico. Mas o poder como o 
que opera em nós dois, seja através do desejo de falar, seja através do desejo de 
escutar, como o que define as condições do que significa falar e escutar. 
Mas o século XX conheceu também outras duas formas de compreender 
sexo como evento. Cada uma delas operou a partir de um conceito. Assim, ao 
falar sobre sexo não nos focaremos mais na genealogia da sexualidade mas, por 
exemplo, na força explosiva do que devemos entender por “erotismo”. Esta é a 
estratégia que vocês encontrarão em outro filósofo francês, de uma geração 
anterior à Foucault, a saber, Georges Bataille. É dele definições como: 
 
O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas 
constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a 
ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) Trata-
se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a 
descontinuidade, toda a continuidade que esse mundo é capaz (...) A 
própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade 
de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é 
tão grande que se compara a seu contrário, ao sofrimento7. 
 
Não é difícil perceber como estamos longe do conceito foucaultiano de 
sexualidade. Não procuraremos mais saber como, através da assunção de uma 
sexualidade, constituímos formas, definindo nossa individualidade e nossa 
identidade. Individualidade que funda um mundo descontínuo, pois mundo 
composto por esses átomos sociais que são os indivíduos modernos com seus 
sistemas particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de 
interesses através de contratos, de limites, de cálculos. Interesses, por sua vez, 
submetidos à lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do 
desprazer. 
Bataille acredita que é tarefa filosófica fundamental fornecer as 
coordenadas para uma crítica da modernidade capaz de demonstrar como o 
advento do sujeito moderno se realiza, necessariamente, através da organização 
de uma sociedade composta por indivíduos. Os indivíduos são a unidade mínima 
da vida social e tais indivíduos se relacionam a coisas a partir de sua utilidade 
suposta. O mundo da sociedade dos indivíduos é o mundo das coisas úteis ou 
inúteis, mundo das coisas que produzem prazer ou desprazer. Mas, 
principalmente, mundo no qual as relações entre pessoas segue a mesma lógica 
que as relações às coisas. Mundo de pessoas úteis ou inúteis, mundo de pessoas 
que produzem prazer ou desprazer. Mundo no qual posso avaliar relações entre 
pessoas da mesma forma que avalio processos financeiros baseados em 
investimentos (“É, eu investi muito”) e rentabilidade (“Não tive nenhum 
retorno”). Ou seja, mundo no qual a lógica calculadora do trabalho no interior da 
indústria capitalista fornece o fundamento para todas as formas de experiência 
social. 
Este mundo, dirá Bataille, desconhece duas experiências fundamentais, 
que tecem entre si relações profundas: o erotismo e o sagrado. Pois o erotismo e 
o sagrado seriam fenômenos sociais capazes de introduzir, no interior de um 
mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que esse 
mundo é capaz. Isso significa que estaríamos diante de fenômenos irracionais a 
 
7
 BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43 
partir da lógica utilitarista que guia os indivíduos e suas relações. Vale para o 
sagrado, o que Bataille diz sobre o erotismo: 
 
O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca 
em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde 
objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se 
perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco8. 
 
Veremos nas nossas próximas aulas o que pode significar uma 
experiência do erotismo e do sagrado pensada desta forma. Por enquanto, vale a 
pena insistir em um ponto. Através da construção de uma noção de “erotismo” 
desta natureza, Bataille quer pensar com o sexo pode produzir um evento 
impensável no interior de nossas sociedades capitalistas, nessas mesmas 
sociedades que mais de um crítica descreveu como sociedades hedonistas. Ele 
quer mostrar como as sociedades capitalistas não são apenas economicamente 
injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da 
exclusão de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força. 
Notemos como há, aqui, ao mesmo tempo, uma tentativa de retornar à 
experiências pré-modernas do sagrado e do erotismo para fornecer o 
fundamento da crítica social no capitalismo avançado. Mas este retorno é 
animado por um evento histórico preciso. Como veremos, a experiência pré-
moderna só aparece à Bataille desta forma porque ela é vista a partir dos olhos 
de alguém animado por uma profunda experiência estética de ruptura ligada ao 
modernismo, em especial ao surrealismo. O mesmo surrealismo do qual Bataille 
representava a versão não-oficial, em conflito contínuo com aquela representada 
por André Breton. 
Neste sentido, através da reflexão filosófica sobre o sexo, Bataille procura 
pensar um evento que teria a força de, ao mesmo tempo, fornecer a explicação 
sobre porque sofremos no interior das formas de vida hegemônica do 
capitalismo e abrir a vida social para o impacto de experiências estéticas maiores 
da primeira metade do século XX. 
 
Gênero 
 
A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha 
força nas últimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo 
uso do conceito de “gênero”. Foi a filósofa norte-americana Judith Butler quem se 
responsabilizou pela transformação de um conceito psiquiátrico em forte 
conceito de orientação para práticas de transformação social. Seu verdadeiro 
inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de (vejam só vocês) 1968 
intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de 
construção de identidades de gênero através da articulação entre processos 
sociais, nomeação familiar e questões biológicas. 
Judith Butler, por sua vez, irá levar às últimas às últimas consequências a 
distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero 
(construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer 
uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura,até porque 
 
8
 Idem, p. 55 
gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural através do qual 
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual 
a cultura age”9. Tal noção de gênero como ante-câmara de produção da ‘natureza 
sexual’ permite a Butler, entre outras coisas, defender o caráter ideológico de 
uma noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “a pressuposição de 
um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação mimética entre 
gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por 
ele”10. 
Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de 
tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de 
uma teoria da ação política, teoria que procura entender a maneira com que 
sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço 
produzindo novas formas, não apenas como eles são sujeitados às normas e 
completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de 
gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma 
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não 
se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero 
é um “modo de ser despossuido”11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz 
no outro. Daí uma afirmação como: 
 
A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao 
ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo 
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de 
enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a 
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos 
sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos12. 
 
 Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado 
pelo advento das exigências de reconhecimento do que, até então, estava expulso 
do universo do humano. Do que era visto como patológico, doentio e, por isto, 
sem direito à existência, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A 
modificação da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de 
gênero foi um acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos colocaria 
diante da compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento 
de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano. 
 Notem então como no caso do uso desses três conceitos (erotismo, 
sexualidade e gênero) por três filósofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith 
Butler) em três momentos intelectuais distintos vemos três estratégias 
diferentes, embora não completamente divergentes, da filosofia se voltar para 
uma matéria que lhe é exterior, problematizando aspectos de um mesmo 
fenômeno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso será 
organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigatória de vocês: 
“O erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “História da 
sexualidade”, de Michel Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O 
 
9
 BUTLER, Judith ; Gender trouble ,New York : Routledge, 1999, p. 11 
10
 idem, p. 10 
11
 Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19 
12
 Idem, p. 25 
curso será, em larga medida, uma apresentação comentada desses três livros, ou 
de trechos deles. Mas é fundamental que vocês os leiam integralmente para que a 
experiência do comentário possa funcionar. 
 Ao ler tais livros, lembrem como esses três filósofos tecem, ainda, relações 
profundas de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua 
obra, o mesmo vale para Judith Butler sobre Foucault. Há, entre os três, uma 
interessante circulação de pensamento que não se dá sobre a forma tradicional 
da influência ou da continuidade. Há uma circulação de pensamento por 
exploração de possibilidades não trilhadas, como se uma experiência de 
pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar alguns 
fios descosidos que poderão entrar em tramas completamente diferentes. Esses 
que leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem não ser os 
leitores mais fieis, mas são certamente os melhores, os únicos que compreendem 
o texto filosófico como um processo aberto de invenção. As vezes, a infidelidade 
é a maneira que o pensamento tem de afirmar sua produtividade. Fidelidade 
nunca foi uma virtude filosófica, embora a pura e simples incapacidade de entrar 
nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser algo a se vangloriar. 
 Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposição uma forma 
de fazer comentário filosófico que não é apenas a imersão na textualidade 
interna de certos textos da tradição, mas que seja a capacidade de identificar e 
constituir problemas filosóficos. De fato, vocês aprenderão técnicas 
fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de leitura de textos da 
tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem 
das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar 
as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender 
como o método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do 
pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental 
para a constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita 
a autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se 
apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato 
de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele 
não define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim, 
procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em 
filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto 
possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início. Por isto, talvez seja 
interessante aproveitar o início do curso de vocês e mostrar algo diferente do 
que normalmente nos mostraríamos. 
Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de 
boa parte de vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho. 
 
Erotismo, sexualidade e gênero 
Aula 2 
 
 
 
Na aula de hoje, vamos começar nosso módulo dedicado ao conceito de 
“erotismo” a partir de Georges Bataille. Gostaria de, inicialmente, apresentar 
Bataille e, em um segundo momento, tecer algumas considerações gerais sobre 
sua experiência intelectual. 
 “Eu sou um filósofo... até certo ponto”. Talvez essa frase de Bataille (1897-
1962) seja uma boa maneira de começarmos a nos introduzir a sua obra 
multifacetada. Composta de vários livros de literatura (como, por exemplo, A 
história do olho e Madame Edwarda, livros que passaram à história da literatura 
devido a sua maneira explícita de falar de sexo e que parecem se colocar na linha 
direta de produções como as de Sade, dos libertinos franceses, entre outros), sua 
obra não é, no entanto, a obra de um escritor. Seus romances são a elaboração 
literária de uma problematização filosófica, um pouco como os romances de 
Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo de “romance de tese” em sua obra 
literária, já que a literatura aparece quase como um regime discursivo de 
explicitação de proposições filosóficas. 
No entanto, sua produção filosófica também não parece se enquadrar 
claramente no modelo de produção que poderíamos esperar de textos filosóficos. 
Por exemplo, a parte alguns escritos sobre Nietzsche e dois artigos sobre Hegel, 
não encontraremos textos diretamente dedicados ao comentário da obra de 
outros filósofos. Sua formaçãonão foi típica de um filósofo. Ela se deu na Ecole 
des Chartes, de Paris, de onde saiu como arquivista e bibliotecário com uma tese 
sobre o manuscrito A ordem da cavalaria, o que explica, entre outros, porque 
encontraremos em sua produção textos técnicos sobre numismática. Durante 
praticamente toda sua vida, Bataille foi arquivista da Biblioteca Nacional, ficando 
completamente à margem da vida universitária. 
Esta formação híbrida, assim como uma grande abertura de interesses, 
pode explicar porque os temas de sua filosofia muitas vezes se constroem em um 
campo de interface entre a antropologia, a teologia, a estética e a filosofia. O que 
lhe fornece uma capacidade não negligenciável de elaborar temas filosóficos até 
então inexistentes, como este que versa sobre o erotismo e suas relações com o 
sagrado. 
Se voltarmos os olhos para o sistema de influências presente na obra de 
Bataille veremos, ao menos, duas influências maiores vindas do campo da 
filosofia. A primeira é Nietzsche. De fato, a peculiaridade da recepção de 
Nietzsche na França seria incompreensível sem o impacto dos textos de Bataille 
e sua maneira de, nos anos trinta, demonstrar a incompatibilidade entre o 
filósofo alemão e o nazismo que procurava à sua maneira recuperá-lo. Já a 
segunda influência filosófica é Hegel, mas um Hegel muito peculiar pois 
descoberto através dos cursos de Alexandre Kojève. 
Kojève foi um emigrante russo responsável, nos anos trinta, por um 
seminário de leituras da Fenomenologia do Espírito na Escola Prática de Altos 
Estudos. Entre os alunos de seu curso encontravam-se: Bataille, Jacques Lacan, 
Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil e de forma mais 
esporádica Jean-Paul Sartre e André Breton. Como vocês podem ver, uma boa 
parte da núcleo do pensamento francês dos anos 30 e 40 estava presente ao 
mesmo seminário, aprendendo um modo de leitura dos textos hegelianos que 
privilegiava questões ligadas ao desejo, à luta por reconhecimento, à morte e ao 
fim da história. Bataille seguiu de maneira assídua os seminários, de 1933 a 
1940, sendo a única formação filosófica de longa duração que teve. 
Mas além da influências filosóficas, devemos salientar ainda outras duas 
matrizes para a constituição de seu pensamento. A primeira vem do surrealismo 
e das aspirações abertas pelo modernismo estético. Desde de meados dos anos 
vinte, Bataille participa assiduamente das discussões a respeito do surrealismo, 
animadas principalmente por André Breton. No entanto, suas relações com 
Breton são tensas e logo serão levadas à ruptura. Bataille se vê em uma posição 
mais radical do que a de Breton, que ele compreende como uma porta-
estandarte de uma versão “oficial” e “institucionalizada”. A seu respeito, Breton 
dirá: “O Sr. Bataille faz profissão de querer considerar apenas o que há de mais 
vil, mais desencorajador e corrompido e ele convida o homem, a fim de evitar que 
ele se torne útil ao que quer que seja de determinado a correr absurdamente com 
ele em direção a algumas casas provinciais assombradas, mais vis que as moscas 
mais viciosas, mais rançoso que salões de cabelereiro”13. 
Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica 
da realidade social em prol de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o 
que teria sido recalcado pelos processos de racionalização na modernidade, 
como o inconsciente, o infantil e o arcaico. Neste sentido, a experiência 
modernista é um paradoxal apelo à recuperação do que foi expulso do nosso 
tempo histórico. Recuperação da capacidade de escrever como um criança, sem 
objetivo e em completa errância; escrever com as condensações, os 
deslocamentos e as associações próprias às formações do inconsciente; escrever 
deixando retornar experiências sociais que a modernidade quer marcar com o 
selo do arcaismo. Dentro desse horizonte, a posição de Bataille consiste em 
explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexão sobre a potência de 
uma escrita da transgressão. 
Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma 
vertente do surrealismo que se constituirá através de revistas como Documents, 
Minotaure e, principalmente, Acéphale. Talvez a síntese do espírito de tais 
revistas se encontre na capa de Acéphale, desenhada por André Masson. Nela, 
encontramos um desenho inspirado no Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci. 
Mas, pelas mãos de Masson, ele perde sua cabeça, ganha uma caveira no lugar de 
seu sexo, suas vísceras estão expostas e nas mãos ele carrega um coração em 
chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença 
renascentista no humanismo e na razão que se expressa no equilíbrio sereno da 
boa forma perde sua cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a 
paixão que queima e a morte ligada ao sexo. O que não nos surpreende se 
lembrarmos como Bataille escreve o primeiro texto da revista anunciando: 
“Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito 
tarde para tentar ser razoável e instruido – o que levou a uma vida sem atrativos. 
Secretamente ou não, faz-se necessário se transformar em algo totalmente outro 
ou cessar de ser”. 
 
13
 BRETON, André; MAnifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132 
Lembrem como, na aula passada, eu falara sobre a solidariedade entre 
todo verdadeiro projeto filosófico e a elaboração, até as últimas consequências, 
de um acontecimento. Aqui, nós encontramos um bom exemplo do que significar 
ter a consciência de estar diante de um acontecimento. Ele se dá sobre a forma 
de um momento de abandono. Um abandono impulsionado, principalmente, pela 
consciência de se viver em uma época de esgotamento estético à procura de 
superação. A arte aparece como uma experiência marcada pela procura em 
sintetizar novas formas capazes de nos desacostumar de uma realidade que, 
longe de ser naturalizada, é uma construção social responsável pelo 
empobrecimento da vida do homem moderno. Por isto, ela nos levará não apenas 
a uma nova ordem, mas, principalmente, à destruição da figura atual do homem. 
Daí porque o gesto estético por excelência é a decapitação, a perda do centro que 
define uma hierarquia. 
Por fim, o terceiro campo de influência do pensamento de Bataille deriva 
da antropologia de Marcel Mauss e da psicanálise de Sigmund Freud. Vale a pena 
lembrar que Bataille fundará, juntamente com Michel Leiris, Roger Caillois e 
Pierre Klossoviski uma espécie de sociedade secreta chamada “Colégio de 
sociologia”. Nela, era questão de desenvolver um saber capaz de fazer não 
apenas uma antropologia da sociedades primitivas, mas principalmente uma 
antropologia das sociedades modernas, colocando à luz aquilo que, em nossas 
sociedades, não se deixa pensar a partir de explicações utilitaristas. Para tanto, 
Bataille se serve principalmente de conceitos de Marcel Mauss, como dádiva, 
dom, mana, fato social total, entre tantos outros. Ele também não deixa de se 
apoiar em Freud a fim de construir um conceito que fará fortuna na psicanálise, 
através principalmente de Jacques Lacan, a saber, o conceito de gozo. 
 
Um crítica da sociedade do trabalho 
 
Uma forma possível de começar a compreender o sentido da experiência 
intelectual de Georges Bataille é prestando atenção no modo de funcionamento 
de sua crítica social. Como vocês podem imaginar, ela não é apenas uma crítica 
social, mas ao mesmo tempo, crítica da razão e crítica do sujeito. Ou seja, ela 
compreende que a única maneira de fazer uma verdadeira crítica social não é 
contentando-se com a denúncia das condições de exploração e injustiça 
econômica. A verdadeira crítica precisa, ao mesmo tempo, estar atenta para a 
maneira com que nossa realidade social só será modificada à condição de nos 
livrarmos de um conceito de razão onde esta aparece principalmentecomo um 
modo instrumental de dominação e de um conceito de sujeito profundamente 
alienante. 
Em vários momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas 
ocidentais são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho. 
O trabalho aparece como atividade fundamental para a constituição das 
identidades sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Neste sentido, 
lembremos de duas características maiores do trabalho. Primeiro, o trabalho 
fornece um modelo fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades 
sociais intersubjetivamente partilhadas, isto devido ao fato dele ser (juntamente 
com o desejo e a linguagem) um dos eixos de constituição daquilo que podemos 
entender por “forma de vida”. Tal expressão realiza exigências maiores de 
autenticidade. Procuro realizar, através do trabalho, a expressão de algo que 
definiria minha autenticidade, a singularidade do meu estilo. 
No entanto, e este é o segundo ponto, o trabalho aparece como 
modalidade privilegiada de formação em direção à autonomia. Não é por acaso 
que compreendemos a maturação psicológica como este momento em que, entre 
outras coisas, deixamos de brincar e começamos a trabalhar. Pois a maturação 
implica mutação no padrão de atividades subjetiva. Ou seja, a expectativa de 
realização conjunta de exigências de expressão e formação é elemento definidor 
dos valores que mobilizamos na avaliação social do trabalho. Pois trata-se de dar 
conta de uma dupla demanda presente na definição moderna de liberdade. Dupla 
demanda referente à constituição da autonomia e à manifestação social da 
autenticidade. Por sua vez, o fracasso em realizar tais expectativas explica muito 
do espectro de sofrimentos que ainda encontramos na vida social. 
Se o trabalho tem esta dimensão formadora é porque ele é uma das 
versões mais bem acabadas de certo processo de auto-governo. Só aqueles 
capazes de se auto-governar são capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx, 
através do trabalho, aprendemos a impor uma lei à vontade, lei que deve ser 
reconhecida por mim como expressão da minha própria vontade. Esta vontade 
que submete outras vontades e que aparece assim para o sujeito com um dever 
que ele mesmo põe para si, dever que lhe permite relativizar as exigências 
imediatas de auto-satisfação, é um fator decisivo na constituição da noção 
moderna de autonomia. Por isto, só aqueles capazes de trabalhar são autônomos; 
não apenas no sentido material de serem capazes de prover seus próprios 
sustentos, mas no sentido moral de serem capazes de impor para si mesmo uma 
lei de conduta que é a expressão de sua própria vontade. E se lembramos da 
ideia de Rousseau14, para quem a verdadeira liberdade é a capacidade de dar 
para si mesmo sua própria lei, ser legislador de si mesmo, então seremos 
obrigados a dizer que o trabalho é exercício mais importante para a liberdade. 
Para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle socialmente 
validado não é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento que seja, 
como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar sempre 
será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisão 
social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse 
dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o 
essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produção e que 
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas, 
não se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final 
de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor que ela produziu. 
Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que 
são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim mesmo quando 
organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me 
ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que 
produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se 
encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação 
produzida pela sociedade do trabalho. Por isto, ele precisará lembrar: 
 
 
14
 Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000 
O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à 
eficácia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os 
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo, 
não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não 
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de 
refreá-los15. 
 
Nesta citação, vemos Bataille introduzir uma oposição importante. Há um 
modelo de cálculo derivado da lógica do trabalho. Tal modelo é indissociável da 
noção de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades são 
calculadas tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que 
devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto 
do início dos anos 30, intitulado “A noção de dispêndio”. Nele, lemos: 
 
A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob 
uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se 
deixa limitar, por um lado, à aquisição (praticamente à produção) e à 
conservação dos bens e , por outro, à reprodução e à conservação das 
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a 
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular 
deve ser redutível, para ser válido, às necessidades fundamentais da 
produção e da conservação16. 
 Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de 
descrição da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas 
principalmente como o princípio fundamental de definição da natureza dos 
sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo 
são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a 
conservação de seus bens e a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são 
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de 
suas ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas 
também suas ações relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx 
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas 
acaba ganhando a forma de relações entre coisas: “a humanidade, no tempo 
humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”17. 
 Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela 
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se 
confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social 
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo” 
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer 
e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como: 
A atividade humana não é inteiramente irredutível a processos de 
reprodução e de conservação, e o consumo deve ser dividido em duas 
partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo 
necessário para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da 
 
15
 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64 
16
 BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20 
17
 Idem; O erotismo, p. 184 
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto, 
simplesmente da condição fundamental desta última. A segunda parte é 
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as 
guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os 
espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviadada 
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições 
primitivas, têm em si mesmas seu fim18. 
 Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta 
natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela 
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruição que, do 
ponto de vista das exigências econômicas de produção e maximização, são 
simplesmente irracionais. Mas, ao menos neste momento, gostaria de desdobrar 
a ideia de que a atividade sexual seria um exemplo privilegiado de atividade 
improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem expressa em 
uma afirmação como: 
 
Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual, 
uma incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado. Na medida em 
que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve não 
apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele 
mesmo o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideração desviou 
o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de 
si19. 
 
O excesso e os números 
 
 Notem, inicialmente, a peculiaridade da construção de Bataille. Primeiro, 
trata-se de dizer que há uma incompatibilidade entre a lógica do trabalho e a 
vida sexual. Isto exige não apenas aceitar desvincular a vida sexual dos 
imperativos de reprodução (pois se sexo servisse principalmente para a 
reprodução, então ele entraria sem maiores problemas no interior das exigências 
de conservação das sociedades), mas também, e este é o passo mais singular, 
desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar, 
como afinal sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um 
complemento através do uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Não 
por outra razão, mais ou menos à mesma época, filósofos ligados à Escola de 
Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor Adorno, lembravam como as 
sociedades capitalistas não podiam ser compreendidas como sociedades 
repressivas em relação às exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de 
contínua incitação à sexualidade, sociedades nas quais o poder fornece, ao 
mesmo tempo, o paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento 
das sociedades de consumo, a experiência do prazer é um argumento 
constantemente presente para o fortalecimento da coesão social. 
 Por uma razão desta natureza, Bataille procura pensar a experiência 
sexual como aquilo que não se encaixa dentro da racionalidade instrumental dos 
que procuram maximizar seus prazeres e se afastar de seus desprazeres. Por 
 
18
 Idem; A parte maldita, p. 21 
19
 Idem; O erotismo, p. 188 
isto, sua incompatibilidade com o trabalho não é simplesmente derivada da ideia 
de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na 
verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o tempo 
profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles 
não tem medida comum, eles não seguem a mesma lógica. Sua relação é de 
completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, não sabe como 
habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro. 
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, não significa dizer que o 
erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza, 
mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois 
isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenômenos, 
sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa 
aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que não 
se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não é a lógica dos objetos 
mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo 
quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo. 
Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma 
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O 
erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente 
aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do 
trabalho e da lógica utilitária. Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em 
tudo o que parece inumano no sexo: 
 
A sexualidade, qualificada de imunda, de bestial, é mesmo o que mais se 
opõe à redução do homem à coisa: o orgulho íntimo de um homem se liga 
a sua virilidade. Ela não responde de modo algum em nós àquilo que é o 
animal negado, mas ao que o animal tem de íntimo e de incomensurável. É 
mesmo nela que não podemos ser reduzidos como bois à força de 
trabalho, ao instrumento, à coisa20. 
 
Inumano é o que o homem precisou expulsar para ter uma imagem na 
qual reconheça as normas aos quais a vida social o vinculou, como a animalidade. 
Tal animalidade não é o selvagem, mas o incomensurável, o que não se descreve 
como descrevemos um instrumento. 
Isso explica, em nosso texto, a indignação de Bataille com estudos “sobre 
a vida sexual” como os Relatórios Kinsey. Alfred Kinsey foi um biólogo e 
“sexólogo” norte-americano responsável por estudos sobre o comportamento 
sexual masculino e feminino que marcaram os anos cinquenta. Seu estudos 
procuraram criar escalas (como uma que definia tendências homossexuais e 
heterossexuais a partir de uma escala de 0 a 6) e organizar comportamentos a 
partir de variáveis de ocupação, idade, religião, entre tantas outras. Bataille se 
insurge contra a ideia de que poderíamos falar de sexo como se estivéssemos 
diante de um objeto do mundo físico. Ou seja, uma ciência da sexualidade é, para 
Bataille, impossível. Pois a ciência é um regime de descrição que não se 
diferencia do padrão de racionalidade que encontramos no mundo do trabalho. 
Mas podemos dizer que, para Bataille, uma ciência da sexualidade é 
impossível porque, primeiro: “não podemos em geral participar da pedra, da 
 
20
 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 183 
tábua, mas participamos da nudez da mulher que enlaçamos”21. Ou seja, não há 
um observador indiferente aos fenômenos ligados à sexo, pois eles provocam 
necessariamente nossa participação. Olhar para eles, descrevê-los é entrar em 
um regime de participação e de implicação, como participaríamos e nos 
implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém próximo. Por isto, 
o discurso que crê descrever fenômenos sexuais como se fossem coletados por 
observadores imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificação. 
Nossa descrição do que é da ordem do sexual sempre será uma descrição 
sexualmente investida, libidinalmente interessada. Melhor procurar um regime 
de discurso que possa lidar melhor com tal realidade. 
Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo não pode ser, para 
Bataille, reduzi-lo a dados estatísticos. Não que eles não sejam precisos, eles são 
simplesmente irrelevantes: 
 
Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a 
dar números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos 
olhos? O que o homem significa a nossos olhos se coloca sem dúvida para 
além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a 
um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais22. 
 
Consciência de si e soberania 
 
Em uma citação anterior, vimos Bataille a afirmar que desconsideração pela 
natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senão da consciência dos 
objetos, ao menos da consciência de si. Seria interessante perguntar-se aqui 
porque vincular a revelação do sexo à consciência de si. Normalmente, 
poderíamos pensar no contrário, a saber, que a natureza excessiva da vida sexual 
é o avesso de toda consciênciade si, pois ela nos colocaria em um regime de 
descontrole e inconsciência, de distância em relação a algo como um “si mesmo”, 
como quem se entrega à servidão de algo que lhe ultrapassa e lhe subjuga. 
 No entanto, Bataille afirma que o reconhecimento da natureza excessiva 
da vida sexual é condição para quebrarmos o círculo de alienação no qual se 
encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho, 
enquanto objetos de um discurso científico objetificador e acedermos à condição 
de consciência de si emancipada. 
 Este conceito de consciência de si é profundamente vinculado a um outro 
conceito importante de Bataille, a saber, o conceito de soberania. Normalmente, 
o conceito de soberania é utilizado no interior da filosofia política para descrever 
aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do 
poder. O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. 
O rei é soberano porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressão da sua 
vontade. Por isto, ele pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e 
 
21
 Idem, p. 179 
22 Idem, p. 180. Ou ainda: “la science a pour objet de fonder l’homogénéité des phénomènes ; elle est, 
en un certain sens, une des fonctions eminentes de l’homogénéité. Ainsi, les éléments hétérogènes qui 
sont exclus par cette dernière se trouvent également exclus du champ de l'attention scientifique : par 
principe même, la science ne peut pas connaître d'éléments hétérogènes en tant que tels” (BATAILLE, 
Georges; ) 
 
suspendê-la quando entender dever ser o caso. O soberano é aquele que pode 
estar dentro ou fora da lei, aplicá-la ou suspendê-la, porque é dele que emana o 
poder. 
 Por outro lado, o soberano é aquele que pode consumir as riquezas sem 
trabalhar, enquanto aquele submetido à servidão produz riquezas sem consumi-
las. Ou seja, a soberania pressupõe o descolamento entre gozo e trabalho, pois se 
baseia no direito ao gozo desvinculado de toda atividade laboral. Do ponto de 
vista da lógica econômica, o soberano é improdutivo. 
 Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se encontra 
no centro do poder político para transformá-lo em um conceito capaz de 
descrever a posição subjetiva de quem não se encontra mais em posição de 
alienação e servidão. Mas o paradoxal no uso batailleano do conceito de 
soberania é que ele não descreve alguma experiência de dominação baseada na 
sobreposição da vontade do Outro à minha vontade. Ao contrário, soberano é 
aquele capaz de depor toda vontade de domínio, todo projeto, porque ele tem a 
segurança de que nenhuma vontade de domínio vinda do Outro poderá lhe 
submeter. 
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as 
coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente 
sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente 
ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que 
aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde 
só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. 
Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio 
improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a 
utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”23, ou 
ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não 
ser esse tempo presente”. Desta forma, a improdutividade do soberano se 
transforma na descrição de uma posição subjetiva na qual a liberação do tempo e 
das coisas é indissociável de uma experiência de emancipação. 
Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim 
mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente”24. Pois só assim, 
não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo do presente em nome do 
trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que sempre é feita para que 
um outro, este sim em posição soberana, possa consumir o que produzo. Não há 
trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos trabalhados por um 
soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho, há sempre um 
soberano que pode viver no instante. 
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de 
habitar outro tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, 
próprio ao milagre: 
 
Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio 
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável 
(o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro 
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a 
 
23
 BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248 
24
 Idem, p. 289 
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de 
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada; 
enfim, sob a forma de glória25. 
 
Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por 
Bataille, característica que veremos com mais calma na próxima aula, é sua 
posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria política o soberano é 
aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei, 
mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de Bataille, o homem 
soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de transgressão. Ele 
pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos 
homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressão 
da lei”26. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de 
transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as 
posições, as práticas interditadas são continuamente colocadas em questão e 
profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo que se desnuda na 
experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”27. Veremos 
melhor este ponto na aula que vem 
Mas Bataille também acrescenta algo à noção de soberania, a saber, a 
ideia de que a consciência de si soberana não é a realização final de uma 
identidade reconquistada. O verdadeiro soberano não é aquele que se deleita na 
segurança de sua própria identidade. Ele é aquele que depôs todo desejo de auto-
identidade. O verdadeiro soberano é aquele que não teme se perder, que não 
teme ser habitado pelo profundamente heterogêneo, isto a fim de se abrir a uma 
experiência que, do ponto de vista da utilidade, da produção, da conservação de 
si e do domínio dos objetos, é completamente irracional. Essa consciência de si é 
fundada na capacidade de transformar a relação a si em uma relação que não 
será relação homogênea, mas uma relação heterogênea. Veremos na aula que 
vem como a experiência do erotismo nos coloca no caminho em direção a tal 
consciência. 
 
 
 
 
 
25
 Idem, p. 249 
26
 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60 
27
 FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264 
Erotismo, sexualidade e gênero 
Aula 3 
 
 
 
Na aula de hoje, daremos continuidade ao nosso módulo dedicado ao conceito de 
erotismo, em Georges Bataille. Gostaria de discorrer sobre três temas centrais no 
pensamento de Bataille, a saber, a) a função e o sentido da relação entre 
erotismo e morte, b) o fundamento da ideia de uma sobreposição entre erotismo 
e sagrado, c) o conceito de transgressão. 
 Na aula passada, terminamos através de uma discussão sobre o conceito 
de soberania. Bataille afirmara, em dado momento, que a desconsideração pela 
natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senão da consciência dos 
objetos, ao menos da consciência de si. Eu sugeri que, compreendera relação 
entre sexo e consciência de si, ou seja, sexo como uma forma de tomar 
consciência de si mesmo, passava por organizar discussões a respeito da 
maneira com que Bataille compreende ser possível superar o círculo de 
alienação no qual se encontramos enquanto indivíduos das sociedades 
capitalistas do trabalho, enquanto objetos de um discurso científico objetificador. 
Se confrontar-se com a natureza excessiva da vida sexual é condição para tomar 
consciência de si mesmo, é porque, ao menos para Bataille, há algo na 
experiência sexual que nos coloca nas vias da soberania. Sendo assim, o conceito 
de soberania aparece como um operador importante para compreendermos o 
que está em jogo na ideia de erotismo. 
 Lembremos mais uma vez, normalmente, o conceito de soberania é 
utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra 
em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do poder. O exemplo mais 
paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. Do lugar do rei, 
Bataille sublinha duas características principais: sua posição, ao mesmo tempo, 
dentro e fora da lei, assim como a preferência pelo uso improdutivo da riqueza 
(já que o uso produtivo seria ligado à acumulação, processo próprio à ascensão 
da mentalidade burguesa). Bataille chegará a dizer: “economicamente, a atitude 
soberana se traduz pelo uso do excedente para fins improdutivos”28. 
O exemplo mais claro desse uso improdutivo da riqueza próprio à 
soberania nos é dado pelo fenômeno social do potlatch (“nutrir” ou “consumir” 
em chinook), que pode ser encontrado em tribos norte-americanas, na Melanésia 
e na Nova Guiné. É o antropólogo Marcel Mauss que descreve o fenômeno como 
uma “prestação total do tipo agonístico”. Mauss quer dar conta desses 
fenômenos sociais baseados na obrigação de retribuir o presente recebido, 
obrigação de retribuir um dom como forma de afirmar o prestígio e o poder de 
um clã, chefe ou tribo. Tal obrigação pode chegar: “à destruição puramente 
suntuária das riquezas acumuladas para eclipsar o chefe rival”29. Ou seja, a fim 
de engajar rivais em uma relação soberana, um chefe pode, por exemplo 
presentear ou simplesmente destruir parte significativa de sua riqueza, degolar 
escravos, jogar fora bens preciosos a fim de obrigar seu rival a fazer o mesmo em 
maior escala. Bataille segue uma colocação de Mauss a respeito do caráter 
 
28
 BATAILLE, Georges; La souveranéité, p. 326 
29
 MAUSS, Marcel; Sociologia e antropologia, p. 192 
paradigmático de tal atividade: 
 
Pesquisas mais aprofundadas mostram um número bastante considerável 
de formas intermediárias entre essas trocas com rivalidade exasperada, 
com destruição de riquezas, como as do noroeste americano e da 
Melanésia, e outras com emulação mais moderada em que os contratantes 
rivalizam em presentes: assim rivalizamos em nossos brindes de fim de 
ano, em nossos festins, bodas, em nossos simples convites para jantar, e 
sentimo-nos ainda obrigados a nos revanchieren, como dizem os 
alemães30. 
 
Com tais características em mente, Bataille retira o conceito de soberania 
das mãos daquele que se encontra no centro do poder político para transformá-
lo em um conceito capaz de descrever a posição de todo e qualquer sujeito que 
não se encontre mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira com 
vocês que o conceito batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele 
não descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do 
poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete às coisas à condição 
de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o tempo ao tempo 
do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que 
não domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de 
dominar para se defender. 
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as 
coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente 
sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente 
ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que 
aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde 
só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. 
Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio 
improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a 
utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”31, ou 
ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não 
ser esse tempo presente”. Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se 
nego em mim mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente”32. 
Pois só assim, não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo do 
presente em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que 
sempre é feita para que um outro, este sim em posição soberana, possa consumir 
o que produzo. Não há trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos 
trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu 
trabalho, há sempre um soberano que pode viver no instante. 
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de 
habitar outro tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, 
próprio ao milagre: 
 
Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio 
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável 
 
30
 MAUSS, idem, p. 193 
31
 BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248 
32
 Idem, p. 289 
(o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro 
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a 
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de 
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada; 
enfim, sob a forma de glória33. 
 
Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por 
Bataille é sua posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria política o 
soberano é aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o 
fundamento da lei, mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de 
Bataille, o homem soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de 
transgressão. Ele pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava separado 
do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e 
a transgressão da lei”34. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este 
jogo de transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, 
as posições, as práticas interditadas são continuamente colocadas em questão e 
profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo que se desnuda na 
experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”35. 
 
O erotismo, a continuidade e a heterogeneidade 
 
A discussão sobre a natureza improdutiva do uso do excesso na soberania serve 
para adentrarmos no sentido da relação, tão salientada por Bataille, entre 
erotismo e morte. 
 “Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte”36. 
Com esta frase, Bataille começa seu livro. Ela demonstra com clareza a ideia de 
que, para pensar a essência do erotismo, devemos compreender como a vida 
serve-se da morte com uma de suas figuras, como ela transforma a morte em 
aprovação da atividade vital. Neste ponto, juntam-se dos níveis de 
argumentação: um ligado a teoria social, outro ligado à algo que poderíamos 
chamar de “filosofia da natureza”. 
 O nível ligado à teoria social já foi adiantado desde nossa última aula. As 
sociedades capitalistas modernas são sociedades baseadas na redução do 
espectrodas atividades humanas à figura do trabalho, assim como na redução da 
experiência subjetiva à figura do indivíduo. Por um lado, o trabalho é a tarefa de 
uma coletividade, no tempo do trabalho, a coletividade deve se opor a esses 
movimentos que nos fazem nos abandonarmos ao universo violento do excesso, 
a saber, a relação sexual e a morte. A morte é a mais forte desordem contra o 
mundo do trabalho. 
Por outro lado, indivíduos são seres descontínuos, ou seja, que definem 
sua identidade da mesma forma que países definem suas fronteiras: 
estabelecendo limites, usando a identidade como sistema defensivo contra a 
submissão ao outro. Do ponto de vista do desejo, indivíduos são fundamentados 
em sistemas particulares de interesses que se fazem reconhecer a partir de 
acordos entre outros sistemas particulares. Daí porque as relações entre 
 
33
 Idem, p. 249 
34
 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60 
35
 FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264 
36
 BATAILLE, Goerges; O erotismo, p. 35 
indivíduos serão, em larga medida, relações inspiradas nas relações contratuais. 
Mesmo o casamento será compreendido como um contrato. Pois o contrato é a 
expressão máxima de um modelo de vínculo entre indivíduos portadores de 
interesses que devem ser restringidos mutuamente pelos interesses de outros 
indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se através da ficção jurídica de 
um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de serem 
socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta 
condição. Ficção que, por sua vez, deve se alimentar da elevação do medo a afeto 
central do vínculo político (medo da despossessão de meus bens, medo da morte 
violenta, medo da invasão de minha privacidade etc.). No entanto, dirá Bataille, 
indivíduos não conhecem o erotismo, já que: 
 
“o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas 
constituídas. Repito-o dessas formas de vida social, regular, que fundam a 
ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) trata-se 
de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, 
toda a continuidade de que este mundo é capaz”37. 
 
Ou seja, a experiência do erotismo pressupõe a capacidade de sair da ordem 
descontínua das individualidades. Por isto, do ponto de vista da preservação das 
individualidades, o erotismo sempre será violento e invasivo: “o que significa o 
erotismo dos corpos, senão uma violação do ser dos parceiros?” pois “A 
passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução 
relativa do ser constituído na ordem descontínua”38. 
 Esta violência própria ao erotismo é, no entanto, procura de passagem de 
um estado de descontinuidade à continuidade, procura de supressão dos limites 
e dos indivíduos. Por ter esta característica de supressão violenta dos indivíduos 
e de seus sistemas de organização de experiência e afetos o erotismo, ao menos 
segundo Bataille, encontra sua fonte na morte. A morte, enquanto supressão de 
um ser descontínuo, é o limite do qual o erotismo sempre se aproxima, podemos 
mesmo, em certos casos, alcançá-lo. Ela é a força que faz do erotismo uma 
experiência na qual os seres se livram de formas antigas e configuram novas 
formas. 
 Pode parecer haver algo de passadista nesta maneira batailleana de 
contrapor o advento da individualidade moderna e o erotismo. Pois tudo se 
passaria como se Bataille procurasse fenômenos sociais nos quais a figura do 
indivíduo consciente de seus interesses e insubmisso a práticas ritualizadas não 
poderia ser encontrada, isto a fim de insidiosamente pregar uma crítica da 
modernidade através de alguma forma de retorno a estágios pré-modernos de 
individuação. Daí porque, por exemplo, ele precisaria insistir tanto no vínculo 
entre sagrado e erotismo. Pois as sociedades para as quais a experiência religiosa 
aparece como paradigma para toda e qualquer experiência social, sociedades na 
qual a religião ocupa um lugar central na vida social, dando o sentido para 
práticas na esfera da economia, da política, da produção cultural e na vida 
afetiva., seriam as únicas capazes de garantir algo da ordem da experiência dessa 
continuidade tanto procurada por Bataille. Estaria Bataille a pregar alguma 
 
37
 Idem, p. 42 
38
 Idem, p. 41 
forma de volta de nossas sociedades a esses estágios pré-modernos e, 
aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados? 
 Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais 
experiências ainda estão presentes em nossas sociedades, mas sob uma forma 
distorcida e profundamente destrutiva. Para a geração de Bataille, fenômenos 
como a ascensão do nazismo e do fascismo foram ocasiões para compreender 
como o processo de formação das individualidades modernas era agenciado de 
forma tal a produzir sujeitos indefesos à sedução dos regimes totalitários. Não 
por outra razão, Bataille foi um dos primeiros a sugerir uma análise psicológica 
do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicológica do 
fascismo”. 
Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da 
produção é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construção de uma 
estrutura social na qual relações e valores são baseadas na utilidade e na 
quantificação. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos. 
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa 
comensurabilidade (as relações humanas podem ser mantidas por uma redução 
a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de 
situações definidas)”39. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a 
exclusão do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é 
inconsciente, ou seja, sem forma própria de apreensão pela consciência. 
Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo, 
já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente 
heterogêneo em relação ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força 
desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibição social de contato 
que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é 
apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo 
aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como 
valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo 
heterogêneo, preso entre a glória e a decadência, entre o puro e o impuro (como 
a própria palavra sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto, 
produzir tanto atração quanto repulsão e se apresentam a nós através da força 
violenta do choque. 
Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar, 
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com 
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o 
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instância 
dirigente representada pela autoridade do líder. Cria-se assim uma soberania 
presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz uma soberania 
assentada na experiência da dominação. 
Esta dominação, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade 
homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o 
outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da dominação, 
revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se transforma no uso do 
heterogêneo como astúcia última da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille 
crê que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que não se submete a 
 
39
 BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p.

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