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A FERROVIA : IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÕES CULTURAIS DA E NA MODERNIDADE

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
REGIONAL CATALÃO
INHCS – UAE DE HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE HISTÓRIA
A FERROVIA : IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÕES CULTURAIS DA E NA MODERNIDADE
Claude Monet. Gare Saint-Lazare Train Station. 1877
RUI GONÇALVES SANTOS JÚNIOR
CATALÃO 2016
RUI
A FERROVIA: IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÕES CULTURAIS DA E NA MODERNIDADE
Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade Federal de Goiás como requisito parcial para Conclusão do Curso orientada pela Prof. Dra. Regma Maria dos Santos.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
REGIONAL CATALÃO
INHCS – UAE DE HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE HISTÓRIA
2016
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________ 
Prof. Dra. Regma Maria dos Santos
Orientadora
_______________________________________________ 
Prof. Dra. Luzia Márcia Resende Silva
_______________________________________________ 
Prof. Dr. Ismar da Silva Costa
AGRADECIMENTOS
Sou grato por desde muito cedo me interessar por leitura, pelo universo musical e ter também despertado desde muito jovem o gosto de estudar, observar e praticar atos culturais de uma maneira mais específica no meu período juvenil quando estas manifestações ainda continham um quê de sua essencialidade e preservavam doses de um certo primitivismo e um teor orgânico com certeza outrora estavam mais presentes e com um caráter mais identificado com o povo, com menos apelo comercial e a banalização que hoje vivenciamos.
Agradeço também em grande parte pelos esforços de meus pais em nunca medirem esforços para que tivesse dentro das possibilidades encontradas o máximo de oportunidades para estudar e me instruir de uma maneira geral.
Também agradeço por desde os 7 anos de idade viver a realidade de um filho de ferroviário, nessa época passava longos períodos com meu pai na inóspita estação de Inajá1Estação ferroviária Inajá-Roncador inaugurada em 28 de junho de 1977.Dísponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/efgoiaz/inaja.htm.
, distante 12 km da cidade de Ipameri, onde então ficava minha residência.
Nestas idas para Inajá tive os primeiros contatos com a imensidão e o isolamento da ferrovia e contraditoriamente com todo o poder de comunicação e ligação que possui a malha ferroviária que dentre outros fatores adicionais constituía-se em uma imensa aventura nos meus tempos de infância e que posteriormente eu vivi em sua plenitude na época em que fui Auxiliar de Maquinista na F.C.A2Ferrovia Centro-Atlãntica:empresa que após a privatização da antiga R.F.F.S.A.(Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima) adquiriu o trecho correspondente a grande parte do estado goiano chegando à Brasília,e mais precisamente abrangendo o sudeste goiano e alguns trechos de Minas Gerais.
.
Agradeço também a minha orientadora por ter acreditado no projeto que se transformou no Trabalho de Conclusão de Curso e por sempre ter me incentivado e me orientado nas horas mais difíceis para que se chegasse até o presente momento.
Não poderia também deixar de agradecer pelo meu filho, Pedro, pela sua existência, e por ser um dos grandes motivos em me empenhar na tarefa de superar os obstáculos e muitas das vezes por me reinventar diante de situações que em grande parte das vezes necessitam de um desdobramento adicional às nossas próprias perspectivas e que fazem com que tomemos a saudável atitude de nos lançarmos a esta grande aventura que é viver e nos relacionar com o mundo e as pessoas presentes em nossa vida.
Enfim, agradeço mesmo que de uma maneira um tanto inconsciente aos fatores positivos e negativos, representados por situações e agentes dos mais diversos, digo de maneira inconsciente pois em grande parte todo este processo foge do controle e se constitui basicamente em toda a experiência da formação acadêmica e por que não da formação de pessoas buscando uma evolução para nos tornarmos melhores como seres humanos nos forjando para que utilizemos ao longo de nossas vidas estas experiências.
RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso tem a finalidade de retratar representações culturais trazendo à tona a relação das atividades do cotidiano social ao entrarem em contato com a introdução da ferrovia na sociedade causando grandes mudanças não só nos grandes centros urbanos, onde ela representou essencialmente a modernidade como resultado direto do progresso, mas, principalmente nos lugares mais afastados dos grandes centros, outrora locais isolados que tiveram sua rotina drasticamente alterada com esta nova situação. Através da observação de diferentes prismas relacionados ao assunto tornou-se possível relacionar artigos filosóficos que trazem uma visão científica do imaginário social e seus reflexos na organização sócio política, e a utilização desses aspectos do imaginário coletivo. Constante neste trabalho é a busca de se traçar um panorama através de obras literárias e outros relatos que têm como cenário a ferrovia e as diversas formas que caracterizaram sua implantação e a forma como marcou profundamente as relações humanas causando uma grande transformação social, mostrando como ela atingiu a total variedade de classes e hierarquias sociais, desde os menos favorecidos até os considerados de alta estirpe. E por fim, como meio legítimo da expressão artística popular, independente de origem, ideologia e classe social, a música foi utilizada neste referido trabalho como uma janela aberta representando a visão de três artistas escolhidos mas que se encontram sobre os mesmos trilhos, ou seja o mesmo tema e que se personificam retratadas neste referido trabalho pela música erudita, o blues e a psicodelia.
Palavras chave: Ferrovia, modernidade, imaginário social, cultura, música.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................09
CAPÍTULO I. FERROVIA, MODERNIDADE E SOCIEDADE ..............................19
CAPÍTULO II. O TREM DE FERRO: IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÕES NAS LETRAS DE CANÇÕES..................................................................................….49
3.1 – A realidade mística na música “O trem das sete” de Raul Seixas......................51
3.2 – A estação como lugar da sensibilidade na canção de Robert Johnson.........…..60
3.3 – O trem caipira: o imaginário sobre o sertão na música de Villa-Lobos e 
Ferreira Gullar.................................................................................................................72
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................81
REFERÊNCIAS...............................................................................................................82
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo pensar como a ferrovia e o trem podem ser analisados por meio da historiografia, da literatura e da música, fontes privilegiadas para refletir sobre práticas imaginárias e vivências na modernidade.
O processo de construção de minha pesquisa está intimamente ligado com fatos emoções e experiências ao longo de minha existência. Música, ferrovia, sociedade, cultura sempre foram campos marcantes e muito presentes em minha vida reforçando assim o meu interesse que deles partiam resultando em uma busca em vivenciá-los e compreendê-los.
A questão cultural começou a despertar o meu fascínio desde as primeiras lembranças da infância. Tanto meus avôs maternos quanto paternos não possuíam uma educação formalizada, oficial. Enfim, nunca frequentaram uma escola, mas possuíam uma riqueza de conhecimento dos elementos naturais e consequentemente da maneira como a sociedade se organizava ocasionando assim um relacionamento com pessoas de diferentes classes sociais, sobretudo com pessoas comuns
e que se encontravam basicamente sob as mesmas dificuldades enfrentadas pelo cotidiano de famílias economicamente menos favorecidas.
Esse conhecimento dos elementos naturais fazia parte de uma antiga tradição e também era fruto da constante interação dessas comunidades rurais com o seu ecossistema e isso se refletia nas festas e ritos agrários que, mesmo transformados pelo cristianismo seguiam a tradição ancestral de celebrar as colheitas e estações do ano. Assim como nos relata Carlo Ginzburg em seu livro Andarilhos do Bem: “Um rito de fertilidade, que segue, ponto a ponto, o ritmo dos principais momentos do ano agrícola. A esse rito agrário sobrepõe-se um complexo cultural de origem bem diversa”. (GINZBURG,1988, p.25, p.46)
Cresci ouvindo histórias, os famosos “causos”, em volta do fogão a lenha, local onde as famílias de origem rural diariamente se reuniam para realizar suas refeições e conversarem sobre diferentes assuntos. Esta prática é assim descrita por Jadir de Morais Pessoa em seu livro Saberes em Festa:
Abrangente e fecunda é a transmissão oral dos saberes e costumes, através dos ensinamentos diretos dos pais, mas que ganhou uma forma concreta na figura dos velhos contadores de “causos”, geralmente em volta do aterro das fornalhas. (PESSOA, 2005, p.52)
Nessas oportunidades ouvia os meus avôs, tios e pessoas próximas a família contarem sobre as experiências vividas e também transmitirem histórias pertencentes a uma herança cultural que atravessa o tempo e que se modifica mesmo assim mantendo fortes ligações com a sua concepção original.
Assim como o romance, a novela e a poesia lírica, o conto se configura em dois pólos equivalentes: estrutura e visão de mundo. Mas o que o conto tem de específico em relação a esses outros gêneros é o fato de ser uma unidade dramática, uma célula dramática. É uma narrativa unívoca. O conto é restrito a unidades de ação, de tempo, de lugar e de tom. Quer dizer o drama se passa entre um número reduzido de pessoas, vivendo um único tempo “presente” e não há uma dispersão de reações, de sentimentos em relação ao drama. (PESSOA,2005, p.17)
Essa transmissão de conhecimento fez com que eu tivesse acesso a uma variedade de histórias ligadas ao folclore regional e a uma forma de conhecimento que se integra ao conhecimento formal, científico, mas que, muitas das vezes, caminha de uma forma independente e paralela, dotando-se assim de um conhecimento que mesmo não sendo oficializado possui uma forte identidade e se expressa de maneira bem peculiar. “O que chamamos de cultura popular nasce em grande medida de vivência prática ou de lembranças ou ainda de imagens recebidas, ligadas ao cultivo da terra.”(PESSOA,2005, p.51)
Quando acompanhava essas narrativas aparecia o interesse por outras áreas do saber somando-se a isso o fato de que por eu ser uma criança na época tudo se constituía em uma grande novidade.
Junto a essa oralidade vinham também as manifestações artísticas presentes tanto na cidade em que residia quanto nas comunidades rurais nas quais passava os fins de semana e principalmente nas férias escolares quando ia para a casa de meus tios e avôs situados em diferentes locais ao longo da região de Ipameri.
Chegando ao estado de Goiás, essas festas de tradições milenares incorporaram o jeito simples de viver, o apego à terra de moradia, de cultivo e de criatório: o falar entrecortado e quase monossilábico de gente que, na esteira do ouro e das fazendas de gado, foi lentamente povoando as beiras de córregos e as planícies mais férteis. Incorporaram também o modo como os chegantes e os da terra, com alguma informação a mais ou acesso as letras, foram elaborando suas formas de vida nas vilas e povoados constituídos pelo comércio, pelos serviços e por um poder público que não raro, era sempre o último a chegar.(PESSOA,2005, p.33)
Lembro-me que este deslocamento desde cedo me proporcionou a experiência do choque causado pelo antagonismo entre o meio urbano e o rural constituindo desta maneira através de diversas formas mas que se relacionam e apresentam toda a concepção do deslocamento e as consequências refletidas no tempo e no espaço expostas, neste caso, de uma maneira nítida através da alteração do ritmo de vida causado pela modernidade das cidades em contraposição ao ritmo natural do qual o campo é constituído, principalmente em locais que ainda não foram transformados em pólos modernizados de alta produção onde muitos lugares atualmente, sejam no campo ou na cidade, encontram-se sob um acelerado ritmo ditado pela produção em série. Raymond Williams fala-nos sobre essa experiência em sua obra Política do Modernismo:
A experiência do estranhamento visual e linguístico, a narrativa quebrada da viagem acompanhada dos inevitáveis encontros transitórios com personagens cuja autorrepresentação era desconcertantemente alheia, elevou ao nível do mito universal a narrativa intensa e singular do deslocamento, da itinerância, da solidão e da independência empobrecida: o artista solitário olhando de cima, de seu apartamento surrado, a cidade incognoscível.(WILLIAMS,2011, p.5)
A música e as suas manifestações artísticas sempre estiveram presentes em minha vida. Meu avô materno tocava acordeon e compunha músicas sertanejas, sei disso através de relatos de familiares e pessoas ligadas a nossa família mas ele não fez nenhum registro de suas composições ou de alguma apresentação sua. “Porém, todas as suas obras são assinadas com sua alma resplandecente, e aos amadores que as viram e apreciaram as reconhecerão sem dificuldade.” (BAUDELAIRE,1996, p.15)
Essa tradição musical está mais presente na família de minha mãe, mesmo que na de meu pai. Um tio meu toca viola e canta fazendo parcerias com outras pessoas ligadas a moda de viola da região.
Na família de minha mãe há quatro tios que possuem um forte envolvimento com o universo musical. Um deles, o mais velho de 13 irmãos, exerceu até pouco tempo a profissão de luthier3Profissional especializado na construção e no reparo de instrumentos de corda com caixa de ressonância (guitarra, violino etc.), mas não daqueles dotados de teclado.
 tendo várias melodias compostas e também letras de sua autoria algumas gravadas, cantadas e executadas por ele e também tendo suas obras cantadas e gravadas por duplas do meio sertanejo. Mesmo possuindo uma ampla visão do universo musical e vivendo diretamente dele seguiu a opção de não se lançar a uma carreira artística profissional.
Outro desses quatro irmãos vive exclusivamente da música sendo autor de várias composições e letras autorais tendo inclusive gravado LP´s e logrado um certo sucesso, tornando-se assim uma pessoa conhecida no meio artístico da música sertaneja.
Há um outro irmão de minha mãe que, mesmo não vivendo diretamente da produção musical tem também uma grande quantidade de melodias e letras autorais, tendo também gravado discos e participado de várias parcerias no meio da música sertaneja sempre participando de eventos culturais ligados a música de raiz sertaneja e comparecendo a rádios comunitárias adeptas de uma programação voltada para a moda de viola.
Completando este arco, tenho ainda mais um tio que mantém esse envolvimento com a música e assim como os demais já citados possui melodias e letras compostas mesmo não tendo nada gravado, participando sempre de eventos ligados à moda de viola e a música sertaneja tradicional na cidade de Ipameri e região.
Estes exemplos evidenciam a influência que a música exerceu e exerce em minha vida constituindo minha personalidade e fazendo parte de minha formação tanto que a música ocupa um capítulo inteiro de minha pesquisa e de uma maneira ou outra ela se faz muito presente em minha vida.
E junto com esse universo musical veio todo o contexto cultural que a ele se integra e que faz com que gradualmente ocorra um mergulho na busca do conhecimento sobre as formas culturais e também suas expressões e diferentes formas de linguagem que a constitui.
Imediatamente após minhas primeiras descobertas musicais veio
o interesse pela leitura inicialmente com histórias de quadrinhos, isso mais precisamente quando tinha 7 anos, esse interesse se intensificou pelo fato de haver uma banca de revista bem próxima a escola e sempre depois das aulas passava por lá.Com isso passei a acompanhar alguns títulos mensais e através dos quadrinhos veio o interesse natural pela matéria de História principalmente por seu caráter multicultural abordar vários assuntos e isso refletiu diretamente no meu ambiente escolar com meu desempenho na matéria sempre sendo muito satisfatório.
Posteriormente isso resultou em um interesse por literatura infantil e depois de algum tempo tive os primeiros contatos com os clássicos literários e de uma maneira precoce já possuía um certo conhecimento através de minhas leituras.
Um fato curioso acerca disso é que nunca me prendi a um estilo, sempre buscando me diversificar e conhecer mais.
Soma-se a isso o fato de que na escola e no bairro em que eu morava convivia com diferentes concepções culturais e com pessoas de diferentes classes sociais, como diria Walter Benjamin: meu clã habitava então ambos os bairros, numa atitude em que se misturava teimosia e orgulho e fazia de ambos um gueto, o feudo de nossa família. (BENJAMIN;1987, p.125). Isso se tornou um fato importante pois assim se estabelecia uma ponte entre o mundo do saber e do conhecimento formal unindo-se assim ao mundo suburbano, a rua, a pobreza, futebol, pique-pega, pique-esconde, cair no poço, pescaria, carrinho de rolamento e todas as demais brincadeiras que estiveram muito presentes na minha infância e que hoje andam um pouco esquecidas e banalizadas por todo este aparato científico e pela adoção de práticas virtuais de diversão e redes sociais. “Uma vida pobre, de muito trabalho e carecimentos, não significa necessariamente uma vida de sofrimento. O povo pobre tem também suas alegrias.” (PESSOA,2005,p.36)
Influenciado pelos quadrinhos passei a desenhar e isso trouxe um interesse pelo mundo das artes plásticas e conheci telas de artistas de diferentes estilos, sendo que nunca me preocupei com delimitações de estilo, me sentindo assim atraído pelo que me agradava, ou seja, me despertava interesse, e isso se repetia em respeito aos meus interesses nos campos literários e musicais, formando assim um verdadeiro caldeirão cultural e essa concepção mesmo que de uma maneira amadurecida me acompanha até os dias de hoje, ou assim como nos versos de Charles Baudelaire escritos em Sobre a Modernidade: “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.”(BAUDELAIRE,1996,p.26)
A ferrovia integra o meu contexto existencial até antes mesmo de meu pai ser aprovado no concurso da extinta R.F.F.S.A 4R.F.F.S.A.:Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima.
 passando a ocupar o também extinto cargo de manobrador, que também era denominado corriqueiramente de manobreiro. Tratava-se de um serviço braçal pois naquela época era necessário se praticar o ato de virar a chave para que os trilhos se desviassem de uma linha para outra, atualmente todo esse processo se encontra informatizado.
Como ia dizendo meu pai ingressou na ferrovia em 1987, portanto eu tinha 6 anos de idade mas nessa época eu já frequentava os trilhos.
Minha casa era localizada bem próxima a linha de ferro e então sempre eu ia lá com os amigos de infância. A brincadeira mais praticada era escalar os inúmeros “barrancos” e alguns deles tinham quase 20 metros de altura. Geralmente quando íamos para os trilhos saíamos da casa de minha avó, éramos todos primos com a adição de alguns eventuais companheiros. Minha avó, muitas das vezes, aparecia desesperada com uma vara na mão ameaçando nos bater se não descêssemos desses “barrancos”.
	Com o passar dos tempos a ferrovia foi fazendo cada vez mais parte de minha vida junto com a rotina de meu pai que trabalhava na estação de Inajá, distante 12 km de Ipameri.
Na época meu pai ia e voltava de bicicleta, não possuíamos carro, nas férias eu ia com ele e ficava lá por quatro dias que eram o período de sua escala de trabalho. Essas idas com meu pai constituíam-se em grandes aventuras para mim, na época com 7/8 anos.
A natureza, o isolamento que a malha ferroviária proporcionava em detrimento com o cerrado era uma experiência fantástica, fato semelhante narra Charles Baudelaire em seu livro Paraísos Artificiais:
Da mesma, forma ninguém está mais apto a saborear uma paisagem do que aquele que a contempla pela primeira vez. A natureza então se apresenta a ele em toda sua estranheza, porque não foi desbotada ainda por um olhar demasiado frequente (BAUDELAIRE;2001,p.124)
Lembro-me que a gente saia de minha casa em Ipameri bem cedinho, como nossa casa era bem próxima a ferrovia logo estávamos nos trilhos. Meu pai tinha uma bicicleta barra-circular e eu fazia todo esse percurso sentado na garupa da bicicleta.
Lembro-me ao descrever esses fatos que muitas vezes eu ficava com as pernas dormentes e quando descia da garupa da bicicleta era como se não sentisse minhas pernas e essa era uma sensação muito estranha.
Com o passar do tempo a ferrovia continuou a me acompanhar, fizemos um campinho de futebol bem perto dos trilhos, minha infância foi bem suburbana morávamos num bairro humilde de Ipameri, mas o pessoal daquela vila era muito unido e formávamos uma turma relativamente comunitária, sobre isso cito Walter Benjamin: E foi um grande avanço em meus conhecimentos quando comecei a entender a origem da pobreza na ignomínia do trabalho mal remunerado.(BENJAMIN;1987,p.125)
Depois com a minha adolescência e as descobertas e feitos característicos desta época, a linha de ferro passou a ter um papel digamos recreativo em minha vida.
Aos 17 anos mais um fato marcante à cerca da ferrovia, consigo uma oportunidade de estudar e trabalhar em Brasília, meu pai havia sido transferido para a cidade havia já uns 3 anos, passo a morar em um alojamento que se situava no subsolo da estação rodoviária de Brasília pertencente a ferrovia que havia sido privatizada no governo Fernando Henrique e foi vendida a um conglomerado que se denominava F.C.A.5Ferrovia Centro Atlãntica
.
Neste período meu convívio ficou mais estreito com o mundo ferroviário. Morava neste alojamento, trabalhava durante o dia em um órgão do governo e estudava a noite.
Nas horas de folga e fins de semana sempre ficava perambulando pela rodoviária ou pelo centro de Brasília e isso para um jovem de 17 anos representava uma variada gama de experiências, muito perigosa com certeza, mas que me ofereceu a oportunidade de entrar em contato com várias pessoas de diferentes origens, idades e concepções de mundo e isso até hoje representa uma grande bagagem existencial para mim.
Esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade.”(BAUDELAIRE,1996, p.25)
Fiquei por um ano nesta rotina mas não aguentei a saudade de casa e voltei para minha mãe, meu bairro e minha rua em Ipameri. Meu pai durante este período continuou a sua vida de ferroviário, passou a ocupar a função de maquinista e isso representou uma grande melhora profissional e de condições de vida para minha família.
No ano de 2003 nasce o meu filho Pedro, várias transformações em minha vida através deste fato, e a ferrovia novamente presente...desta vez consigo um cargo de auxiliar de maquinista. Foi por um breve período. Trabalhei na F.C.A. por seis meses somados a mais três meses de um curso técnico admissional realizado em Araguari. Este curto período foi muito rico em experiências, conhecendo lugares e pessoas.
Passei a morar em Pires do Rio, fiz várias viagens como auxiliar de maquinista e as melhores foram de madrugada e quando amanhecia viajando de trem.
É fantástico. O trem passa em lugares bem inóspitos e também por grandes
centros urbanos, alguns deles de uma beleza incomparável onde a natureza se faz presente. “Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas pelos sopros do sol.”(BAUDELAIRE,1996, p.22)
As duas melhores rotas eram a que saia de Pires do Rio para Brasília e a que ia para Araguari, principalmente a de Araguari pois tem paisagens muito bonitas e os trilhos também eram mais modernos e bem estruturados que a linha férrea do interior de Goiás.
Tentei descrever da melhor maneira possível minha trajetória e os fatores que me levaram a elaboração e a constituição de meu projeto de pesquisa passando, portanto, pela cultura, música, ferrovia, sociedade e de como a modernidade está inserida nestes quatro campos e formas de linguagem.
Pelo fato de trabalhar com estes tipos de linguagem terei de retratá-las como documentos que constituem a realidade social e lidar com suas propostas, questionamentos, tensões, acomodações e ao mesmo tempo fazer uma releitura transmitindo os sentimentos que os autores nestas músicas expressam, sejam suas críticas, propostas e fatores que defendem inserindo-as no contexto histórico do qual foram construídas.
Sendo assim terei que pôr em evidência o contexto social em que tais músicas foram produzidas revelando ou tentando revelar o porquê de tais músicas utilizarem o trem-de-ferro como sua fonte de inspiração. Questionando inicialmente a forma como está representado o trem-de-ferro e, posteriormente, o objeto que está representado, propriamente dito.
Backzo em seu artigo “imaginário social” descreve o fato do poder, representado essencialmente pelo poder político, ter como característica marcante a apropriação ou senão a necessidade de se apropriar das representações coletivas. E esta apropriação consiste um uma importante tática para que o poder político efetivamente exerça seu domínio sobre o campo social ainda de acordo com Backzo, a ciência política prevê que o imaginário não está na sua forma estrutural nem na forma como se evidencia seu funcionamento nem em sua forma original desprovido de todas as máscaras e maniqueísmos políticos presente no imaginário social.
Ao procurar retratar este imaginário terei que procurar as evidências que constroem estas representações usando, a partir de métodos de pesquisa e indagações sobre a ferrovia.
Trabalharei com diversos autores provenientes de diferentes campos. Do saber histórico passando pela literatura, música e também pela filosofia e sociologia, todos relacionados a modernidade e os aspectos que influenciaram e trouxeram transformações
vividas no cotidiano.
A arte deve promulgar, tanto no tema quanto na forma, o dinamismo estimulante de uma sociedade pós-tradicional, que está varrendo bruscamente os resquícios restritivos do feudalismo, liberando não apenas a ciência e a indústria, mas também as possibilidades experimentais do próprio indivíduo (WILLIAMS,2011, p. XXIII)
No caso da música será necessário dimensionar o tempo e o espaço em que foram escritas buscando a compreensão da relatividade entre a fantasia e a real experiência vivida pelos compositores objetivando situar a sua posição ideológica em relação à temática transmitida e assim tornando mais evidente a justaposição entre estas músicas e os suportes bibliográficos ditos anteriormente.
E isso traz a possibilidade de direcionar a minha pesquisa para um prisma onde a fonte autoral é tratada não como uma mera informação e sim como um discurso a ser analisado. Sabendo que nas músicas os autores mesmo dando margem a várias interpretações e usando a subjetividade dos que as interpretam possuem em sua essência uma intencionalidade própria atuando na estrutura composta por seu texto e trazendo a força de seu pensamento como agente principal para transmitir sua mensagem.
Para isso analisarei as músicas: O Trem Das 7 de Raul Seixas, Trenzinho Caipira de Heitor Villa- Lobos e Love in Vain de Robert Johnson.
Desta forma proponho dividir meu trabalho em 2 capítulos: No primeiro capítulo serão relacionados aspectos inerentes a construção da ferrovia, suas características, o modo como se estabeleceu e utilizou a mão-de-obra humana para isso, sua relação com a modernidade e todo o impacto causado no âmbito sócio-político e cultural abordando temas regionais, nacionais e também retratando fatores correlacionados que obtiveram um grau de relevância em escala mundial.
No segundo capítulo proponho analisar as letras das canções selecionadas abordando, não apenas o seu conteúdo, mas o contexto de sua criação e o seu autor trazendo para estes contextos ideias e pensamentos relativos a temática abordada nas letras das canções. Pretendo ainda retratar todo um recorte espaço-temporal vivido pelos seus atores em suas vivências, mas, acima de tudo mostrando a forma como a sociedade e o mundo exterior os influenciaram e evidenciaram as relações humanas pelas manifestação artística integrando-se ao universo cultural. A evolução da arte, no fundo, seguirá o caminho de uma crescente fusão com a vida, isto é, com a produção, as festividades populares e a vida coletiva. (TROTSKI,2007,p.114)
CAPÍTULO I – FERROVIA, MODERNIDADE E SOCIEDADE
A minha pretensão nesta pesquisa é entrar no mundo do imaginário e das representações que o trem de ferro e a ferrovia carregam e transportam na história contemporânea.
A palavra “imaginário” deve ser tomada como estritamente ligada à palavra “imagem”: as formações imaginárias do sujeito são imagens, não só no sentido de que são intermediárias, substitutas, mas também no sentido de que representam eventualmente imagens materiais.(AUMONT,1993, p.119)
Conforme Barros, procuraremos compreender as representações como: “modos de ver e conceber o mundo de entendê-lo e representá-lo, seja por meio de imagens, de esquemas mentais ou de grades classificatórias.” (BARROS,2004, p. 12)
Ao se iniciar esta pesquisa sobre a modernidade representada pela ferrovia, a dimensão do imaginário e das representações ali construídas, seus impactos e consequências no meio do qual se insere, consideramos importante conhecer algumas obras que tratam do tema, como o livro Trem – Fantasma A Ferrovia Madeira – Mamoré e a modernidade da selva de Francisco Foot – Hardman que trata do processo de construção desta ferrovia. Utilizarei outras publicações de cunho científico, jornalístico, literário e também obras cinematográficas, musicas, relatos e fragmentos escritos por pessoas que realizaram estudos e que tiveram contato com a ferrovia. Sabemos que este universo era formado por pessoas notáveis, mas que, em sua grande maioria, era composto por anônimos, aventureiros, enfim pessoas comuns que forjaram uma empreitada que marcou o advento da modernidade em sua marcha para o progresso e a conquista de novos territórios e, consequentemente novos mercados e consumidores.
O herói é o verdadeiro tema da modernité. Isto significa que para viver a modernidade é preciso uma formação heróica. Aquilo que o assalariado realiza no trabalho diário não é menos importante que o aplauso e a glória do gladiador na antiguidade.(BENJAMIN,1975,p.12)
A ferrovia transformou a maneira do ser humano se comunicar e compreender todo este cenário que à sua volta, resultando numa nova forma de se produzir cultura e com isso uma nova maneira de se expressar através de diferentes linguagens.
Ao existir, qualquer indivíduo já está, automaticamente, produzindo cultura, sem que, para isto, seja preciso ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social embasam essa noção mais ampla de Cultura. ‘Comunicar” é produzir Cultura, e de saída isto já implica a duplicidade reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita. Sem falar que o ser humano também se comunica por meio de gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto é, do seu modo de vida’. (BARROS,2004, p.13)
Seguindo a definição de Barros esta prática social não é constituída somente
na produção, tendo a recepção também um papel fundamental neste processo. O conhecimento das “práticas e representações” são de grande utilidade, pois, através delas, é possível ter uma visão dos objetos culturais produzidos, assim como os que produzem tais objetos e seus respectivos receptores. Enfim, todo o processo que engloba a produção cultural e também a sua divulgação, suas normas e todo o sistema que dá o suporte para que a produção cultural se consolida mantendo uma relação com os costumes sociais.
O principal objetivo da história cultural é identificar a maneira como a cultura é constituída em diferentes lugares e momentos conforme as representações, inserem-se em um campo de concorrências e competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação em outras palavras, são produzidas aqui várias lutas de representações (CHARTIER,1990, p.17)
E isto faz com que estas “lutas de representações” sejam abordadas de várias formas, dependendo dos interesses que estão em jogo, principalmente no campo da política gerando assim uma relação conflituosa no panorama social. A apropriação, somada a representação e a prática é o terceiro elemento que compõe a História Cultural de acordo com a teoria desenvolvida por Roger Chartier e que objetiva alcançar uma compreensão das práticas que fundamentam o mundo através das representações. Estes conceitos ajudarão a aproximar nosso olhar sobre as produções historiográficas ou não que tem como tema a ferrovia.
Ao abordarmos a pesquisa de Hardman sobre a Madeira - Mamoré observamos que ele relata a situação caótica e as incertezas frente a construção da ferrovia junto com a expectativa gerada pela realização da obra:
É como se assim, aqui, de fato pudesse ter início uma história da Madeira – Mamoré e todos os esforços concentrados todos os rastros sucessivos de destruição todas as almas dispersas pudessem ganhar repentinamente, sentido, todos os vãos do espaço e todas as cunhas do tempo pudessem recobrar vida (HARDMAN,2005, p. 14).
O livro de Hardman abre a possibilidade para que seja feita uma analogia com a obra literária de Joseph Conrad publicada em 1899 em forma de fascículos para uma revista mensal inglesa e intitulada de O coração das trevas. No livro de Joseph Conrad o enredo se baseia na busca de um funcionário em uma empresa exploradora que estava naquele momento mantendo suas atividades no coração da África Central mais precisamente região do Congo que durante o período vivenciado na obra estava sobre o domínio do governo belga.
Este enviado tinha como tarefa o resgate de um alto funcionário desta empresa que havia se embrenhado na mata na busca de executar suas funções que consistiam basicamente na extração do marfim abundantemente encontrado até então no continente africano. “Poderíamos nos imaginar como os primeiros homens tomando posse de uma herança maldita a ser conquistada ao preço de sofrimentos profundos e esforços desmedidos.”(CONRAD,2010,p.64)
Este alto funcionário denominado na novela de Conrad como Kurtz, imbuído dos pretensos ideais de nobreza da qual pregava a empresa encontra-se em um grande dilema existencial após levar as últimas consequências os métodos de exploração praticados pela empresa e também por mergulhar profundamente nos segredos que guardavam a imensidão da mata e, consequentemente, aspectos obscuros de seu ser que vem à tona resultantes de seu convívio com os nativos e que devido à sua inteligência e natural liderança fazem com que ele passe a ser adorado pelo moradores das comunidades tribais.
A narrativa de Conrad se inicia com os primeiros contatos de Charlie Marlow, o enviado responsável pelo resgate de Kurtz, com o território e os nativos explorados pela companhia da qual era representante e é ai que se iniciam as semelhanças com o livro escrito por Hardman, pois, assim como no trecho do Trem-Fantasma citado anteriormente Marlow se vê diante de uma densa floresta aparentemente impenetrável que era palco da construção de uma ferrovia com os fins de escoar toda a exploração de marfim e posteriormente borracha, provenientes daquela região da África.
A narrativa de O coração das trevas é constituída essencialmente por uma severa e muito bem elaborada crítica ao colonialismo europeu perpetrado no continente africano e focaliza o impacto do choque causado pela invasão do mundo civilizado originando assim a destruição do mundo selvagem subjugado pelos ideais capitalistas que se elevava sobre todos os preceitos, principalmente os éticos.
O que aconteceu muito rapidamente foi que o modernismo em pouco tempo perdeu sua postura antiburguesa e alcançou uma integração confortável no novo capitalismo internacional. Sua investida no mercado global, transfronteiriço e transclassista, revelou-se espúria. As formas dessa investida inclinaram-no a uma competição cultural e uma interação comercial absoleta, com suas mudanças de escolas, estilos e moda tão essenciais ao mercado..As técnicas significativas de desconexão, adquiridas com tanta dificuldade, são recolocadas, com a ajuda da insensibilidade especial dos técnicos treinados e confiantes, como meros modos técnicos de publicidade e do cinema comercial.As imagens da alienação e da perda, isoladas e apartadas, e as descontinuidades narrativas tornaram-se iconografia fácil dos comerciais, e o herói solitário, amargo, sardônico e cético assume seu lugar já pronto como estrela de um thriller. Essas formas insensíveis nos lembram que as inovações do que é chamado modernismo tornaram-se as formas novas, embora engessadas, do nosso momento presente.(WILLIAMS,2011,p.7) 
Em sua obra Conrad flagra a pretensão de se levar a civilidade para o mundo selvagem como uma mera propaganda para acobertar a exploração do homem pelo próprio homem com objetivos explicitamente econômicos.
As empresas que empreenderam estas ações imperialistas utilizavam o argumento de que estavam pondo em prática o ideal do mundo civilizado: educar os bárbaros e os brutos de forma burocrática e cruel e isso se evidenciava como uma fratura exposta a face horrível e violenta do processo colonial. “Quem vem pra cá não devia ter entranhas”. (CONRAD,2010, p. 40)
Apesar de o livro se basear em grande parte no comércio do marfim, a ferrovia está muito presente na essência de sua obra. Para estabelecer o comércio de marfim no coração da selva africana tornou-se necessário a construção de uma malha ferroviária para escoar a sua extração. O próprio Joseph Conrad esteve presente a uma expedição ao coração da África Central, descendo pelo rio Congo, em 1890 a bordo do vapor francês Ville de Maceio, a serviço da Societé Anonyme Belge pour le Commerce du Haut-Congo, que levava trilhos para a construção da primeira estrada de ferro da África Central. E esta privilegiada visão de Conrad sobre o tema origina-se do fato de sua vasta experiência como imigrante e homem do mar como está descrito nos dados biográficos contidos na edição de O coração das trevas, publicada pela Editora Abril em 2010 na coleção Clássicos da mesma editora.
No início do livro logo na chegada da embarcação de Marlow o autor numa de suas primeiras impressões sobre o lugar onde tinha acabado de chegar descreve a visão que tinha de uma grande quantidade de nativos surgindo através das sombras já como escravos dos conquistadores/colonizadores.
No texto complementar redigido por Heitor Ferraz e constante na edição de O coração das trevas publicado pela Editora Abril em 2010 são citadas as frases de Luíz Felipe de Alencastro à respeito de suas considerações sobre O coração das trevas e sua recorrente temática segundo Alencastro (2010, apud FERRAZ, 2010 p. 147 - 148) : “Em Coração das trevas, olhando os negros acorrentados e forçados a trabalhar na ferrovia, Marlow resume o processo histórico que fundamentou, durante mais de três séculos, o tráfico negreiro europeu na foz do Congo e alhures na África.”
Isto aponta para o fato da desumanização de todo o processo de exploração colonial, o doloroso contexto em que se desenvolveu paralelo
a toda sua complexidade e ambiguidade que culminava na horrível visão de seu desfecho e isso resume a percepção diante do mundo após o despertar de todo o sonho iluminista da razão.
Conforme Joseph Conrad:
Desembarcar num pântano, marchar pelos bosques e, nalgum posto do interior, sentir que a barbárie, a completa barbárie, se fechou ao seu redor - toda aquela vida misteriosa que pulula do deserto que pulula na floresta, nas selvas, no coração de homens selvagens. E não existe nenhuma iniciação nesses mistérios. Ele tem de viver no meio do incompreensível, que é também odioso. E existe também o fascínio que começa a se exercer sobre ele. O fascínio do mal – vocês sabem, imaginem o arrependimento crescente, o anseio de fugir, a aversão impotente, a rendição, o ódio. Além do cercado, a floresta se erguia espectral sob o luar, e por entre a agitação confusa, por entre os sons tênues daquele pátio lastimável silêncio da terra penetrava no próprio coração da gente – seu mistério, sua grandeza, a espantosa realidade de sua vida oculta. O tranquilo canal conduzindo aos confins da Terra fluía sombrio sob um céu carregado – parecia nos levar ao coração das trevas. (CONRAD, 2010, p.14 p.46-47 p.134)
A narrativa de Hardman aponta fatores que evidenciam o isolamento e a desilusão com a modernidade originada pela construção da ferrovia.
Ao contrário, todos sabemos a barra de viver sem chão, o peso de cada minuto nestes trópicos, a desolação que é ver a cidade virada pelo avesso; todos sentimos num dia qualquer a vertigem do vazio, num cenário em que já não cabem mais maravilhas mecânicas. (HARDMAN,2005, p.24).
Através deste cenário e dos sentimentos causados pelas dificuldades encontradas, o autor discorre sobre as características de seu livro e a forma como trabalhou o tema da ferrovia Madeira – Mamoré “A incursão que ensaiei tem muito a ver com estas aparições. A partir daí, o trânsito do reino das fantasmagorias para o mundo dos espetáculos foi decorrência inevitável, e quase imediata” (HARDMAN,2005, p.25).
Hardman também faz uma analogia entre os primórdios do cinema e a ferrovia onde através de um filme pode se perceber a figura do trem como o preenchedor do vazio representado, assim como o veículo pelo qual o mundo ganhava movimento.
Sobre esta ponte entre caminhos de ferro e olhar de cinematográfo , basta lembrar, aqui, que aquele invento fantástico dos irmãos Lumière exibia, entre suas primeiras películas, L'arrivée d'un train (1985),onde se via num plano geral, a estação vazia. Um ferroviário uniformizado passando para, na sequência aparecer, desde o horizonte, um ponto negro aumentando rapidamente, até a locomotiva preencher a tela inteira, como que se precipitando sobre os espectadores. Em seguida o comboio pára junto ao cais; abrem-se as portas; passageiros sobem ou descem. (HARDMAN,2005, p. 25)
O cinema está ligado intimamente com o imaginário pois o cinema estimula a percepção do telespectador que mesmo não estando materialmente dentro da situação do enredo que lhe é transposto tem a sua disposição uma representação de vários significados trazendo assim um surgimento maciço no campo perceptivo contrapondo-se simultaneamente a artificialidade pois o espectador mesmo mergulhado no contexto do filme materialmente não se faz presente no mesmo.
A imagem cinematográfica é um campo muito favorável ao imaginário, razão pela qual sua teoria foi privilegiada. Mas, por direito, toda imagem socialmente difundida em um dispositivo específico resulta da mesma abordagem, já que por definição, a imagem representativa atua no duplo registro (na “dupla realidade”) de uma presença e de uma ausência. Toda imagem encontra o imaginário, provocando redes identificadoras e acionando a identificação do espectador consigo mesmo como espectador que olha. Mas é claro que as identificações secundárias são muito diferentes de um caso para outro(são muito menos numerosas e sem dúvida bem menos fortes diante de um quadro, e até de uma fotografia, do que diante de um filme).(AUMONT,1993,p.120)
Na narrativa o charme e a maneira peculiar com qual as estações ferroviárias despertam o imaginário das pessoas são descritos assim: “Daí também, muito da intransparência do século XIX, até mesmo em suas estruturas despojadas, à base de ferro, vidro e tijolo aparente” (HARDMAN,2005, p. 26).A ferrovia devido ao seu largo uso e popularidade tornavam o trem – de – ferro um artifício subversivo devido à sua grande capacidade de conectar pessoas a lugares, e do anonimato que proporciona as pessoas ao se locomoverem sobre os trilhos.
Mas pode ser que o trem – fantasma trafegue na contramão da história. Trótski, em 1907, após a revolução operária abortada de 1905, após prisão e fuga forçada, clandestino, viajando por tundras e taigas, como um trenó, até a região de minas dos Urais, tenta um retorno à São Petersburgo como passageiro anônimo num trem. Nesta passagem, a locomotiva surge não como metáfora do progresso da história, mas, ao contrário, como signo de seus desvios ocultos, quando a perspectiva revolucionária se recolhe e regressa às origens em bitola estreita. (HARDMAN,2005, p.30 - 31)
Ao relatar o uso da ferrovia pelo cinema pode-se mencionar, além do filme dos irmãos Lumière citado anteriormente, dentre vários, o clássico filme “Butch & Cassidy” que conta a história supostamente verídica de dois ladrões que após verem-se cercados pela polícia e pela lei norte-americana embarcam em um trem rumo a Bolívia e lá ao praticarem mais roubos morrem trocando tiros com as autoridades locais.
As alterações causadas pelo imaginário das locomotivas e trens – de – ferro sobre a percepção espaço-temporal dos que viajavam de trem de acordo com o relato do reverendo Edward Stanley ao observar em 15 de setembro de 1830 a viagem inaugural da ferrovia no trecho Liverpool/Manchester foram descritas da seguinte maneira: “De início, nosso observador fala de dentro do trem; aí já ressalta o poder transfigurador da locomotiva, os efeitos da velocidade sobre a percepção espaço-temporal, o deslocamento rápido propiciado pela força do mecanismo, alterando a visão da paisagem e dos passantes”. (HARDMAN,2005, p. 34 - 35)
Conforme Hardman o relato do reverendo Stanley que, demonstrando espanto, nos conta a impressão que a locomotiva e o trem causava, como se eles engolissem tudo a sua frente ao executar o seu percurso originando na visão do mesmo a ideia de que a locomotiva representasse uma fantasmagoria fato este que pode originar uma analogia com o que ela representava para a modernidade que se anunciava naquele momento histórico:
A princípio apenas se pode discernir a imagem, porém, a medida que avança desde o ponto focal, parece crescer mais além de todo limite. Desta maneira uma locomotiva, à medida que se acerca, parece aumentar de tamanho rapidamente, como se quisesse preencher por completo todo o espaço compreendido entre as valetas e absorvê-lo todo em seu torvelinho. (HARDMAN,2005, p. 35)
O choque inicial causado pelos primeiros contatos das comunidades contemporâneas com a ferrovia gerou visões apocalípticas e as consequências que a modernidade acarretou a psique humana proporciona uma experiência psicodélica essa experiência é descrita por Francisco Foot-Hardman desta maneira:
Espíritos malignos querem enganar os homens por meio de ilusões óticas, de calidoscópios urbanos, de malabarismos sem fim no terreno dos fenômenos, das aparências. A paisagem moderna surge, nessas visões, repleta de fundos falsos, jogos de espelhos e luzes diabólicas. (HARDMAN,2005, p. 45)
Também na narrativa de Joseph Conrad em O coração das trevas encontra-se um relato referente a este citado anteriormente e que traz a questão de visões e alterações no campo perceptivo que se pronunciam devido à excessiva exposição de indivíduos a ambientes selvagens, portanto, inexplorados onde a mente humana se vê a todo momento estimulada em encontrar o fantástico, o sobrenatural principalmente numa floresta selvagem onde a todo momento se está sujeito as mais
variadas situações.
Um clamor de lamentações modulado por dissonâncias selvagens encheu nossos ouvidos. Ele culminou numa sucessão de gritos quase insuportável que cessou logo depois, deixando-nos paralisados numa variedade de posturas tolas e na escuta atenta do silêncio quase tão aterrador e excessivo. O resto do mundo não existia, no que dizia respeito a nossos olhos e ouvidos. Simplesmente não existia. Sumido, desaparecido; varrido sem deixar um sussurro ou uma sombra para trás. O farfalhar de árvores agitadas pelo vento, o murmúrio das multidões, a tênue reverberação de palavras incompreensíveis gritadas de longe, o sussurro de uma voz falando de além do limiar de uma escuridão eterna. (CONRAD,2010, p.71 p.131)
A ferrovia impactou todos os campos sociais, e as artes obviamente retrataram a Ferrovia através de várias obras em suas várias formas e linguagem principalmente através da pintura oitocentista.
A representação do espaço e a do tempo na imagem são consideravelmemte determinadas pelo fato de que, na maioria das vezes, esta representa um acontecimento também situado no espaço e no tempo. A imagem representativa portanto costuma ser uma imagem narrativa, mesmo que o acontecimento contado seja de pouca amplitude.(AUMONT,1993 p.244)
De acordo com Hardman:
Idêntico movimento de elaboração artística poderá ser vislumbrado no plano da pintura oitocentista. Por um momento, podem-se tomar como exemplos, simultaneamente, três obras de pintores à primeira vista sem maiores afinidades estéticas: Rain, Steam and Speed, de William Turner (1844); Die Berlin – Postdamer Bahn [A ferrovia Berlim – Postdam], de Adolph Menzel (1847); e a série Gare Saint – Lazare, de Claude Monet (1877). Em todas elas, a mesma obsessão ferroviária. Mais do que isso, pois não se trata só de mera coincidência temática resultante da “febre dos trilhos” que tomava conta da Europa em busca, quem sabe de seus novos paisagistas. O que sobressai, para além deste parentesco, é o modo similar de entrada em cena dos caminhos de ferro nas três composições: como trens – fantasmas cujo aparecimento fugaz já significa também a próxima desaparição, cuja luz estranha já carrega a inevitabilidade melancólica da sombra; ferrovia ao mesmo tempo exposta e fugidia, oculta sob a película fina de chuva, vapor e velocidade no caso de Turner; fumaça, cores brumosas de subúrbio e a própria sinuosidade do percurso, na visão de Menzel; vitrais da estação de trem e mágica luz da manhã, no pontilhado tão marcadamente impressionista de Monet. (HARDMAN,2005, p.47-48)
	Assim como no trecho que compreendia o trajeto da ferrovia Madeira – Mamoré, as regiões interioranas do Brasil os sertões do nordeste e até mesmo a região do interior goiano sofreram influências em todos os aspectos sociais.
Em Goiás pode se mencionar a ação governamental no sentido de explorar a mão de obra de expatriados da Segunda Guerra Mundial concedendo-lhes assim um local para morar. Sendo assim, 61 famílias e 15 pessoas que vieram sem vínculos familiares, somando ao todo 250 indivíduos formaram o que ficou conhecida como “Colônia dos Poloneses” mesmo que em seu meio não houvesse apenas os nascidos na Polônia.
Formada inicialmente por uma colônia agropecuária, essa colônia abrangia os municípios goianos de Itaberaí, Itauçu e Goiás (antiga capital do estado).
A tentativa de colonização dos deslocados de guerra poloneses tornou-se um episódio digno de reconstrução histórica, pelos equívocos que revelou na formação da cooperativa e desorganização do serviço de imigração. Esta não preencheu os seus fins. A colonização malogrou inteiramente. Os cooperados se dispersaram, após anos de sofrimento, sem ter havido a desejada fixação na projetada colônia. A cooperativa fixou-se no papel durante dez anos, porém não na realidade. (MAGALINSKI, 1980,p.16)
Aparentemente o grande objetivo do governo federal, e principalmente do estadual, era o de formar uma cooperativa para que a chegada dos imigrantes encontrasse uma alternativa para a ocupação demográfica do estado de Goiás, garantindo assim o seu sustento, mas objetivando prioritariamente o lucro advindo do desenvolvimento agrícola que eles potencialmente trariam através de técnicas inovadoras que supostamente seriam trazidas por eles.
Esses imigrantes vieram para o Brasil impulsionados por um recomeço e uma superação da situação desesperadora em que se encontravam em seus países de origem, motivados pela propaganda e pela imagem que eles criaram do Brasil naquele momento.
Esses imigrantes, ao chegarem no Brasil, traziam dentro de si o entusiasmo e a vontade de começar logo vida nova nas terras que lhes haviam sido prometidas. Ainda na Alemanha ouviram pelo rádio programas em que se fazia propaganda no Brasil. Diziam nesses programas que o Brasil desejava receber muitas famílias de imigrantes lavradores, aos quais dariam terra, sementes, financiamento para casa própria e um certo número de animais: um cavalo, duas vacas, porcos, etc. (MAGALINSKI,1980,p.88)
Desembarcando no litoral do Sergipe e deslocados para a cidade de Ilha das Flores queriam com urgência irem para as localidades a que se destinavam, preferindo naturalmente a região sul do país por afinidades naturais com o clima da região e também pelo fato de lá possuírem parentes e maior número de pessoas com descendência européia.
Mas suas expectativas não se concretizaram e com o passar do tempo além de permanecerem no mesmo local, assistiram a chegada de mais navios abarrotados de imigrantes, piorando assim a situação dos que aqui já se encontravam.
Após dois meses de espera houve uma resposta das autoridades notificando-lhes que não havia condução para São Paulo ou Paraná. Só havendo transporte para Goiás e, é nesse momento que a ferrovia se apresenta desempenhando seu papel não só como transporte mas de integração unindo pessoas de diferentes lugares e concepções a novas perspectivas levando-as a viverem novas experiências no campo das relações humanas, e no caso desta colônia de poloneses este fato foi assim narrado por Jan Magalinski:
Só haveria transporte para Goiás. Ainda nesse tempo esteve na Ilha das Flores o Sr.Jesco Wolf Putkamer Filho, que falou do interesse do Estado de Goiás pelos imigrantes, passou filmes e projetou slides sobre Goiás. Falou também de uma cooperativa que o governador do Estado queria fazer. Fizeram então uma reunião com os interessados. A gente estava mais interessado em sair da Ilha das Flores. Fomos para a reunião. Lá eles escolheram umas pessoas para decidir em qual terra iam fazer a Cooperativa. Eram umas quatro pessoas escolhidas. Estas foram primeiro. Nós fomos depois. Saímos do Rio de trem, lotamos dois vagões. Dormimos em São Paulo, onde trocamos de trem. Trocamos outra vez em Araguari. E descemos em Leopoldo de Bulhões. Naquele tempo não tinha estação de estrada de ferro em Goiânia. Viemos de caminhão de Leopoldo de Bulhões até Goiânia, onde fomos para a Penitenciária, onde era a hospedaria dos imigrantes, que a gente chamava de Kalabuszka. (MAGALINSKI,1980,p.90)
Dentre outros fatos ocorridos envolvendo a ferrovia, tais como a vinda desses poloneses para Goiás, origina-se uma mistura e integração de diferentes culturas em diferentes locais e expressas de diferentes maneiras fazendo com que as manifestações artísticas regionais pronunciassem sua maior forma de expressão através de diversas facetas e com o advento da ferrovia estas manifestações se dinamizaram ganhando uma personalidade própria e contornos até então nunca vistos como diria então Aroldo Márcio Ferreira:
As ferrovias em seu complexo, foram tema para a pintura, fotografia, literatura e cinema, entre as artes, e, se assim o foi, infere-se sua importância no imaginário das pessoas. Desde seu início por mais de duas décadas, a ferrovia constituiu-se em fator fundamental para a cidade em razão de ser sua sustentação econômica e o centro de todas as atividades humanas locais. Era uma grande porta de comunicação entre as populações das cidades situadas ao longo
dos trilhos e para lugares muito além do que se sabia. Por essa porta entravam e saíam o concreto e o imaginário. A estação centralizava a vida social, política, comercial e até mesmo, a vida afetiva dos moradores. (FERREIRA,2011, p. 20)
A estação ferroviária não representava somente a fuga da monotonia, mas também era o local de se entrar em contato com o mundo exterior, com o novo e isto tinha um alto grau de relevância principalmente para os jovens que vivenciavam aquela época.
Não é dado a todo mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença das massas populares é uma arte. E somente ela pode fazer, às expensas do gênero humano, uma festa de vitalidade, a quem uma fada insuflou em seu berço o gosto da fantasia e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão por viagens. (BAUDELAIRE,1937, pgs.17-18)
Mas, além de centros de lazer e ponto de encontro de casais apaixonados os terminais de passageiros eram palco de fervorosos debates políticos.
Um fato à cerca de disputas políticas, dentre os milhares que ocorreram tendo como palco a ferrovia ou estações ferroviárias, ocorreu no município de Catalão no estado de Goiás. Sobre este tema história/memória e ficção se imbricam na construção da representação sobre o período.
Conforme Ivan Santana em seu livro Herança de Sangue corria o ano de 1913 e a cidade contava com uma população de 25 mil habitantes e muitos imigrantes continuavam chegando à cidade. Neste clima de desenvolvimento a cidade também presenciava uma ferrenha disputa política entre famílias que disputavam a liderança política da região. Isaac da Cunha sucedendo seu pai Elyseu exercia, naquele período, a liderança política no município.
Mesmo que em minoria a oposição a Isaac fazia-se presente e era representada pelas famílias dos Netto e dos Campos, herdeiros políticos dos Paranhos, popularmente chamados de “papo – roxo”. Por outro lado os Cunha, os Ayres, os Victor Rodrigues, os Paiva e os Gomes Pires tinham o apelido de “papo – amarelo”. Estes dois apelidos eram provenientes das cores das carabinas usadas na época sendo cada uma de uma cor.
Em 24 de fevereiro de 1913, o trem chegou à cidade. Inauguraram a estação com festa e piquenique. Depois de longa ausência, Ricardo Paranhos, filho do senador assassinado, apareceu entre os passageiros da composição inaugural. Sendo fornecedor de dormentes para a estrada de ferro, além de orador de grande prestígio, foi convocado pela direção da ferrovia para discursar na cerimônia. Mas, mal ele desceu do trem , Isaac da Cunha aproximou-se e lhe disse ao ouvido:- Bico calado, senão morre. Paranhos não teve outro remédio senão desistir do discurso, cuidadosamente preparado. Pôs o rabo entre as pernas e escondeu-se na multidão em festa. (SANT'ANNA,2012, p.90)
A chegada do trem era o evento mais esperado do dia nas cidades servidas pela linha. “Os núcleos urbanos que floresceram em torno das estações do trem pareciam ilhas de prosperidade encravadas em um mundo agrário tradicional.”(BORGES,2000,p.41).
As ideias trazidas de grandes centros urbanos e a possibilidade de efetivamente entrar em contato com tais correntes ideológicas trouxeram uma grande transformação nas comunidades sertanejas e a ferrovia foi um poderoso agente transmissor destas mudanças nos mais variados níveis sociais organizados na região.
O desenvolvimento da cultura moderna é caracterizado pela preponderância do que se poderia chamar de o "espírito objetivo" sobre o "espírito subjetivo". Isso equivale a dizer que, tanto na linguagem como na lei, na técnica de produção como na arte, na ciência como nos objetos do ambiente doméstico, está incorporada uma soma de espírito. o indivíduo, em seu desenvolvimento intelectual, segue o crescimento intelectual, segue o crescimento desse espírito muito imperfeitamente e a uma distância sempre crescente.(SIMMEL,1973, p.23)
Tudo isso fazia com que a ferrovia adquirisse uma enorme dimensão no imaginário popular e no caso de uma inovação, como constituía o advento da ferrovia à época, servia para impulsionar a criatividade ao buscar expressões e linguagens com o intuito de interpretar tudo aquilo que a ferrovia trazia de novo e isso fazia com que o que era imaginado fosse muito além da forma real na qual se apresentava a construção da ferrovia e isso transparecia nessas manifestações artísticas.
Esse complexo e avassalador processo que se desencadeava e que era caracterizado por uma grande transição vivida em toda a sociedade durante esse período e que afetava não só as pequenas cidades mas, principalmente as proeminentes metrópoles é assim definida por Raymond Williams na “Política do modernismo”:
Não são os temas gerais de resposta à cidade e à sua modernidade que compõem algo que possa ser propriamente chamado de modernismo. Mais precisamente, o modernismo é definido pelo local novo e específico dos artistas e dos intelectuais desse movimento dentro do ambiente cultural em transformação da metrópole. Por uma variedade de razões sociais e históricas, a metrópole da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX moveu-se rumo a uma dimensão cultural bastante nova. Ela era agora muito mais do que a cidade imensa, ou mesmo, muito mais do que a capital de uma nação importante. A metrópole era o lugar no qual novas relações sociais, econômicas e culturais começavam a ser formadas, relações que iam além tanto da cidade como da nação em seus sentidos herdados: uma nova fase histórica que seria, de fato, estendida, na segunda metade do século XX, a todo mundo, ao menos potencialmente. (WILLIAMS,2011,p.20)
	Ainda nesta perspectiva Aumont observa que:
O contexto simbólico revela-se também necessariamente social, já que nem os símbolos nem a esfera do simbólico em geral existem no abstrato, mas são determinados pelos caracteres materiais das formações sociais que os engendram. (AUMONT,1993,p.192)
A ferrovia atuava, dentre várias outras formas, no campo das relações pessoais aproximando assim os indivíduos fazendo com que a troca de experiências ampliasse o campo do saber propiciando assim a oportunidade de um grande crescimento no campo intelectual e artístico ou como diria Barsanufo Gomides Borges:
Esse crescimento extraordinário das estradas de ferro intensificou a propagação de ideias e culturas, fecundando as civilizações umas pelas outras. Os trilhos foram um poderoso instrumento de unidade econômica e social, linguística e cultural , bem como de propagação de ideias ,crenças , sentimentos e costumes.(BORGES,2011, p. 28)
De acordo com o livro de Hardman os aspectos ao mesmo tempo nítidos e impenetráveis da modernidade são ilustrados de maneira magistral no filme E la nave va, de Fellini. Numa das cenas é retratado um restaurante na fantasmática embarcação onde é encenado o filme, esta cena recria uma atmosfera submarina onde seres do Antigo Regime banqueteiam entre iguarias e frivolidades enquanto do lado de fora do restaurante vendo pelos vidros das janelas, vários marginalizados da sociedade, entre eles ciganos e sérvios assistem fascinados e famintos ao espetáculo vivido no restaurante.
O autor aborda o fato do vidro ser uma forma substancialmente mais cínica de se expor o luxo e a opulência, pois o vidro deixa visível o que muros, gonzos de ferro e outras formas de limitação ocultam, não permitindo que seres que não gozam dos mesmos privilégios contemplem o luxo dos que dele se deleitam.
Esta forma de representação segundo Hardman significa também uma forma radical de separação vista também de maneira idêntica na obra de Proust onde uma cena similar em um restaurante é vista por operários, pescadores e as famílias dos pequenos burgueses através de uma parede de vidro que observam com um misto de admiração e revolta uma cena tão exótica e diferente da realidade vivida por eles e que antevia uma grande questão social ao se indagar até quando o vidro protegeria a elite dos excluídos que avidamente ansiavam o momento de quebrar o vidro e de se apoderarem de todo o luxo que presenciavam.
Voltando
a ferrovia até mesmo eu vivenciei através da rotina de meu pai ferroviário por quase trinta anos e também pela minha curta passagem na ferrovia desempenhando a função de auxiliar de maquinista, mas que me proporcionou a oportunidade de fazer várias viagens e experimentar as circunstâncias peculiares que cercam os que estão envolvidos nas práticas ferroviárias.
Rupturas na relação tempo-espaço causadas pela adaptação à ferrovia e à rotina vivida pelos ferroviários fazem com que ao tentarem exprimir o que a ferrovia representava para eles e sua respectiva influência sobre o imaginário popular, sua dimensão no inconsciente coletivo da sociedade após a sua inserção sejam assim descritas na obra de Hardman:
O trem já partiu. Sua história passada contém elos perdidos das culturas não oficiais da modernidade. Sua presença desvela um universo singular de representações. Com as ferrovias, muito claramente, a técnica se desgarra das formas que a produziram e assume feição sobrenatural. A paisagem dos caminhos de ferro torna-se assim remota, cujo duplo sentido dá conta das rupturas operadas simultaneamente nas relações com o tempo e com o espaço, podendo-se aí configurar tanto como localidade perdida quanto época irresgatável. A ordem cronológica quebra-se: o tempo da locomotiva – aquela que já fora celebrada como deusa do progresso – permaneceu parado. As coordenadas geográficas esboroam-se: o trem extraviou-se em algum ramal solitário, em alguma estação sem nome. Por isso, velhos ferroviários guardam esse idêntico ar de mistério. Seus relatos possuem um toque épico indisfarçável. Sua memória não tem começo nem fim. (HARDMAN,2005, p.51 - 52)
Todo este deslocamento espaço-temporal é assim narrado por Joseph Conrad em O Coração das Trevas:
Estava sob um feitiço e privado para sempre de tudo que havia conhecido algum dia, em algum lugar – longe, em outra existência, talvez. Havia momentos em que o passado voltava à lembrança como acontece, às vezes, quando você dispõe de um momento para se ocupar de si, mas ele chegava na forma de um sonho agitado e barulhento, lembrado com espanto entre as realidades opressivas deste mundo estranho de plantas, água e silêncio. E essa placidez de vida não tinha a menor semelhança com uma paz. Era a placidez de uma energia impiedosa pairando sobre um desígnio inescrutável. (CONRAD,2010, p. 61)
Francisco Foot-Hardman descreve o cenário de desolação, abandono e isolamento provocado pelas máquinas na sela, pela modernidade que desterra trabalhadores:
Núcleos de habitantes mais isolados terão boas chances de surpreender o espetáculo de sua rápida passagem. Trilhos nos sertões. Comboios vazios. Cidades mortas, estaçõezinhas abandonadas. Cemitérios de trens. Máquinas nas selvas, trabalhadores desterrados de todo o planeta em novas babéis. Fantasmagorias, dispersão. (HARDMAN,2005, p 51 - 52)
O estranhamento causado pela modernidade nos olhares dos conservadores e também dos românticos representadas no livro de Hardman pela ótica do passageiro de um trem na cidade do Rio de Janeiro em 1901 é descrita desta maneira: “E os bicos de gás iluminavam de fora, intermitentemente o vagão, como que fantasmagórica visita, dando repentina luz a todos os recantos ou deixando-o de súbito em completa escuridão...” (HARDMAN,2005, p.111)
A percepção infantil e a maneira como ele se representa através do imaginário das crianças sobre a ferrovia é assim descrita:
Imagem do Thesouro da juventude: sobre um fundo azulado, o céu coberto de estrelas, planetas, o Sol em destaque com seus feixes de luz atravessando a noite cósmica e as nuvens; abaixo a Terra, entre campos, povoados esparsos, sua superfície sendo suficientemente ampla para se ver a curvatura desenhando-se no horizonte; então, vindo de não sei onde, dez trens a vapor assomam nessa gravura imprimindo-lhe definitivamente a magia de uma época, cada um com seu comboio de cinco vagões, o carro conduzindo carvão e sem dúvida um foguista desconhecido, as locomotivas clássicas tipo maria-fumaça, com maquinistas por certo indômitos e tenazes, dez linhas férreas, duas pontes e só depois as alturas, as alturas infinitas, os trilhos desaparecendo no espaço celeste partindo de estações sem nome com destino aos planetas do sistema solar.(HARDMAN,2005, p. 117)
	E ainda:
Crianças brincam de subir e descer da locomotiva que fica no pátio do casarão. ‘Agora faz de conta que o trem está acelerando’, diz um dos meninos. ‘Piuí,piuí!',grita para o alto, como se a máquina estivesse, por um milagre, apitando. Nos sonhos de uma criança, o trem se movimenta. (BRISO,2014, p.86)
Hardman escreve em linhas gerais sua visão sobre os aspectos que caracterizaram a construção da ferrovia Madeira – Mamoré:
Ensaiaremos nas linhas que seguem, uma primeira incursão até lá. Pelas palavras dos autores que nos conduzem, é possível perceber, nesse trânsito sutil entre natureza e cultura, entre geografia e história, entre caos selvagem e ordem nacional, o fascínio que advém do espanto, os atrativos secretos da escuridão e do medo, a força primitiva de lugares inomináveis, os sentimentos solitários, ante a infinitude ‘natural’, a surpresa permanente como nova rotina: reaparecem pois nestas visões da luta do homem contra a selva, aspectos da moderna apreensão do sublime. É como se vapor Metropolis trouxesse essa maneira de sentir da industrializada Filadélfia para a perdida Santo Antônio do Madeira; ocorre porém, que uma ameaça ronda toda essas vertigens: o prazer do sublime nasce sempre do medo. A sensação do perigo iminente tornou-se muito forte sobre os impactos da modernidade: entre um porto e outro, entre um extremo da civilização e outro, homens e projetos podem simplesmente naufragar. Sinais prematuros do fracasso, tragédias que antecipam o fim da história: ruínas. Desalento de náufragos, bússolas quebradas, restos de trilhos, materiais em desordem, envelhecimento precoce: está começando a despontar, num ponto obscuro da selva amazônica, uma ferrovia – fantasma. Só de olhar para ela incomoda: pois já carrega em si as marcas da violência contra os que desterrou; das ilusões dos que nela creram; da paisagem desolada à sua volta.(HARDMAN, 2005, p.119-120)
A perspectiva material e realista das consequências, inclusive sentimentais causadas por toda a transformações ocasionadas pela construção das ferrovias são assim descritos pelo escritor Tito Batini:
Sim! e agora, que fazer? Sobre a confusão de pedaços de trilhos misturados, velhos, velhos enferrujando-se, atirados, imprestáveis para as paralelas definidas do leito da linha, Romulo Felipi deixa cair a solidão perdida e triste dos seus olhos cansados. Diferentes e vagos. Pedaços de trilhos. Sem o orgulho descansado dos trilhos inteiros, feitos para serem, mesmo, trilhos de leito de linha, servindo para um fim determinado e certo. Pedaços de trilhos. Sobras de trilhos inteiros, sobras misturadas, apontando para direções incertas, como homens perdidos na vida, sem rumo, sem norte...Pontas, pedaços, restos de trilhos...(BATINI,1941, p.393)
Todos esses fatores geraram uma transformação muito peculiar na memória das pessoas que viveram em toda a sua intensidade o processo de construção, o afastamento e a estranheza que todo este processo acarretava aos que o viveram, constuindo assim uma grande transformação nestas pessoas na sua maneira de entender e retratar a realidade ali vivenciada carregando assim estas transformações por toda a sua existência e a transmitindo para os que com eles convivem perpetuando-se e modificando-se com o passar dos tempos. “A memória era como as outras memórias de mortos que se acumulavam na vida de todo homem – uma vaga impressão no cérebro das sombras em sua rápida e derradeira passagem.” (CONRAD, 2010, p.127)
E isto se reflete de maneira marcante na forma como estes indivíduos travam suas relações com o meio ambiente em que vivem e principalmente com outras pessoas que o acompanham durante esta jornada. Estes aspectos e as circunstâncias que o caracterizaram são assim descritos
por Joseph Conrad em seu livro:
Além de unir nossos corações nos longos períodos de separação, ele tinha o poder de nos deixar tolerantes às invencionices – e mesmo às convicções – uns dos outros. Somente a obscuridade do poente pairando sobre as paragens superiores ia ficando mais e mais sombria a cada minuto, como que irritada com a aproximação do sol. Na imutabilidade de seu ambiente, as plagas estrangeiras, os rostos estrangeiros, a diversidade infinitamente cambiante da vida escoam para o passado, toldados não por um sentimento de mistério, mas por uma ignorância levemente desdenhosa. Depois de suas horas de trabalho, uma caminhada casual ou uma bebedeira casual em terra lhe basta para desvendar o segredo de todo um continente, e, em geral, o segredo lhe parece inútil. (CONRAD,2010, p.9-10 p.12)
O isolamento e a desolação causada pela distância acompanhada pelas incertezas e a densa atmosfera presente na cidade de Santo Antônio situada às margens do rio Madeira e que fazia parte do itinerário da Ferrovia Madeira – Mamoré é assim descrito por Francisco Foot-Hardman:
Remota no tempo e no espaço, Santo Antônio é desenhada como uma obra aberta dos deuses, que se oferece incompleta aos sentidos do viajante. Este, ao assumir os riscos do desembarque, só o faz transportando o medo até uma região sublime, incomum mas afinal acolhedora do espírito aventureiro, com suas ‘poucas luzes e poucas vozes na escura e interminável vastidão’. Ir até lá é com efeito penetrar em outro mundo, onde as fronteiras entre finito e infinito, ordinário e insólito, claro e escuro, pequeno e grande, habitação e deserto, conhecido e desconhecido, homens e vultos, objetos e fantasmagorias aparecem tênues e perigosamente ambíguas. (HARDMAN,2005, p.128)
Também na narrativa de Joseph Conrad encontram-se trechos em que ele escreve linhas relatando a alienação e principalmente a solidão vivenciada em situações surgidas da necessidade de se lançar em empreendimentos que desafiam não só o aspecto ambiental e seu ecossistema, mas principalmente a natureza humana e sua complexa relação consigo mesma e o ambiente em que vive refletida em grande parte por fatores psicológicos do indivíduo em contato com tais situações.
Trilhas, trilhas para todos os lados, uma rede de trilhas de terra batida se espalhando pela região deserta, cruzando matos altos, matos crestados, subindo e descendo ravinas frias, subindo e descendo colinas rochosas escaldantes, e uma solidão, uma solidão, ninguém nem um casebre. De vez em quando um trabalhador morto no trabalho, deitado no mato crescido à beira do caminho com uma cabaça de água vazia e seu comprido bastão ao lado. Um silêncio imponente em volta e no alto. Contudo, é preciso olhar em volta de vez em quando, e aí eu via aquele posto, aqueles homens perambulando sem rumo na claridade do pátio. Muitas vezes eu me perguntei o significado daquilo tudo. Eles andavam de um lado para o outro com suas varas compridas absurdas nas mãos como um grupo de peregrinos sem fé enfeitiçados no interior de um cercado. E do lado de fora, a floresta silenciosa rodeando aquela mancha desmatada sobre o terreno me parecia alguma coisa grandiosa e invencível, como o mal ou a verdade, aguardando com paciência o sumiço daquela invasão grotesca. A grande muralha de vegetação, uma massa exuberante e emaranhada de troncos, galhos, folhas, brotos, festões imóveis sobre o luar, parecia uma invasão luxuriante de vida silenciosa, um vagalhão ondulante de plantas, amontoadas, encapeladas, prontas para cair sobre o remanso para varrer de cada homenzinho dali a sua desprezível existência. E ela não se movia. (CONRAD,2010, p.36 p.41-42 p.53)
O que representava a visão da locomotiva diante de todos os impactos causados nas pessoas que viviam naquela região e nas que para lá se foram por causa da construção da ferrovia, junto as causas e justificativas encontradas pela indústria a realizar tais projetos aqui representado pelo maquinismo, assim como a discrição visual e o seu impacto no meio natural causado pela construção da ferrovia e também a esperança gerada nas pessoas, pois a ferrovia era tida como a mudança que traria o progresso até então não visto naquela região é assim descrito por Hardman:
É como se a miragem do trem de ferro fosse das únicas capazes de aplacar a vertigem do vazio, a barbárie sendo apanhada nessa vertente como uma teoria e narração nascidas desse imenso deserto vasculhado por dentro, aparecendo antes de mais nada como ‘um contorno, o marco fantasmal da extensão, receptáculo inevitável do despotismo’. Parece que o século XIX, a princípio arredio ante este desfile caótico de coisas ignoradas, ia aos poucos nomeando-as, para dispô-las em seguida no vasto inventário dos artefatos industriais, incluindo-se nesse rol o espetáculo do maquinismo – locomotivas e telégrafos, em destaque –, capaz de reconduzir o repovoamento do mundo e as novas invasões civilizadas no deserto. (HARDMAN,2005, p.129)
Uma forma de imaginar como seria um concerto que se adequasse a construção da ferrovia e a contradição que ele representaria, pois seria ele apresentado aos seringueiros, aos índios ou alguns funcionários da construção da ferrovia, ou seja, também uma crítica à ostentação e pouco senso popular que representava a construção que seria um espetáculo para a elite e uma fantasmagoria para a população local:
É como se notas desgarradas de acordes clássicos ecoassem sob formas de reminiscências pela selva, à procura de uma harmonia quase impossível, mas estranhamente identificável num único ponto, mercê de um outro registro: o da obra incompleta, o de um paraíso difícil de reinventar. Técnica e cultura caminham assim fragmentariamente, ensaiando um espetáculo que se adia a cada passo, dadas as dificuldades de reunir, com perfeição, todos os seus ingredientes. Quem ouvirá Caruso? Os seringalistas de Manaus? Os índios amazônicos? Algum alto funcionário da Madeira – Mamoré, devidamente munido de um gramofone? Mas esses óbices só fazem aguçar a intrepidez de visionários e empreendedores como Fitzcarraldo. Não faz mal que o gelo se desfaça em poucos minutos: prefere continuar fabricando essas fantasias só pelo prazer da façanha, mesmo que se dissolvam rapidamente no rumor da selva. (HARDMAN,2005, p.131)
A conclusão de que os habitantes da região e os anônimos operários da ferrovia Madeira – Mamoré eram essencialmente atores em um espetáculo protagonizado em plena selva e que estavam tendo como plateia os idealizadores do projeto de construção da ferrovia Madeira – Mamoré aparece no seguinte trecho do livro de Hardman: “Como Fitzcarraldo, os heróis anônimos da ferrovia Madeira – Mamoré, de cuja história trágica passamos a tratar em seguida, poderiam igualmente exclamar, ante a razão perversa e vitoriosa: Sou o espetáculo na selva.” (HARDMAN,2005, p.132-133)
Ainda segundo Briso: "Às margens da estrada, pedaços de locomotivas – rodas, motores, bitolas. Nos anos 1970, quando a estrada de ferro foi desativada, não se sabia o que fazer com tanto material." (BRISO,2014, p.79)
É espantoso o fato de se realizar um empreendimento dessa magnitude abrangendo uma área de 366 quilômetros em uma das regiões mais inóspitas do planeta, e mais espantoso ainda é o fato dele ter sido rapidamente inutilizado. O grande motivo da construção da ferrovia Madeira – Mamoré era o escoamento da produção de borracha produzida na região amazônica, mas, devido ao atraso ocasionado pelos vários problemas enfrentados em sua construção, cerca de quarenta anos, após ser concluída em 1912, o ciclo da borracha na América do Sul já estava em declínio.
Fatores negativos resultantes de uma mal sucedida construção de uma ferrovia e suas péssimas consequências aparece nas seguintes linhas:" Desolação, ruína, abandono; na incrível dispersão de forças humanas reproduzida nessa guerra longínqua, cujo cenário principal são os trilhos recém-assentados de uma ferrovia, restaram registros impressos da tragédia" (HARDMAN,2005,p.169)
De acordo com a reportagem de Caio

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