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A Interação Professor/Aluno no Processo de Ensino e Aprendizagem César Coll E Isabel Solé A análise das relações que se estabelecem entre o professor e os alunos na aula conta uma dilatada história na qual se manifestam, freqüentemente de forma entrelaçada, uma ampla gama de interesses e intenções: caracterizar o "professor ideal", dar conta do clima sócio-emocional da classe, identificar estilos de ensino e suas repercussões sobre a aprendizagem, determinar os comportamentos do professor que definem um ensino eficaz, etc. Este estado de coisas é devido, sem dúvida, a numerosas causas, entre as quais se destaca a própria evolução da psicologia, da análise empírica do ensino e dos paradigmas teóricos e metodológicos que foram se sucedendo em ambos os campos desde princípios do século. Parece, pois, aconselhável, para compreender como se propõe na atualidade a análise da interação educativa, começar por uma perspectiva histórica que nos permita identificar alguns dos momentos mais importantes dessa evolução. Como veremos, as propostas adotadas no estudo da interação educativa são, até certo ponto, tributárias das propostas utilizadas para estudar outros aspectos do ensino e da aprendizagem escolar, que já foram objeto de atenção em capítulos anteriores: o comportamento do professor (capítulo 14), os estilos de ensino (capítulo 15) e as representações mútuas entre o professor e os alunos (capítulo 16). Com o fim de evitar repetições desnecessárias, limitaremos a perspectiva histórica adotada, destacando unicamente algumas limitações metodológicas e conceptuais destas proposições e remetendo-nos, para uma explicação mais detalhada das mesmas, aos capítulos correspondentes. As tentativas de superar tais limitações, que deram lugar a uma verdadeira reconceituação da interação educativa durante os últimos dez anos ou quinze anos, são sintetizadas em uma segunda parte, na qual se reúnem as contribuições que têm sua origem em três perspectivas ou enfoques teóricos distintos: a psicologia cognitiva, e mais concretamente a teoria genética de Piaget, com sua insistência sobre a importância da atividade construtiva no processo de aprendizagem; a aproximação sócio-genética e sociocultural de Vygotsky e suas extensões recentes no âmbito da psicologia do desenvolvimento e da educação; e a aproximação sociolinguística ao estudo dos processos de ensino e aprendizagem. Entre outras consequências, esta reconceituação levou a situar o estudo da interação educativa no centro dos esforços para compreender a natureza dos processos de mudança produzidos pelas situações escolares de ensino e aprendizagem. O capítulo é encerrado com uma breve descrição dos desafios, dificuldades e expectativas que acompanham e subjazem a estes esforços. 1. O estudo da interação professor/aluno: perspectiva histórica Em uma primeira aproximação ao tema, salta aos olhos que o estudo da interação professor/aluno esteve presidido de forma esmagadoramente majoritária pelas tentativas de definir e medir a eficácia docente, fosse com fins de pesquisa, ou para incidir na formação dos professores. Pois bem, como destacou Medley (1979), o ensino eficaz foi assimilado a variáveis e aspectos diferentes na história da pesquisa educativa. Partindo de um momento inicial, em que estava relacionado diretamente com determinados traços ou características da personalidade dos docentes, até as posições atuais, que insistem na importância de tomar decisões razoáveis e adequadas e de levá-las à prática, atendendo às particularidades da situação de ensino, encontramos uma ampla gama de alternativas que deram lugar a um volume considerável de pesquisas e resultados empíricos (ver o capítulo 14 deste volume, para uma exposição detalhada dos estudos sobre eficácia docente). Os antecedentes da análise da interação remontam, pois, aos estudos que tratam de identificar as características pessoais dos professores, supostamente responsáveis por sua eficácia como docentes. Um exemplo típico desta aproximação é o conhecido trabalho de Ryans (1960), no qual são relacionadas determinadas atitudes e características de personalidade do professor (parcial/justo, estereotipado/original, desorganizado/metódico, etc.) com sua competência docente, entendida esta como o resultado dos objetivos educativos por parte dos alunos. Duas são as principais objeções que, partindo de diferentes frentes, foram formuladas para este tipo de trabalhos. Em primeiro lugar, as limitações derivadas do "modelo de caixa negra" de pesquisa que utilizam: são estabelecidas relações causais entre determinadas características do professor e a consecução de bons resultados por parte dos alunos, sem prestar-se atenção ao que ocorre realmente entre um e outros na situação educativa; quer dizer, ter em conta a interação que se estabelece entre eles. Em segundo lugar, sua adscrição a uma psicologia das atitudes, que postula a estabilidade dos traços dos professores, com independência do contexto em que desenvolvem sua atividade docente e que remete a uma concepção excessivamente estática e essencialista da personalidade. A isso caberia acrescentar ainda, como assinala Postic (1978), o exagerado peso dos juízos de valor que se escondem por trás da análise do ato didático e da aproximação normativa ao comportamento do professor, que impregna estes trabalhos. O desprestígio progressivo da psicologia das aptidões e a necessidade de separar os componentes de juízo do que realmente ocorre na sala de aula levam, em um segundo momento, a conceituar a eficácia docente como a possibilidade de utilizar métodos de ensino eficazes. A esta categoria pertencem as pesquisas que comparam os resultados da aprendizagem obtidos por grupos de alunos que foram instruídos mediante diferentes métodos. Entretanto, os problemas de ordem teórica e metodológica com que se deparam estes trabalhos - a multidimensionalidade dos métodos de ensino e as dificuldades de operacionalização; o controle das variáveis que incidem na aula; a definição e medida dos resultados de aprendizagem dos alunos; a constituição de grupos equivalentes; etc. — impedem não só a generalização dos resultados obtidos, mas inclusive a atribuição das diferenças que eventualmente possam ser observadas como efeito de distintos métodos de ensino. Não é, pois, estranho que suas contribuições para o estudo do que ocorre na aula tenham sido, na realidade, mais escassas. A constatação de que a dinâmica dos processos de ensino e de aprendizagem não é redutível a uma pura questão de método conduz à revalorização precisamente da vida das classes como objeto de pesquisa. Consequentemente, o interesse pelas características dos docentes e pelos métodos que utilizam desloca-se para o que ocorre efetivamente nas salas de aula. Este deslocamento, que cabe situar em fins da década de cinquenta, teve numerosas repercussões, sendo talvez duas as mais chamativas: a importância que se concede, pela primeira vez, às interações estabelecidas entre os protagonistas da situação educativa e as de ordem metodológica. A necessidade de estudar o que ocorre nas aulas e, mais concretamente, as relações entre o professor e os alunos, propõe, por sua vez, a necessidade de dispor de instrumentos de observação potentes e objetivos. Trata-se dos sistemas de observação sistemática que proliferam nas décadas seguintes e que são ainda freqüentemente utilizados na atualidade. Os sistemas de categorias, denominação genérica habitual destes instrumentos de observação sistemática da aula, surgem no marco de uma tradição de investigação educativa que privilegia a busca de relaçõesentre as variáveis relativas ao processo de ensino — e que informam, portanto, sobre o comportamento do professor, do aluno e das interações que mantêm — e as variáveis que fazem referência ao produto do ensino, entendido como o nível de resultado dos objetivos educativos, por parte dos alunos. Trata-se definitivamente de saber se a maneira de ensinar está relacionada significativamente com os resultados obtidos pelos alunos, de tal forma que seja possível mostrar que determinadas formas de gestionar o ensino são melhores e mais desejáveis que outras. Os sistemas de categorias para a análise da interação aparecem deste modo como instrumentos susceptíveis de descrever o que ocorre na aula, da forma mais objetiva e asséptica possível. Com a ajuda destes sistemas, são codificados os comportamentos verbais e não verbais do professor e dos alunos, em uma série de categorias preestabelecidas, procedendo-se posteriormente à análise dos dados de observação assim organizados. Flanders (1977) assinala que a utilização dos diferentes sistemas de categorias se reduz a um processo de codificação e decodificação. Sua elaboração consiste em estabelecer, a partir de uma teoria, conceito ou noção que se considera como relevante sobre aquilo que ocorre ou deveria ocorrer em aula, um número determinado de categorias. A tarefa do observador, convenientemente treinado, consiste em codificar os eventos que ocorrem na aula na categoria correspondente do sistema, seja atendendo a uma unidade de tipo temporal — por exemplo, registrando a cada três segundos os comportamentos observados —, seja atendendo a uma unidade natural/de conduta - por exemplo, todas as aparições de um determinado comportamento. A decodificação tem lugar mediante o processo inverso: um analista, que pode ter efetuado ou não a observação e o registro, interpreta os dados, considerando sua configuração global e os pressupostos teóricos, implícitos e explícitos, utilizados para o estabelecimento das categorias. Os sistemas de categorias não deixaram de evoluir, desde sua aparição, no sentido de uma complexidade e de um refinamento cada vez maiores, dirigidos ao incremento máximo da objetividade das observações e à redução ao mínimo das valorações subjetivas do observador. Isso não é alheio ao paradigma teórico ao qual são vinculados e que explica algumas de suas peculiaridades metodológicas. Tendo aceito a observação como mal menor — visto que não é fácil, nem talvez possível, abordar a análise do que ocorre em aula mediante o método experimental, é necessário torná-la tão objetiva quanto possível. Entre as fontes potenciais de subjetividade, o próprio observador é considerado como a mais importante, pois é ele quem decide a que categoria pertencem os comportamentos observados. Por isso, a preocupação constante entre os criadores destes sistemas em descrever, com a maior precisão possível, os tipos de conduta que correspondem a cada categoria. Outra forma de garantir a objetividade consiste em evitar a implicação do observador no fenômeno observado, pelo que a observação participante é, em geral, descartada, devido à contaminação que pode introduzir no fenômeno observado. Os princípios epistemológicos que caracterizam a psicologia condutista, sem dúvida alguma, o enfoque dominante em psicologia durante estas décadas, têm também um claro reflexo na exigência da operacionalização que acompanha o princípio de objetividade. As variáveis e conceitos manipulados em psicologia devem ser definidos operacionalmente, o que significa enunciá-los em termos de comportamentos observáveis. Consequentemente, os sistemas de categorias referem-se sempre a comportamentos inequivocamente observáveis, exibidos pelo professor e pelos alunos, deixando de lado os aspectos intencionais da conduta e ignorando, em geral, qualquer tipo de processo interno não diretamente observável. É fácil entender, neste contexto, a atenção prioritária, quase exclusiva, que muitos sistemas de categorias conferem à conduta verbal, que se presta relativamente bem observada, registrada e codificada. Algo similar cabe dizer a respeito do papel que desempenha a ação atomicista na explicação dos fenômenos psicológicos, que conduz à busca das unidades mais moleculares e pequenas do comportamento e suscetíveis de explicar, por acréscimo, os comportamentos mais complexos e molares. Assim, Simon e Boyer (1967), em a uma obra clássica, que compila e revisa mais de cem sistemas de categorias diferentes, afirmam que estes encontram-se mais centrados sobre "pequenos fragmentos de ação ou de comportamento" que sobre "conceitos globais". As observações codificam micro- unidades de condutas em categorias diferentes, e várias dessas categorias remetem a um determinado comportamento global. Deste modo, por exemplo, no sistema de observação da interação de Flanders (1977), as categorias "aceita sentimentos dos alunos", "elogia ou estimula" e "aceita ou utiliza ideias dos alunos" são indicadoras de uma "influência indireta" do professor; enquanto que as categorias "formula perguntas", "expõe e explica" e "critica ou justifica sua autoridade", são de uma "influência direta" (ver capítulo 15 deste volume, para uma explicação detalhada do sistema de categorias de Flanders). A constatação de que as dimensões molares — influência direta/influência indireta; comportamento dominante/comportamento integrador; etc. —, manipuladas por estes sistemas de categorias, recobrem de fato uma ampla gama de condutas, assim como a necessidade de relacionar a conduta dos professores com o resultado de objetivos cognitivos e não só comportamentais (Brophy e Good, 1986), levaram, dentro de uma mesma lógica global, a elaborar instrumentos de observação cada vez mais sofisticados e compreensivos. Os trabalhos realizados neste marco são numerosíssimos. Citemos somente, a título de exemplo, os trabalhos no âmbito do ensino da leitura e da matemática, que estão na base da configuração do modelo de "instrução explícita", "ensino sistemático" ou "instrução direta" (Rosenshine e Stevens, 1986), descrito também no capítulo 15 deste volume. Ainda que esquemáticos e parciais, os comentários precedentes bastam para identificar algumas das limitações mais óbvias dos sistemas de categorias como instrumentos de análise da interação professor/aluno. Recordemos que o paradigma da pesquisa educativa "processo-produto", cujos princípios básicos são compartilhados por estes sistemas, postula uma relação direta entre o comportamento do professor, sua forma de ensinar e os resultados dos alunos. Um primeiro problema consiste em que nem sempre se define com clareza o que se entende por resultado dos alunos, que tipo de aprendizagem se pretende que efetuem: assimilação significativa dos conteúdos, repetição mais ou menos mecânica daquilo que foi aprendido, utilização do conhecimento alcançado para enfrentar situações desconhecidas e realizar novas aprendizagens, etc. Por outro lado, quando se consegue estabelecer uma relação estável, o procedimento utilizado dificulta enormemente a explicação da mais que provável influência das variáveis contextuais (Doyle, 1978) e do papel que desempenham os processos de aprendizagem dos alunos como elemento mediador fundamental entre o comportamento do professor e o resultados dos objetivos educacionais. Tudo isso sem contar o risco que supõe interpretar em termos de relações causais alguns resultados empíricos que, na melhor das hipóteses, mostram unicamente a existência de simples correlações. Porém, talvez a maior objeção que possa ser formulada aos sistemas de categorias é que sacrificam a possibilidadede captar a dinâmica real da sala de aula, no interesse de uma pretensa objetividade que obriga a restringir a observação a uma série de comportamentos previamente definidos. Delamont e Hamilton (1978) insistem, com razão, no risco que se corre, ao utilizar sistemas de categorias, de desprezar a informação necessária sob todos os pontos de vista, para compreender o porquê e o como daquilo que ocorre na classe. Estes mesmos autores consideram, além disso, que a presença de um "observador externo" não diminui necessariamente o impacto que sua presença exerce na vida da aula, enquanto que o distanciamento externo entre observador e observados que isso pressupõe pode, em contrapartida, dar lugar a descrições incompletas e distorcidas. Em qualquer caso, parece fora de dúvida, em nossa perspectiva, que os sistemas de categorias não registram propriamente a interação professor/aluno, senão que se encontram limitados a efetuar um inventário de seus comportamentos, sem chegar a dar conta da imbricação dos mesmos e de sua evolução ao longo do eixo temporal, no qual se articulam as relações entre o professor e os alunos durante o processo de ensino e aprendizagem. O conceito de interação educacional evoca situações nas quais os protagonistas atuam simultânea e reciprocamente, em um contexto determinado, em torno de uma tarefa ou um conteúdo de aprendizagem, com o fim de alcançar alguns objetivos mais ou menos definidos. Os componentes intencionais, contextuais e comunicativos, inerentes à interação educativa, não se prestam a ser estudados mediante os sistemas de categorias. Convém assinalar que algumas dessas críticas foram assumidas a partir do próprio paradigma "processo-produto". Assim, por exemplo, Brophy e Good (1986), em uma recente revisão das pesquisas realizadas a partir desta perspectiva, chamam a atenção sobre as limitações dos resultados obtidos e afirmam que somente atendendo a tais limitações o conhecimento acumulado poderá ser efetivamente utilizado para a melhoria do ensino. Os autores indicam também que as relações causais entre o comportamento do professor e o resultado acadêmico dos alunos nem sempre são suficientemente claras e que, inclusive quando o são, não deveriam ser traduzidas diretamente em prescrições para a prática. Igualmente destacável é a recomendação de levar em conta o nível ou grau de aprendizagem, as características dos alunos e outros fatores contextuais. As limitações inerentes ao paradigma de pesquisa educacional "processo- produto" e as objeções que formulamos aos sistemas de categorias, como instrumento de análise da interação, não devem ser interpretados, entretanto, em termos de uma rejeição absoluta das conclusões dos trabalhos realizados nesta perspectiva. Como foi exposto com certo detalhe nos capítulos 14 e 15 deste volume, há duas questões que parecem estar fora de discussão. A primeira é que a aprendizagem escolar é sensível à quantidade de tempo que os alunos dedicam às tarefas acadêmicas. A segunda indica que estes aprendem mais quando seus professores estruturam o novo conteúdo a ser assimilado, ajudando-os a relacioná- lo com aquilo que já sabem, controlam suas realizações e proporcionam as correções necessárias nas atividades de prática e aplicação independente, sejam individuais ou coletivas. Fica, contudo, à espera de explicação o fato de por que e, sobretudo, como determinados comportamentos do professor produzem determinados resultados nos alunos. Esta explicação só pode ser configurada a partir da consideração dos processos psicológicos implicados na aquisição de conhecimentos por parte dos alunos, processos que, como já mencionamos, não são observados nos sistemas de categorias. Estes aspectos, juntamente com outros também ignorados na perspectiva clássica, aparecem como eixos estruturadores de um enfoque diferente sobre a interação educativa. 2. Rumo a uma nova conceituação da interação professor/aluno Convém, antes de mais nada, destacar que nos encontramos essencialmente diante de uma mudança conceptual. Após algumas décadas, em que o estudo da interação professor/aluno está presidido pela preocupação de identificar as chaves da eficácia docente e pela exigência de objetividade na categorização do comportamento, o interesse é deslocado para o processo de interação e para os fatores de diferente natureza que nele convergem. Este fato terá, obviamente, importantes implicações metodológicas, mas o que nos interessa ressaltar aqui são as coordenadas teóricas da nova interpretação que se perfila. Entre os ingredientes básicos destas coordenadas teóricas, há três que merecem, em nossa opinião, uma atenção especial. Referimo-nos à crescente importância outorgada à atividade construtiva dos alunos na aprendizagem escolar; à maneira de entender o papel do professor na aparição, manutenção e orientação da atividade construtiva dos alunos; e à consideração da estrutura comunicativa e do discurso educacional como um dos elementos básicos para compreender os processos de interação professor/aluno. 2.1. A atividade construtiva do aluno e sua incidência sobre a aprendizagem A partir dos últimos anos da década de cinquenta, a ideia de um ser humano relativamente fácil de ser modelado e dirigido a partir do exterior é progressivamente substituída pela ideia de um ser humano que seleciona, assimila, processa e confere significações aos estímulos e configurações de estímulos. Do ponto de vista educativo, a adoção desta perspectiva, cuja origem cabe buscar no auge crescente dos enfoques cognitivos na explicação psicológica, supõe uma mudança radical na maneira de entender o processo de ensino e aprendizagem. Frente à concepção tradicional de que a aprendizagem do aluno depende quase que exclusivamente do comportamento do professor e da metodologia de ensino utilizada - concepção que nutre o paradigma de pesquisa processo-produto e boa parte dos estudos sobre a eficácia docente - ressalta-se a importância do que traz o próprio aluno ao processo de aprendizagem (Wittrock, 1986): conhecimentos, capacidades e destrezas prévias; percepção da escola, do professor e de suas atuações; expectativas e atitudes diante do ensino, a escola e o professor; motivações, interesses, crenças e atribuições; etc. A atividade construtiva do aluno aparece, deste modo, como um elemento mediador de primeira importância entre, por um lado, a influência educativa que exerce o professor e, por outro, os resultados da aprendizagem. Este deslocamento, com amplas repercussões sobre a teoria e a prática educativa, cuja exposição escapa aos objetivos deste capítulo (ver, por exemplo, Coll e Solé, 1987; Coll, 1986b), supôs também a introdução de novas exigências e a aparição de novas dificuldades no estudo da interação professor/aluno. Por um lado, tornou-se evidente que este estudo não pode estar limitado a pôr em relação o comportamento do professor com os resultados da aprendizagem do aluno, sendo necessário introduzir os processos construtivos que medeiam entre um e outros; tornou-se evidente, pois, a necessidade de superar as limitações impostas pela adoção do paradigma processo-produto, dando entrada aos processos encobertos como ele- mento-chave para a compreensão dos processos interativos que são estabelecidos entre o professor e os alunos na sala de aula. Contudo, por outro lado, esta ênfase na atividade construtiva, a importância justamente atribuída ao que traz o aluno para o processo de ensino e aprendizagem em aula, levou em algumas ocasiões a dirigir o interesse de forma prioritária, e ainda exclusiva, para a interação que se estabelece entreo aluno que aprende e o conteúdo ou objeto de aprendizagem, relegando a influência educativa do professor a um lugar secundário. Assim, com certa frequência, quando se propõe a análise da interação educativa a partir de determinados enfoques cognitivos ou cognitivo-evolutivos, esta deve ser entendida mais em termos de interação aluno-conteúdo de aprendizagem que em termos de interação aluno-professor-conteúdo de aprendizagem. O que se faz, deste modo, é desligar a atividade construtiva do aluno do contexto social e interpessoal no qual, inevitavelmente, é produzida. Não obstante, há razões suficientes para pensar que a construção do conhecimento não deve ser entendida como uma empresa estritamente individual. Uma coisa é afirmar que o aluno constrói o conhecimento, e outra bem diferente é dizer que o constrói na solidão, à margem da influência decisiva que tem o professor sobre este processo de construção e à margem da carga social que comportam sempre os conteúdos escolares. O que estamos questionando não é a importância da atividade construtiva, muito menos a necessidade de tê-la em conta como um fator decisivo para a análise da interação educativa, senão a interpretação da mesma como um processo essencialmente individual. Em primeiro lugar, porque os alunos não constroem significados a propósito de um conteúdo qualquer: praticamente a totalidade dos conteúdos escolares são formas culturais já construídas, já elaboradas em nível social. Sua aprendizagem pressupõe uma verdadeira atividade construtiva, no sentido de que os alunos devem assimilá-los, apropriando-se deles, atribuindo-lhes um conjunto de significações que vão além da simples recepção passiva. Porém, os conteúdos da aprendizagem escolar não são somente "objetos de conhecimento" mais ou menos complexos; são, acima de tudo, produtos da atividade e do conhecimento humano marca- dos social e culturalmente, de tal maneira que a atividade construtiva que os alunos exercitam diante deles está fortemente condiciona ia por estas marcas. A atividade construtiva dos alunos frente aos conteúdos escolares aparece, assim, totalmente imersa na trama de uma atividade social coletiva que supera amplamente o âmbito do estritamente individual. Em segundo lugar, porque o verdadeiro papel do professor consiste em agir como intermediário entre os conteúdos da aprendizagem e a atividade construtiva que os alunos exercitam para assimilá-los. È o professor quem determina, em grande parte, com suas atuações, que a atividade do aluno seja mais ou menos construtiva, que seja orientada em um ou outro sentido e, definitivamente, que gere algumas aprendizagens determinadas. A consideração da atividade construtiva do aluno não deve, pois, supor, em nenhum caso, uma ambiguidade relativa ao papel decisivo que desempenha o professor no conjunto do processo. Do ponto de vista da análise da interação professor/aluno, isto implica dirigir os esforços para a compreensão de como se exerce a influência educativa, de como o professor consegue incidir sobre a atividade construtiva do aluno, promovendo-a e orientando- a, com o fim de ajudá-lo a assimilar os conteúdos escolares (Coll, 1985). 2.2. Os processos de andaimaria na zona de desenvolvimento próximo Estes esforços receberam um considerável impulso nos últimos anos, como consequência da revitalização, aprofundamento e extensão das ideias expostas por Vygotsky há mais de meio século. As propostas vygotskyanas são, sem dúvida, o mais claro expoente das consequências que tem, para a análise da interação professor/aluno, o fato de situar a atividade construtiva do aluno na trama das relações sociais e interpessoais na qual toma corpo. Permitam-nos recordar brevemente alguns conceitos básicos do enfoque vygotskyano, remetendo-nos, para uma exposição mais detalhada dos mesmos, ao capítulos 6 deste volume. Para Vygotsky, a educação é uma das fontes mais importantes do desenvolvimento ontogenético nos membros da espécie humana. O desenvolvimento que os seres humanos experimentam, desde o nascimento até a morte, é antes um produto e não tanto um requisito da aprendizagem e da educação, contrariamente ao que se postula a partir de outros enfoques teóricos. E é, sobretudo, um produto das interações que se estabelecem entre o sujeito que aprende e os agentes mediadores da cultura, entre os quais os educadores (pais, professores, etc.) ocupam um lugar essencial. Estas ideias são traduzidas nos postulados nucleares da explicação vygotskyana: a lei da dupla formação dos processos psicológicos superiores e a educação como força criadora e impulsionadora do desenvolvimento. Segundo a lei da dupla formação dos processos psicológicos superiores, no desenvolvimento cultural da criança, toda função aparece duas vezes: primeiro, em nível social e, mais tarde, em nível individual; primeiro entre pessoas (interpsicológica) e depois, no interior da própria criança (intrapsicológica). (Vygotsky, 1979). Assim, por exemplo, o planejamento e a regulação da conduta que, no caso dos bebês e das crianças pequenas, é assumida totalmente pelos adultos, mediante suas necessidades, pedidos, ordens, etc. - e que aparece, pois, em primeiro lugar, no plano interpsicológico -, é interiorizada e progressivamente assumida por aqueles, até chegar, com o tempo, a fazer parte de suas capacidades individuais - aparecendo deste modo, em segundo lugar, no plano intrapsicológico. É importante destacar que este processo de interiorização progressiva não consiste na simples translação ou reflexo no plano interno daquilo que, em princípio, é manifestado em nível externo, senão que implica uma verdadeira reconstrução; retomando os termos que utilizamos na seção anterior, podemos afirmar que a lei da dupla formação dos processos psicológicos superiores não só não nega a atividade construtiva, senão que a integra, como um dos elementos que definem o processo de interiorização. Por outro lado, esta lei, atinente aos processos psicológicos superiores - desenvolvimento da linguagem, atenção, memória, raciocínio, formação de conceitos, etc. -, aplica-se ao conjunto do desenvolvimento cultural da criança e é aplicável, portanto, à maior parte dos conteúdos escolares. O segundo postulado a que aludimos está relacionado com a educação como fonte de desenvolvimento, e está diretamente relacionado com o primeiro. Diante do exposto sobre a lei da dupla formação dos processos psicológicos superiores, segue- se a afirmação de que o desenvolvimento cultural da criança tem origem social, em um duplo sentido (Wertsch, 1988): primeiro, porque as funções psicológicas superiores — e com elas todas as formas culturais — são construções sociais; e, segundo, e mais importante para nossos propósitos, porque sua reconstrução em nível individual, sua interiorização, é concretizada a partir das interações que a criança mantém com os adultos e outros agentes mediadores de seu entorno, nos quais aparecem tais funções. Não há, assim, nada de estranho que, nesta linha de raciocínio, se vincule estreitamente a educação com a interação, e sua capacidade para criar desenvolvimento com o processo de interiorização, que conduz do plano interpsicológico ao plano intrapsicológico. Ambas as idéias são reunidas com clareza no conceito de "zona de desenvolvimento próximo", definida por Vygotsky como a distância entre o nível real do desenvolvimento, determinado pela capacidade de resolver independentemente um problema, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da resolução de um problema, sob a orientação de um adulto ou em colaboração com outro companheiro mais capaz (Vygotsky,1979). A influência educativa — incluída aquela exercida pelo professor, quando "guia" ou "colabora" com seus alunos no transcurso das atividades escolares organizadas em torno à realização de uma tarefa, a resolução de um problema ou a aprendizagem de alguns conteúdos — pode ser promotora do desenvolvimento, quando consegue arrastar a criança através da zona de desenvolvimento próximo, convertendo em desenvolvimento real — reconstrução no plano intrapessoal — aquilo que, em princípio, é unicamente um desenvolvimento potencial —aparição no plano interpessoal. Do ponto de vista da análise da interação educativa, o problema consistirá, então, em indagar como se produz esta passagem do interpsicológico para o intrapsicológico; ou, mais exatamente, em indagar "como a interação social, no nível de funcionamento interpsicológico, pode conduzir à resolução independente de problemas, em nível intrapsicológico" (Wertsch, 1979, p. 2). Ainda que as pesquisas realizadas durante a última década tenham lançado alguma luz sobre como a criança progride através das zonas de desenvolvimento próximo criadas nas interações educativas com os adultos, estamos longe ainda de dispor de uma visão de conjunto suficientemente articulada e precisa. Limitar-nos- emos, pois, em consequência, a expor alguns resultados e conclusões parciais que bastam, entretanto, para mostrar o interesse desta perspectiva para a análise da interação professor/aluno, ao mesmo tempo que sugerem novas e promissoras vias de estudo. Um primeiro conjunto de contribuições tem sua origem nos trabalhos pioneiros de Wertsch e Hickman, realizados nos anos setenta, sobre as interações estabelecidas por um grupo de mães com seus filhos, de idades compreendidas entre os dois anos e meio aos quatro anos e meio, enquanto resolvem um quebra- cabeças, com a ajuda de um modelo que mostra a solução correta (Hickman e Wertsch, 1978; Wertsch, 1979). Após o registro em vídeo, as verbalizações e atuações que aparecem na interação didática são analisadas com o fim de compreender como as crianças progridem a partir da resolução da tarefa com a ajuda das mães - regulação interpsicológica - até a resolução independente da mesma - regulação intrapsicológica. Vários pontos chamam a atenção nas conclusões que os autores obtêm desta análise. Em primeiro lugar, as mães começam assumindo a organização global da tarefa; que dizer, planejam a resolução do quebra-cabeças, escolhendo um procedimento para a escolha, identificação e colocação das peças, dando entrada no marco global, mediante diretrizes ou ordens, às atuações de seus filhos, de tal maneira que estes possam participar desde o princípio na resolução do problema, ainda quando não apresentem uma visão global do mesmo, nem disponham de um procedimento geral de resolução. O que as mães fazem é situar as atuações das crianças em um contexto de significação mais amplo, definido pela organização da atividade conjunta e por seu planejamento da tarefa, fazendo com que se comportem como se estes entendessem a atribuição e o alcance daquilo que estão fazendo, ainda que na realidade não seja assim. Esta possibilidade, que oferece a interação educativa, para que a criança possa atuar como se fosse competente antes de sê-lo, parece desempenhar um papel decisivo no processo de interiorização. Em segundo lugar, à medida que se avança na resolução da tarefa, a criança vai assumindo progressivamente o controle de suas atuações, no sentido de que estas já não são tão dependentes da organização e do planejamento global da mãe e das brechas pelas quais possa inserir-se, senão que iniciam a responder a uma organização e planejamento próprios. O fator que determina este progresso parece ser a necessidade com a qual se depara a criança, durante as primeiras fases da resolução conjunta da tarefa, de construir uma interpretação coerente das relações que existem entre as diretrizes da mãe, seu próprio comportamento e as características da tarefa. Na articulação entre a atividade conjunta e a fala, em particular a fala da mãe, e no processo de construção cognitiva que força esta articulação, deve-se buscar, pois, os mecanismos de interiorização que conduzem do plano interpsicológico para o plano intrapsicológico. As conclusões de Wertsch convergem para as obtidas por Wood e seus colaboradores, em uma série de trabalhos realizados também em fins da década de setenta (Wood, Wood e Middleton, 1978; Wood, 1980), que proporcionam novos dados sobre como se exerce a influência educativa na zona de desenvolvimento próximo. A situação experimental típica é muito similar à anterior; solicita-se a um grupo de mães que ensinem a seus filhos, de idades compreendidas entre três e quatro anos, a resolver um problema de construção com blocos; além disso, neste caso, as crianças são submetidas a um pós-teste, no qual devem resolver individualmente uma tarefa semelhante à da situação experimental, com o fim de determinar o grau de aprendizagem alcançado. As ações e verbalizações das mães são classificadas em cinco categorias, atendendo ao nível crescente de diretividade, intervenção ou de ajuda que proporcionam para resolver a tarefa: do nível 1, em que a ajuda é mínima (palavras de estímulo ou de alento), até o nível 5, que representa o maior grau de ajuda (demonstração de como se resolve a tarefa), passando por três níveis intermediários (chamar a atenção sobre aspectos importantes da tarefa; ajudar a selecionar o material; propor o material a ser utilizado em cada momento). A hipótese de partida, consequente com a ideia de que o adulto, como diz Bruner, "sustenta" e "coloca andaimes" nos esforços e resultados da criança, é que a intervenção da mãe estará em função inversa da competência da criança; que dizer, quanto maior a dificuldade da criança para resolver por si mesma a tarefa, maior será o nível de diretividade e de ajuda das intervenções maternas. Os resultados mostram que somente algumas mães procedem deste modo, porém são aquelas cujos filhos obtêm melhores resultados no pós-teste, quando resolvem individualmente a tarefa. Outras pesquisas realizadas com a mesma proposta mostram que algumas mães são consistentes na tendência a ajustar o nível de ajuda de suas intervenções às dificuldades da criança com diferentes tipos de tarefas e, inclusive, com crianças que não são seus próprios filhos. Deste modo, em uma pesquisa na qual se comparam os efeitos sobre a aprendizagem de quatro estratégias instrutivas que diferem quanto ao nível de ajuda e diretividade das pesquisas dos adultos, demonstra-se que aquela que consiste em ajustar o nível da ajuda ou diretividade dá lugar a melhores resultados do que as que oferecem sistematicamente um nível mínimo (somente alento e estímulo) ou máximo (somente demonstração) de ajuda. Em resumo, o ajuste das intervenções do adulto, nas dificuldades que a criança encontra durante a resolução conjunta da tarefa, parece ser um elemento determinante do impacto da influência educativa, de sua capacidade para criar zonas de desenvolvimento próximo na interação que se estabelece entre ambos e de que o processo de interiorização seja produzido de forma fluida e sem rupturas. Segundo Wood, a eficácia do ensino — e não somente do ensino materno — depende em grande medida de que os agentes educativos realizem intervenções contingentes às dificuldades que o aprendiz encontra. Retomando o princípio da importância da atividade construtiva para a aprendizagem, que comentamos na seção anterior, poderíamos dizer agora que as intervenções contingentes são ao mesmo tempo um procedimento eficaz para impulsionar esta atividadee uma exigência imposta pela mesma: para ser eficaz, a intervenção educativa deve ser contingente, e deve ser contingente porque assim o exige a dinâmica interna do processo de construção do conhecimento, que subjaz a toda aprendizagem. Talvez seja a metáfora da "andaimaria", introduzida por Bruner e seus colaboradores (Wood, Bruner e Ross, 1976) a que sintetiza melhor o conjunto de resultados e conclusões que estamos comentando. Mediante esta metáfora, quer-se ressaltar ao mesmo tampo o caráter necessário das ajudas, dos andaimes que os agentes educativos prestam ao aprendiz, e seu caráter transitório, já que os andaimes vão sendo retirados, de forma progressiva, à medida que o aprendiz vai assumindo maiores cotas de autonomia e de controle na aprendizagem. A figura 1 representa esquematicamente a estrutura dos ambientes educativos que cumprem com as exigências da andaimaria. Trata-se de ambientes educativos com algumas características muito precisas: integram o aluno, desde o princípio, na realização da tarefa; proporcionam-lhe um nível de ajuda que se ajusta às dificuldades que encontra e aos progressos que realiza; oferecem uma ajuda temporal, que é retirada progressivamente, à medida que o aluno assume a responsabilidade; e situam a influência educativa na zona de desenvolvimento próximo, tomando como ponto de partida aquilo que o aluno traz para a situação - seu nível real de desenvolvimento, em termos vygotskyanos - e respeitando a dinâmica de construção ou reconstrução do conhecimento que exige a verdadeira aprendizagem. Assim formulada, o conceito de andaimaria serviu de base para elaborar diversas respostas de metodologia didática - o modelo de "ensino recíproco" (Palincsar e Brown, 1984; Palincsar, 1986); o modelo de ensino de "participação orientada" (Rogoff, 1984); etc. — qtie constituem outras tantas concretizações daquilo que, no capítulo 23 deste volume, é denominado "concepção construtivista do ensino". Entretanto, partindo-se da perspectiva que adotamos aqui, o fato destacável é que permite identificar com clareza as limitações de nossa compreensão atual da interação professor/aluno. Duas delas são particularmente óbvias. Em primeiro lugar, e tendo como pressuposto que a influência educativa eficaz é a que reflete o conceito de andaimaria, surgem imediatamente várias perguntas: como o professor realiza este abandono gradual de responsabilidade, representado na figura 1? Como consegue fazer com que o aluno assuma paralelamente a responsabilidade que ele deixa? Que procedimentos utiliza para certificar-se de que efetivamente o transpasse é produzido? Como atua, ao constatar que o transpasse não foi produzido? Por que, em certas ocasiões, o transpasse é impossível? Existem diferentes formas ou maneiras de concretizar o transpasse? Que papel desempenham a este respeito fatores como a estrutura da tarefa ou a natureza do conteúdo? Etc. São perguntas para as quais ainda não se tem uma resposta clara. No máximo, dispomos de algumas hipóteses diretrizes que estão em grande parte pendentes de contrastação empírica. Assim, por exemplo, Wertsch (1984) sugere que o adulto e a criança — o professor e o aluno — que abordam conjuntamente a resolução de uma tarefa têm, cada um por seu lado, uma representação dessa tarefa e do que implica sua execução ou resolução. Cada um possui, pois, uma definição intrassubjetiva da situação. Para poder atingir seus propósitos com relação à tarefa, para poder operar conjuntamente, ainda que cada um do ponto de vista de sua responsabilidade e competência, é necessário que ambos os protagonistas compartilhem e saibam, além disso, que compartilham, total ou parcialmente, a mesma definição da situação. A esta definição compartilhada, intersubjetiva, tem-se acesso por meio de uma negociação, na qual cada participante renuncia em parte à sua própria representação. Entretanto, tal renúncia possui um significado distinto, no que diz respeito ao aluno e ao professor. Este último renuncia apenas temporária e estrategicamente à sua própria definição da situação, com o fim de aproximar-se da do aluno; o aluno, por sua vez, ao término da negociação, deverá ter abandonado sua definição inicial e deverá ter adotado a nova, compartilhada por ambos, como fruto do processo de ensino e aprendizagem, mediante o qual o professor tentou levar-lhe a sua própria definição. Os termos da negociação são claramente assimétricos: o professor sabe onde quer chegar e as operações necessárias para isso, o que não se pode dizer do aluno, que irá aprendendo ambas as coisas no curso da interação. Em qualquer caso, o êxito da negociação dependerá de que sejam utilizadas formas adequadas de mediação semiótica; quer dizer, de que se utilizem os instrumentos apropriados para que cada um dos participantes possa tornar acessível ao outro sua representação da situação, possa negociá-la e, eventualmente, modificá-la. Esta proposta conduz, evidentemente, ao direcionamento dos esforços para o estudo das funções que cumpre a linguagem na interação professor/aluno e de sua articulação com as atuações e com os elementos do contexto em torno dos quais se organiza a atividade conjunta dos participantes (Wertsch, 1988). Em segundo lugar, ainda são muitos os autores que aplicam o conceito de andaimaria à educação escolar e à interação professor/aluno — nós mesmos o fizemos, nas páginas precedentes - convém não esquecer que sua origem encontra- se mais na análise de situações educativas não escolares e da interação mãe/filho ou adulto/criança. Mesmo que tudo pareça apontar para o fato de que a maioria de elementos e interpretações que fomos expondo até aqui possuem um correlato na educação escolar e na inter-relação professor/aluno, há também razões para pôr-se em dúvida a conveniência de postular um paralelismo estrito (Coll, 1985). Assim, por exemplo, o contexto situacional e institucional em que são produzidas as interações mãe/ filho, analisadas por Wertsch, Wood e outros autores é, sem dúvida, muito diferente do contexto situacional e institucional em que são produzidas habitualmente as interações professor/aluno. Talvez a diferença mais evidente seja a de que, na realidade, a interação professor/aluno só é diádica em muito poucas ocasiões; o habitual é a situação na qual um professor interage com um grupo de alunos. Então, de duas, uma: ou o conceito de andaimaria só é aplicável à interação do professor com alunos individualmente e, em consequência, perde grande parte de seu poder para explicar como os professores exercem uma influência educativa sobre os alunos; ou pode ser aplicado igualmente à interação do professor com o grupo de alunos; porém, neste caso, é necessário identificar os mecanismos que o professor utiliza para conseguir que suas atuações sejam contingentes, ao mesmo tempo, para os diferentes alunos do grupo. Nada autoriza a pensar, no caso de que optemos pela segunda alternativa, que os mecanismos de ajuste sejam idênticos aos que aparecem em uma situação de interação diádica. Os dois comentários precedentes, sobre as limitações que encerra o conceito de andaimaria para a análise da interação professor/aluno, apontam para uma mesma direção: a necessidade de considerar as características próprias do contexto situacional e institucional em que é produzida a interação. A esta exigência respondem também, em parte, os estudos sobre o ensino e a aprendizagem, realizados a partir de perspectivas etnometodológicas e sociolinguísticas. 2.3. A aproximação sociolinguística ao estudo dos processos de ensino e aprendizagem Mesmo que o paradigma processo-produto tenha sido atradição dominante na pesquisa educativa e tenha presidido a maioria dos estudos sobre a interação professor/aluno, até poucas décadas atrás, desde os anos sessenta é possível encontrar, cada vez com maior frequência, pesquisas que correspondem a pressupostos epistemológicos e metodológicos totalmente distintos. São trabalhos cujo objetivo fundamental é descrever o que acontece nas aulas, por oposição aos esforços centrados na eficácia docente; que correspondem a uma concepção interpretativa do conhecimento e rejeitam abertamente os princípios positivistas dominantes na pesquisa educativa e nas ciências sociais em geral; que utilizam os registros narrativos, audiovisuais ou magneto fônicos como instrumentos de reunião de dados e a observação participante como alternativa para os sistemas de categorias e para a observação externa, respectivamente; que baseiam suas interpretações na adoção do ponto de vista dos participantes e na significação que têm para estes os comportamentos observados; que privilegiam as análises qualitativas sobre as quantitativas e que concedem uma especial importância à fala do professor e dos alunos, ao discurso educacional para entender a interação que se estabelece entre eles. Estas pesquisas e os princípios metodológicos e epistemológicos que as sustentam têm sua origem em diversas disciplinas, nem sempre claramente delimitadas, sendo possível identificar algumas obras e autores que constituem verdadeiros pontos de referência: a etnografia da comunicação (Hymes, 1962; Cazden, John e Hymes, 1972); a linguística e a análise do discurso educacional (Sinclair e Coul- thard, 1975); o estudo da comunicação na sala de aula (Barnes, 1971; 1976); a etnometodologia aplicada á educação (Stubbs e Delamont, 1976); a denominada "nova sociologia da educação" (Young, 1971); etc. Nos últimos anos, estas diferentes perspectivas foram confluindo até configurar um novo paradigma de pesquisa - ou, inclusive, uma nova disciplina, segundo algumas apreciações - que recebe nomes diversos: "aproximação sociolinguística" ao estudo do ensino (Cazden, 1988), "pesquisa do ensino como processo linguístico" (Green, 1983), etc. Mais importante que o rótulo é a descrição dos objetivos perseguidos pela pesquisas situadas nesta linha: Esta disciplina ocupa-se do registro e análise da conduta humana em situações naturais, explorando o que as pessoas aprendem a partir da e através da interação com os outros. Em outras palavras, a pesquisa do ensino da linguagem como processo linguístico ocupa-se de como as pessoas aprendem a linguagem, de como aprendem através do uso da linguagem e de como aprendem sobre o uso da linguagem em situações educativas (...) Mais concretamente, a investigação se ocupa de como funciona a linguagem nas interações entre o professor e os alunos, entre os iguais e entre as crianças e os adultos na aula, no pátio, no lar e na comunidade, atuando como suporte para a aquisição de outros tipos de conhecimento (Green, 1983, p.'168). O caráter disperso dos resultados obtidos até o momento por estas pesquisas, juntamente com seu volume e com a ausência de uma verdadeira mtegração teórica - apesar dos progressos realizados neste sentido durante os últimos anos -, fazem com que seja desaconselhável tentar aqui uma síntese de todos esses pontos de vista. Limitar-nos-emos, assim, a seguir, a apontar alguns pressupostos e constructos teóricos da análise sociolinguística do ensino, particularmente interessantes para o estudo da interação professor/aluno, que possam contribuir significativamente, em nossa opinião, para enriquecer e matizar, num futuro próximo, nossa compreensão dos processos de andaimaria na sala de aula. A ideia básica é a de que a aula configura um espaço comunicativo regido por uma série de regras, cujo respeito permite que os participantes, ou seja, o professor e os alunos, possam comunicar-se e alcançar os objetivos a que se propõem. A peculiaridade deste espaço comunicativo salta à vista, quando se analisa a fala produzida pelos professores e pelos alunos na aula e quando se constata a existência de algumas regularidades que não aparecem em outras situações de comunicação. Assim, por exemplo, a aula é provavelmente o único contexto comunicativo no qual um dos participantes, o professor, formula perguntas continuamente cuja resposta já conhece; em qualquer outra situação, um comportamento desta natureza seria, com quase total segurança, considerado absurdo ou uma simples brincadeira. Este não é, entretanto, o único traço distintivo do discurso educacional. Assim, por exemplo, constata-se também que a fala do professor ocupa mais tempo que a fala dos alunos, que nela as perguntas têm uma presença considerável e que a repetição de uma pergunta do professor, após uma resposta do aluno, deve levar a interpretar que tal resposta era incorreta. Isto está relacionado com a chamada "regra dos dois terços", segundo a qual, em situações habituais de classe, durante aproximadamente dois terços do tempo alguém fala, aproximadamente dois terços da fala correspondem ao professor e aproximadamente dois terços da fala do professor consistem em perguntas e explicações. Tudo isso dá lugar a algumas estruturas comunicativas típicas, cujo expoente mais conhecido é a sequencia IRA, identificada por Sinclair e Coulthard: o professor inicia o intercâmbio (I), freqüentemente mediante uma pergunta, o aluno responde (R) e é produzido na sequencia um comentário avaliativo do professor (A). O discurso educacional pode, então, ser analisado como uma cadeia de intercâmbios comunicativos IRA, em torno dos conteúdos ou da área de aprendizagem. A existência de algumas "regras educacionais básicas" na fala da aula (Edwards e Mercer, 1988) exige, obviamente, que os participantes as conheçam, com a finalidade de poder intervir e organizar as atividades. Quando não é assim, quando há um desconhecimento ou quando são produzidos mal-entendidos, a comunicação é rompida, o processo de negociação de significados sobre o que se faz e o que se diz se torna impossível e o processo de aprendizagem fica bloqueado. Não se deve pensar, entretanto, que os intercâmbios comunicativos sejam produzidos de acordo com um respeito absoluto a estas regras ou não são produzidos. A realidade da sala de aula é muito mais complexa e seria um erro contemplar a interação existente entre o professor e os alunos como sendo a "encenação" de um roteiro, com uma distribuição de papéis estabelecida de antemão. O que acontece na aula, aquilo que fazem e dizem o professor e seus alunos é, em grande parte, o resultado de um verdadeiro processo de construção conjunta. Como afirma Green (1983, p.175), "os contextos de interação são construídos pelas pessoas ao atuarem (...) [os contextos de interação] são construídos pelas ações dos participantes (...)". São dois os elementos identificados como essenciais na construção dos contextos de interação na de aula. Por um lado, a estrutura de participação, ou estrutura social, que se refere ao que se espera que seja feito pelo professor e pelos alunos, a seus direitos e obrigações no transcurso das atividades (quem pode fazer ou dizer algo, o quê, quando, como, com quem, onde, com que objetivo). Por outro, a estrutura do conteúdo ou estrutura acadêmica, que se refere ao conteúdo da atividade escolar e à sua organização. Ambas as estruturas estão, evidentemente, relacionadas e sua articulação, nem sempre fácil, é necessária para que os participantes possam trabalhar conjuntamente em torno dos objetivos propostos pelo ensino. Mas o que nos interessa destacar aqui é que o professor e os alunosconstroem conjuntamente estas duas estruturas e sua articulação - e, com elas, o contexto da interação - à medida que transcorre a atividade. O fato de que os papéis do professor e dos alunos sejam assimétricos não impede que estejamos em presença de uma verdadeira construção, no sentido de que um e outros se veem obrigados a entrar em acordo sobre as formas de participação e sobre os conteúdos acadêmicos, com o fim de assegurar que a atividade transcorra sem rupturas, nem mal-entendidos. A chave da análise da interação professor/aluno residirá, então, em compreender como é produzida esta construção conjunta e como, através dela, o professor consegue escorar o progresso dos alunos. Ideias avançadas a esse respeito são, até certo ponto, concordantes, ou pelo menos não contraditórias, com as hipóteses formuladas por Wertsch (1984), que antes comentávamos. Em primeiro lugar, o professor e os alunos trazem, cada um, para a situação de ensino e aprendizagem, um conjunto de conhecimentos, destrezas, experiências, expectativas, valores, etc., que utilizam como marco de referência para interpretá-la e agir de acordo com esta interpretação. São os marcos pessoais de referência (Green, Weade e Graham, 1988), a partir dos quais os participantes realizarão uma primeira aproximação à estrutura social e à estrutura acadêmica da atividade. Porém, tão importantes ou mais, se cabe, para o desenvolvimento da atividade, são os marcos interpessoais de referência, construídos através da ação conjunta e dos intercâmbios comunicativos entre o professor e os alunos. São eles que determinam a forma que vai tomando a estrutura social, a estrutura acadêmica e sua evolução, ao longo da atividade conjunta. Graças a eles, os participantes podem chegar a atribuir um significado compartilhado a suas atuações e verbalizações respectivas, ao conteúdo de aprendizagem, aos direitos e obrigações de cada um e aos objetivos perseguidos com a atividade. Entre uns e outros, encontramos ainda os marcos materiais de referência, expressão essa com a qual são designados os materiais e objetos de natureza diversa utilizados na atividade conjunta. E, na encruzilhada de todos esses elementos, o discurso educacional e sua capacidade de mediação semiótica como o instrumento que permite articular os marcos pessoais, o contexto material no qual é produzida a atividade e as atuações dos participantes; como a peça-chave para entender de que maneira "o conhecimento (...) é apresentado, recebido, compartilhado, controlado, discutido, compreendido ou mal-compreendido por professores e crianças na classe" (Edwards e Mercer, 1988 p. 13). 3. Desafios atuais no estudo da interação professor/aluno A reconceituação dos processos interativos entre o professor e os alunos, surgida das páginas precedentes, põe em relevo que, longe de constituir um esquema linear, no qual, para um comportamento — ou um conjunto de comportamentos, um "estilo" ou um método de ensino — segue-se, de forma mais ou menos automática, um determinado resultado de aprendizagem, a influência educativa dos professores é exercida por meio de um processo muito mais complexo. Por um lado, a atitude construtiva do aluno é um fator determinante da interação; por outro, temos a atividade do professor e sua capacidade para orientar e guiar a atividade do aluno, no sentido da realização das aprendizagens escolares. Assim entendido, o ensino pode ser descrito como um processo contínuo de negociação de significados, de estabelecimento de contextos mentais compartilhados, fruto e plataforma, ao mesmo tempo, deste processo de negociação, cuja análise implica necessariamente considerar o intrincado núcleo de relações estabelecidas na aula, bem como as contribuições de todos os participantes. O panorama apresentado atualmente pelo estudo da interação professor/ aluno é, deste modo, consideravelmente mais rico, contudo mais complexo também, do que tão somente há um par de décadas. Talvez a mudança mais importante seja o deslocamento produzido a partir do interesse pela eficácia docente em direção ao interesse pelos mecanismos de influência educativa. Esta mudança supôs uma nova proposta metodológica e conceptual, cujo ingrediente básico é, em nosso ponto de vista, a reafirmação e a reinterpretação dos postulados construtivistas, a partir da tomada de consciência da natureza social e socializadora da educação escolar. Por um lado, o conhecimento construído pelos alunos no decorrer das atividades escolares de ensino e aprendizagem refere-se basicamente a conteúdos culturais já elaborados e construídos socialmente. Porém, por outro lado, os alunos constroem realmente significados a propósito destes conteúdos, e os constroem, sobretudo, graças ã interação estabelecida com o professor. Ambas as considerações estão na origem da maioria dos constructos teóricos, das hipótese diretrizes e das opções metodológicas que presidem às pesquisas atuais sobre a interação professor/aluno: a assimetria dos papéis que desempenham; a importância da atividade conjunta; o transpasse progressivo e gradual do controle e da responsabilidade; o papel decisivo da natureza da tarefa e da estrutura do conteúdo; as funções da fala dos participantes e sua potencialidade instrumental para negociar e compartilhar significados; etc. Porém, a mudança à qual aludimos supôs também situar o estudo da interação professor/aluno no próprio cerne dos esforços para compreender a natureza das mudanças educativas e sua relação com os processos de aprendizagem e de desenvolvimento. A interação professor/aluno aparece, na atualidade, como um desses campos privilegiados de estudo e de pesquisa, nos quais, de repente, convergem contribuições e propostas ignoradas mutuamente durante bastante tempo e que podem dar lugar a verdadeiros saltos qualitativos na compreensão do comportamento humano. Isto é, ao menos, o que nos é sugerido pelos esforços atuais, orientados com vistas a elaborar uma explicação convincente e empiricamente fundamentada dos mecanismos de influência educativa, a partir do estudo da interação professor/aluno.
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