Logo Passei Direto
Buscar

Sofrimento Psiquico nas Organizações saúde mental e trabalho Codo & Sampaio

Ferramentas de estudo

Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

CODO, W. & SAMPAIO, J. (orgs). Sofrimento Psíquico nas Organizações. Petrópolis, 
 RJ: Vozes,1995. 
 
Sofrimento Psíquico nas 
Organizações - Saúde Mental & 
Trabalho 
 
Wanderley Codo 
José Jackson Coelho Sampaio 
(organizadores) 
Índice 
 
Á guisa de apresentação......................................................................3 
 
Parte 1. Como fazer?........................................................................6 
Capítulo 1. Ideologia e Reprodução.....................................................10 
(Alberto H. Hitomi) 
Capítulo 2. O conhecimento do trabalhador 
e a teoria das representações sociais.................................38 
(Leny Sato) 
Capítulo 3. Saúde mental e trabalho, um novo (velho) campo 
para a investigação da subjetividade....................................................47 
(Ricardo Augusto de Carvalho) 
Capítulo 4. Saúde e trabalho: Uma abordagem do processo e 
jornada de trabalho............................................................................53 
(José Jackson Coelho Sampaio, Alberto H. Hitomi, 
Erasmo Miessa Ruiz) 
Capítulo 5. Saúde mental e trabalho: um modelo de investigação...........71 
(José Jackson Coelho Sampaio, Wanderley Codo, 
Alberto H. Hitomi) 
 
Parte II. Mulher e trabalho............................................................94 
Capítulo 6. A saúde da mulher trabalhadora........................................96 
(Isabel Cristina Ferreira Borsoi) 
2 
Capítulo 7. Professora primária, amor e dor......................................107 
(Hilma Tereza Tôrres Khoury Carvalho) 
Capítulo 8.Enfermagem, trabalho e cuidado......................................118 
(Isabel Cristina Ferreira Borsoi, Wanderley Codo) 
Capítulo 9.Trabalho e identidade em telefonistas...............................129 
(Isabel Cristina Ferreira Borsoi, Erasmo Miessa Ruiz, 
José Jackson Coelho Sampaio) 
Capítulo 10. Relações creche-família...............................................148 
(Wandeley Codo, Ana Maria de A. Mello) 
Capítulo 11 Histeria em creches.......................................................................156 
(Wanderley Codo) 
 
Parte III. Sofrimento psíquico no trabalho....................................... 
Capítulo 12.Saúde mental e trabalho: Trabalhadores 
Industriais de usina de cana de açúcar............................................168 
(José Jackson Coelho Sampaio, Lucia Helena Soratto) 
Capítulo 13. Saúde mental e trabalho têxtil......................................191 
(José Jackson Coelho Sampaio, Cleide Carneiro) 
Capítulo 14. Saúde Mental e Trabalho na clínica psicológica (a ser introduzido) 
(Maria Celeste A.G. Almeida) 
Capítulo 15. Os efeitos das novas tecnologias sobre 
os trabalhadores e suas organizações.............................................205 
(Luis Antonio Lima, Leila Maria Arnaldo 
Nonnenmacher) 
3 
Capítulo 16.Paranóia e Trabalho....................................................232 
(Wanderley Codo, Alberto H. Hitomi, José Jackson Coelho Sampaio, 
Erasmo Miessa Ruiz) 
Capítulo 17. A síndrome do trabalho vazio em bancários.................251 
Wanderley Codo, José Jackson Coelho Sampaio, Alberto H. Hitomi, 
Marin Bauer) 
Bibliografia.................................................................................264 
4 
À guisa de apresentação 
 
 
 O livro que ora entregamos a julgamento, embora tenha sua independência 
para qualquer leitor que por ele se aventure, segue a trilha de o " Indivíduo, 
Trabalho e Sofrimento", lançado pela Vozes em 1993. 
 Aquele trabalho refletiu os primeiros vôos do Projeto Saúde Mental & 
Trabalho, o qual coordeno, tratava-se de lidar com questões básicas para quem 
quis desenvolver uma área de pesquisa, afinal? de que trabalho estamos falando, 
de tripalium ou poiesis?, afinal? como conceituar saúde/doença mental? Se até 
agora as teorias que abordam o tema foram construídas à distância dos portões das 
fábricas? Tratou-se de uma reunião de ensaios articulados, capaz, os autores 
concordávamos, de compartilhar nossas caminhadas e, com sorte, auxiliar a quem 
faz do trabalho alheio motivo de reflexão. 
 Este livro parte das constatações reportadas em o "Indivíduo, Trabalho e 
Sofrimento", agora enfocando categorias profissionais que foram, durante estes 
anos, objetos de investigação. 
 Talvez seja útil saber sua história. 
 Em 1990/91, enquanto estava na Europa, em busca do aperfeiçoamento de 
metodologia para o PSM&T, o Dr. Jackson me substituiu na coordenação do 
projeto, entre as espinhosas incumbências que acordamos, estava a realização de 
um congresso sobre SM&T, seria uma chance de ouvir e debater com os colegas 
envolvidos com o tema. 
 A montagem que o Dr. Jackson realizara, nos fez perceber que tinhamos 
diante de nós um painel, o mais completo possível à época, desta área no Brasil; 
5 
resolvemos então o pedido das contribuições por escrito, com a mente voltada para 
a realização deste livro. 
 Seria, portanto, em um primeiro momento, a publicação de anais do 1º 
Encontro Nacional de SM&T. O congresso ocorreu e com aquelas características 
que imaginávamos, o mesmo não se deu com este livro. Algumas pessoas não 
entregaram o texto, outras apenas rascunhos que por mais instigantes não se 
prestavam à publicação. Avaliado o material que tinhamos à mão, com excessão 
de dois artigos, restava o nosso grupo e seus desdobramentos em outros estados. 
Uma pena que vários pesquisadores não puderam estar presentes, em 
compensação o livro que ora vem a público ganhou mais unidade, reflete, com 
suas riquezas e idiossincrasias nossa produção de 1988 até 1992. 
 Jackson Sampaio e Alberto Hitomi dividiram comigo a tarefa de direção do 
projeto, o primeiro encarregado de Psiquiatria e Epidemiologia, o segundo 
coordenando as nossas incursões em sociologia do trabalho. Os psicólogos Isabel 
Cristina Borsoi e Erasmo Ruiz estavam praticamente em tempo integral conosco, 
se responsabilizando na prática por vários estudos aqui publicados. Lúcia e Cleide 
eram estagiárias dedicadas que participaram de perto do projeto, como bolsistas. 
 Alhures, Luis Lima e Leila Maria trabalhavam em uma firma de consultoria 
em Porto Alegre utilizando o mesmo método e em parceria conosco. Hilma fazia o 
mesmo com sua tese de mestrado, orientada por mim em Belém do Pará. Martin 
Bauer foi meu parceiro, valioso e ocasional na London School of Economics, ao 
formular a "síndrome do trabalho vazio" na Inglaterra e Ana Maria Mello me 
auxiliou com sua experiência e senso inovador no estudo sobre Creches. 
 Leny Sato e Ricardo de Carvalho comparecem aqui como dois 
pesquisadores dedicados e produtivos que são nesta área, Leny vem atuando 
sistematicamente no DIESAT, Departamento Intersindical de Estudos de Saúde do 
Trabalhador, atuando como pesquisadora sobre o conceito de penosidade, sua 
contribuição neste livro é sobre o tema, Ricardo coordena e descreve aqui a 
6 
experiência do NESTH, Núcleo de Estudos sobre Saúde do Trabalhador de Minas 
Gerais, ligado à UFMG, na minha opinião um centro interdisciplinar importante e 
único do país. Se notará as ligeiras diferenças de abordagem em seus artigos, mas 
o que deve ser ressaltado é a unidade de propósitos em cada um dos modos de 
atuação. 
 Não seremos nós a dizer sobre a validade destes estudos para a melhor 
compreensão e intervenção na saúde mental no trabalho. Se houver alguma ela se 
deve, na minha opinião à uma forma de se engajar na lida científica que vale a 
pena explicitar. 
 Quando garoto, leitor assíduo de história em quadrinhos, me lembro de uma 
ficção (se não me engano tratava-se de "Mandrake"),onde havia invasores 
observando a terra visando uma posterior invasão, ao passear com sua nave por 
uma fazenda, e depois pelo jockey clube notaram que homens serviam comida aos 
cavalos, concluiram portanto que os equinos eram os senhores aqui, os primeiros a 
serem dominados, portanto. Já iniciando a minha carreira científica, no 
departamento de Psicologia Experimental da USP, intrigou-me o fato de que um 
colega de pós-graduação escolhera como animal para suas pesquisas a periplaneta 
americana, nome vulgar; barata, sua resposta: "Estudo baratas porque por elas não 
posso ter o mínimo sentimento". 
 Iniciei minha carreira como behaviorista, e talvez tenha abandonado os 
canones de Skinner exatamente pela crítica ao estranhamento como método de 
aquisição do conhecimento. 
 Em uma rápida conversa que tive com Christophe Dejours em Paris, ele 
pediu que descrevesse o método com que trabalhávamos, quando falava que 
costumávamos realizar uma observação detalhada do processo de trabalho, de 
preferência com vídeo, ele discordou profundamente ("Nous sommes anti 
objetiviste"), me explicava que a observação atrapalha a atenção ao discurso do 
trabalhador, que a palavra dele deveria ser a única fonte de dados. 
7 
 Pois bem, ouso discordar também deste tipo de miopia: Sei e abuso da 
importância de ouvir, cuidadosamente, carinhosamente os trabalhadores, mas não 
foi a psicanálise, exatamente os postulados que orientam o trabalho de Dejours 
que nos ensinou a todos que não sabemos, ou queremos esquecer as razões do 
nosso sofrimento? 
 Um exemplo deve bastar: 
 Em 1981, para a minha tese de doutoramento, olhando o controle de 
qualidade de uma fábrica de eletro eletrônicos, dei-me conta de um osciloscópio 
simplificado que atestava a qualidade de alguns circuitos. Ao entrevistar o 
trabalhador ele me dizia de um aparelho extremamente complicado, com "milhares 
de curvas", conclui na época que o trabalhador estava valorizando subjetivamente 
o próprio trabalho, já que sabia (inconscientemente?) que poderia ser substituído 
por qualquer um. O discurso apenas poderia nos revelar isto? 
 O projeto saúde mental & trabalho, cuja parte dos resultados são mostrados 
neste livro, busca a objetividade mas desconfia dela, checa com o próprio sujeito a 
validade de suas observações, respeita o discurso alheio como critério de verdade, 
mas não permite que ele seja o único farol a descortinar o caminho. 
 Tecnicamente falando, desenvolvemos uma fusão entre o método dedutivo 
e o método indutivo, que tem se mostrado, a nós pelo menos, como altamente 
produtiva. Às vezes, é claro, nos perdemos no caminho, mas quando achamos 
algo, as descobertas tem resistido ao crivo da praxis ou à exigência da ciência 
rigorosa. 
Que se examine o resultado. 
 Wanderley Codo 
8 
Parte I. 
Como Fazer 
9 
 saúde e\ou doença mental nos atinge no que temos de mais subjetivo, no 
sentido de pertencente estritamente ao sujeito, territórios inexpugnáveis ao 
outro, e via de regra a nós mesmos, não há, não pode haver dois delírios 
iguais: as dores que o histérico/hipocondríaco inventa, doem na exata medida de 
sua radical idiossincrasia, da sua impossibilidade também radical de 
compartilhamento, da ausência de uma racional exteriorizada, de seu desrespeito à 
anatomia, quem sofre é o sujeito, não mais os músculos do seu pescoço. A 
saúde/doença mental obriga o pesquisador a enfrentar o dilema do indivíduo, 
sempre outro no momento em que a lógica ousa desvendá-lo. 
A 
 No entanto, e não raro, a doença mental é determinada exteriormente ao 
indivíduo, por fatores que chamaremos de objetivos, no sentido de independentes 
do sujeito: algumas drogas, por exemplo, provocam invariavelmente alucinações, 
os efeitos dos traumas sexuais na infância são conhecidos o suficiente para 
permitir aos educadores traçar uma rota profilática na escola ou na família. Eis o 
pesquisador obrigado, agora a percorrer caminho inverso: impõe-se a 'eliminação' 
da idiossincrasia, a busca de invariantes, o que, apesar das nossas diferenças 
individuais está provocando aqueles sintomas? 
 É assim, particularmente na área que Le Guillant chamava de 
psicopatologia do trabalho, e que hoje chamamos de saúde mental no trabalho, por 
mais que o trabalho compareça como estranho ao sujeito que o realiza, por mais 
que crave a sua história em momentos alhures á existência deste trabalhador em 
particular, tem-se revelado capaz de provocar sofrimentos, no sentido mais 
intimista que esta palavra pode ter. 
 Eis a principal armadilha que esta área de conhecimento esconde, eis 
também, para mim, o seu principal fascínio: A necessidade de olhar 
cuidadosamente a árvore, a imposição de não olvidar a floresta. Nada mais 
racional do que o trabalho, nada mais insensato do que a doença mental (tantas 
vezes insensatez aparece como sinônimo de loucura), o trabalho preso 
10 
inelutavelmente ao que a trama social tem de mais objetivo, a doença mental 
escrava do que o sujeito preserva como seu, intransferível, inominável. 
 Tema complexo este, como se costuma dizer quando a nossa ignorância é 
maior do que podemos suportar. 
 Que seja uma experiência pessoal. 
 Ao lecionar Saúde mental e trabalho no curso de Psicologia em Ribeirão 
Preto, adquiri o hábito de fornecer leituras sobre os quadros psicopatológicos desta 
ou daquela categoria profissional, e depois solicitar a um trabalhador que nos 
conceda uma entrevista em profundidade, para que os alunos possam checar o 
material de leitura com a experiência sensível do trabalhador, tal e qual o 
trabalhador o reporta. Em um destes exercícios, pedi a leitura do clássico "A 
neurose das telefonistas", de Le Guillant, e entrevistei uma telefonista do campus, 
enquanto os alunos observavam. 
 Não há como disfarçar o espanto; outro país, outras condições sociais e de 
trabalho, outra pessoa e, no entanto, visivelmente o mesmo quadro descrito a tanto 
tempo pelo médico francês. Não há também como iludir o fato de que, por 
melhores que sejam as descrições sobre o trabalho da telefonista e suas neuroses, 
por mais que cada pesquisador desta área tente sua incursão no problema, ainda 
não a compreendemos. 
 Tenho para mim que as telefonistas estão encalacradas em uma linha muito 
tenue entre a comunicação e o silêncio, e que não se compreenderá suas neuroses 
enquanto não se compreender aqueles mistérios. Mas sabemos tão pouco sobre a 
linguagem e sequer temos idéia do que é o silêncio! Como compreender as dores 
d'alma que acometem aquelas trabalhadoras postas diante, milhares de vezes por 
dia ante um dilema tão velho? Outra vez, como passear entre a árvore e a floresta, 
sem perder de vista qualquer um dos dois universos, ou o que é pior, sem se deixar 
encantar por um deles, apagando inconscientemente o outro? 
11 
 A primeira parte deste livro é dedicada a este problema. 
 O primeiro texto foi escolhido por lidar com um rigor raro sobre a questão 
da ideologia, apesar de não abordar diretamente a questão da saúde mental no 
trabalho. Alberto Hitomi consegue passear com ousadia entre as várias 
formulações que o conceito vem sofrendo, exercitando uma crítica aguda e sempre 
com um mesmo eixo; como a História é capaz de produzir estórias, ou ainda, 
como a organização objetiva da produção produz e reproduz representações, que 
apesar de coletivas, ainda trazem a marca da subjetividade do seu tempo. Penso 
que Hitomi consegue mapear o problema (ninguém ousaria pedir para resolvê-lo, 
retomando escritos de Marx e seguidores a partir deles mesmos, sabendo ler, com 
acuidade cada uma das formulações, por mais provisórias que apareçam nos 
clássicos. Será inútil,suponho, discorrer sobre a importância do conceito de 
ideologia para as pesquisas de Saúde Mental no Trabalho. 
 É ao mesmo problema, embora com outra abordagem que Leny Sato se 
dedica, percorre as formulações (basicamente francesas) de representação social, 
em busca de compreender o intercruzamento entre objetividade e subjetividade na 
formulação do conceito de trabalho penoso, chama a atenção para a necessidade 
do conhecimento científico ter em conta um outro conhecimento, que vai se 
estruturando no cotidiano de quem sofre e precisa reconhecer as mazelas do 
trabalho cotidiano. 
 Ricardo Augusto relata as experiências de um grupo de Minas, há tempos e 
com seriedade dedicado aos problemas de saúde no trabalho, particularmente no 
que tange ao trabalhador enquanto sujeito, e aos modos de operar com esta 
subjetividade, o texto está aqui para que se ressalte a importância metodológica do 
discurso na compreensão do sofrimento do trabalhador. 
 Jackson Sampaio, Hitomi e Erasmo Ruiz comparecem com uma discussão 
importante sobre processo e jornada de trabalho em um texto que procura mapear 
as variáveis que devem ser tomadas em conta no processo de trabalho, se 
12 
quisermos aprofundar nosso conhecimento sobre a forma como os trabalhadores 
adoecem na produção. 
 Esta seção fecha com um texto que descreve a forma como o projeto Saúde 
Mental e Trabalho vem enfrentando a questão do método, propositalmente 
esquemático, o texto procurou ser um guia de atuação em pesquisa nesta área, um 
"how to do", que não pretende aprofundar em cada uma das direções apontadas. 
Além de seu valor intrínsico, para quem se interessa pela área, o texto evita que se 
decline a metodologia em cada um dos estudos apresentados a seguir, já que quase 
todos seguem os mesmos parâmetros apontados aqui. 
 Wanderley Codo 
13 
Capítulo 1. 
IDEOLOGIA E REPRODUÇÃO 
 ALBERTO H. HITOMI 
I – INTRODUÇÃO 
 
Já se tornou um lugar comum afirmar que a concepção de ideologia expressa em 
"A Ideologia Alemã" deve ser entendida como falsas idéias. Esta interpretação 
surge a partir da analogia que Marx e Engels estabelecem entre a produção de 
idéias, de representações, da consciência e a inversão da imagem na retina. 
 Esta compreensão é expressa, por exemplo, por Durham (1984): 
 "Desde os ideólogos franceses até o jovem Marx da Ideologia Alemã e 
permeando em seguida boa parte tanto da tradição marxista quanto da positivista, 
está a convicção de que 'idéias falsas' ou distorcidas (superstições para os 
ideólogos, ideologia para Marx) são produto de instrumento de opressão política 
de uma classe; e, inversamente, que 'idéias' verdadeiras, construídas pela ciência 
(ou pelo proletariado, ou pela ciência verdadeira que é a do proletariado) são 
armas e instrumentos necessários na luta contra a opressão da classe dominante" 
(pág. 11). 
 Ou ainda por Boudon (1989): 
 "Consideremos, a título de exemplo, algumas definições clássicas. Em 
primeiro lugar a célebre definição de Marx da Ideologia Alemã: 
 A produção de idéias, de representações, da consciência é, antes de tudo, 
direta e intimamente imbricada na atividade material e comércio material dos 
homens. Ela é a língua da vida real. As representações, o pensamento e o comércio 
intelectual dos homens aparecem, aqui também, como emanação direta de seu 
14 
comportamento material (...). Se em toda ideologia os homens e suas relações 
parecem estar de cabeça para baixo, como dentro de uma câmara obscura, isto 
resulta de seu processo de vida histórica, exatamente como a inversão dos objetos 
na retina resulta de seu processo de vida diretamente física. 
 As ideologias aparecem aqui como idéias falsas - estão de cabeça para 
baixo - que o 'comércio material' inspira aos homens, necessariamente" (págs 26-
27). 
 É um procedimento pouco usual e até reprovável - diríamos até mesmo 
indelicado - citar a citação que Boudon faz de Marx e Engels. Porém, neste caso, 
isso foi absolutamente necessário. 
 A partir apenas e tão somente desse trecho, Boudon conclui que a 
concepção ou definição de ideologia presente em "A Ideologia Alemã" é a de 
idéias falsas. Boudon entende a analogia das inversões das representações e das 
imagens na retina como falsidade. O estar "de cabeça para baixo" é entendido 
como falso. 
 Lendo mais atentamente o trecho vemos que em nenhum momento aparece 
o termo falsa. Por que então estar de cabeça para baixo, estar invertido significaria 
necessarimente ser falso? Na verdade, a noção de falsidade é uma das 
interpretações já consolidadas pela tradição, ossificada por toda uma linha de 
intérpretes e, quase sempre, contraposta à verdade. É mais o peso dessa tradição, 
do que o trecho que Boudon destaca dos escritos de Engels e Marx, que permite a 
este autor concluir que a ideologia é aí entendida como falsas idéias. E ao fazê-lo 
cometer um equívoco: uma citação que não comprova nada e uma interpretação 
que na verdade é um pressuposto de Boudon e não uma interpretação desse trecho 
em particular. É também verdade que essa compreensão - ideologia enquanto 
idéias "falsas" - pode emergir de uma leitura de "A Ideologia Alemã". 
15 
 Mas existe um outro modo de se entender essa inversão. Chauí (1984), por 
exemplo, diz: 
 "A ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe. Por ilusão não 
devemos entender 'ficção', 'fantasia', 'invenção gratuita e arbitrária', 'erro', 
'falsidade', pois com isto suporíamos que há ideologias falsas ou erradas e outras 
que seriam verdadeiras e corretas. Por ilusão devemos entender: abstração e 
inversão. Abstração (...) é o conhecimento de uma realidade tal qual ela se oferece 
à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que apenas 
classificamos, ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal realidade 
foi concretamente produzida por um determinado sistema de condições que se 
articulam internamente de maneira necessária. Inversão (...) é tomar o resultado de 
um processo como se fosse seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as 
consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante" (pág. 104). 
 Uma representação ideológica é uma representação imediata da realidade, 
por isso, abstrata e ilusória, ou seja, invertida da realidade, pois esta não se 
apresenta imediatamente à consciência, apresenta-se mediatamente. 
 Uma outra maneira de entender a inversão, em outro contexto, porém a este 
relacionado, é também apontado por Chauí (1984): 
 "Quando Marx e Engels afirmam que as relações sociais capitalistas 
aparecem tais como são, que o aparecer e o ser da sociedade capitalista se 
identificaram, eles o dizem porque houve uma gigantesca inversão na qual o social 
vira coisa e a coisa social" (pág 59). 
 São duas as inversões: a primeira refere-se à reificação das relações sociais, 
na qual "o social vira coisa e a coisa social"; a segunda ocorre no interior da 
consciência, o próprio processo de conhecimento da realidade. A representação 
imediata, a expressão consciente da forma como os homens atuam e produzem 
16 
materialmente é uma representação invertida porque os resultados do processo de 
intercâmbio aparecem como causa dessa relação. 
 Dizer que ideologia são idéias falsas que o "comércio material inspira aos 
homens" (Boudon) ou que são "idéias invertidas" (Durham) é simplesmente perder 
este sentido da inversão, a noção de inversão enquanto ilusão e abstração, mas 
principalmente enquanto reificação. 
 Cremos que é este sentido que Marx irá desenvolver, em sua forma 
científica, em sua crítica à Economia Política, em "O Capital". Quando Marx diz, 
por exemplo, no capítulo do processo de troca que os homenssão os guardiões da 
mercadoria, os seus representantes (personificações de forças econômicas), e que 
esta, como não tem pés, tem de ser levada até o mercado para ser trocada. A 
inversão é aí expressa enquanto fetiche da mercadoria. E não é falsa, é verdadeira. 
 Ou ainda, no capítulo da maquinaria, quando Marx, entre outras coisas, 
afirma que não é a força de trabalho que usa as condições de trabalho, mas que são 
as condições de trabalho que usam a força de trabalho. Formulações que reforçam 
a compreensão da inversão como realidade, como gigantesca inversão no qual o 
social vira coisa e a coisa social. 
 Não queremos afirmar que Marx sempre foi marxista, é evidente. Alguns 
poderiam dizer que estamos tomando dois textos qualitativamente diferentes da 
produção teórica de Marx, diferentes não apenas cronologicamente: um "pré-
marxista" e outro marxista. 
 Tomemos então um texto anterior e veremos que a inversão aparece ainda 
com mais força e mais realidade. Referimo-nos aos "Manuscritos Econômico-
Filosóficos" de 1844. No terceiro manuscrito, no item [Dinheiro], Marx (1985) 
escreve: 
 "Aquilo que mediante o dinheiro é para mim, o que posso pagar, isto é, o 
que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Minha 
17 
força é tão grande como a força do dinheiro. As qualidades do dinheiro - 
qualidades e forças essenciais - são minhas, de seu possuidor. O que eu sou e o 
que eu posso não são determinados de modo algum por minha individualidade. 
Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o 
efeito da feiúra, sua força afugentadora, é aniquilado pelo dinheiro" (pág. 30). 
 Marx fala explícita e inequivocamente em inversão das individualidades: 
 "A inversão e confusão de todas as qualidades humanas e naturais, a 
irmanação das impossibilidades - a força divina - do dinheiro repousa na sua 
essência genérica, alienante e auto-alienante do homem. O dinheiro é a 
capacidade alienada da humanidade" (pág. 31). 
 Eis portanto o significado crítico, porque real, da inversão. O poder das 
mercadorias em "modificar" e transformar em seu contrário as qualidades 
humanas. É claro que Marx, aqui e nos trechos referidos de "O Capital" não está 
tratando de ideologia, mas de seus fundamentos, explicita os limites e 
pressupostos nos quais os indivíduos desenvolvem suas atividades. 
 Voltemos à questão da inversão das representações. A interpretação da 
ideologia associada à noção de falsidade é, talvez, autorizada por Engels. Refere-
se, porém, à falsidade da consciência. Na famosa carta a Mehring, Engels (1978) 
escreve: 
 "A ideologia é um processo que se opera por parte do chamado pensador 
conscientemente, com efeito, mas com uma consciência falsa. As verdadeiras 
forças propulsoras que o movem, permanecem ignoradas para ele; de outro modo 
não seria tal processo ideológico. Se imagina, pois, forças propulsoras falsas ou 
aparentes. Como se trata de um processo discursivo, deduz seu conteúdo e sua 
forma do pensar puro, seja o seu próprio ou de seus predecessores" (pág.523, trad. 
minha). 
18 
 Althusser também sustentou a interpretação da inversão como falsidade, 
como irrealidade. Em "Aparelhos Ideológicos de Estado" (Althusser, 1983) afirma 
que a ideologia aparece, em "A Ideologia Alemã" num contexto positivista e que é 
concebida como pura ilusão, puro sonho vazio e vão, bricolage imaginário (cf. 
pág. 83). Novamente a realidade da inversão e o seu significado crítico são 
ignorados. 
 O que mais surpreende nessas interpretações é que justamente no texto de 
"A Ideologia Alemã" Marx e Engels elaboraram uma teoria materialista da história 
e tentam justamente mostrar a historicidade das idéias e também da ideologia. Em 
"A Ideologia Alemã" Engels e Marx demonstram que mesmo as ideologias 
possuem uma base material de existência, possui uma história que no entanto está 
fora delas (da história das idéias e do discurso dessas idéias). Escreveram eles: 
 "A existência de idéias revolucionárias numa determinada época já 
pressupõe a existência de uma classe revolucionária" (Marx e Engels, 1984, 
pág.73). 
 Ou que: 
 "Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que dominava antes dela 
é obrigada, para alcançar os fins a que se propõe, a apresentar seus interesses 
como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade, isto é, para 
expressar isso mesmo em termos de idéias: é obrigada a emprestar às suas idéias a 
forma de universalidade, a apresentá-las como sendo as únicas racionais, as únicas 
universalmente válidas. A classe revolucionária surge, desde o início, não como 
classe; aparece como a massa inteira da sociedade frente à única classe dominante. 
Ela consegue isso porque no início seu interesse realmente ainda está ligado ao 
interesse coletivo de todas as classes não-dominantes e porque, sob a pressão das 
condições prévias, esse interesse ainda não pôde desenvolver-se como interesse 
particular de uma classe particular. Sua vitória é útil, também, a muitos indivíduos 
de outras classes que não alcançaram uma posição dominante, mas apenas na 
19 
medida em que coloque agora esses indivíduos em condições de elevar-se à classe 
dominante. Quando a burguesia francesa derrubou a dominação da aristocracia, 
permitiu que muitos proletários se elevassem acima do proletariado, mas 
unicamente na medida em que tornaram-se burgueses" (pag.75) (grifos meus, 
A.H.H.) 
 No início, diz Marx, o interesse da classe revolucionária está realmente 
ligada ao interesse coletivo, a oposição entre não-dominantes e a classe dominante 
realmente acontece durante o período revolucionário, e os indivíduos realmente 
conseguem elevar-se à classe dominante, como os proletários franceses. 
 A ideologia é entendida em "A Ideologia Alemã", portanto, 
fundamentalmente enquanto ação, enquanto prática, porém, ao mesmo tempo, 
possui uma expressão subjetiva, uma expressão cognitiva, que nada mais é do que 
as representações ou reflexões nascidas dessa prática ou do conhecimento de seus 
limites ou pressupostos; ou ainda das aspirações. 
 Diríamos até que a ideologia possui uma estória, pois se funda na biografia 
ou numa história de uma subcoletividade, e não na história efetiva. 
 Ideologia é, então, uma realidade material, pois é um conjunto de práticas, 
seja de um indivíduo ou de subcoletividades. 
 No entanto, as idéias, as representações ou a própria consciência nascem, 
em "A Ideologia Alemã", imediatamente das práticas, das ações ou, como 
escreveram Marx e Engels, do processo de vida real, como "emanação direta do 
comportamento material". Em "A Ideologia Alemã" não existem mediações entre 
a ação e a consciência, entre a história e a biografia. Chamaríamos isso de 
mecanicismo? Hoje talvez sim. Vemos, entretanto, como a exposição de 
pressupostos de uma nova concepção: o materialismo histórico. 
 
II - IDEOLOGIA: UM TERMO, TRES QUESTÕES 
20 
 
 Após a concepção de ideologia expressa em "A Ideologia Alemã", ou 
melhor, difundida a partir da compreensão de Marx e Engels sobre ideologia, a 
questão da ideologia e da consciência se tornou uma verdadeiro quiproquó - como 
diria Marx. Quiproquó: ideologia como erro, como reflexo, falsidade, mistificação, 
manipulação. Quiproquó: consciência falsa, reificada, infeliz, desdobrada, 
fragmentada, possível, etc. Qual a noção de consciência para Marx e Engels? Há, 
na verdade, uma dupla compreensão: enquanto conjunto de representações ou 
idéias e enquanto ação. É este segundo sentido que é perdido em todos esses 
anexos adjetivadores, essas qualificações da consciência. 
 A compreensão da ideologia pendeu entre o erro e a mistificação 
maquiavélica.A consciência, e junto com ela a compreensão da questão, se 
fragmentou em adjetivos a ela aglutinados. 
 Examinemos um pouco melhor esse quiproquó através de Boudon. Na obra 
"A Ideologia" (1989), Boudon resumiu os principais tipos de definição de 
ideologia e os principais tipos de explicação. Neste trabalho, Boudon argumenta 
em favor da definição de ideologia de tipo Marx-Aron-Parsons e denine-a "como 
doutrinas que repousam sobre teorias científicas, mas que são teorias falsas ou 
duvidosas ou indevidamente interpretadas, às quais se dá uma credibilidade que 
não merecem" (pag. 44). Critica a "definição moderna (de tipo Shills-Geertz-
Althusser)" argumentando que esta "tem todo tipo de lacuna, a ponto de não 
percebermos claramente o que ela pretende designar" (pag.40). Complementa 
dizendo que "se definirmos a ideologia pela noção de ação simbólica, ela incluirá 
tanto os teoremas matemáticos (...) até o conjunto de todas as opiniões políticas. E 
é mesmo para uma confusão desse gênero que tende uma definição como a de 
Althusser, que subsume sob o vocábulo ideologia as idéias, conceitos, imagens, 
teorias, representações morais, filosóficas, religiosas etc." (pág. 41) 
 Teríamos, esquematicamente, as definições de ideologia: 
21 
Tipos de definição de ideologia 
Tipos de Tradição 
 Referidos ao critério de 
verdadeiro e falso 
Não referidos ao critério de 
verdadeiro e falso 
Tradição Marxista 
 Marx: 
A ideologia como ciência 
falsa 
Lenin: 
A ideologia como arma na luta 
de classes 
 Os teóricos da 
consciência-reflexo 
Althusser: 
A ideologia, atmosfera 
indispensável 
à respiração social 
 Aron: 
A ideologia não advinda 
diretamente, 
mas indiretamente do 
verdadeiro e do 
falso 
Geertz: 
A ideologia como ação 
simbólica 
Tradição Não-Marxista 
 Parsons: 
A ideologia, desvio em 
relação à objetividade 
científica 
Shils: 
A ideologia, tipo particular de 
sistema 
de crenças 
 (Boudon, 1989, págs 32-33) 
 
22 
 Esta não é a classificação final sobre os tipos de definição de ideologia que 
Boudon formula. Ele modificará e sintetizará a sua posição mais adiante (cf. pág. 
87). Porém, para os nossos objetivos, essa classificação intermediária é mais 
importante. 
 Dentre as definições de ideologia encontram-se: falsa consciência, 
consciência como reflexo, atmosfera indispensável à respiração social, desvio em 
relação à objetividade científica, ação simbólica, tipo particular de crenças. 
 Vemos agora, a partir da diversidade das definições, que não se trata de 
uma única questão, são pelo menos três. Poderíamos distinguir, sem muito rigor, 
estas problemáticas como: 
 1 - Gnosiológica ou da Teoria do Conhecimento: a velha questão de como 
se adquire, ou melhor, como se constrói o conhecimento. Que, por sua vez, se 
desdobra em outras duas: o conhecimento científico (Ciência) e o processo de 
conhecimento do indivíduo - que talvez pudesse ser incluída no item 2. (falsa 
consciência, desvio das representações em relação à objetividade científica). 
 2 - Ontológica: O que é e em que consiste a consciência? (consciência 
como reflexo, ação simbólica). 
 3 - Política: Função da ideologia no sistema social (atmosfera indispensável 
à respiração social, tipo particular de crenças). 
 Estas distinções e inclusões das definições nestas problemáticas devem ser 
consideradas como uma primeira aproximação, são, portanto, provisórias. Nosso 
objetivo é somente o de indicar a presença dessas problemáticas nas definições de 
ideologia e mostrar os distintos níveis de realidade envolvidos. 
 Estas definições de ideologia, portanto, não possuem a homogeneidade 
pretendida por Boudon, que é o pressuposto para juntá-las numa mesma tabela. 
Referem-se a pelo menos três problemáticas distintas, embora sejam totalmente 
imbricadas. 
23 
 
III - IDEOLOGIA E REPRODUÇÃO 
 Em grande parte das formulações a partir da década de 60 notamos uma 
profunda alteração nas definições e tratamento dados à ideologia. Ela é menos 
idéia e mais prática, ação; menos discurso que comportamento. 
 Este novo sentido pode ser visto em Bourdieu com a noção de habitus, em 
Althusser como práticas dos aparelhos ideológicos de Estado, em Habermas como 
ideologia enquanto técnica e ciência. O caso extremo, dentro desta ótica, é o 
consumo enquanto força produtiva e ideologia, tal como postulado por 
Baudrillard. 
 Gramsci, como bem lembrou Althusser, foi o único que já havia avançado 
nessa perspectiva. Essa perspectiva poderia ser encontrada, já em Gramsci, quando 
este assinala a mudança na função e na ação dos intelectuais nas sociedades 
contemporâneas. Eles passam de uma função retórica para o desempenho de 
funções dirigentes e organizativas. Interessante observar que é somente a partir da 
década de 60 que Gramsci começa a ser traduzido para o inglês, francês e 
português. 
 Habermas e a Escola de Frankfurt em geral, Althusser, Bourdieu, Gramsci e 
Baudrillard sublimam uma modificação no caráter das ideologias: menos 
concepção de mundo que ação no mundo, menos representação do que ação 
representativa. Remetem também a um momento de maior complexidade das 
superestruturas e à maior intervenção do Estado, quer na economia, quer na 
legitimação dos sistemas sociais. 
 Outras mudanças poderiam ser apontadas: Mais concreta, pois inserida no 
processo de reprodução social global das formações sociais. Mais integrada, ação 
social e controle; envolve os pólos subjetivo e objetivo. Mais científica e menos 
filosófica. Até interdisciplinar em alguns casos, com pesquisas empíricas. Neste 
24 
último item lembramos o célebre estudo de Adorno, nos anos 40, sobre a 
Personalidade Autoritária. 
 Em "O Capital", Marx (1894), no capítulo da reprodução simples, já 
analisava o consumo individual do trabalhador como momento da produção e 
reprodução do capital: 
 "O consumo individual do trabalhador continua sendo, pois, um momento 
da produção e reprodução do capital, quer ocorra dentro, quer fora da oficina. (...) 
A constante manutenção e reprodução da classe trabalhadora permanece a 
condição constante para a reprodução do capital. O capitalista pode deixar 
tranquilamente seu preenchimento a cargo do impulso de auto-preservação e 
procriação dos trabalhadores" (pág. 157). 
 Althusser é o único a explorar, de um modo sistemático, porém parcial, 
estas indicações de Marx. Enuncia da seguinte forma a perspectiva da reprodução, 
condição necessária para a caracterização das instâncias superestruturais: 
 "Pensamos que é a partir da reprodução que é possível e necessário pensar 
o que caracteriza o essencial da existência e natureza da superestrutura. Basta 
colocar-se no ponto de vista da reprodução para que se esclareçam muitas questões 
que a metáfora espacial do edifício indicava a existência sem dar-lhes resposta 
conceitual" (Althusser, 1983, pág. 62). 
 Examinemos, brevemente, como algumas dessas questões se apresentam 
nos autores citados. Comecemos por Bourdieu. 
 
Bourdieu: a mediação entre sujeito e história 
 Bourdieu (1983) define habitus como "sistema de disposições duráveis e 
transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as 
necessidades objetivas" (pág. 82). 
25 
 Para Bourdieu (1983) o habitus é produzido pelas condições de existência 
das classes: 
 "As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições 
materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser 
apreendidas sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente 
estruturado, produzem habitus, sistema de disposições duráveis, estruturasestruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, 
como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem 
ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares' sem ser o produto de obediência a 
regras, objetivamente adaptadas a seu fim, sem supor a intenção consciente dos 
fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingí-los; e 
coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um 
regente" (págs 60-61). 
 Ortiz (1983) considera o conceito de habitus, no interior da construção 
bourdieana, como a mediação reencontrada entre sujeito e história: 
 "Enquanto para Sartre, para a construção de uma teoria da prática, encontra 
a mediação entre sujeito e história no conceito de projeto, que sublinha a 
especificidade de uma ação colocada no tempo futuro, Bourdieu recupera a velha 
idéia escolástica de habitus que enfatiza a dimensão de um aprendizado passado" 
(pág. 14). 
 
Althusser: AIE - prática e imaginário 
 Na obra "Aparelhos Ideológicos de Estado", Althusser pretende elaborar 
uma teoria da ideologia em geral a partir da discussão sobre a reprodução das 
condições sociais de produção. Antes, Gramsci já havia caminhado nessa direção, 
e o próprio Althusser (1983) assinala numa nota: 
26 
 "Ao que saibamos, Gramsci é o único que avançou no caminho que 
retomamos. Ele teve a idéia "singular" de que o Estado não se reduzia ao aparelho 
(repressivo) de Estado, mas compreendia, como dizia, um certo número de 
instituições da "sociedade civil": a Igreja, as Escolas, os Sindicatos etc. 
Infelizmente, Gramsci não sistematizou suas intuições, que permaneceram no 
estado de anotações argutas, mas parciais" (pag.67). 
 E, antes de Gramsci, Marx e Engels, em "A Ideologia Alemã" (1895), já 
escreviam: 
 "Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante 
fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de 
uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e 
adquirem através dele uma forma política (pag.98) (grifos meus A.H.H.) 
 Grande parte do esforço de Althusser é o de esclarecer de que forma se dá, 
concretamente, essa mediação e demonstrar a forma política que assumem as 
instituições. 
 Althusser parte da formulação de Marx acerca da reprodução e da 
circulação do capital social total (Marx, 1985, seção III, livro II) para elaborar sua 
teoria dos aparelhos. Sintetiza da seguinte forma o processo de reprodução 
expresso no livro II: 
 "Toda formação social para existir, ao mesmo tempo que produz, e para 
poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção. Ela deve, portanto, 
reproduzir: 
 1) as forças produtivas 
 2) "as relações de produção existentes" (Althusser, 1983, pag.54) 
 A reprodução das forças produtivas consiste na reprodução dos meios de 
produção e na reprodução da força de trabalho. O "meio material" da reprodução 
da força de trabalho é o salário; porém, a reprodução da qualificação profissional - 
27 
segundo Althusser - é feita pela escola, e que ele entende como um conjunto de 
técnicas e conhecimentos e as regras do bom comportamento. Para Althusser a 
necessidade de reprodução da qualificação se impõe porque a força de trabalho 
deve ser competente, deve ser "apta a ser utilizada no sistema complexo do 
processo de produção" (pag. 57), sendo, portanto, uma das condições sociais de 
produção. E esta qualificação é reproduzida pela escola, ou melhor, pelo Aparelho 
Ideológico Escolar , como designa Althusser. Por Aparelho Ideológico de Estado 
(AIE) deve-se entender: 
 "Designamos pelo nome de AIE um certo número de relidades que 
apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e 
especializadas" (pag.68). 
 Entre os AIE encontram-se: AIE religiosos, escolar, familiar, jurídico, 
político, sindical, de informação e cultural. Althusser distingue ainda entre o 
Aparelho Repressivo de Estado (ARE) - o governo, a administração, o exército, 
polícia, prisões etc. - e os AIE: o ARE "funciona através de violência" ao passo 
que os AIE "funcionam através da ideologia" (pag.69). Segundo Althusser o ARE 
e os AIE são os reponsáveis pela reprodução das relações de produção e pela 
reprodução da superestrutura jurídico-política e ideológica. 
 Na construção althusseriana "o aparelho de Estado que assumiu a posição 
dominante nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classe 
política e ideológica contra o antigo aparelho ideológico de Estado dominante (a 
Igreja), é o AIE escolar" (pag.77). Isso porque: 
 "Ela (a escola) se encarrega das crianças de todas as classes desde o 
maternal, e desde o maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante 
aqueles anos em que a criança é mais vulnerável". Ao final do processo de 
escolarização-inculcação "cada grupo dispõe da ideologia que ele deve preencher 
na sociedade de classe: papel de explorado, (...) papel de agente da exploração, 
(...) de agente da repressão, (...) ou de profissionais da ideologia" (pag.79). 
28 
 Na parte final do trabalho, na qual Althusser formula suas teses e oferece 
um exemplo da ideologia religiosa cristã, é onde ele faz suas críticas a Marx. Diz 
que a concepção da ideologia em "A Ideologia Alemã" não é marxista (sic!), e 
argumenta: 
 "Na Ideologia Alemã, esta fórmula (a de que a ideologia não tem história) 
aparece num contexto nitidamente positivista. A ideologia é concebida como pura 
ilusão, puro sonho, ou seja, nada. Toda a realidade está fora dela. 
 (...) 
 A ideologia é então para Marx uma bricolage imaginário, puro sonho, vazio 
e vão, constituído pelos "resíduos diurnos" da única realidade plena e positiva, a 
da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente 
sua existência. 
 (...) 
 Na ideologia alemã a tese de que a ideologia não têm história é portanto 
uma tese puramente negativa que significa ao mesmo tempo que: 
 1) a ideologia não é nada mais do que puro sonho (fabricada não se sabe 
por que poder a não ser pela alienação da divisão do trabalho, porém esta 
determinação é negativa). 
 2) a ideologia não tem história, o que não quer dizer que ela não tenha uma 
história (pelo contrário, uma vez que ela não é mais que o pálido vazio invertido 
da história real) mas que ela não tem uma história sua" (pag.83). 
 Para terminar a exposição da formulação de Althusser resumamos suas 
teses sobre a ideologia: 
 Tese 1 (forma imaginária da ideologia): "A ideologia representa a relação 
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência" (pag. 85). 
29 
 Tese 2 (materialidade da ideologia): "A ideologia tem uma existência 
material; no aparelho e em suas práticas" (pag. 88) 
 Tese 3 : "A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos. 
 3.1: Sua submissão ao Sujeito 
 3.2: Reconhecimento mútuo 
 3.3: Garantia de que tudo está bem" (pag. 102-103) 
 E Althusser conclui: "É, certamente, em última instância, a reprodução das 
relações de produção e demais relações que dela derivam" (pag. 104). 
 Gramsci: uma teoria das superestruturas? 
 Em Os Intelectuais e a Organização da Cultura (I), Gramsci teoriza sobre 
as instâncias superestruturais. Diz que em grandes traços podem ser distinguidos 
dois grandes planos superestruturais: 
1o Plano: Sociedade Civil, constituída pelo conjunto de organismos ditos privados 
"que corresponde à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a 
sociedade". 
2o Plano: Sociedade Política ou Estado, "que corresponde à função de domínio 
direto ou de comando que se expressa no Estado e governo jurídico." (cf. I: pág. 
11)Segundo Gramsci "os intelectuais são os 'comissários' do grupo dominante 
para o exercício das funções subalternas da hegemonia e do governo político", isto 
é: 
 1) do consenso 'espontâneo' dado pelas grandes massas da população à 
orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso 
que nasce 'historicamente' do prestígio (...) que o grupo dominante obtém, por 
causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 
30 
 2) do aparato de coerção estatal que asssegura 'legalmente' a disciplina dos 
grupos que não 'consentem', nem ativa nem passivamente, mas que é constituído 
para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na 
direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo" (cf. I: pág. 11). 
 Diz ainda em I que a principal instância para a elaboração de intelectuais é 
a escola. E estabelece uma analogia entre a complexidade do processo produtivo 
de um determinado país e as suas máquinas e a complexidade da formação social e 
a elaboração dos intelectuais pela rede de escolas: 
 "A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A 
complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente 
medida pela quantidade das escolas especializadas e pela sua hierarquização: 
quanto mais extensa for a 'área' escolar e quanto mais numerosos forem os 'graus' 
'verticais' da escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um 
determinado Estado. Pode-se ter um termo de comparação na esfera da técnica 
industrial: a industrialização de um país se mede pela sua capacidade de construir 
máquinas que construam máquinas e na fabricação de instrumentos que construam 
máquinas, etc. (...) Do mesmo modo ocorre na preparação dos intelectuais e nas 
escolas destinadas a tal preparação, escolas e instituições de alta cultura são 
similares. Neste campo, igualmente, a quantidade não pode ser destacada da 
qualidade" (I: pág. 9). 
 Em Concepção Dialética da História (CDH) Gramsci (1987) propõe uma 
relação das instâncias que compõem a "organização cultural que movimenta o 
mundo ideológico em um determinado país e cuja investigação seria necessária 
para o exame de seu funcionamento prático": 
 "A escola - em todos os seus níveis - e a igreja são as duas maiores 
organizações culturais em todos os países, graças ao número de pessoal que 
utilizam. Os jornais, as revistas e a atividade editorial, as instituições escolares 
privadas, tanto enquanto integram a escola de Estado, como enquanto instituições 
31 
de cultura do tipo das universidades populares. Outras profissões incorporam em 
sua atividade especializada uma fração cultural não desprezível, como a dos 
médicos, dos oficiais do exército, da magistratura. Entretanto, deve-se notar que 
em todos os países, ainda que em graus diversos, existe uma grande cisão entre as 
massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais 
próximos à periferia nacional, como os professores e os padres" (CDH: pág.29). 
 Gramsci acrescenta ainda que é o conjunto das superestruturas que mediam 
a relação entre os intelectuais e o mundo da produção, "como no caso dos grupos 
sociais fundamentais", dos quais os intelectuais são os "funcionários" (cf. CDH: 
pág. 10). 
 Vemos agora, com clareza, o que constitutem as "anotações agudas mas 
parciais" a que Althusser se referia quando falava da obra de Gramsci na 
formulação de uma teoria sobre a ideologia e as instâncias superestruturais. 
Destaquemos apenas "alguns indícios" presentes nestas "intuições parciais": 
 - Uma nova formulação ou interpretação da teorização marxista clássica da 
superestrura jurídico-política e ideológica (sociedade civil e sociedade política), 
indicando a dinâmica específica de cada plano superestrutural: o funcionamento 
através da hegemonia e de domínio ou comando. 
 - A mediação realizada pelos intelectuais entre a base econômica e a 
superestrutura, que unificam a formação social através do consenso espontâneo e 
da coerção. Indica também uma mudança na característica dos intelectuais, que 
deixam a função retórica para desempenhar funções organizativas e técnicas. 
 - Formulação de uma teoria da ideologia enquanto realidade material: 
materialidade expressa nas organizações culturais que "movimentam o mundo 
ideológico". 
 - Importância que a organização escolar desempenha na elaboração dos 
intelectuais nas sociedades ocidentais; e o papel que desempenham na reprodução 
32 
da qualificação profissional e na hierarquização dos intelectuais em "criadores das 
várias ciências, da filosofia, da arte". os "admnistradores" e os "divulgadores" (cf. 
I: págs 11-12) 
 Rouanet (1978) é ainda mais veemente, e diz que não pode ser identificada 
qualquer contribuição original de Althusser às formulações gramscianas, "para o 
desenvolvimento das observações argutas, mas parciais": 
 "Pois a teoria dos AIE é, do princípio ao fim, (com uma ressalva 
importante, que mencionaremos mais tarde), a teoria gramsciana do 
funcionamento da hegemonia na sociedade civil. Gramsciana, a extensão do 
conceito de Estado, para abranger não apenas o aparelho repressivo, funcionando à 
base da violência, como também o aparelho ideológico (Gramsci fala, 
explicitamente, em aparelho hegemônico) funcionando à base do consenso. 
Gramsciano, o objetivo dos AIE: assegurar a reprodução das relações sociais de 
produção, termo novo para designar o que Gramsci chamaria, simplesmente, de 
preservação da hegemonia burguesa, através do cimento ideológico. Gramsciano, a 
enumeração dos AIE: a religião, a escola, o sistema político, o sistema cultural. 
Gramsciana, a primazia atribuída à escola entre os AIE" (pág. 102). 
 
Habermas: Racionalização - trabalho e interação 
 No artigo "Técnica e Ciência enquanto Ideologia" Habermas (1993) irá 
desenvolver o conceito weberiano de racionalização, retomado por Marcuse, para 
examinar a mudança no caráter da ideologia nas sociedades industriais avançadas. 
Este processo de racionalização progressiva está associado, segundo Habermas, à 
institucionalização do progresso técnico e científico. A aplicação da razão técnica 
seria, ao mesmo tempo, dominação e ideologia. Este processo de racionalização 
seria uma novidade na história mundial: 
33 
 "Ao nível do seu desenvolvimento técnico-científico, as forças produtivas 
parecem portanto entrar numa nova constelação com as relações de produção: elas 
agora funcionam não mais como fundamento da crítica das legitimações em vigor 
para os fins de um iluminismo político, mas, em vez disso, convertem-se elas 
próprias no fundamento de legitimação. Isso é concebido por Marcuse como uma 
novidade na história mundial" (pág. 315). 
 A técnica e a ciência tornam-se, segundo Habermas, as principais forças 
produtivas, "caindo por terra as condições de aplicação da teoria do valor do 
trabalho de Marx" (cf. pág. 330). Porém, ao mesmo tempo, a técnica e a ciência se 
tornam ideologia, pois: 
 "Elas substituem as legitimações tradicionais de dominação, ao se 
apresentarem com as pretensões da ciência moderna e ao se justificarem a partir 
da crítica da ideologia. As ideologias e a crítica da idelogia são co-originárias. 
Nesse sentido não pode haver ideologias pré-burguesas" (pág. 326). 
 Não apenas a teoria do valor de Marx perderia a sua aplicação universal, 
mas até mesmo o conceito de classes e de ideologia: 
 "A sociedade capitalista modificou-se a tal ponto que as duas categorias 
chaves da teoria de Marx, a saber, luta de classes e ideologia, não podem ser 
aplicadas sem restrições". 
 Sobre o fundamento do modo de produção capitalista a luta de classes 
constitui-se como tal pelaprimeira vez, criando assim uma situação objetiva a 
partir da qual foi possível reconhecer retrospectivamente a estrutura de classe das 
sociedades tradicionais, cuja constituição era imeditamente política. O capitalismo 
regulado pelo Estado, surgido a título de reação contra as ameaças ao sistema, 
geradas pelo antagonismo aberto entre as classes, vem apaziguar o conflito de 
classes. O sistema de capitalismo em fase tardia é definido por uma políotica de 
indenizações que garante a fidelidade das massas assalariadas, isto é, por meio de 
34 
uma política de evitar conflitos, de tal modo que o conflito que, tanto agora como 
antes, é incorporado na estrutura da sociedade, com a valorização do capital à 
maneira privada, é aquele conflito que permanece latente com uma probabilidade 
relativamente maior. Ele recua face a outros conflitos que decerto também 
dependem do modo de produção, porém, que não podem tomar a forma de um 
conflito de classes (pág.323). 
 Dado esse - sombrio - quadro, voltemos a examinar como Habermas 
desenvolve o conceito de racionalização. Para reformular esse conceito Habermas 
(1983) começa estabelecendo a distinção entre trabalho e interação: 
 "Entendo por 'trabalho', ou agir-racional-com-respeito- a-fins, seja o agir 
instrumental, seja a escolha racional, seja a combinação dos dois. O agir 
instrumental rege-se por regras técnicas baseadas no saber empírico. Elas 
implicam, em cada caso, prognósticos condicionais sobre acontecimentos 
observáveis, físicos ou sociais; esses prognósticos podem se evidenciar como 
corretos ou como falsos. O comportamento de escolha racional é regido por 
estratégias baseadas no saber analítico. Elas implicam derivações a partir de regras 
de preferência (sistemas de valores) e de máximas universais." 
 Por outro lado, entendo por agir comunicativo uma interação mediatizada 
simbolicamente. Ela se rege por normas que valem obrigatoriamente, que definem 
as expectativas de comportamento recíprocas e que precisam ser compreendidas e 
reconhecidas por, pelo menos, dois sujeitos agentes. Normas sociais são 
fortalecidas por sanções. Seu sentido se objetiva na comunicação mediatizada pela 
linguagem corrente" (pág. 321). 
 Estabelecida a distinção entre trabalho - como agir instrumental ou agir 
racional - e interação - como agir comunicativo, Habermas (1983) passa a 
classificar os sistemas sociais segundo a predominância de um ou outro tipo de 
ação. Para ele são dois os subsistemas, o quadro institucional e os sistemas do 
agir-racional-com-respeito-a-fins, que são assim definidos: 
35 
 "O quadro institucional de uma sociedade consiste de normas que guiam as 
interações verbalmente mediatizadas. Mas existem subsistemas, tais como o 
sistema econômico e o aparato de Estado, para ficarmos com os exemplos de Max 
Weber, nos quais são institucionalizadas principalmente proposições sobre ações 
racionais-com-respeito-a-fins. Do lado oposto, encontram-se subsistemas, tais 
como família e parentesco, que decerto são conectados a um grande número de 
tarefas e habilidades, mas que repousam principalmente sobre as regras morais da 
interação. Assim, no plano analítico convém distinguir, de modo geral: (1) o 
quadro institucional de uma sociedade ou o mundo do viver sócio-cultural e (2) os 
subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins 'encaixados nesse quadro 
institucional" (págs 321-322). 
 
Baudrillard: o sistema de necessidades como força produtiva 
 Baudrillard (s/ d.) em A Sociedade de Consumo, a exemplo de Habermas, 
identifica e assinala as modificações no caráter da ideologia no capitalismo em sua 
fase tardia: 
 "Em termos breves e sumários, diremos que o problema fundamental do 
capitalismo contemporâneo não é a contradição entre 'a maximização do lucro' e a 
'racionalização da produção' (ao nível do empresário), mas entre a produtividade 
virtualmente ilimitada (ao nível da tecno-estrutura) e a necessidade de vender os 
produtos. Nesta fase, é vital para o sistema controlar não só o aparelho de 
produção, mas a procura de consumo; não apenas os preços, mas o que se 
procurará a tal preço. O efeito geral, que por meios anteriores ao próprio acto de 
produção (sondagens, estudo de mercado) quer posteriores (publicidade, 
'marketing', condicionamento), é 'roubar' ao compredor - esquivando-se nele a 
todo o controlo - o poder de decisão e transferí-lo para a empresa, onde poderá ser 
manipulado" (págs 79-80). 
36 
 Elabora um genealogia do consumo para demonstrar, o progressivo 
movimento de racionalização do sistema industrial, no qual o sistema de 
necessidades torna-se "força consumptiva": 
 "Ao longo da história do sistema industrial, pode-se rastrear-se a genealogia 
do consumo: 
 1. A ordem de produção produz a máquina/força produtiva abstrata, sistema 
técnico radicalmente diferente do instrumento tradicional; 
 2. Produz o capital/força produtiva racionalizada, sistema de investimento e 
de circulação racional, radicalmente diferente da 'riqueza' e dos anteriores modos 
de troca. 
 3. Produz a força de trabalho assalariado, força produtiva abstrata, 
sistematizada, radicalmente diferente do trabalho concreto, do trabalho tradicional. 
 4. Produz assim as necessidades, o sistema das necessidades, a 
procura/força produtiva como conjunto racionalizado, integrado, controlado, 
complementar dos outros três no processo de total controlo das forças produtivas e 
dos processos de produção. As necessidades enquanto sistema diferem 
radicalmente da fruição e da satisfação. São produzidas como elementos de 
sistema e não como relação de um indivíduo ao objeto" (pág. 84). 
 Mais adiante Baudrillard afirma que o consumo, ao se tornar força 
produtiva, torna-se, ao invés de esfera de realização das necessidades e da 
liberdade, a dimensão da coação: 
 "As necessidades e as satisfações dos consumidores são forças produtivas, 
atualmente forçadas e racionalizadas como as outras (forças de trabalho, etc.). O 
consumo, onde quer que o explorávamos (com dificuldade), contra a intenção da 
ideologia vivida, como dimensão da coação: 
 1. Dominado pelo constrangimento de significação, ao nível da análise 
estrutural. 
37 
 2. Dominado (pelo constrangimento de produção e do ciclo da produção, na 
análise estratégica (sócio-econômica-política)" (págs 93-94). 
 Para Baudrillard o sistema de consumo juntamente com o sistema eleitoral 
são as duas fontes principais de legitimação do sistema industrial: 
 "A mística bem alimentada (...) da satisfação e da escolha individuais, 
ponto culminante de uma civilização da 'liberdade', constitui a própria ideologia 
do sistema industrial, justificando a arbitrariedade e todos os danos coletivos: lixo, 
poluição, desculturação - de fato, o consumidor é soberano em plena selva de 
fealdade em cujo seio se lhe impôs a liberdade de escolha. A fieira invertida (ou 
seja, o sistema de consumo) completa, e vem revezar, no plano ideológico, o 
sistema eleitoral. O 'drugstore' e a cabine de voto, lugares geométricos da 
liberdade individual, são também as duas mamas dos sistema" (pág. 81). 
IV - CAPITAL MONOPOLISTA: A base material da racionalização e da 
ideologia 
 O ponto comum a todas essas formulações de ideologia é, além daquelas já 
apontadas, a associação das alterações à passagem do capitalismo concorrencial 
para o capitalismo em sua fase e estruturação monopolista. Recentemente alguns 
autores falam de uma nova e mais radical ruptura: as sociedades pós-industriais 
fundadas na tecnologia informatizada. Em alguns momentos Baudrillard (s/ d.), 
em "A Sociedade de Consumo", alterna os termos sociedade industrial e sociedade 
pós-industrial (cf., por exemplo, pág.47). Não teremos, infelizmente, 
oportunidade de abordar essa. 
 Braverman (1981) assim caracteriza o capital monopolista, indicando a 
passagem do capitalismo concorrencial para monopolista a partir 1870-1880: 
 "Concorda-se geralmente que o capital monopolista teve início nas últimas 
duas ou três décadas do século XIX. Foi então que a concentração e centralização 
do capital, sob a forma dos primeiros trustes, cartéis e outras formas de 
38 
combinação, começaram a firmar-se; foi então, consequentemente, que a estrutura 
moderna da indústria e das finanças capitalistas começou a tomar forma. Ao 
memo tempo a rápida consumação da colonização do mundo, as rivalidades 
internacionais e os conflitos armados pela divisão do globo em esferas de 
influência econômica ou hegemonia inauguraram a moderna era imperialista. 
Desse modo, o capitalismo monopolista abrange o aumento de organizações 
monopolistas no seio de cada país capitalista, a internacionalização do capital, a 
divisão internacional do trabalho, o imperialismo, o mercado mundial e o 
movimento mundial do capital, bem como as mudanças na estrutura do poder 
estatal" (págs 215-216). 
 Para Habermas (1983) a ruptura ou transição se dá, aproximadamente, a 
partir de 1875: 
 "Até a metade do século XIX, o modo de produção capitalista se impôs a 
tal ponto, na Inglaterra e na França, que Marx pôde reconhecer o quadro 
institucional da sociedade nas relações de produção e, ao mesmo tempo, criticar o 
fundamento de legitimação da troca dos equivalentes. Ele elaborou a crítica da 
ideologia burguesa em forma de economia política: sua teoria do valor trabalho 
destruiu a aparência de liberdade, na qual a relação de violência social, subjacente 
à relação do trabalho assalariado, tornara-se irreconhecível pela instituição jurídica 
do livre contrato de trabalho". 
 (...) 
 "Desde a última quarta parte do século XIX, nos países capitalistas mais 
avançados, duas tendências de desenvolvimento podem ser notadas: (1) um 
acréscimo da tendência intervencionista do Estado, que deve garantir a 
estabilidade do sistema, e (2) uma crescente interdependência entre a ciência e a 
técnica, que transformou a ciência na principal força produtiva. Ambas as 
tendências perturbam aquela constelação do quadro institucional e dos 
39 
subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins, pela qual se caracterizava o 
capitalismo desenvolvido dentro do liberalismo" (págs 327-328). 
 Esse novo estágio altera até mesmo a concepção marxista de formação 
social, a relação entre o sistema econômico e o sistema de dominação: 
 "Política não é apenas mais um fenômeno de superestrura. Se a sociedade 
não continua mais a se auto-regular de 'maneira autônoma' como uma esfera 
subjacente ao Estado e por ele pressuposta - e essa era a verdadeira novidade do 
modo capitalista de produção - a sociedade e o Estado não estão mais numa 
relação que a teoria marxista determinou como relação entre a base e a 
superestrutura. Mas, então, uma teoria crítica da sociedade também não pode mais 
ser formulada exclusivamente em termos de uma crítica da economia política" 
(Habermas, 1983, pág. 328). 
 Gramsci identifica uma alteração na relação entre sociedade civil e 
sociedade política a partir de 1848. Em diversos pontos de "Maquiavel, a Política e 
o Estado Moderno" (MPE) Gramsci (1989) apresenta a distinção entre as 
sociedades oriental e ocidental, que apresentam diferentes configurações de 
sociedade civil e sociedade política. A distinção é traçada na polêmica de Gramsci 
contra as concepções revolucionárias de Trotski e Rosa Luxenburg. Para 
caracterizá-la destacaremos três trechos: 
 "A técnica política moderna mudou completamente depois de 1848, depois 
da expansão do parlamentarismo, do regime associativo sindical e partidário, da 
formação de amplas burocracias estatais e 'privadas' (político-privadas, partidárias 
e sindicais) e das transformações que se verificaram na política num sentido mais 
largo, isto é, não só do serviço estatal destinado à repressão da delinquência, mas 
do conjunto das forças organizadas pelo Estado e pelos particulares para tutelar o 
domínio político e econômico das classes dirigentes" (pág. 65). 
40 
 "No Oriente, o estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; 
no Ocidente, entre o Estado e a sociedade civil havia uma justa relação, e em 
qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa estrutura da 
sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada por trás da qual se 
situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas" (pág. 75). 
 "Conceito político da chamada 'revolução permanente', surgido antes de 
1848, como expressão cientificamente elaborada das experiências jacobinas de 
1789 em Termidor. A fórmula é própria de um período histórico em que não 
existiam ainda os grandes partidos políticos de massa e os grandes sindicatos 
econômicos, e a sociedade estava ainda, por assim dizer, no estado de fluidez sob 
muitos aspectos: maior atrazo do campo e monopólio quase completo da eficiência 
político-estatal em poucas cidades ou numa só (Paris para França); aparelho estatal 
relativamente pouco desenvolvido e maior autonomia da sociedade civil em 
relação à atividade estatal; determinado sistema das forças militares e do 
armamento nacional; maior autonomia das economias nacionais no quadro das 
relações econômicas do mercado mundial, etc" (pág. 91-92). 
 A diferença fundamental entre as sociedades oriental e ocidental, ou das 
sociedades anteriores e posteriores a 1848, é justamente a maior complexidade dos 
planos superestruturais presentes nas segundas, que pode ser constatada na 
expansão do parlamentarismo, nos grandes partidos de massa e sindicatos 
econômicos, na expansão das burocracias, dos serviços estatais, etc. No oriente o 
Estado era o centro do poder e da vida nacional, por isso a sociedade civil era 
"primordial e gelatinosa". 
 É a partir da distinção entre oriente e ocidente que Gramsci elabora sua 
estratégia revolucionária para as sociedades ocidentais: a fórmula da hegemonia 
civil. 
41 
 A mesma temática pode ser encontrada em Pollock, associando a passagem 
do capitalismo concorrencial para o capitalismo de Estado e a alteração nas formas 
ideológicas. Cohn (1986) diz: 
 "A universalização do primado do valor de troca sobre o valor de uso, da 
equivalência sobre a diferença qualitativa, imprime à sociedade como um todo a 
lógica da ideologia. (...) O todo, para se reproduzir como tal, é o falso: apóia-se na 
falsidade necessária e portanto nuito real da ideologia. Mas isso, a rigor, aplica-se 
ao capitalismo concorrencial. No capitalismo monopolista concebido por Pollock, 
ou seja, como capitalismo de Estado, em que as relações diretas de poder 
substituem as relações de poder mediadas pelo lucro e pela propriedade, abre-se a 
possibilidade de se ter a mercadoria sem a contrapartida ideológica da igualdade. 
O nome disso é fascismo" (pág. 13). 
 A ideologia passa assim a ser uma das condições de reprodução da 
sociedade burguesa: 
 "Na versão da TCS [Teoria Crítica da Sociedade], sobretudo devido à 
contribuição de Horkheimer, mas com a adesão de Adorno, a elaboração da idéia 
de que a reprodução da sociedade burguesa se faz por processos que 
necessariamente passam pela consciência dos homens é levada um passo adiante, 
para chegar-se à formulação de que, na realidade, ela passa pela configuração 
socialmente determinada dos próprios homens que, no final, a reproduzem. Vale 
dizer, a questão de como se sustenta e se reproduz o sistema, recebe uma resposta - 
a ideologia - e passa-se a outra questão, sobre quem a sustenta. E aqui a respostacombina a análise ideológica com a pesquisa sóciopsicológica, em busca dos tipos 
de personalidade social" (Cohn, 1983, pág. 14). 
 A este novo estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista, a 
este novo caráter da ideologia, correspondem formas de sustentação e reprodução 
também novos, ou seja, novas formas de controle. Não mais normativos, mas 
baseados em excitantes externos: 
42 
 "As sociedades industrialmente desenvolvidas parecem aproximar-se do 
modelo de um controle de comportamento que, em vez de ser guiado por normas, 
é antes dirigido por excitantes externos. A direção indireta por estímulos 
estabelecidos aumentou, principalmente nos setores da liberdade aparentemente 
subjetiva (comportamento nas eleições, no consumo, no tempo livre). A rubrica 
social-psicológica da nossa época é caracterizada menos pela personalidade 
autoritária do que pela desestruturação do superego. Um aumento do 
comportamento adaptativo é apenas o reverso da medalha de um processo de 
dissolução da esfera de interação verbalmente mediatizada, dentro da estrutura do 
agir racional-com-respeito-a-fins" (Habermas, 1983, págs 332-333). 
 Gramsci, em "Americanismo e Fordismo" (Gramsci, 1989, MPE: págs 375-
413) analisava o americanismo e o fordismo no contexto da passagem do 
individualismo econômico para a economia programática: 
 "No geral, pode-se dizer que o americanismo e o fordismo derivam da 
necessidade iminente de organizar uma economia programática e que os diversos 
problemas examinados deveriam ser os elos da cadeia que assinalam exatamente a 
passagem do velho individualismo econômico para a economia programática. 
Estes problemas surgem em virtude das diversas formas de resistência que o 
processo de desenvolvimento encontra, resistência provocada pelas dificuldades 
inerentes à societas rerum e à societas hominum. Um movimento progressista 
iniciado por uma determinada força social não deixa de ter consequências 
fundamentais: as forças subalternas, que deveriam ser 'manipuladas' e 
racionalizadas de acordo com os novos objetivos, resistiram inevitavelmente" 
(págs 375-376). 
 E em que reside precisamente essa dificuldade? Gramsci responderá que a 
racionalização do processo de produção e de trabalho, através da introdução de 
novos métodos, cria, e, ao mesmo tempo, pressupõe, uma nova ética sexual: 
43 
 "Toda crise de coerção unilateral no campo sexual acarreta um delírio 
"romântico" que pode ser agravado pela abolição da prostituição legal e 
organizada. Todos estes elementos complicam e tornam dificílima qualquer 
regulamentação do problema sexual e qualquer tentativa de criar uma nova ética 
sexual que esteja de acordo com os novos métodos de trabalho e de produção. Por 
outro lado, é necessário criar essa regulamentação e uma nova ética. Deve-se 
destacar o relevo que os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas 
relações sexuais dos seus dependentes e de suas famílias; a aparência do 
'puritanismo' assumida por este interesse (como no caso do proibicinismo) não 
deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não é possível desenvolver o novo 
tipo de homem solicitado pela racionalização da produção e do trabalho, enquanto 
o instinto sexual não for absolutamente regulamentado, não for também ele 
racionalizado" (MPE: págs 391-392, grifos meus, AHH). 
 Assim sendo, a modificação no modo de vida, ao mesmo tempo em que é 
condicionada pelos novos métodos de produção e de trabalho, torna-se também 
uma condição para o sucesso da implantação desses novos métodos, ou seja, a 
nova ética sexual torna-se uma das condições sociais da produção em moldes 
fordianos, e essa ética reproduzirá a forma das relações de produção: será 
racionalizada e regulamentada. 
 Mais adiante Gramsci (1989) observa: 
 "É interessante notar que não se tentou aplicar ao americanismo a fórmula 
de Gentile sobre a 'filosofia que não se enuncia através de fórmulas, mas se afirma 
na ação'; isto é significativo e instrutivo, porque se a fórmula tem valor, é 
exatamente o americanismo que pode reivindicá-la. Ao contrário, quando se fala 
de americanismo, diz-se que ele é 'mecanicista', grosseiro, brutal, isto é, 'pura 
ação', opondo-se a ele a tradição, etc. (...) Esta contradição pode explicar muitas 
coisas: por exemplo, a diferença entre a ação real que modifica essencialmente 
tanto o homem como a realidade exterior (a cultura real), o que é o americanismo, 
44 
e o esgrimismo galhofeiro que se autoproclama ação, mas só modifica o 
vocabulário, não as coisas; o gesto exterior, não o homem interior. A primeira está 
criando um futuro que é intrínseco à sua atividade objetiva e sobre a qual prefere 
silenciar. O segundo apenas cria fantoches aperfeiçoados, moldados sobre um 
figurino retoricamente prefixado, e que cairão no nada quando forem cortados os 
fios externos que lhe dão a aparência de movimento e de vida" (págs 401-402). 
 Vemos, portanto, nesses autores, que a problematização da ideologia é 
inserida na reprodução global das formações sociais. Em Althusser a necessidade 
de reprodução liga-se, ou melhor, expressa-se enquanto necessidade de reprodução 
da qualificação profissional; em Habermas, a reprodução do agir racional, a razão 
capitalista, está vinculado diretamente ao crescimento das forças produtivas; em 
Baudrillard o sistema de necessidades é elemento que integra o próprio sistema 
produtivo; em Bourdieu os estilos de vida e os gostos de classe reproduzem as 
condições de existência das classes. 
 Constitui também um ponto comum a racionalização progressiva de todas 
as esferas da vida social: racionalização do instinto e da produção para Gramsci; 
do trabalho e da interação para Habermas; do trabalho e do tempo livre para 
Baudrillard. 
 Gramsci parece ser o primeiro a pensar a unidade base/superetruturas na 
perspectiva da reprodução global das formações sociais. Pensa essa unidade em 
termos políticos: designa-a de bloco histórico, cimentado pela hegemonia do 
grupo dominante que é difundida pelos intelectuais. 
 O momento da ruptura é consenso: a partir das últimas décadas do século 
XIX, na passagem para o capitalismo monopolista. As alterações indicadas por 
Gramsci, já a partir de 1848, são avaliações predominantemente políticas, do que 
do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, como em Braverman 
e Habermas. 
45 
 Outra questão a ser investigada também é histórica: os contextos 
semelhantes em que Gramsci e A Escola de Frankfurt elaboram suas teorias: 
regimes totalitários, fascista e nazista. 
 Se é verdade que existem semelhanças nas formulações e contextualizações 
da ideologia entre os autores que aqui analisamos, o mesmo não é valido para os 
seus pressupostos e perspectivas. Apontemos algumas incompatibilidades: 
Althusser e Gramsci conservam como pressuposto as lutas de classes. Na Escola 
de Frankfurt a luta de classes entra num estado de latência, elas são suspensas 
através de programas substitutivos de satisfação, pela distribuição e pela barganha 
(cf. Habermas, 1983, pág. 334). Gramsci vê possibilidade de ruptura do ciclo de 
reprodução, ou seja, uma perspectiva revolucionária através da estratégia de 
hegemonia civil. Em Alguns Temas da Questão Meridional, Gramsci (1978) 
demostra que para o proletariado romper o ciclo de reprodução global da formação 
social italiana, este deve resolver as questões meridional e vaticana. 
 Permitam-nos, agora, propor algumas esquematizações desses movimentos: 
 Como vimos, para Althusser o ARE e os AIE são os reponsáveis pela 
reprodução das relações de produção e pela reprodução da superestrutura jurídico-
política e ideológica: 
 ARE e AIEs -->>reprodução das relações de produção e 
reprodução da superestrutura jurídico-política e ideológica. 
 Para Habermas a racionalização progressiva da sociedade se expande do 
sistema do agir-racional-com respeito-a-fins para o quadro institucional: 
 Sistemas do 
agir racional 
Quadro Institucional 
com-respeito... 
Trabalho Propagação Subsistemas 
Agir-racional-com-respeito...==> Interação 
46 
 
Gramsci: a hegemonia vem da fábrica e os intelectuais são os funcinários da 
hegemonia do grupo dominante. 
Fábrica-----hegemonia vem da fábrica ==> Superestruturas 
Funcionários da ideologia Racionalização 
 Regulamentação 
 
 Para Baudrillard a sociedade industrial se articula em quatro 
sistemas/forças produtivas: 
sistema técnico ---> sistema de investimento e de circulação ---> 
 força de trabalho assalariado ---> sistema das necessidades 
* * * 
 
 Se, em "A Ideologia Alemã" a consciência era produto da "emanação direta 
do comportamento material", agora ela aparece como uma "rica totalidade de 
determinações". É evidente que no tempo de Marx e Engels muitas dessas 
determinações não existiam: a sociedade civil era "gelatinosa". Não se pode, nem 
se deve, criticar Marx a partir de quase cento e cinquenta anos de história, de 
desenvolvimentos. 
 Mas e agora, dada essa rica totalidade? Que fazer com ela? O que fazer com 
"tantas mediações" e, o mais importante, como compatibilizá-las? Será um novo 
quiproquó? 
47 
Capítulo 2. 
O CONHECIMENTO DO 
TRABALHADOR E A TEORIA DAS 
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 
 LENY SATO(1) 
 
 Não é de hoje que se busca construir um conhecimento sobre como o 
Trabalho pode afetar a Saúde a partir do conhecimento do próprio trabalhador. 
Uma das experiências conduzidas nesse sentido e conhecida internacionalmente é 
aquela desenvolvida pelo movimento operário italiano entre fins da década de 60 e 
meados da década de 70, conhecido como Modelo Operário)ODONE e 
cols.,1986). Seu nascimento e prática deu-se no seio da intensificação da atividade 
do movimento sindical italiano pela busca da melhoria das condições de trabalho e 
saúde. O Modelo Operário expressava uma possibilidade de os trabalhadores de 
base serem os sujeitos de um processo de geração de conhecimento que viesse a 
nortearas reivindicações de melhoria de condições de trabalho e saúde. Ele parte 
do pressuposto de que os trabalhadores são portadores de um conhecimento 
gerado no seu dia a dia de trabalho e que este deve ser privilegiado, sendo o ponto 
de partida da luta pela saúde nos locais de trabalho. 
 A expansão do Modelo Operário deu-se fora da Itália e tem sido adotada 
por diversas entidades sindicais, inclusive no Brasil, além de ser objeto de reflexão 
e de referência para vários estudos da área da Saúde, como por exemplo os de 
LAURELL e NORIEGA(1989), LAURELL(1984), LAURELL E 
 
11. Mestre em Psicologia Social, Psicóloga do Centro de Vigilância Epidemiológica da 
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e assessora técnica do DIESAT 
(Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de 
Trabalho). 
 
48 
NORIEGA(1987), BERLINGUER E BIOCCA(1987) E MALLET(1988). 
Particularmente LAURELL e NORIEGA(1989), LAURELL(1984) e 
BERLINGUER e BIOCCA(1987) procuram analisar criticamente os pressupostos 
e os desdobramento do Modelo Operário. Dentre as questões por eles abordadas, 
focalizaremos especialmente aquela, expressa mais claramente por LAURELL e 
NORIEGA(1989), quanto às características e modos de expressão da experiência-
subjetividade operária e as categorias que possibilitam organizar e analisar os 
achados obtidos a partir dela. Quanto às características experiência-subjetividade 
operária, esses autores identificam que "a concepção que se perfila mais 
claramente nos textos <sobre o Modelo Operário> é a subjetividade-experiência 
operária, como conhecimento latente acumulado, resultado do viver e atuar numa 
determinada realidade, cujo portador é o grupo homogêneo, ou seja, a coletividade 
que compartilha dessa realidade" (LAURELL e NORIEGA, 1989:88). 
 Posteriormente a organização dos dados é feita a partir de categorias - 
grupos de risco - forjados pela Medicina do Trabalho, Engenharia de Segurança e 
outras disciplinas da área. É neste ponto que voltamos a LAURELL e NORIEGA 
(1989) os quais apontam uma contradição ao Modelo Operário "... pois ao mesmo 
tempo em que enfatiza a potencialidade da subjetividade-experiência operária de 
revelar a realidade de um modo diferente da ciência formal, ordena a experiência 
no mesmo molde desta" (p.87). Podemos então dizer que ele adota como ponto de 
partida a subjetividade-experiência operária, mas apoia-se como ponto de chegada 
em categorias da ciência formal - grupos de riscos. Isto leva-nos a outro ponto 
para reflexão, que diz respeito ao entendimento que se tem quanto à natureza da 
experiência-subjetividade operária, ou seja, o saber do trabalhador. Segue então a 
questão: Seguiria o saber do trabalhador a mesma lógica adotada no conhecimento 
construído pelas ciências sendo, portanto, os seus produtos facilmente 
intercambiáveis? 
49 
 Entendemos que não. GRIMBER(1988), preocupada em estudar a 
construção social dos processos de saúde e doença nos trabalhadores gráficos 
entende que as representações dos trabalhadores com respeito à relação saúde e 
trabalho "...conforma um saber que não se reduz ou se esgota nos aspectos comuns 
às categorias médicas, tampouco nos parece que pode ser pensado em termos de 
limitação ou de versão empobrecida do saber médico - ainda quando efetivamente 
nos casos individuais este saber possa adotar essa forma" (p.10). HARRISON 
(1988), por sua vez, estuda as representações de risco entre operários e entende 
que elas dependem tanto do contexto social onde ela se constrói como da natureza 
do risco. 
 Para a Psicologia Social, as representações sociais, noção introduzida por 
MOSCIVICI em 1961, são uma forma de conhecimento prático, o saber do senso 
comum, socialmente contruído para dar sentido à realidade da vida cotidiana e, 
incluída nela está a realidade de trabalho e saúde. SPINK(1989) entende que este 
saber tem dupla função: "estabelece uma ordem que permita aos indivíduos 
orientarem-se em seu mundo material e social e dominá-lo; e possibilitar a 
comunicação entre os membros de um determinado grupo."(p.2). O conhecimento 
prático assume expressões criativas, não sendo, portanto, mera cópia de uma 
realidade objetiva pré-existente, porém, tampouco é produto exclusivo da 
imaginação. Sua construção dá-se na interface objetivo-subjetivo, coletivo-
indiviadual. Conforme JODELET (1985) "o conceito de representação social 
designa uma forma de conhecimento específico, o saber do senso comum, cujos 
conteúdos manifestam a operação de processos generativos e funcionais 
socialmente caracterizados. Em sentido mais amplo, designa uma forma de 
pensamento social" (p.474). Desta forma o conteúdo das representações sociais, a 
sua construção e as suas modificações estão sempre situadas no contexto social em 
que ocorrem. 
50 
 Há dois processos básicos de contrução das representações sociais: o 
primeiro, a ancoragem, "refere-se à inserção orgânica do que é estranho no 
pensamento já construído, Ancoramos, portanto, o desconhecido em 
representações já existentes" (SPINK, 1989:7) o que contempla a necessidade de 
tornar o estranho em familiar; o segundo processo, a objetivação, refere-se à 
cristalização de uma representação, ou seja " a constituição formal do 
conhecimento. A objetivação é essencialmente, uma operação formadora de 
imagens..."(SPINK,1989:8). Ainda quanto ao processo de sua construção, embora 
as representações sociais se cristalizem, isto não quer significar que sejam 
imutáveis, pois sofrem modificações. 
 São as representações estruturadas, no sentido de que sofrem influências 
sociais, são dotadas de uma lógica e tem uma função cognitiva; mas também 
estruturantes, na medida em que dão significado à realidade e incorporam numa 
rede de significados aquilo que é estranho. 
 Assim entendido, não se pode afirmar que o conhecimento prático, na 
perspectiva das representações sociais siga a mesma lógica adotada pela ciência, já 
que, por exemplo, para o trabalhador, a noção de doença tem seu núcleo em torno 
da atividade-inatividade, a doença pode ser vista como forma de evitar, como 
"desculpa" encobridora de um desejo de afastar-se do trabalho, estando essa visão 
estreitamente relacionada com os usos que se fazem do corpo. Por outro lado, para 
a medicina ela é entendida a partir do estado orgânico, funcional e anatômico do 
corpo. 
 Apesar de existirem evidências quanto à distinção de noções para o 
conhecimento do senso comum e para o científico, com relação ao mesmo objeto, 
entendemos que podem existir funções semelhantes para ambos: instrumentalizar 
os indivíduos para atuar em seus mundo, inclusive no mundo do seu trabalho. Elas 
norteiam as práticas, as relações interpessoais e a relação com os objetos de 
trabalho. 
51 
 SPINK(1989) classifica os estudos da área da saúde que utilizam-se da 
teoria das representações sociais e aponta a sua fertilidade no campo de estudos 
sobre o processo saúde-doença "porque permitem explorar a interface entre o 
senso comum e o pensamento científico, seja este concebido como corpo de 
conhecimentos ou como relações sociais com um grupo definido corporativamente 
como detentor do saber" (p.11). 
 Se concordamos que o conhecimento do trabalhador pode ser entendido à 
luz da teoria das representações sociais, cabe então pensar sobre como acessá-lo, 
isto é, acessar a sua lógica, o seu conteúdo (que responderia à questão: o que 
determinada representação significa?; ou: qual o significado de determinado 
objeto?) e processo de sua construção (que responde à questão: porque 
determinada representação forjou-se deste modo?). Em primeiro lugar é necessário 
identificar através de quais formas as representações sociais se expressam. Elas 
são sensíveis através das diversas formas de linguagem (pictórica, verbal,escrita) e 
através das práticas. 
 Quanto às técnicas empregadas, é também SPINK(s.d.) quem as 
sistematiza, recortando de diversos estudos que empregam a noção de 
representações sociais as estratégias utilizadas para apreendê-las empiricamente. 
Essa sistematização é precedida por uma discussão epistemológica quanto ao 
estatuto dessa noção na psicologia social, à sua natureza e a ênfase priorizada - 
quer na busca dos conteúdos quer nas condições de sua produção. Nesse estudo a 
autora identifica três formas de obtenção dos dados: técnicas verbais, técnicas não 
verbais e observação. Dentre as técnicas verbais "há sem dúvida, uma nítida 
preferência, pelo emprego de entrevistas abertas, conduzidas a partir de um roteiro 
mínimo" (p.13), havendo também os estudos que empregam questionários. Entre 
as não verbais há os que se utilizam de associação-livre, que comporta 
características de técnica projetiva. A observação é identificada como tendo papel 
52 
importante no estudo das representações sociais pois libera o pesquisador da 
quantificação e experimentação prematura. 
 O passo seguinte refere-se às formas de análise dos dados coletados, ou 
seja, qual o trabalho de organização e leitura dos dados que possibilita mantermo-
nos dentro da lógica do conhecimento do trabalhador. Entendemos ser este um 
passo bastante importante, mas que do mesmo modo que a fase de coleta de dados 
não comporta regras passíveis de fácil replicação. O rigor parece residir em 
mantermo-nos alerta para o objetivo de cada estudo e para o pressuposto quanto à 
existência de uma lógica própria, provavelmente inacessível a uma primeira leitura 
dos dados. 
 Foi nessa perspectiva que desenvolvemos estudo visando caracterizar o 
conceito de trabalho penoso a partir do conhecimento prático do trabalhador, no 
caso motoristas de ônibus urbanos. Assim, enfatizamos a busca da compreensão 
do significado das representações sociais. Adotamos como técnicas de coleta de 
dados a observação e acompanhamento do trabalho, conversas, e entrevistas 
conduzidas a partir de um roteiro, priorizando a apreensão deste conhecimento 
através da linguagem verbal e das práticas do trabalho. Posteriormente analisamos 
os dados mediante técnica de análise de conteúdo a partir do que denominamos 
palavras-índice de "penosidade", buscadas no vocabulário empregado pelos 
motoristas. Quanto às práticas buscamos apreender o seu conteúdo significativo, 
guiando-nos pela questão: para que elas são empregadas? 
 Assim, concluímos que para os trabalhadores o trabalho é penoso quando 
seu contexto gera incômodo, esforço e sofrimento demasiados, sobre o 
qual(contexto) ele não tem controle. Vale à pena reportarmo-nos ao significado do 
trabalho penoso encontrado nos estudos da área de saúde do trabalhador, onde 
evidenciamos primeiramente que não existem estudos buscando conceituar o 
trabalho penoso, mas que o adjetivo penoso é empregado em vários estudos, 
existindo basicamente tres tendências: a primeira que engloba a maioria dos 
53 
estudos empíricos, filiados à Fisiologia do Trabalho e Ergonomia, para os quais o 
trabalho é penoso quando demanda esforço físico; a segunda onde os estudos 
adjetivam como penosas as condições de trabalho que geram esforço e sofrimento 
mental e, por último, alguns estudos que entendem ser o trabalho penoso quando 
gera sofrimento físico e mental (SATO, 1991). 
 É interessante identificarmos a aproximação e o afastamento das versões 
científicas do trabalho penoso e a versão do conhecimento prático. Em primeiro 
lugar está colocada na versão do conhecimento prático uma quantificação quanto 
ao esforço, incômodo e sofrimento. Isto leva-nos a identificar que a penosidade do 
trabalho não reside na simples existência destas exigências no trabalho. Esta 
constatação aproxima-se dos estudos ergonômicos que visam qunatificar esforços, 
através de medidas de gasto calórico, consumo de oxigênio, dentre outros 
indicadores. Porém afasta-se desta mesma abordagem pois o método de 
identificação daquilo que é demasiado, no caso do conhecimento prático, é 
subjetivo, obtido na vivência dos diferentes contextos de trabalho; apesar de ser 
quantitativo não numérico, sendo sua positividade expressa através de advérbios 
de intensidade ou de expressões que evidenciam uma quantificação. Este limite do 
suportável - Limite Subjetivo-, ademais é mutável, conhecido na relação com o 
trabalho e depende do contexto em que se trabalha, daí a impossibilidade de ser 
padronizado, através de um terceiro. 
 Desta forma, o refinamento para a definição do que é penoso, quando se 
utiliza a noção de representações sociaisi, implica necessariamente que o 
trabalhador seja sujeito do processo de construção do conhecimento sobre a 
relação saúde e trabalho. 
 Uma segunda noção nuclearmente presente na caracterização do trabalho 
penoso pela versão do conhecimento prático é a de Controle - controle do 
trabalhador sobre os contextos de trabalho. Essa noção não é nova quando se 
discute o trabalho saudável ou não saudável, como evidenciam vários estudos 
54 
como os de DEJOURS(1986), GUSTAVSEN(s.d.) e de HARRISON(1988). 
Porém através do conhecimento prático pudemos identificar quais são os 
requisitosnecessários para o exercício do Controle por parte do trabalhador. São 
eles: Familiaridade, que diz respeito à intimidade e conhecimento sobre a tarefa 
realizada; Poder, que diz respeito à possibilidade de o trabalhador interferir e 
mudar o trabalho de acordo com suas necessidades; Limite Subjetivo, que diz 
respeito ao quanto, quando e como é possível suportar as estimulações dos 
contextos de trabalho. Quando não estão simultaneamente presentes estes três 
requisitos que sustentam o Controle dá-se a Ruptura - ruptura do equilíbrio sendo 
justamente aí que os problemas de saúde são sentidos pois o Limite Subjetivo não 
é respeitado. Aparecem então as doenças, os acidentes e o sofrimento é 
demasiado. 
 Um terceiro aspecto diz respeito aos recortes da expressão empírica do 
trabalho, naquilo que pode interferir na saúde. A medicina do trabalho, a 
engenharia de segurança, a psicologia do trabalho e a ergonomia recortam as 
condições de trabalho em somatório de agentes (físicos, químicos, biológicos, 
dentre outros). Por sua vez, para o conhecimento prático, o trabalho é visto como 
um todo indiviso, o qual denominamos de contexto de trabalho, este todo não é 
somatório de partes ou agentes sendo ele identificado como bom ou ruim não 
apenas pela presença ou ausência de determinados fatores, mas pela combinação 
entre eles. Mais ainda, nessa perspectiva, um determinado contexto de trabalho é 
identificado como bom ou ruim na relação que o trabalhador pode com ele manter, 
quer seja ela de maior ou de menor controle. 
 Também o conhecimento prático nos mostra como, apesar da ausência de 
poder para interferir efetivamente nos contextos que geram esforço, incômodo e 
sofrimento demasiados, os trabalhadores evitam continuamente a ruptura. São 
Ações Adaptativas que modificam o trabalho planejado sem no entanto replanejá-
lo, o que significa ter que se defrontar com a repetição dos mesmos problemas 
55 
diariamente(2). São formas de se relacionar com o trabalho apesar dos limites por 
ele impostos e, ao mesmo tempo, respeitar o próprio limite subjetivo. 
 
 Tais ações são coletivamente construídas, recebem denominações 
específicas, são identificadas por todos os trabalhadores mas são individualmente 
praticadas, na medida que estão referenciadas ao limite de cada trabalhador, o qual 
é diferente de pessoa para pessoa. Sua construção dá-se na prática de trabalho, 
tanto através da vivência direta como através da observação e da troca de 
informações entre os colegas. Essas ações adaptativas ao modificarem o trabalho 
planejado interferem diretamente na qualidade do produto (no caso o serviço 
prestado), podendo tanto melhorá-la como torná-la mais precária, pois o que está 
em jogo é a busca da possibilidade de o trabalhador continuar trabalhando apesar 
dos contextos penosos e não a procura de aperfeiçoamento da qualidade do 
serviço. Da mesma forma, elas podem se apresentar como comportamentos 
perigosos - interpretados genericamente pela engenharia de segurança-medicina do 
trabalho como ato inseguro. Se nos fixarmos na visão mais imediata , ao nível 
apenas do comportamento, é provável que analisemos e avaliemos as ações 
adaptativas inadequações do trabalhador ao trabalho e não como o jeito possível 
de continuar trabalhando nos contextos existentes. 
 Ao serem analisados como inadequações do trabalhador ao trabalho, sendo 
indesejáveis à produção, pode-se adotar práticas que eliminem esses 
comportamentos através de programas e campanhas educativas ou de um processo 
de seleção rigoroso, voltados para o controle de variáveis no trabalhador 
mantendo-se intocáveis os contextos de trabalho. Porém, em não havendo a 
compreensão sobre a real motivação que os conforma, essas seriam medidas 
 
2 As ações adaptativas evidenciam, como em outros estudos (DANIELLOU, LAVILLE e 
TEIGER, 1989: FREDERICO, 1979: LINHART, 1980: LEPLAT e CUNY, 1983) que há 
uma organização do trabalho com procedimentos previstos e há aquela que de fato 
ocorre. 
 
56 
paliativas e pouco eficazes pois não estão sendo tomadas em conta as 
possibilidades concretas de trabalhadores "reais" trabalharem e conviverem em 
determinados tipos de contextos de trabalho também "reais". O entendimento 
dessas motivações foi possibilitado pela leitura da realção saúde e trabalho na 
perspectiva das representações sociais, pois são formas de conhecimento que 
informam as práticas e as relações interpessoais. 
 Através desse exemplo, onde se investigou um conceito da área de saúde do 
trabalhador através da noção de representações sociais, evidenciou-se que o 
conhecimento prático é regido por uma lógica própria, que pode encontrar pontos 
de tangência e de distanciamento com a lógica e os achados do conhecimento 
científico, utilizando-se de métodos próprios- vivência, observação e troca de 
informações. Em termos práticos, no sentido de visualizar a aplicação da noção de 
representações sociais em saúde do trabalhador, da mesma forma que elas nos 
conduzem à identificação de quando o trabalho é incômodo, elas também nos 
indicam quando ele é confortável. Nessa perspectiva, o papel do técnico nessa área 
seria o de compreender o significado das representações sociais respeitando a sua 
lógica, o que pressupõe a necessidade de conduzir a investigação a partir das 
categorias que dela emergem, explicitá-las e trazê-las ao debate. É importante 
frizar que o conhecimento prático não se constitui numa distorção ou versão 
empobrecida do saber científico e oficial. Trata-se de um outro conhecimento que 
adota recortes da realidade diversos deste e cuja presença se expressa através das 
práticas cotidianas, a princípio desprovidas de conteúdo significativo. 
 Nosso objetivo foi o de trazer ao debate alguns aspectos que definem um 
"status" próprio do conhecimento do senso comum a partir da leitura da teoria das 
representações sociais, cujo emprego mostra-se fértil não apenas para o trabalho 
de pesquisa em saúde do trabalhador mas também no trabalho aplicado à 
prevenção de problemas de saúde. Porém não se trata de substituí-lo ou opô-lo ao 
conhecimento científico, pois existe uma série de doenças ocupacionais, como as 
57 
intoxicações por exemplo, que talvez as representações sociais tenham pouco 
acesso ao que diz respeito à sua identificação; elas podem, genericamente, nos 
informar sobre a existência de substâncias químicas no local de trabalho e 
sensações de mal-estar, cuja associação causal tem sido procedida pela medicina e 
pela toxicologia, não significando, portanto, que as representações sociais venham 
a ser uma perspectiva epistemológica que substitua o conhecimento acumulado e 
em deselvolvimento pela ciência formal, dado que conforma e adota recortes 
distintos da realidade. 
58 
Capítulo 3. 
SAÚDE MENTAL E TRABALHO 
UM NOVO (VELHO) CAMPO PARA A 
QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE 
 RICARDO AUGUSTO DE CARVALHO 
 
I – INTRODUÇÃO 
 
 Temos procurado investigar o sofrimento mental e sua correlação com o 
"locus" laborativo. 
 Chamamos atenção para o fato de que os efeitos do trabalho sobre a saúde 
não se limitam ao que é reconhecido legalmente como doença profissional, e 
mesmo esta não é uma entidade que independe de sua forma de manifestação no 
sujeito. 
 Nos interessa compreender as diferentes maneiras de resistência, as 
estratégias de defesa a nível da estrutura psíquica: como os trabalhadores 
constroem a sua subjetividade. 
 Temos estudado dentro deste eixo de análise, a categoria de bancários, as 
telefonistas, os "informáticos", os professores de 1o e 2o graus. O que observamos 
é que os chamados "transtornos psíquicos" se apresentamquando as exigências do 
meio e do trabalho ultrapassem as capacidades de adaptação do sujeito, ou de suas 
possibilidades defensivas. 
59 
 Pensamos que a construção pelo trabalhador de um saber sobre o seu 
sofrimento diferencia-o e o inscreve num campo subjetivo: a elaboração de um 
saber sobre si mesmo, de um saber que o localiza. O trabalhador pretende 
significar a estranheza do mal que lhe acomete, assim como tenta dar significados 
na construção de um saber sobre aquilo que desconhece do processo de produção e 
trabalho. A economia psicissomática de cada trabalhador expressa normas 
diferenciadas de sofrimento que no entanto revelam um único produto: a 
subordinação aos processos organizacionais de gestão em busca de um maior 
controle. A dominação e a produção de corpos úteis só é possível a partir de uma 
estratégia concernente ao aparelho mental, pela criação do condicionamento 
produtivo, do comportamento estereotipado que se constitui como auto-violência, 
além de fonte de mais valia. 
 Observamos formas de resitência, mesmo que, e ainda através do 
sofrimento e das estratégias defensivas mobilizados contra a possibilidade de 
adoecimento. 
 Naturalmente, toda correlação dentro desta abordagem deve atentar e ter 
como objeto de análise, tanto o perfil do processo produtivo, a organização do 
trabalho, as formas de gestão, na relação com cada categoria de trabalhadores, 
assim como dentro de cada categoria profissional, as diferenças de cunho 
estrutural evidenciada em cada sujeito. 
 Para nós, a estruturação de identidade subjetiva não se dá historicamente, 
assim como o trabalho é uma formação histórica, a identidade psicológica dos 
indivíduos alicerça-se nas relações de trabalho. 
 Nos interessa captar o sentido produzido pelo trabalhador, como e de que 
forma ele se faz "surgir" sujeito, como e de que forma seu sintoma, seu 
sofrimento, pode inscrever como tal. 
60 
 Temos buscado em nossas pesquisas duas orientações metodológicas 
básicas: 
 1. O estudo baseado no "pensar" e "sentir" dos trabalhadores. Dando espaço 
à fala, às suas expressões singulares, mas também um trabalho de interpretação, 
buscando desvendar o discurso enquanto uma estrutura de representação que 
provoca a emergência da subjetividade e nos informa sobre a cena do trabalho, 
assim como dos processos-respostas colocados em pratica pelo trabalhador em sua 
relação com a organização do trabalho. Análise basicamente qualitativa, que 
coloca no centro a subjetividade como instrumento de conhecimento. 
 2. Uma práxis investigativa com grupos de trabalhadores homogêneos 
(mesmo processo de trabalho, mesma categoria profissional) e heterogêneo 
(processo de trabalhao e categoria diferenciados), que se constitui também em uma 
prestação de serviços em Saúde Mental e Trabalho: uma forma de aprender a lidar 
com o conjunto de fatores do mundo do trabalho que influenciam a estrutua 
subjetiva. A perspectiva grupal como produtora de um conjunto de idéias 
interpretativas que permita aos trabalhadores uma autonomia crítica em relação a 
si próprios. Buscamos uma análise dinâmica dos processos psíquicos mobilizados 
pela confrontação do sujeito com a cena do trabalho. 
 Nossa intenção demarca uma ética na escolha do campo e a necessidade de 
se pensar a vida do "homem no trabalho", não excluindo as relações sociais de 
produção e os "sujeitos destas relações", o que sem dúvida diz respeito a um 
estudo de natureza inter-disciplinar. 
UMA PRÁXIS INVESTIGATIVA EM SAÚDE MENTAL E TRABALHO 
 Pretendemos relatar uma experiência de estágio investigação implantado no 
Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, desde 
agosto de 1990. 
61 
 Objetivamos ao mesmo tempo, abrir um novo campo de atuação para o 
psicólogo e estabelecer indicadores de ação por parte deste profissional, a nível 
das relações que se estabelecem entre o Trabalho e Saúde Mental. 
 Tomamos como pressuposto, principalmente, o referencial teórico de 
Christhophe Dejours (A loucura no Trabalho, Plaisir et Souffrance. O Corpo entre 
a Biologia e a Psicanálise, basicamente) que vem sistematizando as implicações 
que se evidenciam entre a Saúde Mental e Trabalho. Também queremos apontar 
os trabalho de Jurandir Freire Costa, de grande contribuição em nossas reflexões. 
A leitura da demanda nas instituições é a grande orientadora desta práxis 
investigada que vem se realizando, a saber: 
 - Ambulatório de Doenças Profissionais do Hospital das Clínicas da Universidade 
Federal de Minas Gerais - ADP-UFMG 
 - Núcleo de Saúde dos Trabalhadores vinculados ao Ministério do Trabalho e ao 
Ministério da Saúde- NUSAT 
 - Centro de Reabilitação Profissional do Instituto Nacional de Seguridade Social-
CRP 
 - Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações do Estado de 
Minas Gerais- SINTTEL-MG 
 - Sindicatos dos Trabalhadores em Estabelecimentos Bancários do Estado de 
Minas Gerais. 
 Além destas instituições existem estagiários-pesquisadores na UTE-MG 
(União dos Trabalhadores do Ensino); no Sindicato dos Trabalhadores 
Eletricitários (Sindieletro-MG), que se encontram em fase de leitura da demanda e 
da elaboração de uma proposta conjunta de ação. Em cada grupo atuam dois 
profissionais de saúde mental que, sob supervisão, intercambiam aos papéis de 
coordenador e observador (considero aqui, também estudantes de psicologia do 
último ano de curso, assim como médicos do trabalho e psiquiatras), sendo que a 
62 
participação dos trabalhadores é voluntária, mediante contrato psicológico e 
estabelecido coletivamente. 
 Cabe elucidar que trata-se de uma prática investigativa dos impasses 
teórico-metodológicos, quanto dos de ordem institucional. 
 O nosso trabalho se constrói em torno de algumas constatações do 
entendimento que a doença não existe enquanto uma entidade absoluta, a priori e 
independente da sua forma de expressão e manifestação no sujeito; de que o 
trabalho produz um processo de adoecimento, e que no espaço grupal, se coloca 
como o "locus" privilegiado da produção subjetiva dos trabalhadores. De que 
forma? 
 Consideramos que é no processo grupal no coletivo dos trabalhadores, nas 
trocas das vivências subjetivas, que se viabiliza a construção de um projeto, que 
foi obstaculizado pela O.T. O grupo, assim configurado pode propiciar a 
emergência do ser sujeito, enquanto no mundo laboral só há espaço para o ser 
trabalhador. Ser trabalhador desponta como único elemento identificatório 
possível, marcado pelo padecimento nesta forma de existir. Queremos aqui afirmar 
a identidade psicológica alicerçada no traço identificatório trabalhador. 
 No grupo, opera-se a nomeação do sofrimento que serve de veículo à 
subjetividade. É dado significado ao que ocorre, configura-se um campo possível 
de elaboração de um saber do trabalhador sobre si mesmo: o sujeito emerge e 
expressa-se numa diferença, ele não é mais apenas o ser do trabalho ou ainda, ele 
pode construir um saber que o localize, no repensar e sentir a própria identidade 
profissional e social. 
 A questão é saber o que o sujeito diz e como diz, para falar da implicação 
do trabalho com seu sofrimento e mesmo adoecimento representações são 
compartilhadas no grupo. 
63 
 Perguntamos, no modo como o trabalho é organizado, é possível trabalhar 
sem sintoma? 
 Por exemplo: a organização do trabalho das telefonistas onde observamos a 
vinculação do comportamento laboral ao comportamento adotado fora do trabalho, 
que tem como resultado a estereotipia de fala (fraseologia) e a escrita truncada. No 
significado dos modos operatórios, na contradição fundamental entre um 
instrumento destinado à comunicação,e a interdição determinada pela organização 
do trabalho, temos a hiperatividade como marca do condicionamento produtivo. 
Na expressão oral cortada, que temos a denúncia da incomunicabilidade. 
 Outro exemplo é o caso das portadoras de tenossinovite de uma indústria 
mineira de fabricação de chicotes para automóveis. As trabalhadoras queixam-se 
de dores não plausíveis de explicação pelo nexo causal médico, que não "lê" que a 
inscrição sintomática se dá um processo de subjetivação na diferança entre os 
sujeitos, onde aí reconhecemos a variância estrutural. 
 No caso dos bancários, cuja organização do trabalho já examinada em 
pesquisas brasileiras, a relação sujeito-máquina dá substrato às representações 
expressas nas queixas destes trabalhadores: "mente ocupada"; "trabalho até 
dormindo"; "minha cabeça manda uma mensagem e meu corpo não obedece"; 
"minha cabeça tem dois fios e quando se encontram dá choque". 
 Os mecanismos e absorção da vida mental do trabalhador produzem, sem 
dúvida, impactos, cujas manifestações reveladas no discurso destes sujeitos, nos 
direciona o olhar e a escuta de como as representações concretizam algo novo, 
daquilo que só existia fragmentada. Há um compartilhamento das representações, 
a participação é feita através da linguagem constituidora de sentido para os 
sujeitos que aí se reconhecem. 
 Cremos que a compreensão do vivido no trabalho produz o sentido e este 
sentido produz o sujeito. O trabalhador pretende significar a estranheza do mal que 
64 
lhe acomete. O trabalhador alienado de seu desejo torna-se sujeito em si mesmo, 
automático em sua ação que está subordinada, e não referenciada, no desejo do 
outro. No caso das categorias supra-citadas, o trabalhador sempre está em deficit 
com a organização do trabalho, que lhe pede sempre mais, e esta relação vai 
determinar também uma falta do trabalhador consigo próprio: ele está excêntrico 
ao seu desejo, que não lhe pertence e o seu desejo se torna a própria organização. 
Queremos chamar atenção para a dimensão bivalente do sofrimento, que nos 
aponta uma resistência no sintoma quando o trabalhador para poder continuar 
trabalhando, faz dele o desejo da organização, introjeta o "modus operandi" da 
máquina que se revela no seu modo operatório e o modelo mental. Torna-se 
então, artífice do seu próprio sofrimento. 
 A complexidade destes mecanismos psíquicos, que não trataremos aqui, 
nos informa da dialética da construção dos sistemas defensivos. Aquilo que faz 
sofrer é também a forma de resistir. A resistência existe onde há dominação. 
Perguntamos: a organização do trabalho aparece como desencadeante de um 
processo que poderia não passar do nível potencial? Julgamos que a organização 
do trabalho desencadeia na estrutura psíquica, é o deslocamento da identidade 
subjetiva pelo traço identificatório do trabalho com fins a um maior controle e 
produtividade. O sofrimento também é fonte de mais valia, e é também um 
sinalizador que coloca o trabalhador em questão, mesmo que seja com seu sintoma 
sofrimento ou através dele: vemos aí a subjetividade como instrumento de 
conhecimento. 
 Quisemos com esta reflexão discutir a necessidade de uma intervenção 
configurada pelo que, expressam de maneira significativa os próprios 
trabalhadores, na dimensão e magnitude do sofrimento mental no trabalho. 
 Cada trabalhador buscará formas, saídas, convivência com o seu sofrimento 
e mesmo cura. Ainda que, talvez esta "cura" o exponha a uma nova doença. 
65 
 A consideração da prática com Grupos possui extensa literatura, que ao 
mesmo tempo que nos suporta, nos inquieta dada a complexidade do objeto. 
Psicopatologia do Trabalho, mas enfrentamos os riscos desta práxis quando 
escutamos uma telefonista: "é bom eu estar aqui prá saber que não estou louca". 
 Nossa intenção demarca uma ética na escolha do campo e uma certeza na 
orientação de olhar: como nos diz Eleger "O trabalho em si é uma orientação que 
não cura e nem faz adoecer; o que cura, enriquece a personalidade ou faz adoecer 
são as condições humanas e inumanas em que o trabalho é realizado. 
66 
Capítulo 4. 
SAÚDE E TRABALHO: 
UMA ABORDAGEM DO PROCESSO E 
JORNADA DE TRABALHO 
 JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO 
 ALBERTO HARUYOSHI HITOMI 
 ERASMO MIESSA RUIZ 
 
INTRODUÇÃO 
 Para discutirmos processo e jornada de trabalho, primeiro se impõe colocar 
a questão do trabalho mesmo: realização ou maldição, cerceador do gesto criativo 
ou expressão de criatividade, construtor da identidade ou o principal determinante 
da transformação de sangue, suor e imaginário humanos em valores de troca? Este 
maniqueismo é falso, na medida em que trabalho nas sociedades capitalistas 
exprime simultaneamente estas contradições. 
 Partindo-se da premissa de que alguém trabalhe apenas oito horas por dia, o 
trabalho ocuparia diretamente metade do nosso tempo de vigília, um terço de 
nossas vidas, servindo de equivalente universal para nos identificarmos uns 
perante os outros (- "Quem é voce?" - "Ah, sou mecânico"). Mas o trabalho é 
mais, é força, tempo e habilidade que se vende para obter condições de morar, 
vestir, comer. Como se isso não bastasse, o trabalho nos situa na hierarquia social 
de valores, visível no prestígio social de algumas profissões frente a outras 
(médicos e garis, advogados e borracheiros, metalúrgicos e crecheiras etc). Assim 
67 
o trabalho nos remete para possibilidades diferentes de consumo, felicidade, 
adoecimento e morte. 
 Neste ponto podemos afirmar que existe uma onipresença do trabalho 
humano em todas as expressões da vida social. Tudo que consumimos traz a marca 
de algum produtor, traz a expressão concreta de sua subjetividade e/ou media a 
subjetividade do projetista. Qualquer argumentação de autosuficiência individual 
cai por terra durante uma crise de abastecimento ou uma greve que retire das 
prateleiras dos supermercados a cerveja, o suco de frutas ou a carne. O trabalho 
humano cria cada vez mais uma complexa rede de interdependência entre os 
homens. O mais instigante disso tudo é perceber que, quanto mais aumenta o nível 
de alienação, mais são reificados os produtos, mais perdemos a consciência do 
trabalho como elo fundamental da sobrevivência física e espiritual de qualquer 
indivíduo e sociedade. As lojas e supermercados transformam-se em "árvores" 
produtoras de televisores, geladeiras, biscoitos, geléias etc. Sob outra forma 
voltamos à função de "caçadores/coletores". 
 A forma como se estruturam as relações sociais de produção determina 
quem sobreviverá das migalhas do próprio trabalho e quem acumulará por meio do 
trabalho alheio. Através dos processos ideológicos, mediados pelo trabalho, 
relações de opressão e exploração econômica serão justificadas e legitimadas 
tanto pelos dominantes como pelos dominados. 
 Outras instâncias, como família ou religião, poderiam cumprir um papel 
mais importante que o trabalho na estruturação da identidade. Entretanto não se 
pode esquecer que essas instâncias, embora gozando de autonomia relativa, 
acabam sendo de alguma forma mediadas pela organização produtiva. Pensemos 
no seguinte: A crescente expropriação da classe trabalhadora faz com que a 
mulher se lance no mercado de trabalho para complementar a renda doméstica, o 
que implica num redimensionamento radical da estrutura familiar dos 
trabalhadores nos grandes centros urbanos. As creches aparecem aqui como um 
68 
novo agente social na construção de identidades, valores e normas. A presença 
física constante da mãe desaparece, a figura materna é multifacetada nas 
recreacionistas e na mãe biológica. 
 Hoje, principalmente nas sociedades capitalistas periféricas,estamos tão 
prisioneiros do trabalho como mero negócio desigual, da venda de força de 
trabalho por salários aviltados, da dolorosa negociação de um preço suportável 
para a sobrevivência, do medo crônico do desemprego, que nem percebemos as 
inumeráveis possibilidades realizadoras do trabalho. Não encontramos prazer na 
atividade que transforma o mundo e nos transforma, achamos que é necessário 
passar pelo trabalho como inferno, pela negociação salarial como purgatório, para 
alcançarmos o paraiso do consumo. Mas o salário conseguido não permite acesso 
ao mundo do que necessitaríamos e/ou desejaríamos consumir. Assim, os vários 
sindicatos lutam pela redução da jornada, pelo aumento dos intervalos, pela 
extensão das férias e licenças remuneradas, por ganhos de poder de compra. O 
trabalho transforma-se em maldição que, se não pode ser afastada, pode pelo 
menos ser diminuida. O salário não cumpre função promotora de existência 
através do consumo mas de mera e cansativa subsistência. 
 É hora de sistematizarmos alguns conceitos, tomando Marx (s/d) por base: 
 1- Trabalho é atividade humana de intertransformação com a natureza. 
 2- Trabalho parte de um projeto concebido idealmente até encarnar-se 
em resultado prático-material que expressa objetivamente a subjetividade do 
produtor. 
 3- Trabalho implica tanto em realização da identidade, como em 
mercadoria, coisa a ser vendida em troca de acesso à sobrevivência. 
 4- Trabalho tem dupla natureza: 
 a) Atividade material, intencional, voltada para a realização de um produto 
necessário aos homens, e que envolve instrumentos e procedimentos. Esta 
69 
natureza do trabalho pode ser chamada de trabalho concreto, expresso através do 
processo de trabalho. 
 b) Modo de transformação desta atividade em mercadoria, voltada para a 
realização dos interesses do capital, enfim, o modo como o trabalho é explorado. 
Esta natureza do trabalho pode ser chamada de trabalho abstrato, expresso através 
do tempo comprado pelo capital ao trabalhador. 
 Estas naturezas são indissociáveis: uma instrumentaliza e significa a outra. 
Qualquer estudo do trabalho só poderá entendê-lo contemplando este duplo e 
contraditório aspecto. Qualquer tentativa de modificá-lo só poderá efetivar-se a 
partir do entendimento deste duplo e contraditório aspecto. 
 Certa vez, entrevistando médico do trabalho, registramos a ocorrência do 
seguinte diálogo: 
 Pesquisador - "Que obstáculos a empresa tem colocado diante de suas 
atividades ?" 
 Médico - "Ah, nenhuma. Nada do que eu fiz, sugestões que dei, decisões 
que tomei, foram questionadas. Tenho toda liberdade." 
 Pesquisador - "Mas não há possibilidade de nenhum atrito? Imaginemos 
que haja algum, o que aconteceria? 
 Médico - "Não ocorreria atrito. Se eu fizer algo que desgoste, eles me 
demitirão logo, sem conversa." 
 Quer dizer, a liberdade que ele dizia ter, no início do diálogo, era apenas a 
liberdade de fazer o que a empresa quer. A lógica de qualquer empresa é dada pelo 
lucro. As transformações possíveis são aquelas que aumentem ou pelo menos não 
afetem a escala de lucro. A maioria das políticas de recursos humanos e 
organização do trabalho visaram até hoje a implementação de produtividade com 
redução de custos. As virtuais melhorias obtidas para a preservação da força de 
trabalho foram secundárias, não eram objetivo primordial, a não ser quando ficava 
70 
claro que investimentos em melhorias de condições de trabalho se refletiriam na 
qualidade e competitividade do que era produzido. A lógica do capital subverte 
toda e qualquer lógica humanista. 
 Frente a esse quadro, que prática política e econômica os trabalhadores 
realizarão para obter melhor condição de trabalho? Lutas corporativas ou 
classistas? Associação de interesses com os detentores dos meios de produção? 
Docilidade à espera de filantropia? 
 Que lógica política e econômica a empresa praticará para conceder? 
Entender como custo ou investimento? Repassar para os preços? Transformar as 
concessões qualitativas em redução de salários? Transformar concessões 
quantitativas na deterioração das condições de trabalho? 
 Buscando compreender alguns elementos do aspecto concreto do trabalho - 
posto, local, operação, ritmo, postura, ferramenta, instrumento, máquina, matéria 
prima, produto - Medicina do Trabalho, Engenharia do Trabalho e Ergonomia têm 
oferecido grandes contribuições para a melhora da ambiência do trabalho, de seu 
conforto mínimo. Mas ao não reconhecer que o significado objetivo do que 
acontece no posto de serviço é dado pelos desígnios do capital, e não pelos 
trabalhadores, e ao desconsiderar o imaginário do trabalhador que reelabora e 
reapropria fatos e significados segundo particular experiência de mundo, estes 
saberes se perdem na fragmentação, caem no ardil do que pretendiam revelar. 
Medicina do Capital, Engenharia do Capital, Ergonomia do Capital. 
 Pensemos na Ergonomia. Dejours (1987) nos lembra que mesmo as 
mudanças realizadas por ela levam a novos problemas que a mudança não previa. 
A cadeira que acomoda mais anatomicamente a coluna levará a uma dor no braço 
esquerdo. Isso por si já mostra o quanto a Ergonomia, fruto da fragmentação, 
fragmenta o corpo a ponto de não conseguir mais dar conta do que seccionou, e, 
acabada a novidade da mudança, o novo conforto se revela máscara da velha 
exploração. 
71 
 O processo de trabalho não se restringe aos elementos mais concretos. É 
preciso ver qualificações, funções, cooperação, hierarquia, sociabilidade, marca, 
disciplina. É preciso ver a relação entre um trabalhador e outro, tanto no que se 
refere aos objetivos do trabalho, como para a possibilidade do papo camarada, da 
sociabilidade civil, leiga. É preciso ver a hierarquia, correia de transmissão das 
ordens: interesse econômico se transformando em norma, orientação técnica e 
disciplina. É preciso ver a acumulação de competência humana dentro de uma 
máquina, transformando trabalhador em fiscal de visores, alavancas, tomadas, 
botões. É preciso ver o ajuste do trabalhador a cada tarefa. 
 A Psicologia Organizacional, dita Industrial ou do Trabalho, tem tentado 
dar conta destas questões e inúmeros avanços proporcionou ao conhecimento. Mas 
ao tomar o trabalhador individualmente, como se trabalho fosse escolha livre 
baseada em específicos do desejo, questão de vocação, fôro íntimo, tendências 
inatas; e quando supõe empresa autônoma sem sobredeterminações oriundas do 
Estado e das outras empresas, este saber se perde no espontaneismo, no 
individualismo, no ardil daquilo que pretendia revelar. O trabalho então mostra-se 
esquizofrenizado nos conceitos de carga mental, insatisfação no trabalho. A 
subjetividade humana é tomada por expressões numéricas da eletricidade 
galvânica da pele, percepções de luzes e cores, impressões desse ou daquele ruido. 
A Psicologia da Indústria tayloriza seu objeto por que é uma Psicologia 
taylorizada: Psicologia do Capital. 
 É preciso entender o gesto, o significado do gesto para o capital, para a 
produção do produto específico e para o trabalhador. É preciso entender as 
possibilidades que o trabalhador tem de se identificar ou não com o produto, de 
reconhecê-lo como seu, de saber que se torna um pouco mais eterno através de 
cada coisa que faz. Se o trabalhador não pode fazer isto, ele não vive a cada gesto, 
ao contrário, ele morre a cada gesto. Mesmo que não morra fisicamente vai se 
instalando um vazio na alma, uma corrosão da alegria, frustração dos projetos, 
72 
fracasso das esperanças. É preciso que as pesquisas científicas transponham o 
limite da quantidade à qualidade, significando as expressõesnuméricas obtidas 
pelos instrumentos de coleta. 
 E a preocupação com turnos? E a extensão absoluta da jornada de 
trabalho? Há quem afirme que pai trabalhador, submetido a grande carga horária 
sob regime de turno, gera psicodinâmica de dependência entre os filhos. Talvez 
seja excessiva extrapolação, que se explica apenas por uma saudável luta contra 
estudos reducionistas que tomam turno como agressão a relógio biológico 
universal, imutável, natural. O certo é que procede investigar esta questão. 
 O que tem mais impacto? História de migrações rural-urbanas - prontidões 
adquiridas para a vida agrária, quase sempre encarada com bucólica nostalgia, em 
choque com os treinamentos necessários para o desenvolvimento de corpo, 
conduta e cultura operárias? Ou a quotidiana migração pendular casa-trabalho-
casa, que preenche de violência urbana e sobressaltos do transporte público os 
riscos de uma vida fora do trabalho, esgotando vida familiar e lazer? 
 Não é somente o volume de renda que tem significado, por incluir o 
trabalhador nesta ou naquela escala de possibilidades de reprodução. A história 
anterior de crescimento ou queda (o patamar do momento é vivido como perda ou 
como vitória?), a forma (se fixa ou por produtividade) e as oscilações de força, 
atenção e saúde afetando ou não a escala de renda, compõem com o volume uma 
única unidade de explicação. 
 Achamos que existem trabalhos incapazes de dar prazer, mesmo se 
retirarmos dele o perigo, a condição insalubre. Por exemplo, não vemos graça 
alguma em coletar lixo nas ruas, em carregar nas costas sacos e mais sacos de 
açúcar em algum cais de porto, ou em triturarmos os próprios ossos pondo 
britadeira contra asfalto ao sol causticante dos trópicos. A máquina, portanto, pode 
ser boa, pode ir substituindo o trabalho humano em inúmeras atividades, mas 
somente se o trabalhador puder controlá-la, aprender a fazê-la e aprender com ela. 
73 
É preciso que o trabalhador, enquanto cidadão e consumidor, possa gozar de todos 
os bens sociais produzidos; possa entender que não há realização no átomo 
especializado de trabalho que lhe compete, mas na massa organizada do trabalho 
humano, voltada para a satisfação de quem trabalha e não só dos que detêm os 
meios de produção. 
 Mas a máquina incorpora trabalho humano dentro dela e o gesto de 
controlar a máquina não é mais o gesto de produzir. O que isto muda na 
representação sobre trabalho? O que isto muda na consciência? E quando esta 
mudança acontece simultânea com a do capital que se realiza na especulação em 
vez de realizar-se na produção? Máquina e especulação expropriando trabalho e 
significados do trabalho. Máquina e especulação aglutinando trabalho morto. 
 Se não é possível entender tarefa sem seus contextos doadores de 
significado, não é possível descobrir os significados sem as tarefas que os 
materializem. 
 Haveria, por exemplo, um jeito metalúrgico de viver, adoecer e morrer? 
João Cabral de Melo Neto, grande poeta pernambucano, nos ensinou que há uma 
morte Severina, aquela que camponeses migrantes experimentam no nordeste, eles 
que mal sabem o que terão a cada dia, vida comprada a retalhos, morrem em 
massa, a grosso, de desemprego, fome, diarréias, epidemias. 
 Haveria um jeito metalúrgico, um jeito borracheiro, um jeito sapateiro de 
viver, adoecer e morrer? E o que, na vida de metalúrgicos, borracheiros e 
sapateiros organizaria, estruturaria, este jeito? Achamos que são seus trabalhos. 
Mas o que, nestes trabalhos? E como? Impõe-se entender estes trabalhos em sua 
múltipla complexidade, coisa que não aparece fácil pois cada um de nós está 
passando ingentes e urgentes dificuldades financeiras, cada um de nós está 
prisioneiro de um único posto ou de um conjunto tão simples de gestos, que 
confundimos trabalho com o jeito com o qual ele aparece para cada um de nós 
isoladamente. Confundimos trabalho com o inferno desta atividade cerceada de 
74 
gesto criativo e mal paga que quase todos experimentam. E então, em vez de 
lutarmos pela qualificação do trabalho desejamos licenças, pequenas idenizações 
pelos riscos que corremos e a aposentadoria, nem que seja a morte em vida da 
aposentadoria por invalidez do marceneiro que direciona a mão de encontro a serra 
elétrica. 
Processo de Trabalho 
 Neste momento, para efeitos didáticos, nós também vamos dividir o 
trabalho. Deixaremos de lado as questões de salário e jornada, migração pendular 
casa-trabalho-casa, tempo livre, uso do tempo livre e quanto de mês ainda sobra ao 
fim do dinheiro. Vamos nos concentrar na discriminação dos elementos que 
compõem o processo de trabalho, segundo a concepção do Projeto Saúde Mental e 
Trabalho (Sampaio, Hitomi & Codo, 1990; Codo, Sampaio & Hitomi, np). 
 Cada um dos elementos listados adquire sempre pelo menos três 
significados simultâneos e contraditórios: para o trabalhador, para a racionalidade 
do processo que leva à produção de um produto específico e para o capitalista. 
Exemplo: FUNÇÃO - para o trabalhador é quase sinônimo de profissão, é sua 
qualificação especializada, pode até ser seu orgulho; para a produção daquele 
produto, é conjunto de atividades que compõem etapa necessária para a 
transformação de uma tira de couro em sapato, de madeira em mesa, por exemplo; 
para o capitalista é divisão de trabalho que permite controle do trabalho, exercício 
de poder sobre o trabalhador. 
 
 
 
 Mas, listemos os elementos, agrupados segundo afinidades: 
 I. POSTO E LOCAL 
75 
 POSTO - Área de realização da função. Pode ser fechada ou aberta, real 
(presença permanente do trabalhador) ou virtual (atenção em determinados 
momentos, intervalos regulares ou irregulares, com liberdade de ambulação), 
realizando corpo coletivo real de trabalho (presença de todos os trabalhadores da 
função em mesma área, interagindo para além das necessidades do processo de 
trabalho) ou corpo coletivo virtual (isolamento do trabalhador, perda até do 
contacto visual com seus pares). 
 LOCAL - Área física do posto, expressando as condições em que o 
processo de trabalho será exercido. Isto envolve higiene, luminosidade, ruído, 
ventilação, temperatura, estado de conservação dos instrumentos, proporção de 
área livre em relação ao número de trabalhadores (nível de aglomeração, 
território), existência e uso de equipamentos de proteção. O conforto do 
trabalhador é despesa para o capitalista, é custo que ele vai poder ou não repassar 
para o preço do produto, dependendo do mercado. 
 II.OBJETO DE TRABALHO, MATÉRIA PRIMA E PRODUTO 
 OBJETO DE TRABALHO - Elemento da natureza que não sofreu qualquer 
transformação pelo homem. 
 MATÉRIA PRIMA - Elemento que já sofreu alguma transformação e se 
coloca como objeto a ser novamente transformado. Pode ser natural (madeira, 
couro, látex) ou artificial (borracha sintética, plásticos), orgânico ou inorgânico, 
acessível diretamente (contacto manual) ou indiretamente (através de pinças, com 
proteção de luvas, etc), familiar ou desconhecido ao trabalhador, anódino ou 
tóxico. 
 PRODUTO - Resultado da transformação de matéria prima. É matéria 
prima mais trabalho, algo que não existiria sem necessidades, imaginação e 
trabalho humanos. Pode ter as características atribuidas à matéria prima (natural X 
artificial, orgânico x inorgânico, acesso direto x indireto, familiar x desconhecido, 
76 
anódino x tóxico) e outras, como ser real (algo que se materializa) ou virtual (a 
materialização se dá como serviço). A questão do produto fica muito complicada, 
principalmente no setor de serviços da economia. Qual é o produto de uma 
prostituta, de um caixa bancário, de um psicólogo? Se não há produto, o quehá? 
Se não há produto, há trabalho? Se o produto é desconhecido ou virtual, como 
pode o trabalhador encontrar nele a marca de sua mão? Vinicius de Morais, grande 
poeta carioca, fez um operário olhar o mundo e em tudo ver sua marca, porém em 
coisas não mais acessíveis, desde que sobre elas foi aposta a impressão digital do 
capital, a lógica da mercadoria. 
 III. GESTO, OPERAÇÃO E TAREFA 
 GESTO - Movimento do corpo, mais ou menos delimitado, relacionado a 
uma finalidade imediata. 
 OPERAÇÃO - Conjunto de gestos que permite realização de parte ou etapa 
necessária de trabalho proposto. É modo de execução da tarefa. 
 TAREFA - Objetivo e modo de execução do trabalho. A tarefa é atividade 
com sentido técnico, direcionada a um fim que é a produção da parte do processo 
de trabalho atribuída a um trabalhador. É objetivo e conjunto de operações que se 
tem como projeto. 
 IV. RITMO E POSTURA 
 RITMO - Número de operações por período de tempo. Quando os 
trabalhadores conseguem reduzir extensão da jornada de trabalho, podem ter esta 
conquista perdida por avanços tecnológicos e/ou organizacionais que o capital 
incrementa. O que o trabalhador fazia em 8 hs/dia, passa a fazer em 5 hs/dia, por 
exemplo. Se a redução obtida tiver sido para 6 hs/dia, isso quer dizer que o capital 
ganhou 1 hora/dia a mais de produtividade por trabalhador. Esta guerra civil tem 
limite: os custos das inovações tecnológicas e as impossibilidades biológicas por 
parte do trabalhador, pois nenhum ser humano aguenta ficar freneticamente 
77 
apertando parafusos, movendo alavancas, batendo solas além de um certo período 
de tempo. 
 POSTURA - Posições ocupadas pelo corpo durante as operações. Em pé, 
parados. Em pé, andando. Sentados, semi-inclinados, mãos para baixo, mãos para 
cima, cabeça apoiada, cabeça sem apoio, presença ou ausência de apoiadores de 
pés e pescoços. O ser humano paga com varizes, lombalgias, dores dos músculos 
de sustentação, o preço de ter conquistado o andar ereto, e de o obrigarem a ficar 
assim, por longo tempo. 
 V. FERRAMENTA, MÁQUINA E INSTRUMENTO 
 FERRAMENTA - Elemento material simples, aposto entre corpo e objeto 
de trabalho, que potencia força e habilidade humanas. É um potencializador, não 
substitui e não incorpora controle, saber, habilidade. 
 MÁQUINA - Elemento material complexo que incorpora saber e habilidade 
humanos, acumulando trabalho dentro dele. A princípio pode precisar de força 
motriz externa, depois pode incorporar a força motriz, por fim pode incorporar até 
determinados processos de decisão. 
 INSTRUMENTO - Todo elemento material que se interponha entre o 
homem e a natureza, no afã de transformá-la. Pode ser a mão do homem, 
ferramentas, máquinas, máquinas-ferramentas. Qual o grau de desenvolvimento 
técnico dos nossos instrumentos? O que eles nos consomem: energia física em 
proporção substituível? Energia física na fronteira das impossibilidades de 
reposição, o que nos fadiga, nos estafa? Energia mental transformada em atenção 
concentrada, em proporção substituível? Energia mental, no limite da não 
substuição, invadindo de mal estar nossa vida inteira, invadindo de sobressaltos 
nosso sono e nossos sonhos? 
 VI. DISCIPLINA, SOCIABILIDADE E MARCA 
78 
 DISCIPLINA - Juntamente com decisões referentes à produção e normas 
técnicas, o sistema de seleção de pessoal, a administração de pessoal, os 
treinamentos e a hierarquia passam disciplina. O capital se acha investido da 
missão civilizadora de educar e instruir os trabalhadores, estes bárbaros. Disciplina 
é treinamento moral, regulação das condutas, atitudes, comportamentos. Junto 
com as normas técnicas também passam orientações sobre modo de vestir, uso dos 
cabelos, horários e temas de conversa, sociabilidade ideologizada, aquela que o 
capital considera melhor para todos, por ser melhor para ele. Todos sabem do 
número de vezes que podem ir ao banheiro e que os fiscais não intervêem apenas 
nos impositivos da produtividade mas também na vida privada. Neste item entram 
desde a impessoalidade das fardas até os concursos de operário-padrão. 
 SOCIABILIDADE - Padrão de relacionamento entre os trabalhadores e 
deles com a hierarquia. A conversa possível. O surgimento de amizades, 
afetivando o espaço do trabalho. A descoberta de direitos, politizando o espaço do 
trabalho. Se os trabalhadores são autóctones ou são migrantes, trarão costumes 
familiares e culturais diferentes para dentro da empresa. Estes costumes, 
modificados pela disciplina, conformam a sociabilidade possível. 
 MARCA - Possibilidade de identificação do trabalhador com seu produto. 
O artesão reconhece um sapato feito por ele, descobre nele aquele detalhe 
característico. Mas o trabalhador em linha industrial de montagem pode até cruzar 
com seu produto e não reconhecê-lo. O latifundiário marca suas terras com cerca, 
nome de fantasia e documentos legais. O pecuarista marca seu gado, a ferro e 
fogo, com signos que o distingam do gado de outro pecuarista. Um industrial pode 
distinguir sua mercadoria por um modelo próprio, que terá as mesmíssimas 
características independente de ter passado pelas mãos do trabalhador fulano ou 
beltrano. Mas o movimento que tirou do trabalhador a capacidade de marcar 
seu produto, hoje também tira do capitalista a capacidade de marcar sua 
mercadoria. Os economistas chamam determinadas mercadorias de 
79 
"commodities", são mercadorias sem qualquer diferença de um fabricante para 
outro: aço, gasolina, álcool, açúcar e sal são "commodities", por exemplo. A 
diferença fica por conta do nome do distribuidor. 
 VII. QUALIFICAÇÃO, FUNÇÃO, COOPERAÇÃO E 
HIERARQUIA 
 QUALIFICAÇÃO - Conjunto de saberes teóricos e/ou práticos apreendidos 
pelo trabalhador, seja num treinamento específico numa empresa, ou acumulado 
em empregos anteriores, que podem ou não ser aplicados naquele trabalho 
específico. Em sentido mais restrito qualificação pode ser entendida como 
treinamento prévio e continuado investido no trabalhador, aquilo que ele precisa 
saber para dar conta da função. Quanto mais qualificação, mais o trabalhador 
tende a ter controle sobre seu trabalho, a decidir mais livremente, além de ser mais 
zelado pelo capitalista pois representa investimento. 
 FUNÇÃO - Expressão da divisão do trabalho. Realiza a parte da tarefa 
especializável, por trabalhador ou grupo de trabalhadores. Realiza a competência 
treinada. 
 COOPERAÇÃO - O modo como os trabalhadores e as funções se 
articulam, visando maximizar resultados. Os resultados são vetores de uma luta 
permanente: interesse do capital, objetivo específico do processo, interesse do 
trabalhador. Dependendo da força relativa de cada uma das partes, o resultado 
estará mais próximo de um ou outro dos interesses. Esta cooperação pode ser real 
(expressa no quotidiano das relações) ou virtual (intermediada por instrumentos ou 
documentos). 
 HIERARQUIA - Determina as formas de divisão de trabalho e de 
cooperação. Nela se realiza o controle e as tomadas de decisão. Dependendo do 
lugar na hierarquia, variará o poder de decisão. Aí fica claro se somos sócios, 
80 
cúmplices ou escravos. A hierarquia é a correia de transmissão dos objetivos do 
interesse dominante, é instrumento de poder. 
 
Jornada de Trabalho 
 Se trabalho abstrato não se expressa diretamente, pela sua própria natureza, 
podemos surprendê-lo de modo transverso através da jornada de trabalho. Mas é 
necessário ousar incluir aqui a questão da remuneração do trabalho, como 
elemento constituinte da categoria analítica "jornada de trabalho", não como item 
a ser analisado em separado. Impõe-se enfatizar que, tanto para "processo" comopara "jornada", a discriminação dos elementos serve para fins analíticos, ajudam a 
identificar que dados coletar na realidade de cada categoria profissional, deste 
modo permitindo o entendimento, a explicação do que pode estar acontecendo na 
vida, na saúde, na doença e na morte bancárias, metalúrgicas, borracheiras, 
sapateiras, severinas. 
 Concentremo-nos então na discriminação dos elementos que compõem 
jornada de trabalho, agrupados segundo afinidades: 
 I. TRABALHO NECESSÁRIO E CATEGORIAS GENÉRICAS DE 
EXPLORAÇÃO 
 TRABALHO NECESSÁRIO - Quantidade necessária de trabalho 
suficiente para obter remuneração que possibilite reprodução mínima da força de 
trabalho. 
 TRABALHO EXCEDENTE - Tempo a mais de trabalho que permite 
acumulação de capital. A força de trabalho precisa reduzir jornada e aumentar 
salário para valorizar trabalho. O capital precisa aumentar jornada, ou intensificá-
la, e reduzir salário para se valorizar. 
81 
 MAIS VALIA ABSOLUTA - Forma de valor excedente, além do 
suficiente para remuneração do trabalho necessário. Caracterizada pela extensão 
absoluta da jornada de trabalho. 
 MAIS VALIA RELATIVA - Forma de valor excedente, além do suficiente 
para remuneração do trabalho necessário. Caracterizada pela intensificação do 
ritmo de produção (por organização ou tecnologia), com jornada absoluta reduzida 
e/ou constante. 
 II. JORNADA 
 EXTENSÃO DE JORNADA - Tempo máximo comprado pela empresa, 
considerando a necessidade de trabalho necessário e excedente. Pode se apresentar 
com teto diário, semanal ou mensal. Avaliar a proporção tempo-comprado x 
tempo-não comprado (dito livre). 
 MODULOS CONTINUOS - Extensão e número. Em quantas partes 
contínuas a jornada é fragmentada por intervalos. 
 INTERVALOS - Extensão, número e natureza (excluidos ou incluidos no 
tamanho do tempo comprado), legalidade (formais ou informais) e destinação 
(repouso e refeições). 
 PREPARAÇÃO PARA O TRABALHO - Extensão, posição, frente a 
jornada. Urge considerar se o tempo necessário para o trabalhador trocar de 
roupa, munir-se de equipamentos de segurança e receber distribuição de tarefas 
acontece antes ou depois dele assinar o cartão de ponto. 
 DESLOCAMENTO CASA-TRABALHO-CASA - Extensão, posição 
frente a jornada. As vezes esta migração pendular adquire extensão assemelhada 
ao da própria jornada, submetendo o trabalhador ao modo como o sistema de 
transportes é estruturado. Há pessoas que trabalham oito horas/dia e passam até 
cinco horas/dia em ônibus e trem. 
82 
 FÉRIAS - Data fixa ou a escolher, gozo individual ou coletivo, 
possibilidades de parcelamento, possibilidades de acréscimo de folgas permitidas 
no correr do ano. 
 HORA-EXTRA - Número, proporção sobre jornada, habitualidade, 
distribuição pelo mês e natureza (compulsória ou opcional). Constitui um mais-
trabalho, porém remunerado. Implica em redução do tempo dito livre. 
 TURNO - Disperso pela semana útil ou concentrado em plantões. Fixo ou 
revezado, diária, semanal ou mensalmente. Ritmo sono/vigília respeitado ou 
desrespeitado. A disponibilidade social do trabalhador em sintonia ou distonia 
com o tempo dominante da disponibilidade social de seus grupos. 
 
 III. SALÁRIO 
 ESCALA - Magnitude, referência a piso nacional, lugar ocupado na 
distribuição nacional, posição frente a renda per capita, coerência interna 
(referência aos outros salários praticados por sua empresa), coerência externa 
(referência aos salários praticados pelas outras empresas que empregam a 
categoria profissional), posição na renda familiar. Se permite adquirir a cesta 
básica ou não (utilizar aqui os conceitos de "consumo simples/consumo extenso" 
e de "reprodução absoluta"). 
 POSIÇÃO HISTÓRICA - Se a atual escala salarial é ganho, perda ou 
manutenção de escala precedente. Aqui se inclui a discussão do conceito de 
"reprodução relativa" (o nível de reprodução historicamente atingido e que foi 
incorporado como mínimo natural tolerável). 
 TIPO - Fixo, variável (prestação de serviço, produtividade) ou mixto (fixo 
+ variável, ocorrência de adicionais permanentes). Dimensão de ganho dada a 
priori ou a posteriori, permitindo planejamentos e expectativas diferentes. Quanto 
83 
ao recebimento podendo ser integral ou parcelado, com permissão ou não de 
saques através de vales. 
 ADICIONAIS - Número, proporção sobre salário, natureza (compulsório 
ou opcional para a empresa) e tipos (por tempo de trabalho, férias, exercício de 
chefia ou função técnica especializada, existência de salários extra sem 
contrapartida de jornadas extra, idenizatórios de más condições de trabalho como 
insalubridade e/ou periculosidade, abono-família etc). 
 DESCONTOS - Número, proporção sobre salário, natureza (compulsório 
ou opcional para o trabalhador) e tipos (por jornada não cumprida; para benefícios 
sociais como FGTS e IAPAS; para programas de previdência da empresa etc). 
 REMUNERAÇÃO DE HORA-EXTRA - Proporção sobre a hora-padrão e 
proporção sobre salário. É adicional ligado a mais-trabalho. Não tem acréscimos 
sociais, não é incorporado ao padrão salarial com vistas a aposentadoria. 
Determinado pela empresa, significa baixa possibilidade de controle pelo 
trabalhador, principalmente quando existe desemprego e salários baixos. 
 PRODUTIVIDADE - Adicional que representa alguma participação do 
trabalhador nos resultados financeiros globais da empresa. O salário seria um pro 
labore acrescentado por um adicional de acionista (ação também representada pelo 
mesmo trabalho que fez juz ao pro labore). 
 RITMO ORÇAMENTARIO - O modo como o salário é gasto, o ritmo 
temporal dos dispêndios e as possibilidades de investimento e poupança. Se 
aquisição imediata dos bens de consumo minimamente necessários, empenhando 
logo o salário por inteiro e passando o resto do mês desmonetarizado. Se rolagem 
permanente de pequenos créditos nos fornecedores. Se planejamento de compras a 
vista e a prestação. Se planejamento de despesas diárias, semanais e mensais, com 
empenho de todo salário. Se planejamento de qualquer tipo, com sobra para 
investimento e/ou poupança. 
84 
Discussão Final 
 Associações entre os elementos componentes do processo de trabalho, 
ligadas a associações entre os elementos componentes de jornada de trabalho e 
assalariamento, resultam, historicamente, em modos bem diversos de organização 
da produção. No Brasil é possível encontrar todos convivendo simultaneamente. A 
economia brasileira tem destas surpresas. 
 Talvez seja conveniente citar, aqui, os principais modos de organização da 
produção, com seus respectivos padrões de adoecimento, claro que de modo 
genérico. Quais são? 
 COOPERAÇÃO SIMPLES - Baseia-se no ofício e em incipiente divisão de 
trabalho. Tarefas e ferramentas do artesão numa oficina. A matéria prima é 
natural, os instrumentos são rudimentares, o uso da força humana é intenso e 
prolongado, com grande variedade e mobilidade. O controle sobre o trabalhador 
vai variar em acordo com o modo de produção na qual ela se insere. 
 MANUFATURA - Aumenta a divisão do trabalho, parcializando, 
decompondo, hierarquizando e reorganizando tarefas. Início da constituição do 
trabalhador coletivo. Há controle direto e coercivo sobre o trabalhador. Matéria 
prima e ferramenta continuam, mas o esforço se estereotipa e a mobilidade cai. O 
trabalho ainda mostra-se artesanal mas se parcializa e o nível de produtividade 
aumenta. 
 MAQUINISMO SIMPLES - A máquina determina o modo de trabalhar, 
mas ainda cabe ao trabalhador pô-la em marcha, verificá-la e ajustá-la. Para 
controlar e incentivar o trabalho, surgem, respectivamente, o supervisor e o 
estímulo financeiro de produtividade.Instala-se competição na própria relação 
entre os trabalhadores. Surgem a matéria prima artificial e os turnos. As operações 
são monótonas, repetitivas, em alta velocidade, com jornada extensiva. 
85 
 TAYLORISMO/FORDISMO - Divisão extrema do trabalho, convertendo o 
trabalhador em objeto na produção. As tarefas são fracionadas em gestos simples, 
otimizados, automatizados. Introdução de técnica de gerenciamento que amplifica 
o estímulo financeiro e introduz a dedicação ideológica do trabalhador à empresa. 
Introdução das linhas de montagem que fragmentam ainda mais as tarefas, 
desqualificando a força de trabalho e facilitando o controle disciplinar e de 
qualidade da produção. O incremento da produtividade acarreta a diminuição dos 
preços finais e aumento do consumo. 
 AUTOMAÇÃO DISCRETA - Forma técnica de produzir e método de 
gerenciamento que introduz o controle computadorizado do processo de trabalho. 
Uma vez programado, o computador conduz os movimentos das máquinas e 
harmoniza o conjunto do processo. 
 AUTOMAÇÃO DE FLUXO CONTINUO - Transformação física e 
química do objeto de trabalho, o que implica em sistema fechado de alto risco, 
com possibilidade de malefícios que podem atingir todo o ambiente circunvizinho 
à empresa. Controle do processo por computador e fixação do trabalhador no 
posto, vigiando monitores (usado mais comumente em indústrias que lidam com 
material radioativo e biológico). 
 Segundo o predomínio de cada um destes principais modos de organização 
da produção, mas considerando que não se concretizam puros, podemos tentar a 
construção dos padrões principais de adoecimento: 
 COOPERAÇãO SIMPLES E MANUFATURA - Baixa esperança de vida, 
baixa estatura das crianças, problemas infecciosos e nutricionais, privação social e 
biológica. Entre as doenças mentais, prevalência de problemas neuro-psiquiátricos 
como retardamentos, epilepsias e psicoses orgânicas. 
 MAQUINISMO SIMPLES E TAYLORISMO/FORDISMO - Baixa 
esperança de vida, sobrecarga dos aparelhos nervoso, endócrino e cárdio-vascular. 
86 
Entre as doenças mentais, transtornos associados a tensão psico-social, sobretudo 
vinculados ao desenvolvimento da personalidade, além de distúrbios ligados a 
ansiedade, depressão, hipocondria e alcoolismo. 
 AUTOMAÇÃO DISCRETA E DE FLUXO CONTINUO - Notável 
extensão dos transtornos ligados a tensão psico-social, competição, desgaste da 
atenção, conflito entre possibilidades materiais reais e ambiçõees de consumo. 
Aumenta a prevalência de problemas tóxico-ambientais e de mortalidade por 
causas externas, como acidentes e suicídios. 
 Num país em que o capital se realiza na especulação (over, dólar, bolsas 
de valores, inflação) e o mercado interno é secundário, qualquer trabalho se 
desqualifica. O poder dos operários de uma fábrica, que tenha 60% de seu lucro 
oriundo da especulação, é 60% menor que o poder dos operários de uma fábrica 
que tira todo seu lucro da produção. O momento atual abre uma grande questão 
para os trabalhadores: a) Lutar pelo socialismo. b) Tornar este capitalismo pelo 
menos mais civilizado, produtivo - mas capitalismo produtivo não seria 
capitalismo mais competente em nos explorar? c) Ou, terceira via, juntar a 
produtividade do capitalismo com a justiça social do socialismo. 
 Não temos resposta para isso. Além do que transcende os objetivos desta 
série de conferências, para fins de treinamento. 
 Neste momento é necessário aprender com os trabalhadores. Como cada 
elemento simples do processo de trabalho pode estar afetando vida e saúde? De 
que modo? Com que proximidades ou distâncias estes elementos geram 
consequências na metalurgia, na borracha, no vestuário? Como cada um destes 
elementos atua e adquire significado na vida de um soldador, de um torneiro 
mecânico, de um colador de solado em sapatos? 
 Pensamos que antes da emergência de condições propiciadores da opção 
político-econômica, outra ingente e urgente tarefa se impõe para os trabalhadores: 
87 
legitimar nossas organizações, da CIPA aos Sindicatos, demonstrando que não é 
só salário que qualifica o trabalho e o trabalhador. 
 Nada daquilo que temos falado acontece sem vitórias e derrotas, sem luta. 
A lógica da valorização da mercadoria está em permanente guerra civil com a 
lógica da valorização do trabalho. Há um Líbano em cada empresa, tão 
quotidiano, tão difuso, tão sem grandes lances, tão fragmentado que a gente nem 
percebe o tamanho do Líbano. A greve é ponto a nosso favor. A inflação é contra. 
A constituição de uma CIPA é ponto a nosso favor. A taxa de acidentes de 
trabalho é contra, pois representa baixa em nossas fileiras. 
 Somente uma organização competente, tanto no sentido político como no 
sentido técnico, envolvendo assessorias em saúde que instrumentalizem com 
pesquisa e cuidado a luta dos trabalhadores, pode reverter este quadro. 
 A luta exclusiva por salário às vezes ajuda a fragmentar os trabalhadores 
em inúmeros segmentos a competirem entre si, enquanto a bandeira da 
organização do trabalho, condições de trabalho e saúde unem a todos na luta pela 
vida. 
88 
Capítulo 5. 
SAÚDE MENTAL E TRABALHO: UM 
MODELO DE INVESTIGAÇÃO 
JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO 
WANDERLEY CODO 
ALBERTO HARUYOSHI HITOMI 
 
 A investigação das relações provavelmente existentes entre saúde mental e 
trabalho, intuidas empiricamente, associadas logicamente, ricas em consequências 
práticas quando operam intervenções, não têm revelado da questão nada mais que 
rápidas iluminações. Sabe-se, acredita-se, denuncia-se... mas não se comprova, 
não se apreende o como e o quando. 
 Tal investigação pode servir de suporte a novo continente intelectual, 
capaz de articular Medicina do Trabalho, Sociologia do Trabalho, Psicologia do 
Trabalho ("Organizacional", "Industrial"), Epidemiologia, Ergonomia, Psiquiatria 
e Psicologia clínicas; além de permitir a articulação entre pesquisadores, 
prestadores de serviço, organismos normatizadores de assistência, legisladores e as 
representações politicamente organizadas dos trabalhadores. Sempre é necessário 
lembrar que, para a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o trabalhador 
brasileiro é um arquipélago semovente de ossos, músculos e vísceras, sem 
imaginação, sem psiquismo. 
 A temática da saúde e da doença está, surpreendente e radicalmente, se 
renovando. A concepção que trata os termos desta equação como realidades 
diversas, capazes de fundar ciências específicas; transmutou-se em quantidades 
89 
diferentes de uma mesma realidade; em qualidades diferentes de uma mesma 
realidade; agora em um processo dinâmico, com historicidade revelável, totalidade 
complexa a ser explicada. O aumento da esperança de vida; a redução dos 
sofrimentos mais diretamente traumáticos sobre o corpo físico; a tercialização da 
economia; o surgimento e crescimento de automatização e informatização; a 
redução da duração da jornada de trabalho, substituida por exploração do ritmo e 
transferindo conflitos da ordem da produção para a ordem do consumo; estão 
deslocando o lugar preferencial de expressão dos problemas, das fragilidades, dos 
mal estares, das doenças, do físico para o psíquico. A temática é nova enquanto 
busca a compreensão de um processo crítico entre saúde e doença, assentado sobre 
o chão da história. Também é nova enquanto uso do marxismo como matriz 
teórica de um método científico, entendido como o mais capacitado a dar conta de 
objeto tão sutil, tão extraordinariamente problemático. 
 A temática do trabalho vem exigindo estudo aprofundado do universo 
concreto, quotidiano, dos trabalhadores reais, construtores de si e do mundo, 
diferenciados, inseridos em distintascategorias profissionais, por sua vez inseridas 
em ramos diferenciados de produção ou prestação de serviços. O trabalho tem sido 
entendido como simples, parcializado, tomado por algum de seus elementos 
constitutivos. Mas o trabalho é outra totalidade complexa desafiando 
entendimento, móvel sobre móvel, gerando subjetividade, relações sociais, 
identidade, produtos, mercadorias: no ventre da produção de consciência e no 
ventre dos negócios. O desafio atual é dimensionar esta complexidade, reconhecer 
os valores sociais que o trabalho gera, reconhecer que o trabalho desvalorizado 
engendra nova natureza de valores sociais. O trabalho desvalorizado (expansão do 
trabalho morto, trabalho incorporado nas máquinas; expansão do trabalho incapaz 
de gerar relações sociais; expansão da especulação), desvaloriza o trabalhador, 
fragilizando-o de modo irrecuperável, mesmo na presença de "ambiente saneado" 
e de "perfeitos ajustes anatômicos corpo/instrumento". 
90 
 Alguns saberes têm se constituído na tentativa de dar conta destes 
problemas. Mas em rápido vôo rasante, pelas tendências dominantes, o que 
podemos ver? 
 A Medicina do Trabalho tem longa história, pode ter seu surgimento datado 
do séc. IV A.C., quando Hipócrates escreveu sobre doença de mineradores. Com o 
peso de sua longa história e da grande influência sobre a legislação, toma a doença 
como individual e biológica, toma o trabalho como simples (separa os elementos 
posto, local, matéria prima, natureza do produto) desenvolvendo as categorias 
analíticas "insalubridade", "periculosidade", "doença profissional". Entende a 
relação imediata entre aqueles elementos do trabalho com o corpo físico do 
trabalhador idiossincrático. A Medicina do Trabalho tem buscado desvelar 
ambiente físico do trabalho, ajuste territorial população/espaço, natureza físico-
química de matérias primas e produtos. Louve-se o esforço, a real contribuição 
que tem possibilitado avanços e melhorado o entorno próximo do trabalhador, 
embora apenas enquanto presente na empresa. 
 A Sociologia do Trabalho, vive dores de nascimento; não está consolidada 
como área de saber, pelo menos no Brasil; e se desenvolve, desde o nascedouro, 
dentro da órbita do marxismo. Centra-se na investigação do trabalho abstrato, na 
equação jornada/salário, no ritmo de transformação do salário em consumo, 
produzindo relações sociais e mais valia. 
 A Psicologia do Trabalho tem história que se desenvolve no último meio 
século. Vem influenciando táticas de seleção e treinamento, disciplina e 
organização do trabalho, mas não tematiza as determinações exteriores à 
organização, não tematiza o adoecer, toma o trabalho como simples (gesto, tarefa, 
função, hierarquia) e, basicamente, se envolve com a administração de conflitos e 
competências no quadro da necessidade de divisão do trabalho, além da alocação 
do pretenso "right man in the right place". A busca de trabalho é entendida como 
escolha, não como necessidade, por isto inserida na névoa rósea de uma vocação 
91 
natural, pairando por sobre a história dos homens. Contenta-se com o intestino 
sistêmico das empresas, desconhecendo a questão do poder e das determinações 
externas. 
 A Psicologia Social, principalmente aquela de extração norte-americana, 
que tomou corpo no correr das décadas 1940/50, constitui "Saúde Mental" como 
área aplicada, mas como campo difuso, elusivo, conotativo, nada avançando para 
além de um patinar em pântano conceitual. Torna "tipo" o frequente, busca 
estabelecer limiar de tolerância social a desvio, propõe instituições e redes 
assistenciais passando por cima da necessidade de definir objeto, e erige o objeto 
personalidade como seu problema. 
 A Epidemiologia, esta ciência básica da Medicina, que, em cortes 
transversais, busca estabelecer associações lógicas, e em cortes longitudinais, quer 
comprovar causas, não tem sabido o que fazer, até porque se instala sobre modelo 
causal e fetichiza a estatística. Traça proporções e frequências a partir daquilo 
denunciado socialmente e acatado pelos serviços, num perverso percurso entre 
denúncia, rótulo e diagnóstico; acata o normal estatístico como normal moral; 
pensa todo o fenômeno do sofrimento psíquico a partir da compreensão 
psiquiátrica da psicose; e aceita população como categoria natural. Os estudos 
epidemiológicos têm sido decompostos em estudos de múltiplas relações parciais, 
com tratamento igualitário de variáveis, sem hierarquizá-las e sem considerar suas 
interrelações. Em vez de uma concepção teórica, o que se tem é um processo de 
ensaio e erro, formalizado pela tradição, que vai codificando questões em 
características de pessoa, espaço e tempo. 
 A Ergonomia apresenta história bem recente, a princípio ligada a questões 
de Engenharia. Influência a adaptação de equipamentos, distribuição de 
equipamentos e circulação dos trabalhadores. Toma o trabalho como simples 
(atenção, gesto, postura, relação anatômica homem/máquina) e, apenas muito 
92 
recentemente, começa a tematizar a doença. No campo do psíquico introduz a 
categoria explicativa "carga mental". 
 A Clínica, psicológica ou psiquiátrica, ensimesmada em relações duais, 
termina por escotomizar a presença de um no outro através do fetiche da 
neutralidade do técnico. Tem por tarefa restaurar ou instaurar normalidades, mas 
não questiona normalidade e se perde no arrolamento infinito, descritivista-
classificatório, dos fenômenos. Por fim, sucumbe à construção de cardápios de 
queixas e emoções. Parece que há uma interioridade e uma exterioridade sempre 
hostis, e que somente no cenário da relação clínica, a paz e o equilíbrio podem 
ocorrer. Um âmago a-histórico do sujeito o pertubaria, um mundo de conflitos sem 
sínteses e elaborações o perturbaria, mas ali, no lugar da relação terapêutica, tudo 
se esclarece e se resolve. Vende-se ilusão. 
 O vestíbulo da pretensão de apreender processo saúde mental/doença 
mental como processo histórico-social e recortar tal objeto sobre população, nos 
obriga a repensar produção, distribuição, população, processo saúde/doença, 
doença mental/loucura e sintoma/personalidade, daí, mais que nunca, estamos 
desafiados a repensar o método. O espectro de um problema está poderosamente 
rondando as Ciências Sociais: como apreender o fenômeno da doença mental 
como processo histórico? 
 Consideremos saúde/doença como um processo histórico, cuja dinâmica é 
uma tríplice, interdependente e contraditória natureza: biológica, psicológica e 
social. A genética expressa concentrações de transformações sucessivas a longo 
prazo. O fisiológico e o psicológico são campos de transformações mais imediatas 
do biológico. O indivíduo é o fenômeno que expressa a totalidade das experiências 
históricas dele e de seu mundo. A relação entre indivíduo e sociedade é de duas 
totalidades que se interdeterminam e se intercontêem: o indivíduo está na 
sociedade e a sociedade no indivíduo. Mas de que modo se pertencem e se 
expressam? Aqui se impõe retomar o conceito marxista de alienação. Existe a 
93 
coisa, o significado da coisa, o sujeito que significa, a capacidade de representar, a 
representação da coisa, a representação do sujeito e a representação da capacidade 
de representar - tantas mediações, tantas contradições. 
 Consideremos que o sujeito é simultaneamente pertinente a dois campos do 
mundo sócio-econômico: produção (trabalho) e reprodução (consumo). No campo 
da produção, enquanto realizador de trabalho alienado, o sujeito se consome, mas, 
enquanto realizador de trabalho (gerador de bens, construtor de identidade, 
metabolismo homem-natureza), o sujeito se produz. No campo da reprodução, 
enquanto realizador de consumoalienado, o sujeito se consome, mas, enquanto 
realizador de consumo (geração de filhos, construção de tempo livre, de nutrição e 
de relações sociais para além do trabalho), o sujeito se produz. 
 Imaginemos situação primitiva em que o sujeito humano se relaciona e 
utiliza, diretamente, meios e objetos naturais. O tempo decorrente entre os 
movimentos, determinados constrangimentos de natureza física ( Se os homens 
tivessem meio metro de altura, a história teria sido igual ?) e a casualidade, 
produzem as possibilidades de constituição do psíquico e de sua autonomia 
relativa frente aos seus constituintes. 
 A existência deste protopsíquico gera as condições de um projeto que 
permite a representação, no sujeito, do mundo objetivo e de si mesmo. O projeto 
introduz uma novidade na relação sujeito/natureza, através de dimensão 
mediatizadora - o trabalho. O trabalho transforma a natureza e, pela realidade 
desta transformação, transforma o sujeito que foi capaz de realizá-lo, introduzindo 
outra dimensão mediatizadora - a sociedade. 
 Fica estabelecido deste modo sistema multidimensional de relações, 
contradições e determinações, onde o mais complexo (sociedade) supera/domina 
os menos complexos (psíquico - biológico - inorgânico) e se expressa através 
deles. Neste social, gradativamente, primeiro se destacam, depois se contradizem, 
por fim se antagonizam (com o advento da alienação) duas esferas: 
94 
 1ª Esfera - PRODUÇÃO = Onde o sujeito se consome (trabalho alienado) e 
se produz (relações sociais, bens para a esfera do consumo, pedagogia de uma 
visão de mundo). 
 2ª Esfera - CONSUMO = Onde o sujeito se produz (gera filhos, repousa, 
habita, come, se veste, estuda, se locomove) e se consome (consumo alienado). 
 A nível empírico, vivendo o quotidiano dos fenômenos, a segunda esfera se 
apresenta como primeira. 
 PROCESSO DE CONSUMO = a) De coisas e significados que vêem do 
mercado (Economia) 
b) De coisas e significados |que vêem do salário social (Política). 
c) De coisas que permanecem vindo diretamente da natureza (Ecologia). 
 PROCESSO DE PRODUÇÃO = a) De coisas e significados a serem 
distribuídos através do mercado, de modo diferenciado em sociedades classistas 
(Economia). 
b) De coisas e significados que não chegam ao mercado, por produção e consumo 
imediatos a nível de subsistência familiar. 
c) Resíduos colaterais em retorno à natureza (Ecologia). 
 A relação entre produção e consumo, mediada pela distribuição, deve ser o 
eixo da investigação e da interpretação epidemiológicas. 
 Aqui é necessário uma pausa para definir saúde mental, e nos acode a 
clássica proposta de Pichon Rivière: "Saúde Mental é o aprendizado da realidade, 
através da compreensão, enfrentamento e manejo criador/integrador dos conflitos". 
 Consideremos que o fenômeno doença seja uma das expressões do modo 
como os homens vivem - adoecer, morrer, sofrer a condição humana 
historicamente marcados -, denotando inferioridade prática diante das 
95 
possibilidades vitais expressáveis no campo da saúde; e que se expressa por 
sintomas. O sintoma sendo a ponta empírica deste iceberg de expressões. 
 Mas sistematizemos esta questão de modo mais didático: Níveis básicos = 
Físico ou psíquico. Aí teremos de nos perguntar sobre a presença do físico na 
determinação da base psíquica e sobre a presença do psíquico na determinação da 
base física. Nível de expressão = Físico ou psíquico. Estamos admitindo base 
física e nível físico de expressão, base física e nível psíquico de expressão, base 
psíquica e nível psíquico de expressão, base psíquica e nível físico de expressão. 
Aí teremos que nos perguntar sobre a rede de interdeterminações entre base e 
expressão, além de avaliar a que distância do fenômeno, na hierarquia de 
determinação, trabalho e consumo se situam. Modos de expressão = forma 
empírica das doenças aparecerem nos indivíduos. Sintomas = elementos simples 
do modo de expressão. 
 Se nosso objeto é a relação trabalho/processo saúde-doença mental, 
entendida esta relação como processo histórico, com biológico e social se 
interexpressando e se interconstituindo, há que pensar agora os procedimentos de 
construção do objeto. Apreensão, interpretação e explicação são interdependentes, 
portanto aqui se impõe ultrapassar o conhecimento em si (concreto representado) 
pelo conhecimento para si (concreto pensado), tomando a realidade como uma 
totalidade essência/fenômeno. 
 Que método pode apreender este processo - com passado, expressão atual e 
futuro - trajetória não necessariamente predeterminada pelas partes ou pelos 
momentos ? Que método pode dar conta das partes sempre entendidas como 
produtos de um vínculo com a totalidade ? Que método pode partir do empírico e 
despregar-se dele, não se tornando apenas empiricismo ? Que método pode dar 
conta do fenomênico sem volver-se apenas fenomenologia ? Que método pode 
incorporar e superar a indução e a dedução, a análise e a síntese, a lógica formal ? 
Que método pode articular o uso de instrumentos teóricos (conceitos, hipóteses, 
96 
categorias analíticas), instrumentos de investigação (inventários, questionários, 
entrevistas, testes, que possam detectar, destacar, mensurar e/ou qualificar os 
fenômenos a serem estudados) e instrumentos de interpretação ( interpretações e 
estatística); sem perder de vista objetivos do estudo, natureza da população cuja 
história fornecerá significado aos dados, e natureza do fenômeno estudado? 
 O desenvolvimento, tanto da Filosofia como da Ciência, têm oferecido 
grande número de instrumentos e táticas para apreensão do real. Ora buscando dar 
conta da unidade, ora da contradição, da diversidade ou da possibilidade de lei 
geral, da objetividade ou da subjetividade, da expressão momentaneamente 
congelada ou de seu dinamismo. Uma destas possibilidades tem sido dado pelo 
Método Dialético, cujo ponto de partida é o objeto e seu objetivo é a reconstrução 
teórica do objeto. Não fala apenas de coisas, mas de coisas-em-relação-e-
significação, quer surpreender os movimentos e suas qualificações. Pensa a 
realidade sob específica formação social dentro do modo de produção capitalista, 
daí supõe que entre a coisa e a representação da coisa há mais do que supõe nosso 
vão empirismo; mais ainda, supõe que cada coisa pode ter, no mínimo, três 
significados contraditórios: para o capital, para a realização específica de um 
processo específico, para a subjetividade do sujeito que a realiza. A tradição deste 
Método é rica, complexa, contraditória, como para exemplificar suas proposições, 
através de reestruturações e reutilizações, de Demócrito a Hegel. O século XIX 
presenciará a revolução encetada por Marx, desdobrada posteriormente em 
complexas e variadas tendências: as que reinventam Hegel; as que pedem socorro 
a Kant; as fundamentalistas, que buscam a verdade revelada nas obras de Marx; as 
que partem das categorias marxistas (marxianas?) para novos e insuspeitos vôos; 
até aquelas que, afirmando a possibilidade de exposição dialética, negam a 
possibilidade de uma investigação dialética. 
 Além de tudo isso, o método foi tornado metafísica pelas exegeses políticas 
dos últimos 70 anos. Impõe-se reconstituí-lo, realizar uma recuperação 
97 
epistemológica do marxismo e desdobrá-lo para a produção científica de 
conhecimentos, com atenção e rigor: método de investigação - método de 
interpretação - método de exposição. A empreita passa pela releitura do Hegel de 
"A Ciência da Lógica" e do Marx dos "Grundrisse", pela releitura de Lucien 
Goldmann, Karel Kosik, George Lukacs e Pavel Kopnin. É óbvio que uma 
posição, pelo menos, pode ser assumida: nossa posição nagaláxia metodológica 
pode ser localizada nas coordenadas, no espaço da dialética. 
 O seguinte diagrama de Granda (1987) permite visualizar um fértil percurso 
para o pensamento construir juizos. Por aí nossos esforços caminham. 
 Pressionado pela sensorialização da realidade e por algum conjunto tosco 
de idéias explicadoras, instala-se o problema: que lugar trabalho ocupa na rede de 
determinações do processo saúde/doença mental? 
 Há uma fase de conjecturas e versões, caracterizando uma espécie de juizo 
apolítico, que vai às informações, aos dados, questionando-os e traduzindo-os; em 
seguida buscando estabelecer relações analógicas, causais, aleatórias ou 
complexas, com o objetivo de construir uma primeira teoria sobre o objeto. 
 Aí surgem as hipóteses que, através de movimentos ascendentes do 
pensamento, à procura de essências, e movimentos descendentes do pensamento, à 
procura de formas, alcançam o nível dos juizos verdadeiros possíveis naquele 
determinado momento histórico, para aquele grupo intencionalmente configurado. 
 O que, efetivamente, podemos retirar desta discussão sobre método? 
 a) A abordagem, necessariamente, deve ser interdisciplinar. 
 b) A compreensão, sempre holística, buscando reconstruir totalidades 
significativas. 
 c) Permanente resgate da história. 
98 
 E é deste modo que, tomando trabalho como construtor da subjetividade e 
da sociedade; tomando categoria profissional como população significativa, classe 
social expressa no quotidiano de trabalho; tomando alienação como característica 
básica de sociedades capitalistas; e tomando saúde/doença como qualidades 
diferentes do fenômeno vital, fenômeno histórico, expressão do que acontece na 
esfera da produção e do consumo, principalmente do que acontece na esfera da 
produção e do consumo de significados no que diz respeito à questão específica da 
saúde/doença mental; poderemos começar a esboçar uma teoria sobre a gênese do 
sofrimento psíquico, deste mais estável, paralizador, incapacitante, denominado 
doença mental. 
 Por enquanto precisamos confiar no que instrumentos, produzidos dentro 
do quadro de referências de outras teorias, estarão, recortando, contando e 
medindo para nós. Mas, conscientes destes problemas e destas angustiantes 
limitações, armados de precárias indicações, nos pomos em campo. De que 
modo? 
 
INSTRUMENTOS TEORICOS 
 A categoria "categoria profissional" permite operacionalizar, através de 
uma construção intelectual, o conceito "classe social", e articular os três principais 
saberes postos em confronto. Para a Sociologia do Trabalho lidaremos com a 
hipótese de ser classe social expressa no quotidiano dos agentes de produção (não 
é segmento de classe, é expressão de classe); para a Psicologia do Trabalho 
lidaremos com a hipótese de ser unidade conformadora de identidade 
pessoal/social (considerando outras unidades - p.ex.: família, escola - que lugar 
ocupa na rede hierarquizada de determinações de fenômenos psíquicos 
concretos?); e para a Epidemiologia lidaremos com a hipótese de constituir 
população significativa, configurando condições idênticas de existência. 
99 
 A categoria "perfil de produção" sintetiza um conjunto específico de formas 
pelas quais os sujeitos daquele grupo significativo ("categoria profissional") 
produzem suas condições de existência. O "perfil de produção" sintetiza as 
expressões da dupla e contraditória natureza do Trabalho. Trabalho se expressa 
através de duas variáveis: trabalho abstrato = inexpressível por sua natureza, pode 
ser apreendido através de indícios, de modos de comparecimento como por 
exemplo a equação jornada/salário; trabalho concreto = expresso por sua vez 
através do processo de trabalho. Esta categoria, para os fins de nossos estudos, é 
explicativa, independente. 
 A variável jornada/salário pode ser montada pelo mapeamento de seus 
elementos simples (indicadores): extensão da jornada, turno, extensão e número 
dos intervalos, migração pendular casa-trabalho-casa, ritmo orçamentário, 
magnitude do salário, horas-extras, remuneração de horas-extras, férias, relação 
salário absoluto/poder de compra, posição do salário atingido na história do 
sujeito, bonificações específicas da empresa, bonificações coletivamente ganhas, 
adicionais, inserção sindical, data-base de negociação sindical, descontos salariais 
por redução de jornada, descontos salariais por razões sociais. 
 A variável processo de trabalho pode ser montada pelo mapeamento de 
seus elementos simples (indicadores): posto, local, matéria prima, produto, 
operação, atividade, tarefa, postura, ritmo, ferramenta, máquina, instrumento, 
disciplina, relações sociais na produção, marca, qualificação, função, cooperação, 
hierarquia 
 A categoria "alienação", o rompimento entre o produto e o produtor, 
sintetiza as experiências de expropriação das possibilidades objetivadas do 
homem, sejam como forma de produtos ou como forma de relações. É categoria 
importante do marxismo, que deixa de ser especulativa quando se desdobram as 
categorias concretas da divisão do trabalho, do assalariamento, da mercadoria, da 
força de trabalho como mercadoria, do impedimento do produtor em se reconhecer 
100 
nos seus produtos. Somente na condição de considerarmos trabalho como essência 
do homem, alienação seria o estranhamento entre o homem e sua essência. 
 A categoria "perfil de características psicológicas e psicopatológicas" 
sintetiza um conjunto específico de formas pelas quais os sujeitos daquele grupo 
significativo ("categoria profissional") respondem psiquicamente aos 
constrangimentos imediatos da realidade. Estas formas são padrões de resposta, 
tendências de personalidade/ sintomas de sofrimentos psíquico. Há aqui que 
distinguir doença, de não frequente, de anormal, de mau; e de distinguir saúde, de 
frequente, de normal, de bem. Há também que distinguir decantações ontogênicas 
de tendências, das expressões mais claras de defesas (no sentido psicanalítico 
mesmo) e das representações que o sujeito elabora sobre o que sente ou expressa. 
Este perfil sintetiza as expressões da tríplice e contraditória natureza do processo 
saúde/doença mental: biológica, social e psicológica. 
 Para além das distinções apontadas, o pano de fundo deste debate estará 
colocado pela distinção doença mental X alienação. O processo saúde/doença 
mental é entendido como processo social articulador das possibilidades de 
recuperar a unidade conflitual entre objetividade e subjetividade, rompida pela 
alienação. A contradição sujeito objeto (s-o) permite a constituição da 
subjetividade. O estranhamento do sujeito com seus produtos, do sujeito com a 
sociabilidade e do sujeito consigo mesmo torna aquela contradição antagônica e 
permite a ruptura s-o. O vazio pressiona por preenchimento, por finalidades e 
significações. As tentativas de recuperar a unidade conflitual perdida são de vários 
tipos: ideologia, religião, hobbies, militância política, dedicação familiar, doença 
mental, o próprio trabalho etc. Em que condições a forma "doença mental" 
aparece ? De que modos, por sua vez, esta forma se expressa? 
 Neste ponto devemos admitir que o psicológico exprime as outras duas 
naturezas e acatá-la como variável que pode ser montada pelo mapeamento de 
seus elementos simples: escalas e níveis. O conjunto de características que se 
101 
concretiza em cada indivíduo, marcado por sua especificidade histórica, através de 
vetores pessoais, sociais e culturais, forma quadros ajustados a expectativas, 
portanto designáveis como personalidade, apresentando padrões de respostas 
expressos por representações, opiniões, atitudes, prontidões para ação, preditascomo aceitáveis, normais, identificáveis como frequentes. Ou podem, a partir de 
determinados limites, extrapolar para dentro do inaceitável, do não normal, do 
identificável como não frequente, aí podendo se inserir dentro de categorias 
descritivas como desvio, marginalidade, doença. Três ordensde necessidade se 
impõem: 1a) Distinguir padrões de resposta psicológica às exigências da vida. 2a) 
Distinguir o normal do não normal, através do estudo de distribuição, em 
contraponto com noção coletiva de adequação. 3a) Distinguir personalidade de 
sintoma, através do estudo de distribuição, em contraponto com noção coletiva de 
bem estar. Ora, para a primeira necessidade, tanto a Psiquiatria como a Psicanálise 
vêm oferecendo o conceito de mecanismo de defesa, que, na dependência do uso 
mais ou menos especializado, mais ou menos cristalizado, vai configurando 
padrões de resposta, padrões que podemos chamar "escalas". Para a segunda 
necessidade, os instrumentos existentes de mapeamento psicológico já trazem 
embutidos, por causa de seus pré-testes, de suas hipóteses, de suas matrizes 
teóricas, algumas expectativas traduzíveis por intensidade de resposta, por "nível" 
quantidade de resposta. Por algum enviesamento, provavelmente ligado a questões 
ideológicas, os instrumentos confundem normal com saúde, não normal com 
patológico. Portanto, o nível deve ser aceito enquanto poder descritivo , e posto 
sob suspeita seu poder qualificador. Pensando em termos de "escalas", acataremos 
provisoriamente a seguinte classificação = Obsessividade, Depressão, 
Hipocondria, Histeria, Mania, Ambivalência, Síndrome de Introversão/extroversão 
social, Psicopatia, Paranóia, Masculino/Feminino. Em termos de "níveis" 
acataremos, num primeiro momento = frequente X não frequente, normal X risco 
X problemático, e deixaremos o julgamento saúde X doença, para etapa posterior 
de aprofundamento. 
102 
 
OBJETO 
 O campo de relacionamentos possíveis entre trabalho e processo 
saúde/doença mental. 
Táticas de abordagem do objeto 
 Investigação interdisciplinar, para construção e varredura do máximo 
possível dos níveis analíticos que possam ser identificados na existência concreta 
do objeto. 
 Cada nível analítico permite a construção de um estudo caso. O resultado 
final é permitido pela articulação dos estudos de caso. 
NíVEIS ANALÍTICOS E ÁREAS POSTAS EM INTERDISCIPLINARIDADE 
 Genérico sócio-econômico = Sociologia do Trabalho 
 (categoria profissional) 
 Concreto sócio-econômico = Psicologia do Trabalho 
(empresa) 
 Concreto população significativa = Epidemiologia 
 (grupo de trabalhadores paradigmáticos) 
 Concreto individual = Clínica 
 (trabalhadores selecionados) 
Objetivos 
 Construir os dois termos da equação perfil de produção X perfil 
psicológico/psicopatológico, testar modelos de investigação, comprovar as 
hipóteses referentes ao processo de determinação, fornecer instrumentos para a 
transformação organizacional do trabalho e fornecer elementos para a modificação 
das leis trabalhistas. 
103 
 No plano mais estrito da investigação científica pretende-se explicar o 
perfil de características psicológicas e psicopatológicas desenvolvido por 
determinada população significativa. A pergunta fundamental é: qual o lugar que 
trabalho ocupa na hierarquia de determinações do perfil 
psicológico/psicopatológico de um grupo ? 
Hipótese 
 O perfil produtivo tem, ao lado de outros momentos significativos da vida 
humana, como a infância e a adolescência, papel preponderante na rede complexa 
de determinantes e significadores dos fenômenos encontráveis no perfil de 
características psicológicas e psicopatológicas, é possível, se tomarmos como 
objeto de investigação um grupo intencionalmente constituido a partir da inserção 
no mundo do trabalho, compreender melhor o processo saúde e doença mental. 
Instrumentos de Investigação (Coleta De Dados) 
 Literatura e fontes primárias. De interesse da economia, da sociologia, da 
psicologia e da epidemiologia daquela categoria profissional em estudo. 
 Ficha de identificação geral. Levanta dados gerais demográficos (sexo, 
idade, residência, procedência, escolaridade), relativos a trabalho (profissão, 
função, tempo de profissão, tempo de função, tempo de empresa) e relativos a 
queixas psicológicas anteriores ao trabalho naquela profissão. 
 Organograma da empresa. Aponta o sistema de controle e a rota por onde 
passam as decisões dentro da empresa. Esclarece a hierarquia, o who's who do 
poder e a divisão de trabalho segundo a lógica do capital, da produção de mais 
valia. 
 Fluxograma do processo de produção. Aponta a idade histórica da 
organização do trabalho e da tecnologia aplicadas. Esclarece a divisão de trabalho 
segundo a lógica da produção de um produto específico, de um valor de troca. 
104 
 Folha salarial. Estabelece o perfil de remuneração da empresa, sua política 
salarial, a existência ou não de um plano de cargos e salários, os ganhos 
secundários embutidos e as indenizações de danos (periculosidade, insalubridade, 
penosidade). 
 Entrevistas de Sociologia do Trabalho, por fonte. Aplicável a proprietários, 
maiores acionistas e principais administradores, no que se refere à empresa, e aos 
principais líderes políticos da categoria (cipeiros eleitos, dirigentes sindicais etc). 
 Entrevistas de Organização do Trabalho, por fonte. Aplicável a todos os 
que ocuparem lugar na hierarquia de decisão da empresa: gerentes, chefes, 
supervisores, encarregados etc. 
 Protocolo de observação direta do processo de trabalho. Identificar, 
quantificar (o que for mensurável) e hierarquizar os 20 elementos simples que 
constituem o processo de trabalho. 
 Observação por vídeo do processo de trabalho. Instrumento mixto, que 
serve para colher dados e ser editado como instrumento de exposição. Como 
instrumento de coleta de dados também é mixto, pois permite observação de 
trabalho e registro de depoimentos, simultaneamente. 
 Inventário psicológico multifásico censitário. Instrumento de massa, para 
atingir a população de trabalhadores significativos da categoria na empresa, 
objetivando levantar respostas que permitam montar padrões de personalidade e 
indicar possibilidades de sintoma. O nível de investigação é estatístico, 
probabilístico, tendo por meta mapear distribuições, identificar associações lógicas 
e levantar tendências. 
 Entrevista clínica de aprofundamento. Realiza a checagem do inventário 
psicológico de massa, sobre amostra de trabalhadores, mapeia resultados 
referentes a outras unidades historicamente configuradoras do sujeito (consumo, 
escola, família, sexualidade, locus de controle, antecedentes sanitários, projeto de 
105 
futuro, migração etc) e a representação que cada sujeito construiu sobre seu 
quotidiano de trabalho. 
 "Group feedback analisis" Reuniões de grupo com os sujeitos envolvidos, 
devolvendo os resultados, checando as hipóteses ao nível experencial do grupo, 
elaborando estratégias de intervenção no trabalho em busca da prevenção do 
sofrimento. 
 Diário de campo. Em todas as atividades as atividades de campo, o 
pesquisador registra num caderno de campo, impressões, comentários, 
acontecimentos não previstos no planejamento das ações e no treinamento. 
Etapas de Campo 
 1. Identificação da Categoria Profissional. Considerando importância do 
setor ou subsetor econômico, idade histórica do desenvolvimento tecnológico, 
número de trabalhadores envolvidos, grau de organização política da categoria 
profissional, história sindical, bibliografia existente sobre comprometimentos 
sanitários da categoria profissional, possibilidade de articular demanda de pesquisaa partir da categoria e acessibilidade política da equipe de pesquisa com relação a 
sindicatos, empresas e cipas; escolher a categoria profissional a ser investigada e 
demarcar a territorialidade, sempre buscando investigar setores de ponta, pelo 
provável maior desenvolvimento produtivo-organizacional. 
 2. Identificação da Empresa. Supondo que uma categoria profissional não 
se realiza no vazio, e sim através de concretizadores; que, sob o modo de produção 
capitalista, o concretizador fundamental na esfera econômica é o capital; e que as 
empresas expressam especificamente esta função do capital; é necessário 
identificar as empresas que realizem a lógica do setor ou subsetor da economia 
onde se insira a categoria profissional escolhida, principalmente considerando que 
o capitalismo vivido não é mais concorrencial (como na concepção liberal). Aqui é 
106 
necessário lembrar que em setores oligopolizados, 2 ou 3 empresas podem dar a 
lógica de todo o setor ou subsetor da economia. 
 Mas quantas empresas escolher ? 
 Deve-se proceder a uma estratificação do setor ou subsetor, considerando 
regime de propriedade (estatal, privado, economia mixta) e tipo de competição 
prevalente (oligopólio? monopólio? competição simples?). Somente a partir deste 
estudo será possível estabelecer o número e quais empresas poderiam servir de 
campo para a investigação pretendida. Da lista de empresas equivalentes por 
estrato, pode-se proceder a sorteio ou nos submetermos às imposições do real 
(qual delas permitirá acesso?). Constrangimentos políticos, ligados à 
disponibilidade de recursos ou a resistências ao acesso, podem impedir a escolha 
de empresas segundo esta lógica, então, a empresa possível, constituirá estudo de 
caso-empresa, sem a atribuição de representar paradigma para um setor. O que é 
inevitável, em qualquer dos casos, é sejam construidas as inserções da empresa 
estudada em seu setor ou subsetor econômico, na história teconológica e na 
história política deste grupo específico de trabalhadores. 
 3. Abertura do campo. Esta é uma etapa basicamente política. Estar-se-á 
atendendo a demanda ou criando demanda? Qual enviesamento de entrada os 
objetivos da pesquisa suportam sofrer e os instrumentos podem corrigir? A entrada 
sindical pode fazer a empresa se retrair e hostilizar a participação dos 
trabalhadores; ou fazer a pesquisa cair na luta ideológica dentro do campo sindical 
identificando-se com alguma corrente, além de receber dos trabalhadores uma 
exacerbação de queixas e expectativas visando colocar a pesquisa como 
intermediária de reinvindicações que não encontraram canal político adequado. A 
entrada empresarial pode fazer os trabalhadores se retrairem e hostilizarem a 
pesquisa, respondendo burocraticamente ao que lhes for perguntado, camuflando 
problemas para não oferecerem pretexto para possíveis reações da empresa. A 
entrada bonapartista, a pairar por cima do sindicato e da empresa, não acontece na 
107 
prática, pois, no mínimo a empresa tem de autorizar a entrada dos pesquisadores, 
se não quisermos pesquisar na ilegalidade. 
 Encontrada a fórmula de entrada, avaliado e dimensionado o viés 
suportável, definidos os rituais de contacto e motivação, iniciar o campo concreto. 
 
 4. Estudos gerais de Sociologia do Trabalho. Os procedimentos agora 
visam dar conta da configuração do caso empresa: história das políticas 
econômicas praticadas pela empresa, modo de inserção da empresa em seu setor 
ou subsetor de produção, relação empresa/sindicatos, recuperação das greves 
ocorridas na empresa, número de trabalhadores, índice apoio/operacionais. Aqui se 
esboça a história da empresa, do setor ou subsetor econômico, da categoria 
profissional e de seus sindicatos. Além de entrevistas e análise de fontes primárias, 
correr a empresa com uma ficha geral de identificação dos trabalhadores que 
permita análise de indicadores demográficos (idade, sexo, escolaridade, função, 
procedência, tempo de profissão, tempo de função). 
 5. Estudos específicos de Sociologia do Trabalho. Neste momento se inicia 
o levantamento específico da expressão do trabalho abstrato (equação 
jornada/salário), visando construção do perfil de produção. Todos os indicadores 
de jornada de trabalho e de remuneração podem ser obtidos diretamente dos 
departamentos correspondentes da empresa, da análise da folha salarial e através 
de entrevistas com os trabalhadores. Diante de dificuldades, alguns indicadores 
podem ser obtidos indiretamente, através do estudo das folhas de contribuição 
sindical compulsória que o sindicato pode fornecer. O problema da folha de 
contribuição sindical é que ela fornece elementos para levantamento da massa de 
salário fixo, não sendo possível retirar dela o que forem gratificações, 
antecipações e salários secundários. 
 6. Estudos de Psicologia do Trabalho. Operacionaliza-se a investigação da 
expressão do trabalho concreto (organização objetiva do trabalho = processo de 
108 
produção X processo de trabalho), visando construção do perfil de produção. 
Todos os indicadores de processo de trabalho podem ser obtidos através da 
checagem do organograma real e formal da empresa, através da montagem do 
fluxograma da processo de produção e de entrevistas de organização de trabalho 
aplicadas a todos os trabalhadores situados na hierarquia de decisão da empresa. O 
que se levanta aqui é o processo de trabalho objetivo e seu significados, tanto para 
o capital como para a produção de um produto específico. O processo de trabalho 
como aparece na consiência dos trabalhadores, sob forma de representação, será 
obtido quando da aplicação das entrevistas de aprofundamento, após a aplicação 
do inventário psicológico. 
 7. Montagem do "perfil de produção". Este é um nível intermediário de 
terminalidade da investigação, pois o que temos, ao finalizar esta etapa, é um 
diagnóstico organizacional, acrescido das sobredeterminações oriundas da equação 
jornada/salário, da lógica competitiva da empresa e do papel que esta desempenha 
no setor ou subsetor da economia. A montagem do perfil deve destacar cada 
expressão e cada categoria explicativa extraida da descrição e da interpretação dos 
fenômenos encontrados no mundo específico de trabalho desta categoria 
profissional. Para revelar os elementos relevantes do perfil naquele grupo 
específico de trabalho, procede-se ao rastreamento, identificação e qualificação 
dos 40 elementos (indicadores) das expressões "processo de trabalho" e "equação 
jornada/salário". 
 Porém, diagnóstico organizacional, com maior ou menor abrangência, 
maior ou menor complexidade, não é o objetivo final desta investigação. O que 
temos é a revelação operacionalizável de um dos termos da relação constituinte do 
objeto: perfil de produção explica perfil psicológico/psicopatológico ? 
 Para a montagem deste perfil se articulam resultados obtidos pelas 
entrevistas de sociologia do trabalho e de organização do trabalho, a parte da 
entrevista clínica de aprofundamente referente a representação sobre o quotidiano 
109 
de trabalho, o protocolo de observação direta do processo de trabalho e a 
observação por vídeo do processo de trabalho. 
 8. Identificação do(s) grupo(s) de estudo (configuração da população 
epidemiológica). Da posse dos elementos do organograma da empresa, do 
fluxograma do processo de trabalho e de dados das entrevistas de organização do 
trabalho, surgem condições para a definição, dentro da empresa, do(s) grupo(s) de 
estudo. Que critérios permitirão a inclusão de um sujeito no campo de 
características que o definem como pertinente a determinada categoria profissional 
? O faxineiro do banco é bancário ? Que elementospermitem a configuração da 
população, como homogênea neste(s) atributo(s), para fins de estudo 
epidemiológico, considerando a hipótese que afirma o lugar do trabalho na 
determinação do processo saúde/doença mental? 
O corte a ser dado, obrigatoriamento o será pela localização dos sujeitos frente à 
finalidade do processo de produção. 
 9. Estudo epidemiológico censitário. Estabelecido o critério de inclusão dos 
sujeitos, configurada a população, aplicar sobre ela um instrumento que permita 
discriminar padrões de personalidade e de sintomas, com aplicabilidade e 
replicabilidade garantidas. O instrumento deve permitir descrição de tendências, 
identificação de prevalências, discriminar formas de expressão, permitir 
comparação crítica com perfil psicológico/psicopatológico de outros grupos e a 
revelação de associações lógicas com variáveis explicativas. 
 10. Estudo epidemiológico de aprofundamento. Obtido o rastreamento - 
tendências, prevalências, probabilidades, associações lógicas - urge testar o obtido 
e compreender como tais tendências e probabilidades se tornam fenômeno nos 
sujeitos idiossincráticos. Obtido o levantamento objetivo das características da 
organização do trabalho, para o capital e para o processo de produção do produto 
específico, urge identificar e compreender qual o significado subjetivo para o 
trabalhador, como as características objetivas estão representadas na consciência. 
110 
O instrumento aqui é extenso, aberto e para aplicação individual. Estes indivíduos 
para entrevista são localizados amostralmente, em processo de estratificação o 
mais exaustivo possível: classificação ligada à organização do trabalho + sexo + 
idade + classificação segundo padrão de respostas ao inventário psicológico + 
inserção no grupo que contenha as escalas prevalentes. Os aplicadores e os 
entrevistados não de qual estrato o entrevistado foi retirado, o que configura esta 
etapa como estudo duplo cego. 
 11. Montagem do "perfil de características psicológicas e 
psicopatológicas". Este é o outro nível intermediário de terminalidade da 
investigação, pois o que se tem, ao seu final, é um complexo e sofisticado 
diagnóstico das condições psicológicas do grupo, já apontando para a 
discriminação do que seja personalidade e sintoma, já apontando para a 
discriminação de padrões e tendências (escalas de classificação de orientação das 
respostas). Uma rigorosa identificação do universo dos fenômenos psicológicos do 
grupo, ultrapassa a investigação empirista, fenomênica, descritiva, se significada à 
luz de suas sobredeterminações. Para reduzir o problema da identificação dos 
modos concretos de operação e das representações subjetivas; o problema das 
discriminações saúde/doença, normal/não normal, qualidade/simbolização 
quantitativa arbitrária; e o problema da discriminação mal/alienação; este perfil 
pode ser construido em dois cortes: epidemiológico e clínico, donde o uso dos 
dados fornecidos por inventário psicológico multifásico censitário e pela entrevista 
clínica de aprofundamento. Neste último corte se apresentam para descarte uma 
série de hipóteses clássicas (família, infância, sexualidade) e são mapeados os 
modos de realização da construção do sujeito fora do trabalho. 
 12. Identificação e interpretação das relações entre perfis. Chega-se então 
à terminalidade pretendida. Tendo sido construido os dois perfis, acatado um 
como precisa revelação de fenômenos a serem explicados e o outro como fonte 
das determinações significadoras, proceder à operacionalização dos elementos 
111 
explicativos, hierarquizando-os. Neste ponto tem-se a possibilidade do 
estabelecimento de leis gerais e da projeção de resultados para populações que 
partilhem das características definidoras da população estudada. 
Instrumentos de Interpretação 
 Computação: 
 1. Registro e análise computadorizada da Ficha de Identificação Geral e 
do Protocolo de Observação Direta do Processo de Trabalho. Os dois 
instrumentos agrupam questões fechadas, quantificáveis, registráveis em banco de 
dados, que alimenta programas de análise descritiva, objetivando configurar 
distribuições e proporções. 
 2. Registro e análise computadorizada do inventário psicológico. O 
instrumento utilizado para coleta de dados é o Inventário Minnesota Multifásico 
de Personalidade (MMPI). Este banco de dados alimenta vários programas de 
análise, uns incorporando instrumentos estatísticos descritivos, outros 
incorporando analíticos, paramétricos e não paramétricos. 
 O MMPI se organiza em torno de 10 escalas, 4 de validação e 10 para 
estabelecimento de padrões de resposta personalidade/sintoma (escalas chamadas 
de clínicas). 
 Frente às escalas de validação, o critério canônico manda considerar 
invalidado o inventário que apresentar pelo menos uma escala com escore igual ou 
superior a 70. Como isto pode implicar na perda de muitos sujeitos e como os usos 
clínicos do MMPI autorizam só considerar alguns escores altos se isto for 
acompanhado por substanciais alterações de escores nas escalas clínicas. Este 
modelo de investigação opta por considerar invalidação se as escalas K e F 
tiverem escore superior a 80 e as escalas ? e L tiverem escores superiores a 70. 
 Frente às escalas clínicas, a análise se desenvolve em duas etapas: 
112 
 1a etapa = Usar um critério empírico (legítimo de todo modo, mais 
legítimo ainda neste caso porque o próprio MMPI foi construido deste modo) para 
definir como Normal as escalas com escore na faixa 30-70 (inclusão dos 
extremos), e como Não Normal as escalas com escore abaixo de 30 e acima de 70. 
Quando estivermos lidando com o sujeito e o escore de suas escalas, a 
classificação se dará canonicamente: Normal, Border Line ( 61-70 ), Patológico ( 
acima de 70 ). Quando estivermos descrevendo população, a classificação se dará 
de outro modo: Normal (conjunto de sujeitos que apresentam todas as escalas na 
faixa 30-70, mais os sujeitos que apresentarem apenas uma escala Border Line ), 
Risco ( conjunto de sujeitos que apresentarem mais de uma escala Border Line ) e 
Problemático ( conjunto de sujeitos que apresentarem pelo menos uma escala 
Patológica ). Esta etapa do estudo busca dimensionar a probabilidade de 
ocorrência de problemas psicológicos no grupo, as proporções segundo as 
classificações, a distribuição destas proporções segundo atributos (demográficos e 
de trabalho) e as tendências expressivas. Acatar o cânone para a análise escala por 
escala dos sujeitos se dá para que não se perca o diálogo com as publicações que 
se utilizam do MMPI, e por estarmos ligados a cada sujeito, onde se permite 
leitura clínica provisória, a ser confirmada ou não quando do corte de 
aprofundamento. Introduzir o critério normal X risco X problemático se justifica 
pelo abandono dos sujeitos, pois passou-se a pensar suas inserções em populações, 
acatando o poder descritivo das escalas mas rejeitando seu poder qualificador. Por 
exemplo, reconhece-se a existência de um problema naquele grupo de sujeitos, 
mas qual o problema? 
 2a etapa = Como o MMPI foi desenvolvido prioritariamente para uso 
clínico, deste modo tendo vasta aplicação, a discriminação consolidada nos 
manuais sobre escores por escala, é critério a ser seguido nesta etapa. Se dentro da 
população puder ser constituido grupo-estudo e grupo-comparação, será possível 
identificarmos escalas prevalentes por grupo e analisar significância das diferenças 
113 
encontráveis, através de testes não paramétricos. O corte que estabelece as escalas 
prevalentes, prevalência solitária de uma escala ou prevalência associada podendo 
sugerir síndrome, é empiricamente definido a cada grupo de estudo.3. Registro e análise computadorizada das Entrevistas (de Sociologia de 
Trabalho, por fonte; de Psicologia do Trabalho, por fonte; Clínica de 
Aprofundamento). Todos estes instrumentos de coleta de dados são modulares: a) 
Apresentam um conjunto de questões fechadas, quantificáveis, em banco de 
dados, que alimentam programas de análise descritiva. b) Apresentam outro 
conjunto de questões, estas abertas, não quantificáveis, em banco de dados 
Dataflex, que só permitem análise de discurso. Os programas de análise para o 
módulo quantificável objetivam configurar proporções e distribuições. 
 Estatïstica: 
 Embora simbolizados por números (escores), as escalas que o MMPI 
configura representam qualidades, e qualidades de um sujeito. Esta natureza as 
define como variáveis nominativas. 
 Toda vez que a investigação considerar a comparação entre perfis 
psicológico/psicopatológicos de dois grupos, ou, dentro de cada população, entre 
perfil psicológico/ psicopatológico e outro qualquer atributo não mensurável do 
sujeito, estaremos no campo da estatística não paramétrica. 
 Toda vez que a investigação considerar, dentro de um mesmo grupo, a 
relação entre elementos quantificáveis do "perfil de produção", entendido como 
variável independente, explicativa, e "perfil psicológico/psicopatológico", 
estaremos no campo da estatística paramétrica, pelo próprio cânone da Estatística, 
que autoriza a escolha do instrumento pela posição da variável (independente ou 
dependente). 
 A necessidade de tratar dados em nível nominal (por exemplo, a presença 
ou ausência de psicopatologia, sexo, entre outros) e o pressuposto teórico de que 
114 
estamos tratando com a interrelação complexa entre variáveis, nos leva a bandonar 
a tentativa de uma relação direta entre uma variável dependente e uma variável 
independente, buscando a construção de curvas de regressão logística, onde cada 
uma das variáveis aparece com um peso, determinável mas não exclusivo na 
construção da rede de determinações. 
Formas de Exposição. 
 A questão fundamental é a inversão da ordem de investigação. O "perfil 
psicológico/psicopatológico", obtido depois dos estudos de sociologia e 
organização do trabalho, depois de configurada a população, é exposto em 
primeiro lugar: a coisa a ser explicada, a coisa como aparece no quotidiano de vida 
dos sujeitos. Mas, deste perfil, o que primeiro se expõe são os elementos 
epidemiológicos, as tendências e associações lógicas, sobre população. Daqui se 
parte para o que se encontra no "perfil de produção", fazendo nexo com os 
instrumentos teóricos, e se retorna ao individual concreto, idiossincrático, obtido 
através da entrevista clínica de aprofundamento, de onde se extrai a representação 
sobre o quotidiano de trabalho, além das inserções dos sujeitos no processo de 
consumo. Ascensional/descensional, analítico/crítico, ir/vir, reconstituição 
pensada da totalidade que desafiou o processo de investigação. 
115 
Parte II 
Mulher e Trabalho 
116 
 O projeto Saúde Mental & Trabalho, por aspirar a realização de pesquisa 
aplicada, muitas vezes foi solicitado a observar o trabalho da mulher. Por sorte 
contávamos com uma pesquisadora inciciante, com uma apacidade de trabalho 
rara e uma perspicácia igualmente rara, falo (homenageio) de Izabel Cristina, a 
qual conduziu com brilho e tenacidade a maior parte das pesquisas publicadas 
aqui. 
 Se verá em cada um dos textos a tensão entre a produção e a reprodução na 
vida da mulher contemporânea. Textos que iniciam uma discussão importante e 
que esbarram na impossibilidade de esgotá-la. 
 Ao considerar a divisão de trabalho sexualmente definida, em uma história 
antiga e que se arrastou até poucos anos atrás, é possível concluir que à mulher se 
destinava os haveres da reprodução , dos filhos, do lar, do marido. 
 O que fazia a dona-de-casa, com o avental todo sujo de ovo, a rainha do 
lar? Era responsável pelo cuidado. Ora, sabe-se que a conquista do mercado de 
trabalho formal pela mulher se deu, prioritariamente, em profissões nas quais o 
cuidado ainda comparece. Professoras, enfermeiras, recreacionistas em creches, 
por exemplo, profissões que são consideradas preconceituosamente como 
(femininas), de dedicam fundamentalmente ao cuidado. 
 Se o trabalho, como venho afirmando, é importante na configuração da 
identidade, a divisão de trabalho homem-mulher na História deve ter tido um 
papel importante na diferenciação psicológica entre o homem e a mulher, 
compondo o que hoje é objeto de estudo de uma psicologia do gênero. Quaisquer 
que sejam aquelas diferenças, deve ajudar uma compreensão mais aprofundada do 
que é a atividade de cuidar. 
 O cuidado enquanto atividade é imediato: importa para quem cuidad a 
necessidade do outro, independente da racionalidade que subjaz à quixa. Assim, a 
mãe em relação com o pimpolho apresnde a adivinhar seus desejos, antecipar seus 
pedidos, olho no olho, os psicanalistas sabem da dificuldade do pai, ou qualquer 
outro, penetrar nesta relação simbiótica. Mal comparando, quando a enfermeira, 
117 
vestida com suas obrigações profissionais, se dedica a cuidar do enfermo, precisa, 
por dever do ofício, aliviar seu sofrimento, compreender seus dramas. Se o 
paciente sente dor é preciso intervir com um analgésico. Mas as comparações 
param aqui. O uniforme branco é portador de outras obrigações: o paciente sente 
dor, mas a prescrição médica impede o consumo do analgésico agora, e a 
enfermera, o que fará: profissional doo cuidado deve antender à necessidade, 
prócere da medicina, deve deixá-la bradar sem assistência? 
 É que, enquanto atividade, o trabalho é mediado, ou melhor, se define pelo 
fato de que é portador de uma racionalidade externa aos sujeitos que estão 
envolvidos nele, entre a necessidade do outro e a realização da tarefa se impõe 
uma outra lógica. 
 A velha dona-de-casa, se sabe, carregava consigo os seus conflitos, e a 
mulher engajada no meraco formal de trabalho? 
– Ainda carrega o peso da herança histórica. 
– Seu trabalho, nos casos que examinamos à frente, ainda traz o cuidado como 
distinção, e com ele as marcas de qualquer trabalho, se definindo pelo salário, 
pela função explicitada por outro, o cargo, o departamento de pessoal. 
 
Esta seção abre com o artigo de Cristina Borsoi sobre a inserção histórica 
do trabalho da mulher, servindo como introdução a alguns estudos de caso, onde 
se avaliam profissões que, em sua esmagadora maioria, são exercidas por 
mullheres. 
Se verá, poucos são os anos que separam o arquétipo da “rainha do lar” da 
mulher contemporânea, engajada irreversivelmente no mercado de trabalho. Pouco 
tempo se as contas fossem feitas por um historiador, tempo suficiente para marcar 
a personalidade das mulheres que trabalham no mercado formal, objeto de nossas 
investigações. 
Se verá, novos tempos, novas manifestações de doença mental. 
Wanderley Codo 
118 
 
Estranho movimento, o feminista, aquele que teve o seu auge nas décadas 
de 50 e 60. Em uma época em que poder-se-ia dividir o mundo em esquerda e 
direita, defensores do capital os primeiros, do trabalho os segundos: a mesma 
necessidade eclodia dos dois lados, o regime capitalista precisando da mulher 
como força de trabalho, e as mulheres denunciando o trabalho doméstico como 
opressor, repetitivo, escravizador. En passant, para quem está sobrevive como 
"voyeur do trabalho alheio", como eu, raramente encontrei nas organizações um 
trabalho mais variado e criativo, não rotineiro, do que o de preparar o mais frugal 
almoço. 
 Pelo bem e pelo mal, pela ideologia da esquerda e/ou pelas necessidades do 
capital, o fato é que as mulheres entraram massissamenteno mercado de trabalho, 
muitas vezes sendo convocadas a fazer o que a História lhes ensinara a fazer: o 
cuidado. 
 O projeto saúde mental & trabalho, por aspirar a realização de pesquisa 
aplicada, muitas vezes foi solicitado a observar o trabalho da mulher. Por sorte 
contávamos com uma pesquisadora iniciante, com uma capacidade de trabalho 
rara e uma perpicácia igualmente rara, falo (homenageio) de Isabel Cristina, a qual 
conduziu com brilho e tenacidade a maior parte das pesquisas publicadas aqui. 
 Se verá em cada um dos textos a tensão entre a produção e a reprodução na 
vida da mulher contemporânea. Textos que iniciam uma discussão importante e 
que esbarram na impossibilidade de esgotá-la. 
 O cuidado enquanto atividade é imediato: importa para quem cuida a 
necessidade do outro, independente da racionalidade que subjaz a queixa. 
Enquanto atividade, o trabalho é mediado, entre a necessidade do outro e a 
realização da tarefa se impõe uma outra lógica. Assim, o enfermo sente dor, mas a 
prescrição médica impede o consumo do analgésico agora, e a enfermeira, o que 
fará: profissional do cuidado deve atender à necessidade, prócere da medicina, 
deve deixa-lá bradar sem assistência. 
119 
 O quadro se parece com o de Anna O, a famosa paciente de Freud, 
encalacrada entre a necessidade de cuidar do seu pai e a dor que deveria 
manifestar. Freud, já se sabe, foi por outro caminho. No entanto, é pelo menos 
intrigante notar que os resultados são identicos; histeria lá e aqui. Enfim, esta é 
uma tentativa de abordar os problemas de saúde mental da mulher trabalhadora, 
sem feminismo, mas com um profundo senso de justiça. 
 Wanderley Codo 
120 
Capítulo 6. 
A SAÙDE DA MULHER 
TRABALHADORA 
 
 IZABEL CRISTINA FERREIRA BORSOI 
 
 
 A preocupação em estudar a saúde do trabalhador é de data recente. Apenas 
no decorrer da I Grande Guerra, os próprios trabalhadores começaram a se 
organizar na luta por melhores condições de vida e de trabalho, visando a própria 
saúde. A princípio suas lutas tinham como foco central a mera sobrevivência 
enquanto seres humanos. 
 É somente a partir do final da II Grande Guerra que a luta pela prevenção 
de acidentes, contra as doenças e pelo direito a cuidados médicos torna-se efetiva 
no seio da classe trabalhadora. (Vide Dejours, 1987). 
 Essa referência histórica marca também a inserção em massa das mulheres 
no mercado de trabalho como resultado do alistamento, também em massa, dos 
homens e da grande necessidade de produção industrial durante o período de 
guerra (Nogueira, l982 - p. 12). 
 De acordo com Nogueira, foi a utilização em larga escala da mão-de-obra 
feminina durante a guerra que permitiu conhecer, de forma detalhada os problemas 
relacionados ao trabalho da mulher. 
121 
 Ser mulher trabalhadora implica em carregar problemas relativos ao 
trabalho que necessariamente não são os mesmos enfrentados pelo trabalhador do 
sexo masculino. 
 No Brasil, apesar dos dados do Censo de l980 indicarem que mais de 12 
milhões de mulheres estão engajadas no processo produtivo, correspondendo a 27 
% da PEA, praticamente não há registros sobre saúde ocupacional da mulher. 
 Barroso (1982) observa que essa omissão "deriva de uma invisibilidade 
geral do trabalho feminino, cuja existência é negada pela ideologia dominante que 
define a mulher pelo seu papel na reprodução da espécie, unicamente" (p. 7). 
 A autora destaca ainda que: 
 "Em outros paises, começa a existir uma crescente preocupação com as 
condições do trabalho feminino e suas implicações para a saúde da 
trabalhadora. As mulheres que têm lutado para garantir seu direito à igualdade 
no acesso ao emprego e na remuneração têm também incluido entre suas 
reivindicações fundamentais a implantação de condições de trabalho que 
assegurem - para si e para seus companheiros - a manutenção da saúde física e 
mental"(p. 9). 
 Uma questão que vem sendo discutida atualmente por muitos estudiosos é a 
jornada de trabalho feminina, que começa em casa, continua na empresa e termina 
(quando termina) novamente em casa. Isto é, a jornada de trabalho de uma mulher 
assalariada normalmente se desdobra em duas ou mais, se estende além da fábrica, 
do escritório, em função das tarefas domésticas, cuja realização é repetitiva e 
indispensável. 
 É ainda Barroso que ressalta que o trabalho doméstico, além de ser 
repetitivo e estender a jornada de trabalho, apresenta duas características que 
contribuem para levar muitas mulheres à fadiga crônica e à exaustão física e 
mental: não tem descanso semanal e nem férias remuneradas. Soma-se a isso o 
122 
fato de ser uma atividade desvalorizada socialmente, não ajudando, portanto, a 
elevar a auto-estima da trabalhadora. 
 São dois mundos que se complementam e se confundem, não podendo, 
portanto, serem vistos separados um do outro. 
 Ronci investiga o trabalho de operárias de uma seção da Fábrica Olivetti de 
Scarmagno, na Itália, com o objetivo de verificar se existe uma correlação 
frequente entre emancipação pelo trabalho e emancipação pessoal.Indagando 
sobre as motivações e as satisfações das operárias no seu trabalho, a autora busca 
estabelecer em que medida a identidade dessas mulheres está ligada à atividade 
profissional ou então a uma atividade de expressão familiar. 
 Os resultados revelam que as operárias consideram que o trabalho que 
realizam na fábrica é monótono e desinteressante, e que o único aspecto 
importante é que a atividade possibilita resolver problemas econômicos. Além 
disso, há evidência de que elas não se reconhecem em seu próprio trabalho. Não 
há participação efetiva na produção, nem tampouco ocorre maior integração e 
socialização no que toca ao grupo de trabalho, embora o sistema adotado pela 
empresa seja o trabalho em equipes ("ilhas"), cujos ritmos de produção são 
determinados pelas próprias operárias. 
 Essa atitude por parte das operárias é justificada com base no fato de que 
não ocorre repartição ou remodelação dos papéis familiares. A vida familiar e a 
vida no trabalho são vividas de forma inconciliável, manifestando-se então na 
forma de conflito entre os papéis das trabalhadoras-mulheres-mães. 
 A situação encontrada pela autora acima é confirmada num outro trabalho 
realizado por Pacifico no qual é abordado o mundo das operárias e das 
empregadas administrativas de uma fábrica de conservas alimentícias de Nápoles, 
também na Itália. 
123 
 As operárias dão a impressão de que confundem o espaço de trabalho com 
o espaço doméstico. Agem no ambiente de trabalho com se estivessem em suas 
próprias casas. A esse respeito Pacifico afirma que: 
 "A persistência nos locais de trabalho do peso do lar, como elas costumam 
dizer, é a manifestação de uma impossibilidade real, da parte delas, de separar 
nelas próprias, os dois mundos que são o lar e o trabalho. A assimilação desses 
dois mundos exprime-se, igualmente, por certos comportamentos externos como, 
por exemplo, suas presenças nos locais de trabalho como uma atitude que pertence 
mais ao mundo da dona-de-casa da operária" (l986, p. 159). 
 A realização profissional não aparece como fator importante. O trabalho é 
procurado porque é necessário para a manutenção do grupo familiar, portanto é 
apenas suportado com certa resignação quando penoso. "O produto acabado é o 
trabalho que se faz para o patrão, mas o trabalho verdadeiramente fornecido se faz 
para a família" (Pacifico, l986 - p. 163). 
 A ação política, o engajamento no sindicato, dessas operárias se dá menos 
em função da consciência de sua condição de classe do que em função de 
reivindicações particulares de cunho nitidamenteeconômico. 
 Tanto Ronci quanto Pacifico ressaltam o duplo caráter do trabalho da 
mulher, qual sejam a produção e a reprodução. É evidente que o caráter produtivo 
e reprodutivo do trabalho é genérico e não se restringe à mulher. A crítica vai 
noutro sentido. 
 Historicamente, a condição de trabalho da mulher se apresenta distinta da 
do homem. A mulher reivindicou para si os mesmos direitos em relação ao homem 
do ponto de vista profissional, porém ainda não conseguiu libertar-se, embora 
tenha dado passos largos nesse sentido, do papel de "administradora do lar" 
enquanto o homem continua exercendo (ou pelo menos reivindicando) o papel de 
"chefe do lar". 
124 
 A jornada de trabalho é apenas um dos aspectos discutidos quando se trata 
da saúde do trabalhador e, especialmente, da mulher trabalhadora. 
 A outra questão de fundo é o próprio processo de trabalho. Este entendido 
como atividade orientada a um fim visando a produção de utilidades. 
 Atualmente, há pesquisadores preocupados em provar que há uma relação 
de determinação entre o processo de trabalho e a doença mental, ou então que o 
trabalho possui uma dinâmica capaz de conformar a identidade e o modo de viver 
do trabalhador de acordo com a atividade que exerce. 
 Nesse contexto, o pano de fundo é o sistema capitalista moderno, que prima 
pela separação radical entre o trabalhador e o produto do seu trabalho. Vejamos o 
que Codo afirma a esse respeito: 
 "O capitalismo cada vez mais monopolizado e financeiro empurra uma 
massa e trabalhadores para ofícios onde a questão não é mais a da 'desvinculação 
entre o produto e o seu produtor' mas a inexistência mesma do produto, trabalho 
'vazio', carente de valor de uso, trabalho que impede a conformação da identidade 
de quem o realiza" (1988, p. 21). 
 A questão central deste trabalho, no entanto, não é discutir ainda saúde 
mental e trabalho de forma específica, e nesse caso a argumentação acima valeria 
para os trabalhadores independentemente do sexo. O que nos interessa aqui é 
analisar o quadro da saúde da mulher trabalhadora. Sendo assim, é importante 
verificar o impacto do processo de trabalho sobre o corpo da mulher e, 
evidentemente, também sobre o seu psiquismo. 
 Beltrão realiza um estudo interessante sobre a relação trabalho-corpo da 
mulher. A pesquisa foi realizada junto às mulheres que trabalham em usina de 
beneficiamento de castanha-do-pará. Trabalho e corpo formam uma espécie de 
binômio. O corpo é transformado e deformado no processo de trabalho. Ora um 
acidente que decepa parte do dedo, ora os calos que brotam nas mãos, ora o 
125 
envelhecimento precoce decorrente das longas jornadas na usina, que quase 
sempre se estendem à vida doméstica. Afirma a autora: 
 "(...) trabalhar na castanha implica em 'perder o corpo são' para 'apropriar-
se de um corpo não-são'. A noção de 'perda do corpo' está associada ao 
desenvolvimento das atividades de trabalho durante sucessivas safras, nas quais 
constrangidas,obrigadas pela situação de classe a USAR/ DESGASTAR/ 
TRANSFORMAR/ DEFORMAR o próprio corpo, dadas às condições de 
trabalho a que se submetem" (1982, p. 103). 
 Trabalhando sob condições degradantes - porque as usinas de 
beneficiamento não oferecem sequer instrumentos adequados para a atividade a 
que se destinam -, as trabalhadoras da castanha se preocupam em proteger o corpo, 
corpo do qual tem consciência de que está se transformando e perdendo o vigor 
com o trabalho estafante, mas que por nada deixa de ser um corpo feminino. Esse 
corpo é o único bem que de fato possuem, por isso é importante salvaguardá-lo. 
 Beltrão aponta para o fato de que as adversidades das condições de trabalho 
e a descaracterização do corpo em consequência de tais condições são fatores que 
determinam uma representação social do corpo muito específica. A operária 
procura adquirir sempre uma identidade nova para se sentir valorizada apesar do 
corpo transformado/deformado. 
 O corpo da mulher trabalhadora é objeto de estudo em alguns trabalhos 
relacionados à saúde da mulher no trabalho. 
 Nogueira discute as diferenças morfológicas e fisiológicas entre os 
organismos masculino e feminino. Do ponto de vista morfológico, as diferenças 
são em relação à altura, envergadura, tamanho dos pés e mãos e altura do 
cotovelo. No aspecto fisiológico, o organismo feminino se distingue do masculino 
em relação ao peso, força muscular, preensão, tração e impulsão, apresentando, 
126 
além disso, algumas particularidades: menarca, gravidez, aleitamento e 
menopausa. 
 O autor argumenta, entretanto, que o fato de o organismo feminino 
apresentar peculiaridades tanto morfológicas quanto fisiológicas não é razão para 
que ocorra impedimentos em relação a determinados trabalhos. Nega que a mulher 
apresenta maior fatigabilidade no trabalho que o homem, que seu organismo é 
mais susceptível a agentes químicos e que está sujeita a maior acidentabilidade. 
 Nogueira concorda com a afirmativa de que a estabilidade emocional da 
mulher é menor do que a do homem. Afirma que a explicação para isso reside no 
fato de que o organismo feminino sofre alterações hormonais no decorrer do ciclo 
menstrual, atingindo o seu ápice no período pré-menstrual. 
 Na realidade, as peculiaridades morfo-fisiológicas do organismo feminino 
exigem algumas medidas de adequação do ambiente de trabalho e alguns cuidados 
especiais para que o trabalho seja realizado com eficiência. O que não justifica, no 
entanto, uma legislação trabalhista protecionista para a mulher trabalhadora. 
 Segundo o autor, a legislação trabalhista brasileira, ao impor determinadas 
restrições ao trabalho das mulheres, parte do pressuposto de que elas estão 
potencialmente grávidas. Além disso, a legislação, para garantir que a mulher 
atenda às exigências domésticas, considerou a proteção ao trabalho das mulheres 
uma questão de ordem pública. 
 Manter a saúde da mulher trabalhadora tornou-se um fator de preocupação 
também para o próprio empregador, uma vez que pesquisas tem apontado que as 
mulheres apresentam um índice de absenteismo-doença mais elevado que os 
homens. 
 Nogueira e Azevedo afirmam que essa constatação não está restrita ao 
Brasil e que esse fato é conhecido desde a década de 30. Estudos realizados na 
Polônia, Itália e Grã-Bretanha revelam resultados semelhantes. 
127 
 Baetjer justifica essa diferença de absenteismo-doença entre os sexos com o 
argumento de que as mulheres dão maior atenção às doenças de pequena 
gravidade do que os homens, assumem o trabalho com menor seriedade do que os 
homens e tendem a fazer duas atividades ao mesmo tempo, o trabalho na indústria 
e as atividades domésticas, sofrendo interferências no repouso adequado. 
 Nogueira e Azevedo consideram discutível a afirmativa de que a mulher 
encara o trabalho com menos seriedade e menor senso de responsabilidade do que 
os homens. Na sua opinião, as mulheres apresentam de fato maior morbidade, o 
que justifica um maior índice de absenteismo-doença. A morbidade pode ser 
explicada pelo "(...) grande número de atribuições que a mulher passou a 
assumir quando se dedicou ao trabalho fora de casa, quando, além das 
responsabilidades inerentes ao próprio trabalho ainda tem a responsabilidade de 
sua casa e de sua família. Muitas vezes o orçamento doméstico depende 
exclusivamente do fruto do seu trabalho que, além de enfrentar a jornada de 
trabalho com todos os seus problemas, ainda tem a seu cargo os 
problemas familiares, tais como cuidado e orientação dos filhos, as atividades 
do serviço doméstico, etc.Disso resulta uma soma de tarefas, muitas vezes com 
repouso inadequado, quepossivelmente redundará em desequilíbrio do seu 
estado de saúde" (1982, p. 51). 
 Sem apresentar uma preocupação com o absenteismo-doença, Broda 
direciona sua análise sobre a saúde da mulher também para a dupla jornada, 
embora considere também alguns contraintes temporais da atividade concreta 
como fatores problemáticos para a saúde. 
 Com base numa enquete realizada numa usina têxtil, na França, o autor 
chega a conclusões relevantes. 
 Utilizando os critérios de idade e posição familiar, conclui que as mulheres 
casadas e com filhos desenvolvem patologias diferentes das jovens solteiras. No 
primeiro caso, as queixas mais frequentes são palpitações, dorsalgias, lombalgias e 
128 
depressão. No segundo caso, aparecem irritabilidade e distúrbios de conduta. 
Sendo assim, a explicação parece estar fundamentada no fato de que as mulheres 
casadas e com filhos dormem menos de seis horas por noite. 
 De acordo com a idade, aparecem três tipos de patologias distintas. As 
mulheres entre 18 e 25 anos apresentam ansiedade, tomam ansiolíticos e tendem 
mais ao alcoolismo, tabagismo e à maior ingestão de café; as que se encontram na 
faixa de 25-30 anos manifestam fadiga; e as mulheres entre 35 e 45 anos queixam-
se de depressão e procuram medicamentos antidepressivos e sedativos. 
 Pesquisando trabalhadoras de uma indústria alimentícia francesa, Broda 
afirma que os sintomas de fadiga e depressão parecem estar associados à dupla 
jornada, sendo que, no caso dessas mulheres, a depressão se agrava em função do 
turno alternado com escalas 2x8. 
 A jornada, no entanto, não é o único fator problemático, embora, segundo o 
autor, seja o maior determinante. A Atividade concreta, processo de trabalho, 
também contribui para a debilitação da saúde das trabalhadoras. A obrigação de 
rendimento na produção é apontada como maior desencadeante do nervosismo; e a 
padronização dos tempos no processo produtivo, com suas características de 
repetitividade, é visto como determinante para o envelhecimento prematuro. 
 Ao contrário de Broda, que privilegia a jornada de trabalho como principal 
causa dos problemas de saúde apresentados por mulheres trabalhadoras, Le 
Guillant e Dejours centralizam suas análises sobre as condições e relações de 
trabalho. 
 Le Guillant publicou em 1956, na França, um estudo que ficou conhecido 
como "A Neurose das Telefonistas", hoje um clássico que, apesar do tempo 
decorrido desde a sua publicação, continua atual, ao menos, para o caso brasileiro. 
E a julgar pelo trabalho publicado por Dejours em 1981, abordando a mesma 
129 
categoria de trabalhadoras, a análise de Le Guillant parece continuar valendo 
também para a França. 
 Le Guillant chama a atenção para o fato de que a neurose das telefonistas 
vinha despertando interesse em alguns estudiosos desde 1910. Esses trabalhos já 
indicavam que os fatores desencadeantes do problema eram a sobrecarga de 
trabalho, os aborrecimentos com observações injustificadas e às vezes grosseiras 
dos clientes, a desclassificação social da profissão, etc.. 
 Um destaque é dado para o estudo de S. Pacaud (1919) considerado um dos 
mais sistematizados. Este autor analisou a sutileza de certos mecanismos dessa 
fadiga nervosa, chegando à coclusão de que trata-se de uma "síndrome subjetiva 
comum", que se manifesta através de alterações do humor e do caráter e que 
apresenta somatizações variáveis. 
 Le Guillant, ao analisar os distúrbios do sono apresentados pelas 
trabalhadoras, que, na sua opinião, são característicos dessa neurose, afirma que 
eles se manifestam na forma de hipersonia diurna, insônia noturna e insônia quase 
total. 
 Sobre as alterações somáticas, indica que trata-se de "manifestações 
'córtico-vicerais' evidentes que exprimem as repercussões orgânicas do 
esgotamento nervoso, aparecendo e, pelo menos inicialmente, desaparecendo com 
ele" (1984, p. 9). Essas alterações aparecem na forma de angústia, palpitações, 
anorexia, cefaléias persistentes, alterações cardio- vasculares e menstruais. 
 O autor conclui que as queixas das telefonistas tem como elemento 
fundamental as condições gerais sob as quais o trabalho é efetuado. Entre as 
condições de trabalho, os fatores que mais se destacam são o rendimento exigido e 
o controle exercido pelas encarregadas ou supervisoras. 
 Os fatores extra-profissionais, entre os quais pode-se incluir o trabalho 
doméstico, são considerados quase sempre secundários na gênese das alterações 
130 
apresentadas pelas telefonistas. Uma ressalva é feita à atitude dessas trabalhadoras 
em relação à vida doméstica. Se antes eram preocupadas e ordeiras em se tratando 
da própria casa, passaram a ser completamente desinteressadas. 
 Dejours, utilizando uma abordagem psicanalítica, discute um outro aspecto 
da questão: a exploração, por parte da organização, do sofrimento da telefonista. 
 Com base nos estudos de Begoin, o autor afirma que "o 'nervosismo' (um 
dos elementos essenciais no quadro de sua neurose) é uma doença necessária, nas 
condições atuais, para a realização de suas tarefas profissionais" (1987, p. 103). 
 São destacados três aspectos como determinantes deste sofrimento: 1) a 
finalidade da informação, esta só existe porque o catálogo é incompreensível; 2) a 
forma e o conteúdo do trabalho limitados e estereotipados; 3) questões relativas à 
hierarquia, ao tipo de comando e à organização do trabalho. 
 Por fim, Dejours conclui que: 
 "O que é explorado pela organização do trabalho não é o 
sofrimento, em si mesmo, mas principalmente os mecanismos de defesa 
utlizados contra esse sofrimento. No caso das telefonistas, o sofrimento 
resulta da organização do trabalho 'robotizante', que expulsa o desejo 
próprio do sujeito. A frustração e a agressividade resultantes, assim 
como a tensão e o nervosismo, são utilizados especificamente para 
aumentar o ritmo de trabalho" (1987, p. 104). 
 Tanto Le Guillant quanto Dejours abordam o trabalho e as condições em 
que este se realiza como responsáveis principais pelo surgimento de problemas 
relativos à saúde do trabalhador. Não se trata de uma questão de gênero. O 
trabalho em si é que surge como problemático independentemente do sexo do 
indivíduo que a ele se submete. Em se tratando de saúde mental, é possível que 
cada categoria de trabalhadores apresente prevalência de determinadas 
características psicológicas e psicopatológicas. 
131 
 Pensando sob este prisma, o quadro da saúde da mulher trabalhadora se 
complica. É necessário considerar a jornada de trabalho de forma específica. Além 
do que é preciso não desconsiderar a concepção dos instrumentos e equipamentos, 
projetados, na maioria das vezes, de acordo com a estrutura morfo-fisiológica do 
indivíduo do sexo masculino. 
 Aqui não vai uma crítica a Le Guillant e a Dejours por não considerarem a 
categoria gênero, mesmo porque o objetivo de ambos os autores é claro: discutir a 
relação entre trabalho e psicopatologia sem uma preocupação específica com o 
fato de que a categoria é composta de mulheres. 
 Neste aspecto, os trabalhos desses autores contribuem, e muito, para 
delimitar uma nova linha de pesquisa no campo da saúde do trabalhador genérico, 
principalmente no momento atual, quando pesquisadores de vários países tem 
discutido o impacto do desenvolvimento tecnológico e das formas de atividades 
geradas por ele sobre a vida dos trabalhadores. 
 O Brasil não é uma excessão. Tanto psicólogos quanto sociólogos vêm se 
preocupando com a questão. Nessa direção, encontra-se o projeto "Saúde Mental e 
Trabalho em Telefonistas", na realidade vinculado a um projeto mais genérico que 
engloba várias outrascategorias de trabalhadores. 
 Para estudar a psicodinâmica do trabalho e a relação que este possa ter com 
a saúde mental de telefonistas, é preciso considerar não apenas o aspecto formal 
do trabalho, mas também o que ocorre fora dele, afinal estamos tratando de uma 
categoria específicamente de mulheres. Para tanto, foi necessário fazer um 
levantamento, ainda que suscinto, da situação da saúde da mulher trabalhadora, 
conhecer um pouco do que tem sido apontado como pano de fundo para os 
problemas encontrados no trabalho e na vida familiar. 
132 
 No caso das telefonistas, torna-se necessário inclusive um estudo cuidadoso 
da jornada de trabalho, uma vez que elas se submetem a jornada em turnos 
alternados, além de uma análise criteriosa do processo de trabalho. 
 É preciso conhecer como organizam a vida doméstica e como a conciliam 
com o trabalho que realizam, porque, como qualquer mulher trabalhadora, 
enfrenta a clássica dupla jornada e todas as implicações decorrentes dela. 
CONCLUSÃO 
 O estudo da saúde da mulher trabalhadora, pelo que pudemos verificar a 
partir da bibliografia apontada aqui, exige que consideremos determinados 
aspectos, específicos, por se tratar da condição de ser mulher. 
 Os problemas que afetam a mulher que trabalha fora de casa apresentam-se 
mais complexos se comparados com os enfrentados pelo trabalhador do sexo 
masculino. 
 Levamos em conta no desenvolvimento deste trabalho duas questões que 
nos parecem fundamentais: a jornada de trabalho, que, na maioria das vezes, 
apresenta um caráter duplo, portanto, mais extensa, e o próprio processo de 
trabalho, no qual nem sempre encontramos condições adequadas à estrutura 
morfo-fisiológica da mulher que a ele se submete. 
 Este não é um quadro específico somente do Brasil, mas observado também 
em muitos outros países. No caso brasileiro, soma-se ainda uma legislação 
protecionista, defensora de um conceito burguês de família. Neste caso, a proteção 
à mulher é na realidade proteção à família, à prole, de forma que possa garantir a 
reprodução da força de trabalho. 
 Apesar dos avanços da nova Constituição há ainda muito que fazer para que 
a mulher trabalhadora brasileira tenha seus direitos garantidos enquanto mulher e 
enquanto trabalhadora. 
133 
 Saúde no trabalho tem sido uma "bandeira" da classe trabalhadora no Brasil 
e em todos os paises desenvolvidos ou em desenvolvimento, com a diferença de 
que em alguns deles algumas conquistas nesse sentido já se concretizaram. 
 A saúde da mulher começa pelo reconhecimento de sua capacidade 
produtiva, pelo seu direito ao trabalho e pelo remodelamento dos papéis 
familiares, para que a sobrecarga das atividades domésticas não recaiam somente 
sobre seus ombros. 
 A saúde no trabalho é um direito de todo e qualquer trabalhador. Condições 
de trabalho humanas, atividade produtiva realizadora, que não aliene o 
trabalhador do seu "saber fazer" e do produto do seu trabalho, são condições 
absolutamente necessárias para a estruturação de uma identidade realmente 
humana. 
 Essa conquista depende tanto das mulheres quanto dos homens que vendem 
sua força de trabalho. 
134 
Capítulo 7. 
PROFESSORA PRIMÁRIA: AMOR E 
DOR 
 HILMA TEREZA TÔRRES KHOURY CARVALHO (3) 
 
 
O papel de professor primário tem sido tradicionalmente desempenhado por 
mulheres. Parece haver uma concepção implícita de que as mulheres são melhores 
ou mais adequadas para esta função do que os homens, já que suas atividades 
implicam, de certa forma, em cuidar de crianças pequenas, "especialidade 
feminina". O papel de professora primária seria, portanto, uma extensão do papel 
materno. Todos já ouvimos, desde pequenos, frases como: "A escola é o segundo 
lar"; "A professora é a segunda mãe" ou, mais recentemente, uma "tia"; 
indicadoras da conotação familiar que envolve a escola e a professora, em 
particular a primária. 
Se percorrermos rápida e superficialmente a história da educação, veremos 
que isto nem sempre foi assim. Na Antiguidade, a educação era privilégio de 
nobres, e era confiada a sábios ou filósofos; na Idade Média, embora ainda muito 
restrita, era controlada pela Igreja Católica; nas Idades Moderna e Contemporânea, 
principalmente após a consolidação política do modo de produção capitalista, a 
 
3 Hilma Tereza Tôrres Khoury Carvalho é aluna do programa de Mestrado em 
Planejamento do Desenvolvimento (PLADES), no núcleo de Altos Estudos 
Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), tendo como 
Orientador de Dissertação, o Prof. Dr. Wanderley Codo, da USP/RP. 
 
135 
educação estendeu-se à "toda a população", ficando sob a responsabilidade de 
instituições públicas e/ou privadas. 
A mão de obra feminina sempre foi utilizada pela produção capitalista, desde os 
seus primórdios, tanto na manufatura como na indústria; todavia, uma boa parcela 
de mulheres, especialmente as da pequena burguesia, não trabalhavam como 
operárias. Durante as primeiras fases do capitalismo, ou eram simples donas de 
casa, cuidando da reprodução da força de trabalho, ou exerciam atividades cujas 
características assemelhavam-se às daquele papel, tais como cuidar de doentes - as 
enfermeiras, ou cuidar de crianças pequenas - as professoras primárias. 
Mas ser professora primária, função aparentemente lírica, que chegou a 
inspirar os compositores brasileiros ("...minha linda normalista..."), não é tão 
suave e doce como pode parecer: 
1) A legislação brasileira inclui o trabalho de professor entre aqueles 
considerados "penosos", com direito à aposentadoria especial após 15, 20 ou 25 
anos de serviço. 
2) Investigações realizadas nos Estados Unidos da América, acerca do 
"stress" em professores, revelaram níveis preocupantes de "stress" nesta categoria 
profissional, apontando-na como "particularmente estressante"(RUSSEL et al, 
1987), quadro que se agrava quando comparada à outras profissões (SHAW, et al, 
s.d.). 
3) Levantamento realizado pelos autores na Divisão de Assistência ao 
Servidor (DIAS) e no Setor de Serviço Social da Secretaria de Educação do 
Estado do Pará (SEDUC), faz inquietantes revelações sobre a saúde mental dos 
professores. O levantamento se deu a partir do exame de 290 fichas de 
professores, tanto da capital como do interior do Estado, que haviam solicitado 
readaptação de função por motivo de saúde, nos anos de 1988, 1989 e 1990, tendo 
sido submetidos a exames médico-psicológicos. Os dados demonstraram que tais 
136 
professores eram, em sua maioria, do primeiro grau; do sexo feminino; casadas; 
situavam-se, em geral, na faixa dos 30 aos 49 anos; eram readaptadas, quase 
sempre, para a função de Auxiliar de Secretaria ou de Biblioteca; e que os motivos 
que as levavam a mudar de função, ou seja, os problemas diagnosticados, eram, 
em primeiro lugar, os distúrbios da voz (39,3%), vindo a seguir os transtornos 
mentais -neuroses e psicoses (20,3%) e, em terceiro lugar, os problemas alérgicos 
(18,9%). 
O presente estudo trata de professores do primeiro grau menor (1a. a 4a. 
séries, o antigo curso primário) de escolas públicas da cidade de Belém, Estado do 
Pará. Optou-se pelos professores do primeiro grau menor em função de lidarem, 
em geral, com crianças pequenas (7 a 10 anos), o que faz supor tanto um dispêndio 
maior de energias físicas e psicológicas, se comparados aos professores que lidam 
com crianças maiores ou adolescentes, como também uma exposição mais intensa 
à ideologia da exploração, que procura identificar o trabalho do professor com as 
funções maternas ou sacerdotais. 
Esta pesquisa integra projeto de dissertação de Mestrado(1), e encontra-seinacabada, o que impede uma conclusão acerca dos resultados aqui apresentados. 
Todavia, o estágio alcançado já permite algumas conjecturas. 
 
As Escolas 
Através de listagens fornecidas pelas Secretarias Estadual e Municipal de 
Educação, com dados do ano de 1991, foram selecionadas duas escolas de 
primeiro grau menor na rêde pública estadual de ensino, e duas na rêde pública 
municipal, sendo uma situada em bairro central, e a outra em bairro periférico, 
dentre aquelas que, nessas áreas (centro ou periferia), eram as mais populosas em 
termos de número de alunos matriculados: 
137 
ESCOLA-1: Estadual; Central; 90 anos desde a fundação; 1719 alunos; 62 
professores em regência de classe, dos quais 28 trabalhando com 1a. a 4a. séries; 
oferece ensino pré-escolar, primeiro grau menor e supletivo primeiro grau (1a. a 
4a. etapas), atendendo em 4 turnos de 4 horas cada -manhã, intermediário, tarde e 
noite. 
ESCOLA-2: Estadual; Periférica; 40 anos; 2640 alunos; 51 professoras, das 
quais 44 atuando com 1a. a 4a. séries; oferece pré-escolar e primeiro grau menor, 
atendendo nos 4 turnos. 
ESCOLA-3: Municipal; Central; 971 alunos; 28 professoras, das quais 23 
atuando com 1a. a 4a. séries; oferece pré-escolar, alfabetização, 1a. a 4a. séries do 
primeiro grau, supletivo primeiro grau (1a. e 2a. etapas), alfabetização e 1a. série 
para adultos, atendendo nos 4 turnos. 
ESCOLA-4: Municipal; Periférica; 25 anos; 1200 alunos; 40 professoras, 
das quais 35 atuando com 1a. a 4a. séries; oferece pré-escolar e primeiro grau 
menor, atendendo nos 4 turnos. 
Foram sujeitos desta pesquisa 104 professoras que lecionavam 1a. a 4a. 
séries do primeiro grau (21 na escola-1, 35 na escola-2, 19 na escola-3, e 29 na 
escola-4), as diretoras das escolas, as supervisoras escolares (quando havia), e um 
diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do Estado do Pará 
(SINTEP). 
Os dados foram coletados através de Observação Direta das condições e do 
processo de trabalho; de uma Ficha de Identificação Geral (FIG) e de um 
Inventário de Personalidade (O Inventário Multifásico Minesota de Personalidade 
- MMPI), aplicados às professoras; de Entrevistas Dirigidas (com roteiro 
previamente estabelecido) às diretoras, supervisoras, liderança sindical, e a uma 
pequena amostra de professoras (3 em cada escola, num total de 12). 
138 
A FIG pedia dados demográficos, bem como de identificação profissional e 
funcional. A Entrevista com as diretoras e supervisoras, abordava basicamente 
questões relativas à organização do trabalho e administração de recursos humanos. 
A entrevista com a liderança sindical versava essencialmente sobre a história de 
lutas dos professores, e suas principais reivindicações. Já a entrevista com as 
professoras, tratava de condições e organização do trabalho, condições de vida e 
moradia, participação sindical, representações sobre o trabalho, relações no 
trabalho, e relação saúde-trabalho. 
Pelo que se pôde apreender das observações e entrevistas, as escolas públicas 
estaduais e municipais possuem mais semelhanças do que diferenças. 
Contam com recursos materiais e didáticos muito escassos; trabalham com 
salas de aula superlotadas; seus professores em geral só possuem o segundo grau 
(magistério); lidam com uma clientela (alunos) muito carente; possuem baixo grau 
de absenteísmo e rotatividade da força de trabalho; o índice de reprovação é maior 
na 1a. série, o que em geral atribuem à ausência de alfabetização (a Constituição 
Federal só garante o ensino público e gratuito dos 7 aos 14 anos, que corresponde 
da 1a. a 8a. séries do primeiro grau); possuem uma pseudo-evasão escolar, ou seja, 
os alunos abandonam temporariamente a escola, para trabalharem (são feirantes, 
lavadores de carro, picolezeiros, bombomzeiros, vendedores de cafezinho, 
empregadas domésticas, babás,etc...) e retornam na época das provas; os 
professores percebem baixos salários; não estão submetidos a qualquer esquema 
sistemático e rígido de avaliação de desempenho; participam de um planejamento 
de fachada, onde decidem sobre comemorações de datas cívicas e sociais, e apenas 
acatam as decisões dos técnicos das Secretarias de Educação, no que tange a 
conteúdo programático e livro-texto, repassadas através da supervisora escolar, 
que coordena o planejamento; em geral as professoras relatam gostar da profissão, 
e entendem que ser professora é ser um pouco mãe. 
139 
As diferenças entre escolas públicas estaduais e municipais parecem 
encontrar-se nos salários e gratificações pagos, que nas escolas municipais 
possuem um valor e um percentual mais elevados; nos critérios para progressão 
funcional, que nas escolas estaduais são mais flexíveis; na programação e 
implementação de reciclagens, que nas escolas municipais é anual, enquanto que 
nas estaduais raramente acontece; no relacionamento com as diretoras, que nas 
escolas municipais parecia ser mais democrático; e nas solicitações de licença-
saúde, que as estaduais referiram muitos casos por problemas mentais, enquanto as 
municipais apontaram poucos, e por outros motivos. 
As professoras 
A análise dos dados da FIG, por escola, não revelou diferenças 
significativas entre as quatro escolas estudadas 
As professoras, em sua maioria, são naturais da cidade de Belém; 
encontram-se na faixa dos 35 aos 45 anos; são casadas (havendo no entanto um 
número significativo de solteiras); possuem 1 ou 2 filhos (havendo porém uma 
porcentagem expressiva de professoras sem filhos); contam entre 11 a 20 anos de 
profissão; trabalham somente um turno nas escolas alvo; e possuem apenas o 
segundo grau (destacando-se o fato de que, na escola-3, a maioria possui estudos 
adicionais(4)). 
Todavia, quanto ao fato de possuírem ou não outro emprego, na escola-1 a 
grande maioria não o tem, enquanto que na escola-4 uma maioria expressiva o 
possui; já nas escolas 2 e 3, é mais ou menos equilibrado o percentual de 
professores que têm e que não têm outro emprego. Entre as que têm outro 
 
4 Estudos Adicionais é o quarto ano do curso de magistério (2 grau), que é 
opcional, e habilita o professor a lecionar disciplinas específicas na 5a. e 6a. séries 
do primeiro grau. 
 
140 
emprego, a esmagadora maioria possui apenas um emprego a mais, onde também 
exerce a função de professora. 
A análise dos dados da FIG, por organização, ou seja, por grupo de escolas, 
estaduais e municipais, mostrou todavia alguma diferença em relação a número de 
filhos, tempo de profissão e grau de instrução, além de uma enorme diferença 
quanto a ter ou não ter outro emprego. Entre as professoras das escolas estaduais, 
embora a maioria (44,6%) possua entre 1 a 2 filhos, há uma percentagem 
expressiva (25%) delas que não têm filhos, e igual percentagem com 3 a 4 filhos. 
Já entre as professoras das escolas municipais, o percentual das que não têm filhos 
e das que têm entre 1 e 2 filhos é idêntico (41,7%), abrangendo a maioria. Quanto 
ao tempo de profissão, embora os dois grupos revelassem uma maioria entre 11 a 
20 anos de profissão (67,9% nas estaduais, e 66,7% nas municipais), há um dado 
que vale ressaltar; enquanto nas escolas estaduais, o percentual de professoras com 
mais de 20 anos de profissão corresponde a 12,5%, nas escolas municipais atinge 
25%; por outro lado, o percentual de professoras com 10 anos ou menos de 
profissão é maior nas escolas estaduais (19,6%) que nas escolas municipais 
(6,2%). Em relação ao grau de instrução, embora a maioria, nos dois grupos, só 
possua o segundo grau (64,3% nas estaduais e 43,7% nas municipais), nas escolas 
municipais há um percentual significativo de professorascom estudos adicionais 
(29,2%), bem como com curso superior (25%). 
A grande diferença se deu entre possuir ou não outro emprego, além da escola 
alvo. Coincidentemente, o mesmo percentual de professoras que não têm outro 
emprego nas escolas estaduais, o têm nas escolas municipais (62,5%). Entre as que 
têm outro emprego, nos dois grupos, embora a grande maioria possua apenas um a 
mais, onde também exerce a função de professora, nas escolas municipais 23,3% 
atua em outra função diversa da de professora, enquanto que nas escolas estaduais, 
este percentual é de 9,5%. 
141 
Analisando-se os resultados do MMPI, por escola (ver Tabela 3), percebe-
se que a escola-1, que representa 20,6% dos casos estudados (escola-2 = 36,1%; 
escola-3 = 16,5% e escola-4 = 26,8%) e efetivamente validados(5), foi a que 
apresentou maior Prevalência de Suspeita de Sofrimento Psíquico (PSSP), 
apontando um percentual de 40%, enquanto que nas outras escolas o PSSP foi de 
20%, 6,3% e 26,9%, respectivamente para as escolas 2, 3, e 4. Foi também a 
escola-1 que evidenciou maior grau de afetação nas escalas clínicas do MMPI. 
Nas escalas que compõem a tétrade neurótica (Hs, Hy, D e Pt), por exemplo, 
apresentou escores "t" elevados (60 ou acima) para 60% dos afetados (grupo de 
"não-normais"), em todas elas. Nas escalas que integram a tétrade psicótica (Pa, 
Ma, Sc e Si), o grupo de afetados mostrou escores "t" elevados para 60% em Pa e 
50% em Sc. Nas escalas que formam a díade ideológica (PD e MF), exibiu escores 
"t" elevados para 50% e 60% dos afetados, respectivamente. A elevação dos 
escores "t", em quase todas as escalas, era quase sempre, em termos proporcionais, 
mais a nível patológico do que a nível de border-line. 
Na escola-2, o nível de afetação já foi bem menos intenso que na escola-1. Da 
tétrade neurótica, somente duas escalas mostraram escores "t" elevados para 50% 
ou mais de afetados, Hs (58,8%) e Hy (52,9%). 
A escola-4 apresenta um perfil semelhante ao da escola-2, no que diz 
respeito às escalas do MMPI que marcaram suas professoras. Da tétrade neurótica, 
mantêve-se a díade Hs-Hy, tendo atingido 81,8% e 54,5% do grupo de afetados, 
 
5 O MMPI, em sua versão original, estabelece um critério de validação, através de 
4 escalas: ?(dúvida), L(mentira), F(êrro), e K(correção). O Projeto Saúde Mental e 
Trabalho, desenvolvido na FFCL, da USP/RP, coordenado pelo Prof.Dr. 
Wanderley Codo e pelo Dr. Jackson Sampaio, o denominou de critério canônico, e 
estabeleceu um outro critério, a ser utilizado após aquele, denominado de critério 
de validação efetiva, visando não excluir aquelas pessoas que, apesar das mentiras, 
e tentativas outras de camuflar seu sofrimento, não conseguiram escondê-lo. 
 
142 
em cada uma delas, respectivamente. De modo análogo, não houve afetação 
significativa para quaisquer das escalas integrantes da tétrade psicótica, mantendo-
se também a díade ideológica PD-MF, com igual porcentagem de afetados 
(54,5%) em cada uma delas. Prosseguindo as comparações entre as escolas-2 e 4, 
percebe-se que as diferenças existentes quanto aos resultados do MMPI 
encontram-se no fato de a escola-4 apresentar um percentual maior de afetados em 
Hs, enquanto que na escola-2 o maior percentual de afetados foi em PD. Outra 
diferença importante, é que na escola-4, a elevação dos escores "t", em quase todas 
as escalas, tendia proporcionalmente mais para o nível border-line do que para o 
nível patológico, enquanto que na escola-2, ocorria exatamente o contrário. Vale 
lembrar que a escola-2 é estadual, e a escola-4, municipal; mas ambas estão 
localizadas na periferia da cidade. 
A escola-3 foi a menos afetada. A díade neurótica Hs-Hy, assim como a 
díade ideológica PD-MF, que marcaram os grupos de afetados em todas as outras 
escolas, aqui não foram relevantes. Entre as professoras da escola-3, a única escala 
que mostrou grau significativo de afetação foi SI, atingindo 60% dos afetados. 
Vale ressaltar que esta escala não alcançou percentual relevante de afetação em 
nenhuma das outras escolas. Na escola-3, assim como na escola-4 (ambas 
municipais), a elevação dos escores "t", em quase todas as escalas, tendia 
proporcionalmente mais para o nível border-line do que para o nível patológico, 
enfatizando-se que, na escola-3, talvez devido ao número reduzido de professores, 
exceto em uma escala (Pa, e não Si), os afetados o foram 100% a nível border-line. 
Vale notar também, que na escola-3, 40% das escalas não apresentou qualquer 
grau de afetação. 
Quando agregam-se os dados das escolas 1 e 2, e os das escolas 3 e 4, 
constituindo-se dois grupos de acordo com a organização político-administrativa 
das mesmas, quais sejam, o grupo de escolas estaduais e o de escolas municipais, 
os resultados apresentam-se menos dispersos que no corte anterior de análise, 
143 
apontando as escolas estaduais como bem mais afetadas que as municipais (ver 
Tabela 4). 
O grupo de escolas estaduais caracterizou-se pela tríade neurótica Hs-Hy-
D, bem como pela díade ideológica PD-MF, revelando uma percentagem de 
59,3%, 55,6%, 51,9%, 66,7% e 55,6% de afetados, respectivamente. A elevação 
dos escores "t" era proporcionalmente muito maior a nível patológico do que a 
nível border-line. 
O grupo de escolas municipais revelou percentual significativo de afetação 
apenas na escala Hs, abarcando 68,8% de afetados. A elevação dos escores "t" foi 
proporcionalmente bem maior a nível border-line do que a nível patológico, sendo 
que em 40% das escalas clínicas essa elevação era 100% a nível border-line. 
Do que sofrem as professoras? 
A confrontação dos dados aqui levantados, com os resultados de alguns 
estudos americanos acerca do "stress" em professores, parece fornecer algumas 
pistas para a análise.TURK et. al. (1982), identificam sete áreas de problemas que 
estariam nas orígens do "stress" do professor: ambiente escolar carente, mau 
comportamento dos alunos, condições de trabalho carentes, preocupações pessoais 
dos professores, relacionamento com os pais de alunos, pressões do tempo e 
treinamento inadequado. Nossas professoras trabalham em condições carentes e 
inadequadas, haja visto que trabalham com o mínimo possível de material 
didático-pedagógico e que trabalham em salas sem ventiladores, em um clima que 
varia, durante o dia, de 28 a 40 graus centígrados; muitas delas vivem 
pressionadas pelo tempo, pois para aumentarem o seu rendimento mensal, têm que 
correr de uma escola para outra; não têm treinamento inicial (a não ser o curso de 
magistério) e, nas escolas estaduais, quase nunca têm reciclagens. 
Os professores investigados por SHAW et. al. (s.d.) apresentaram um alto 
grau de "stress" para eventos sobre os quais tinham pouco ou nenhum controle, 
144 
avaliando como mais "estressantes" aqueles que implicavam em imposição sobre 
eles, e que eram usualmente de responsabilidade do diretor. O trabalho de nossas 
professoras, apesar de não ser fragmentado como o de um operário que trabalha na 
linha de montagem de uma fábrica, foge em muito ao seu controle, já que questões 
fundamentais como a decisão do conteúdo a ser ensinado e do livro-texto a ser 
adotado, por exemplo, são tomadas à sua revelia, restando-lhe tão somente 
ratificá-las. 
Alguns autores (RUSSEL et.al., 1987; LITT & TURK, 1985; ABBEY & 
ESPOSITO, s.d.) encontraram forte correlação entre o grau de "stress" dos 
professores e o montante de apoio social recebido de supervisores e/ou diretores, 
e o estilo de liderança destes. Nossas professoras das escolas municipais, que 
revelaram-se menos afetadas no MMPI, relataram relacionamento mais 
democrático com suas diretorasdo que as das escolas estaduais, por sua vez mais 
afetadas. 
Partindo-se da concepção de que saúde e doença mental são partes de um 
mesmo processo; que são qualidades diferentes de uma mesma realidade; e que 
são produzidas ou determinadas por uma multiplicidade de fatores dinâmicos e 
contraditórios, que agem e interagem de forma simultânea e complexa. 
Considerando que o modo como estão organizadas as relações interpessoais e as 
estruturas produtiva e reprodutiva do trabalho são alienantes e exploradoras, 
principalmente para a força de trabalho feminina; e que a alienação pode conduzir 
ao sofrimento psíquico. E levando-se em conta que o objeto deste estudo -o 
trabalho da professora de primeiro grau menor de escolas públicas, e suas 
condições de saúde/doença mental- produz-se dentro de um contexto particular, 
em um país de capitalismo dependente, e em uma região atrasada em termos de 
desenvolvimento econômico e social, parece-nos lícito supor que as características 
psicológicas e psicopatológicas evidenciadas nesta categoria profissional, e neste 
145 
estudo específico, encontrem suas determinações no modo como trabalha e como 
tem seu trabalho explorado. 
Como Codo, Sampaio e Hitomi (1991), acreditamos que a doença mental se 
instala em momentos significativos da vida do homem, quando, ocorrendo uma 
ruptura entre subjetividade e objetividade, bloqueiam-se outros meios de 
reapropriação secundária desta ligação. No caso específico do trabalho, momento 
significativo por excelência, quando se rompe a ligação entre representação do 
trabalho e trabalho concreto, e se tornam impossíveis outros meios de remendar 
esta unidade perdida; meios alienantes, sem dúvida, porém inibidores do 
desenvolvimento de sofrimento psíquico. 
Considerando que as professoras são trabalhadoras assalariadas, cujo valor 
de uso é a educação/ formação/ instrução do aluno - no caso específico, o aluno 
formado a nível primário - e cujo valor de troca, a médio ou longo prazo, é a 
preparação da força de trabalho para o capital; que o significado social de seu 
trabalho, ou seja, educar/ formar/ instruir a força de trabalho para o capital, 
contrasta com o significado pessoal de seu trabalho, ou seja, meio de subsistência 
(trabalhar para ganhar dinheiro -o salário- para sobreviver); que as tentativas de 
unificação/apaziguamento dessa contradição, por meio do discurso ideológico 
ilustrado nas conhecidas frases, já citadas, "o magistério é um sacerdócio", "a 
escola é um segundo lar", "a professora é uma segunda mãe" ou "tia", já não 
surtem o efeito esperado, em decorrência da elevação do nível de consciência das 
massas trabalhadoras, propiciado pela atuação dos sindicatos; e que, diante de um 
quadro de recessão, de arrocho salarial, e de ameaça de desemprego, 
proporcionado pela crise econômica, as expectativas de mudança das condições de 
trabalho e de vida, pelos meios legais, são muito remotas. Supõe-se que haveria 
um acirramento das contradições que perpassam suas relações com o trabalho, 
gerando uma ruptura entre subjetividade-objetividade, sem perspectivas ou 
146 
possibilidades reais de resolução dos problemas, pelo menos a médio prazo, 
conduzindo assim ao sofrimento psíquico. 
A contradição trabalhar para educar/formar/instruir x trabalhar para 
sobreviver, provavelmente afeta, de forma profunda, a identidade do professor 
enquanto tal, e a relação afeto-trabalho. O aluno que ele deve educar, ensinar, 
preparar para a vida, é também a força de trabalho em preparação para o capital; é 
ele a razão de ser de seu salário miserável e, consequentemente, de suas precárias 
condições de vida. Diríamos que o professor poderia deslocar esse afeto ao 
produto do seu trabalho -a formação do aluno- cerceado pelas relações de 
produção, para outras esferas compensatórias dentro do contexto de trabalho: a 
amizade com outras professoras, um encontro de colegas (suas iguais) aos fins de 
semana ou ao final do expediente,etc...Mas essas vias compensatórias de 
recuperação da afetividade no trabalho nem sempre são realizáveis, pelo menos 
para as professoras que pesquisamos, pois sendo mulheres, em geral casadas e 
com filhos, têm as obrigações impostas à elas pela sociedade, em decorrência de 
seu papel social de esposa, mãe e dona de casa. 
Poderíamos pensar em outros mecanismos compensatórios, mais distantes 
do trabalho, mas ainda assim com a função de recuperar a ligação perdida entre 
representação do trabalho-trabalho concreto, mas até isso parece difícil, quando se 
considera os baixos salários percebidos pelas professoras. Assim, o terreno pisado 
por essas professoras parece bastante fértil para o desenvolvimento de sofrimento 
psíquico. 
147 
Capítulo 8. 
ENFERMAGEM, TRABALHO E 
CUIDADO 
 IZABEL CRISTINA FERREIRA BORSOI (1) 
 WANDERLEY CODO 
 
 A enfermagem é uma profissão eminentemente feminina devido ao fato de 
sua origem estar relacionada ao trabalho doméstico. 
 A idéia de cuidar, de proteger, esteve sempre presente na história da 
mulher. Com ela ficaram as incumbências domésticas, o cuidado e a educação dos 
filhos. Por extensão, o cuidado dos doentes também passou a ser parte do trabalho 
feminino na medida em que exigia tarefas similares, o que nos leva a crer, que a 
enfermagem, uma das mais antigas profissões femininas, surge como extensão do 
trabalho doméstico (Silva, 1986; Colliere, 1986; Pires, 1989). Procriação, menor 
força muscular, maior delicadeza e maior facilidade de expressar afeto parecem 
ser os principais determinantes deste processo. 
 Na língua inglesa, a origem etimológica da expressão enfermagem vem da 
palavra nurse que, originalmente, significa aquela que nutre, que cuida de crianças 
e, por extensão, a que assiste o doente. Em português o termo enfermeira designa 
quem cuida dos infirmus, ou seja, daqueles que não estão firmes, como crianças, 
velhos e doentes (Silva, 1986). 
 Com este caráter o trabalho de enfermagem foi executado, até o final da 
Idade Média, por religiosas, viúvas, virgens e nobres, tendo como objetivo 
148 
primordial a caridade. As convulsões sociais deste período incorporam também as 
prostitutas que buscavam a própria salvação e cuidar dos doentes tornou-se para 
elas forma de expiação. 
 Pires (1989) vai afirmar que na Europa, até o início do séc. XIX, esse 
trabalho não era reconhecido como ofício e sequer exigia treinamento específico 
para sua realização. É a partir principalmente da Guerra da Criméia (1854) que 
começa a tomar caráter profissional com Florence Nightingale, que serviu como 
voluntária nos hospitais militares ingleses em pleno campo de guerra. Em 1860, 
Nightingale, a pedido do governo, organiza a primeira escola de formação de 
trabalhadores de enfermagem, já estabelecendo separação entre enfermeiras 
administradoras e prestadoras de cuidados. No Brasil, o quadro não foi muito 
diferente. A enfermagem como profissão também começa a ser organizada como 
esforço de guerra durante o conflito com o Paraguai (1864) tendo o nome de Ana 
Neri como expoente. Mas, é somente nas últimas décadas do séc. XIX que se 
inicia o processo de instrução formal de enfermagem, inicialmente visando treinar 
enfermeiras psiquiátricas. 
 Se antes do século XIX, já havia mulheres dedicadas ao cuidado de 
pacientes dentro de instituições hospitalares, com a formalização da enfermagem 
como profissão, a entrada se torna maciça, mudando totalmente o caráter dessa 
atividade. A caridade continua tendo sua importância, mas o que vai marcar a 
diferença fundamental são as exigências de treinamento e a mediação econômica. 
O ato de alimentar, banhar, proteger, administrar determinados medicamentos,enfim, o dar cuidados aos doentes passou a ser trocado por salários e a ser 
mediado por técnicas específicas. 
 O trabalho de enfermagem, enquanto conjunto de saberes concentrado na 
mão de cada trabalhador e direcionado para uma visão holística do paciente e seus 
problemas, fragmentou-se em determinados conjuntos de cuidados, 
149 
especializando os trabalhadores em executores de funções específicas. Assim, 
enquanto um trabalhador realiza cuidados básicos de alimentação e higiene do 
paciente, p. ex., o outro se especializa em administrar medicamentos. Uma divisão 
de trabalho semelhante a uma linha de montagem na qual quem circula é o 
trabalhador. Dessa forma, os trabalhadores se transformam em força de trabalho a 
ser objetivada e comprada de acordo com a demanda da função e, por decorrência, 
o trabalho de cuidar adquire o caráter de mercadoria. 
 Este aspecto do trabalho de enfermagem introduz elementos contraditórios 
na relação de cuidado do paciente. Por um lado, a prestação de cuidados exige 
expressão de afeto na medida em que, na relação constante com o paciente, lida-se 
com sua dor, sua dependência e sua intimidade. Por outro lado, esse cuidado é 
mediado por pelo menos três fatores complicantes e interrelacionados: o salário, 
fonte de sobrevivência do trabalhador; o fantasma da perda do paciente, seja por 
alta-cura, seja por alta-óbito; e a obrigação de se postar frente ao paciente sempre 
como profissional, não lhe sendo permitido expressar preferências ou recusas, 
atração ou repulsa, por este ou aquele paciente. 
 O cuidado tornado profissão deixa de ser mediado apenas pela afetividade 
expressa espontaneamente, seja na forma de carinho seja na forma de agressão, 
como pode ocorrer no ambiente doméstico. O trabalhador de enfermagem é 
treinado para uma missão importante, auxiliar na recuperação do paciente e/ou 
assistí-lo em sua dor. Ao remunerar o cuidado prestado, espera-se qualidade e para 
ter qualidade é preciso não só dominar as técnicas necessárias mas estar mediado 
também por afetividade, nem que a expressão deste afeto seja uma representação 
necessária, pois um dos códigos internalizados pela enfermagem, de acordo com 
Colliere (1986), é devoção e generosidade em relação aos pacientes. 
 Na medida em que o cuidado adquire caráter de mercadoria, que efeitos 
então pode ter sobre a saúde do trabalhador? Que lógica pode estar embutida no 
150 
trabalho de cuidar e o que ela pode estruturar a nível do psiquismo de quem nela 
está inserido? 
 Em busca de dados que pudessem esclarecer aqueles pontos. realizamos 
uma pesquisa com trabalhadores de enfermagem de um hospital escola estatal 
desde 1990. Procuramos primeiro realizar levantamento sobre a história do 
hospital, sua política administrativa e salarial e sua relevância para a região em 
que está localizado. O hospital tem, numa mesma localização geográfica, 11 
Serviços de Enfermagem entre os quais elegemos os cinco que lidam diretamente 
com enfermarias que internam pacientes com quadros clínicos de ordem orgânica. 
Os demais concentram serviços ambulatoriais, centro cirúrgico, preparação de 
materiais, Psiquiatria e CTI. Nos 5 Serviços escolhidos, entrevistamos suas 
diretoras e enfermeiras-chefes. Feito isso realizamos observação direta do trabalho 
e por último aplicamos nos demais trabalhadores de enfermagem o Inventário 
Multifásico Minesota de Personalidade (MMPI), acompanhado de um questionário 
com itens demográficos, sobre condições de vida, sindicalização, salário. 
 Todos os procedimentos foram realizados dentro da jornada de trabalho dos 
sujeitos em períodos determinados pela direção da Divisão de Enfermagem. O 
inventário foi aplicado individualmente ou em grupos que variaram entre 2 e 14, 
dependendo da disponibilidade de liberação por parte das Diretoras de Serviço. 
 Ao todo, o hospital tem 857 trabalhadores de enfermagem distribuidos 
pelos 11 Serviços. Nos Serviços de Enfermagem que estamos pesquisando, a 
população é de 363 sujeitos. Destes, aplicamos o inventário em 288 trabalhadores 
dentre os quais 237 (82.6%) foram validados. Entre os validados, 32 são homens e 
que foram excluidos da população deste estudo devido ao objetivo específico de 
verificar a relação entre mulher, cuidado e saúde mental, ficando então a nossa 
população constituida por 205 sujeitos. 
151 
 A idade da população em questão pode ser observada nos seguintes 
intervalos: > 30 anos - 40 sujeitos; 31-39 anos - 101 sujeitos; e > 40 anos - 58 
sujeitos. 
 A população está distribuida pelos seguintes Serviços: 
 
Clínica Cirúrgica - 40 trabalhadores 
Clínica Pediátrica - 59 " 
Clínica Médica - 47 " 
Otorrino/ortopedia/oftalmologia - 38 " 
Ginecologia e Obstetrícia - 21 " 
 Em relação à função, são 34 enfermeiras, 107 auxiliares e 64 atendentes. 
Cada função exerce um leque específico de atividades. Enfermeiras são 
responsáveis principalmente pelo planejamento e supervisão do trabalho exercido 
pelas outras funções, auxiliares se revesam entre a administração de medicamentos 
e a prestação de cuidados de manutenção do bem estar do paciente (banho, 
alimentação, avaliação de sinais vitais, troca de leito, manutenção da enfermaria 
etc.), por último, os atendentes são responsáveis basicamente pelos cuidados. 
 O nível de escolaridade formal dos sujeitos varia entre primeiro grau e 
universitário: 
1o grau - 61 sujeitos 
2o grau - 105 " 
Univers.- 39 " 
 
Cuidado e Histeria 
 Em se tratando dos trabalhadores de enfermagem, o perfil histérico aparece 
em 19,4% da população de pesquisa. Considerando o fato de a histeria ser tida 
152 
como mais frequente em mulheres, o caráter eminentemente feminino da profissão 
de enfermagem, o baixo percentual de homens na população investigada (13.5%) e 
o fato de o sexo não ter marcado diferença na elevação da escala histeria, levamos 
em conta aqui apenas as mulheres envolvidas na pesquisa. 
 Considerando o conjunto dessas trabalhadoras, o perfil histérico aparece em 
19,5% delas. A constituição dos grupos por Serviço de Enfermagem destaca a 
Gineco/Obstetrícia com 33.3% de casos com perfil histérico, seguida das Clínicas 
Médica e Pediátrica com 21,3% e 20,3%, respectivamente. Por último 
encontramos a Otorrino/Oftamo/Ortopedia cuja ocorrência é de 18.4% e a Cl. 
Cirúrgica com o menor percentua casos, 10%. (Vide fig. 1 na pg. 76-a). 
 Embora não haja significância estatística, é preciso considerar que a 
Gineco/Obstetrícia se sobressai na população com o maior ìndice de casos e a 
Cl.Cirúrgica chama atenção exatamente pela relação inversa. A Gineco/Obstetrícia 
admite apenas mulheres gestantes de risco ou pacientes com problemas 
ginecológicos de toda ordem. Além disto o quadro de pessoal de enfermagem 
desta Clínica é composto apenas por mulheres. 
 Entre as enfermeiras encontramos 17.6% de casos com perfil histérico, 
entre as auxiliares 19.6% e entre as atendentes 20.3%. É interessante apontar que 
parece haver tendência a aumento de casos na relação direta a mais cuidado, na 
medida em que é o auxiliar e o atendente que se mantém mais tempo próximo do 
paciente, porque normalmente são eles os responsáveis pelas enfermarias e pelos 
cuidados diretos como medicação, alimentação, banho etc. 
 Os grupos constituidos pelos intervalos de idade demonstram que a maior 
ocorrência de histeria prevalece entre as trabalhadoras com 40 anos ou mais 
(29.3%) seguidos das trabalhadoras no intervalo de idade 31-39 anos (16.8%) e 
das mais jovens (13.6%). (Vide fig. 2 na pg. 76-a). 
153 
 Não encontramos na literatura revisada referênciassobre influência da 
idade no surgimento da histeria. Os casos relatados por Freud, em sua maioria, são 
relativos a mulheres mais jovens. No nosso caso, os trabalhadores mais velhos, 
como é de se esperar, são também os que têm mais tempo de trabalho no hospital. 
O grupo que trabalha há 18 anos ou mais apresenta o maior índice de casos com 
este perfil (35.7%) 
 A composição de grupos por educação parece apontar maior incidência de 
casos de histeria entre as trabalhadoras de nível universitário (28.r%), seguidos 
dos de nível secundário (19%) e primeiro grau (14.8%). Isto corrobora o que 
Graham (1987) afirma acerca das pontuações da escala de histeria; esta se elevaria 
de acordo com a elevação da escolaridade do sujeito. (Vide fig. 3 na pg. 76-b). 
 Por último, consideramos o turno de trabalho. Os grupos constituidos por 
turno parecem demonstrar que a maior concentração de casos fica por conta do 
grupo que trabalha em turno diurno fixo (33.3%), seguido do turno alternado 
(24.4%) e do turno noturno fixo (15.4%) (vide fig. 4 na pg. 76-b). 
 É o turno diurno fixo mais uma vez que revela o maior índice de casos. Isto 
contraria a literatura na medida em que esta vem apontando os turnos alternado e 
noturno como mais prejudiciais à saúde. Para a nossa hipótese, este resultado faz 
sentido na medida em que é no turno diurno que se concentram a maior parte dos 
cuidados (banho, troca de lençóis dos leitos, alimentação, recepção de pacientes, 
altas, maior frequência de verificação de sinais vitais e de administração de 
medicamentos etc.) e também maior pressão sobre a realização das tarefas. 
 A neurose histérica há muito vem sendo apontada como ocorrendo 
principalmente em mulheres. A grande maioria dos casos de histeria relatados por 
Freud, p.ex., referem-se a elas. Dois casos nos chamaram a atenção por destacar 
de forma mais clara o papel do cuidado e da nutrição na vida da mulher: "Frãulein 
Anna O." (vol. II, p. 63) e "Um caso de cura pelo hipnotismo" (vol. I, p. 171). No 
154 
primeiro, a paciente dava assistência de enfermagem aos pobres e enfermos, 
passando a ser enfermeira do próprio pai quando este cai doente. As crises de 
histeria começam a aparecer a partir deste momento. No segundo, uma jovem mãe 
se vê impossibilitada de amamentar o filho recém-nascido e só consegue fazê-lo 
após, por hipnose, Freud tê-la induzido a responsabilizar também sua família pela 
sua incompetência enquanto nutriz. 
 Freud não atribuiu ao cuidado o desenvolvimento da histeria, entretanto, 
deixou entrever que a mulher tinha papéis bem delimitados na sociedade da época, 
sendo alguns deles o de ser boa nutriz e boa esposa, ser afetuosa, comedida etc. 
Percebeu também que a histeria sobrevinha frente a conflitos em torno da 
afetividade e da dificuldade de contrariar as expectativas postas pela família e pela 
sociedade em torno do que deveria ser uma mulher. 
 Os estudos de Freud nos permitiram formular a hipótese de que a histeria 
pode estar relacionada com o trabalho de cuidado que, uma vez mediado por 
questões econômicas como assalariamento, divisão do trabalho, produtividade, 
gera sempre o conflito investir/desinvestir afeto na relação com o paciente. 
 O termo histeria remonta a Hipócrates, para quem a histeria era causada 
pelo deslocamento do útero dentro do corpo à procura de umidade. Na 
antiguidade, sob esta denominação, englobavam-se tanto sintomas neuróticos 
como distúrbios associados às psicoses e à patologia lesional. Ey et alii (1981) 
afirmam que Thomas Willis, seguindo os passos de Hipócrates, em 1682 reunia 
sob a denominação de histeria a metade das doenças crônicas. É apenas no século 
XIX que o quadro histérico começa a ser melhor definido. Na França, Charcot 
demonstra que as influências psicológicas poderiam afetar os mecanismos 
corporais, assumindo a forma de manifestações dramáticas que poderiam ser 
produzidas e acalmadas por sugestão hipnótica; Babinski, na neurologia, delimitou 
155 
o domínio da histeria: fenômenos "pitiáticos", caracterizados por simulacros, 
dramatizações, que podem ser reproduzidos pela sugestão ou persuasão. 
 De acordo com Ey et alli (1981), desde Babinski, sabemos "que a histeria 
não é uma doença localizável, suscetível de uma definição anatomoclínica e de 
uma descrição pela acumulação de sinais" (p. 473). Após Babinski, a histeria 
correu o risco de ser tomada apenas como uma simulação e foi transformada em 
"algo que não existe" para a neurologia. 
 Em 1895, Freud e Breuer inauguram novo modo de olhar o fenômeno, 
associando-o à repressão sexual e criando também uma nova terapêutica. Kolb 
(1986) sintetiza a concepção de Freud da seguinte maneira: 
"Freud explicou os sintomas histéricos como causados por conflito 
entre o superego e algum desejo que, em virtude de sua natureza, é 
reprimido pelo superego, sendo conscientemente objetivado. Esta 
repressão não é, no entanto, inteiramente bem sucedida e o desejo, 
por isso, se expressa em uma forma disfarçada, pela `conversão' ou 
na transformação de sintomas. Então a natureza e a localização dos 
sintomas produzidos são mais do que eles simbolizam ou fornecem 
as expressões disfarçadas do desejo reprimido e ao mesmo tempo 
proporcionam algum grau do seu cumprimento ou do alívio do 
estado emocional conflitivo" (p. 395). 
 Recentemente, Moffatt (1987) analisa a histeria do ponto de vista da teoria 
dos vínculos. Para ele, a histeria seria uma das expressões de fuga do vazio 
presente no indivíduo a partir do nascimento. Esta forma de defesa é uma 
construção cultural, cuja primeira mediação são os próprios pais. O indivíduo 
aprende que "deve re-presentar, simular emoções, valer-se de mecanismos 
histéricos" diante de situações aversivas. 
156 
 O que a literatura tem apontado até hoje é que a histeria é um fenômeno por 
demais complexo, caracterizando-se como uma neurose específica e ao mesmo 
tempo apresentando alguns sintomas inespecíficos que invadem outros quadros 
psicopatológicos. Sob o jargão da histeria, estão expressões fóbicas, de angústia, 
de conversão, de defesa etc. Os estudos atuais não tem avançado em direção de 
uma nova nosologia e/ou etiologia e, quando discutem aspectos teóricos do 
fenômeno, se remetem a Freud (Bliss, 1988; Mac Millan, 1990). Na tentativa de 
delimitar o quadro caótico em que se encontra a concepção de histeria, o CID-10 
adota, no lugar de histeria, neurose de conversão e neurose dissociativa. 
 A histeria tem como base a angústia gerada por alguma forma de conflito. 
Pode ser tomada como dramatização de sintomas, se expressando a nível de 
reações musculares e expressões corporais difusas. Revela uma espécie de falência 
ou fragilidade corporal frente conflitos geradores de angústia. 
 De acordo com a classificação de Harris (in Graham, 1987), no MMPI, os 
itens que compõem a escala histeria expressam: 1) negação da ansiedade social - 
modos de agir do indivíduo frente a grupos sociais; 2) necessidade de afeto - 
comportamentos no sentido de chamar a atenção para problemas e sentimentos 
pessoais; 3) lassitude-mal estar - sentimento de mal estar físico e psicológico não 
localizado como sensação de cansaço, melancolia, fraqueza; 4) queixas somáticas 
- expressão de sintomas organicamente definidos como cefaléias, tonturas, náuses, 
cansaço visual; e 5) inibição da agressão - expressão de negação a pensamentos e 
atitudes que denotam algum tipo de agressividade como falar palavrões, ler sobre 
crimes, ver sangue sem se sentir incomodado. Graham (1987) afirma que a escala 
tem por objetivo "identificar indivíduos que utilizam reações histéricas frente a 
situações de tensão" (p. 43). 
 Os trabalhadoresde enfermagem realizam tarefas muito similares ao 
cuidado prestado pela mulher no ambiente doméstico. Circulam pelo hospital 
157 
alimentando os pacientes, banhando-os, administrando medicação, ouvindo suas 
queixas, confortando-os etc. Não importa se o paciente é adulto, ou criança, 
homem ou mulher, se sua doença é visível ou não, se é contagiosa ou não, enfim, o 
cuidado tem que ser prestado considerando as especificidades dos quadros 
clínicos, mas não a aparência ou o caráter do paciente enquanto pessoa, o que 
significa que não deve haver discriminação de espécie alguma. O paciente, seja ele 
quem for, deve ser cuidado como alguém que busca alívio e/ou cura para seu 
sofrimento. Para isso, o cuidado de enfermagem é revestido de técnicas específicas 
que buscam facilitar a atividade e tornar a estadia do paciente num hospital menos 
extensa e dolorosa, enfim, cabe à enfermagem a dedicação e o zelo pelo bem estar 
físico e espiritual desse paciente durante sua permanência. 
 Quando afirmamos similaridade entre cuidado de enfermagem e cuidado 
doméstico, nos referimos ao ato de cuidar e à dedicação que se espera do 
trabalhador em relação aos seus pacientes. A comparação termina aí. As 
diferenças é que nos interessam de perto porque nelas estão as contradições da 
profissão. 
 O cuidado de enfermagem é mediado por salário, isto significa que não se 
paga apenas pela capacidade técnica do trabalhador, mas também pela dedicação e 
afeto que este precisa dispor. Aqui está a principal contradição. Não se pode 
transformar sentimentos em parcela de mercadoria impunemente. Este aspecto tem 
seus desdobramentos: 
1- Cada indivíduo enfrenta, no seu cotidiano, problemas de toda ordem, fora 
e dentro do trabalho, mas se espera do profissional de enfermagem que ele 
jamais expresse junto ao paciente seus dissabores diários, ao contrário, 
espera-se serenidade. O modelo de mãe cuidadosa e abnegada é introjetado 
pela enfermagem. 
158 
2- Os pacientes se instalam num hospital por tempo determinado, ora mais, 
ora menos tempo, mas o fato é que sempre recebem algum tipo de alta. 
Alguns pacientes retornam, outros nunca. A contradição agora pode ser entre 
querer estabelecer vínculos afetivos e a impossibilidade de fazê-lo tendo em 
vista o fantasma constante da perda. Uma enfermeira que lida com pacientes 
oncológicos admite que seu trabalho "é uma experiência que proporciona 
emoções alternadas de satisfação e angústia...é uma atividade desgastante 
para o profissional de saúde, pois o envolvimento emocional é intenso". 
Sobre o paciente que permanece maior tempo internado, uma Diretora de 
Serviço afirma: "você acaba se ligando mais a ele, porque voce vê as 
condições dele, fica sabendo se tem família se não tem etc, o pessoal se 
envolve mais". 
 O envolvimento é praticamente inevitável, até porque a profissão traz em si 
o caráter missionário e religioso que deve se expressar na dedicação ao paciente 
que sofre e que pode morrer. A melhor forma de resolver o conflito talvez fosse 
tratar o paciente como um corpo portador de distúrbios patológicos ou um 
complexo de músculos e órgãos. Mas o que se espera do profissional de 
enfermagem é que seja também o porto seguro afetivo do paciente na ausência da 
família e dos amigos. A dedicação e o afeto são como que técnicas que podem ser 
remuneradas. Ao estabelecer com o paciente uma relação de afeto, o trabalhador 
corre o risco de sofrer. Instaura-se o conflito entre apegar-se ou não ao paciente. 
Este, em sua fragilidade e dependência, solicita atenção e afeto. O trabalhador se 
vê diante da necessidade de afetivar a relação e diante do receio de se haver com o 
sofrimento que possa ter diante da perda. 
3- O trabalhador de enfermagem lida ao mesmo tempo com a 
personalização/não personalização do cuidado, na medida em que cada 
paciente deve ser encarado como único, entretanto a atenção personalizada 
da enfermagem deve ser compartilhada com outros tantos pacientes também 
159 
tidos como "únicos". A padronização rígida das técnicas uniformiza o 
cuidado e de certa forma os pacientes. Menzies afirma que há uma "ética" 
implícita de que os pacientes devam ser tratados de igual modo e que não há 
doentes ou doenças que se individualizem e personifiquem (apud. Pitta, 
1990). 
 O corpo do paciente não é apenas veículo que expressa morbidade, pode ser 
também expressão da sexualidade que media simbolizações eróticas no paciente e 
no trabalhador. O conflito que se instaura aqui é que as virtuais simbolizações 
eróticas não podem assumir o plano da sexualidade explícita do trabalhador em 
relação ao paciente, mas, ao mesmo tempo, a afetividade implícita à prática da 
enfermagem não pode encarar o corpo com repulsa ou atração. P.ex, o simples ato 
de banhar um paciente requer do profissional que genitálias sejam "deserotizadas", 
ao mesmo tempo que virtuais traços repressivos do trabalhador não podem ser 
traduzidos em "repulsa" pelo corpo do paciente. É Menzies que novamente afirma 
que "O contato íntimo com os pacientes mobiliza fortes desejos e conteúdos 
libidinosos e eróticos que podem ser difíceis de controlar" (apud. Pitta, 1990:62-
63) 
 A Gineco\Obstetrícia foi a clínica onde encontramos o maior índice de 
casos com perfil histérico. Nela são internadas apenas mulheres com gestação de 
risco ou com problemas ginecológicos. Boa parte dos cuidados envolve contato 
com a área genital da paciente, ora para assepsia de rotina, ora para alguma 
administração de medicamento. Durante as observações de trabalho pudemos 
verificar o cuidado em relação à intimidade da paciente, biombos cercavam o leito 
e, às vezes, a trabalhadora pedia licença para fechar a porta da enfermaria com o 
argumento de que "a paciente vai ficar muito exposta". Aqui as trabalhadoras não 
só lidam mais diretamente com a intimidade da paciente como também com 
quadros patológicos que ameaçam a maternidade (a gravidez de risco, o câncer de 
útero ou mama etc.). 
160 
 As contradições apontadas até aqui parecem expressar uma lógica que o 
trabalho de cuidar impõe. Esta lógica traz em si mecanismos de conflito e tensão 
em torno da afetividade expressos em polos como posso/não posso, gosto/não 
gosto, devo/não devo e que podem ser sintetizados na contradição 
necessidade/impossibilidade de expressão de afeto. Esta tensão, quando não 
resolvida, parece levar os trabalhadores de enfermagem a desenvolverem, a nível 
psicológico, uma lógica histérica, embutida no trabalho que realizam e que 
aparece no MMPI como histeria. 
 A maior evidência parece estar no fato da histeria apresentar perfil difuso 
na população, apresentando concentração na Ginecologia/Obstetrícia, onde a 
sexualidade está em questão - tanto pela exposição da paciente como pelo próprio 
quadro clínico - e no turno diurno fixo, exatamente o que concentra a grande 
maioria dos cuidados diários. 
 A enfermagem reproduz, de alguma forma, papéis ditos femininos relativos 
ao ambiente doméstico. Mas, ao mesmo tempo em que traz as similaridades e os 
valores daquela esfera, traz também as similaridades e os valores da esfera 
produtiva, mercadológica. Dois mundos convivendo num mesmo espaço de tempo 
e que não podem ser separados por imposição da própria profissão. Diante da 
tensão frente a contradições inevitáveis, muitas trabalhadoras podem estar vivendo 
uma espécie de fragilização ou de falência do corpo que pode assumir a forma de 
histeria, pelo conflito entre a necessidade e a impossibilidade de vínculos afetivos, 
sejam eles positivos ou negativos. 
161 
Capítulo 9. 
TRABALHO E IDENTIDADE EM 
TELEFONISTAS (6) 
 IZABEL CRISTINA FERREIRA BORSOI 
 ERASMOMIESSA RUIZ 
 JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO 
 
 O tema Trabalho e Identidade é sobremodo complexo e remete a uma 
relação de interdeterminação, complementaridade e contradição. Teorias que 
tomem os elementos desta equação de modo dicotômico ou que atribuam à 
associação tanto linearidade como ausência de história parecem perder o objeto 
em sua mutável realidade concreta. 
 Pensemos a questão da Identidade. Imaginemos indivíduos que 
respondam por determinados nomes, exerçam atividades produtivas específicas 
que caracterizam profissão, tenham vida social que transpasse família, trabalho, 
escola, igreja, clubes etc. Por todos terem múltiplas inserções e tantos 
transpassamentos comuns, eles experimentam situação semelhante. A este nível 
podemos afirmar que esses indivíduos estabelecem entre si uma relação de 
igualdade. 
 
6Este tema foi desenvolvido no Projeto Saúde Mental e Trabalho, sob a orientação do Dr. 
Wanderley Codo e a participação de Alberto H.Hitomi, Antonio Alvaro Soares Zuin, 
Rosa Virgínia Pantoni e Lúcia Helena Sorato. 
 
162 
 No entanto há uma contradição que parece clara. Se mencionamos 
indivíduo, como falar de igualdade, se indivíduo quer dizer único, singular, por 
decorrência diferente? 
 Ciampa (1985) discorre sobre o nome, o simples rótulo que permite 
identificar quem é quem, cada indivíduo. Um nome é composto de um pré-nome e 
de um sobre-nome. O primeiro diferencia o indivíduo dos demais membros de sua 
família, o segundo o iguala à sua família e o diferencia de membros de outras 
inúmeras famílias. O nome já exprime igualdade e diferença. Mas, o que é um 
nome? A resposta parece singela: apenas uma identidade jurídica pressuposta sem 
a participação do interessado, pois, até que se prove o contrário, até hoje nenhuma 
criança em nossa cultura escolheu o próprio nome. Os pais especulam sobre o sexo 
do bebê para escolher o nome pelo qual será chamado e distinguido. 
 Um nome, portanto, diferencia um indivíduo de todos os outros, tornando-o 
igual apenas a si próprio. Aqui a "carteira de identidade" se reveste de grande 
importância, porque o pressuposto é o de não haver uma pessoa igual a outra. 
 Portanto, cada um de nós é único. Referir determinada pessoa, entretanto, não 
se reduz a invocar seu nome. Ao 
chamarmos José, podemos estar invocando um pai, um filho, um amigo, um 
trabalhador metalúrgico do terceiro torno, um alto 
funcionário do governo ou um membro de associação comunitária. Falar de José é 
invocar e reconhecer seus atributos físicos, intelectuais, sociais e profissionais. 
Uma passagem em Marx (s/d) é paradigmática. Diz o autor: 
"O homem se vê e se reconhece primeiro em seu semelhante, a não ser que 
já venha ao mundo com um espelho na mão ou como um filósofo fichtiano 
para quem basta o 'eu sou eu'. Através da relação com o homem Paulo, na 
condição de semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo 
163 
como homem. Passa então a considerar Paulo - com pele, cabelos, em sua 
materialidade paulina - a forma em que se manifesta o gênero humano." 
 Se o homem não se faz sozinho, mas pela relação com o outro, significa 
dizer que ele é produto e produtor do processo de apropriação do outro. 
Entendemos apropriação como atividade especificamente humana através da qual 
o homem se descobre ao descobrir o mundo objetivo e subjetivo, fazendo-o seu. 
Dessa forma podemos recorrer a Leontiev (1964): "Assim o desenvolvimento 
espiritual, psíquico, dos indivíduos é o produto de um processo de apropriação, 
que falta ao animal, tal como, aliás, o processo inverso de objetivação das suas 
faculdades nos produtos objetivos de sua atividade." 
 Ao produzir, o homem torna-se sujeito que se objetiva para ser apropriado 
pelo outro. Também apropria-se da exterioridade do outro e a torna sua pela 
subjetivação. Ciampa (1987) parece compartilhar desta opinião ao afirmar: "Na 
práxis, que é a unidade da subjetividade e da objetividade, o homem se produz a si 
mesmo. Concretiza sua identidade. O devir humano é o homem, ao se 
concretizar." 
 Apropriar e objetivar passam a ser um movimento básico da construção do 
homem pelo próprio homem. A objetivação implica em exteriorização do que o 
indivíduo apropriou durante o seu desenvolvimento e do que se apropria 
cotidianamente, além do que lhe foi legado pela História. 
 O homem realiza e/ou exprime sua humanidade através do trabalho, 
processo mediador pelo qual transforma a natureza e é transformado por ela. O 
produto engendrado pelo trabalho se constitui então no que poderíamos chamar de 
materialização da energia psíquica, ou seja, a expressão material de um projeto 
anteriormente apenas idealizado. Aqui é importante frisar que a expressão do 
objeto pensado é mediada pelo mundo material onde o homem vive, que o 
conteúdo do seu psiquismo é determinado por esse mesmo mundo material. 
164 
 A cadeira na qual sentamos, para trabalhar ou descansar por exemplo, 
submete-se mais ou menos rigorosamente às formas do corpo e algumas vezes é 
projetada com requintes ergonômicos. Significa dizer que ela não só é portadora 
da história individual de quem a produziu, mas também da história de toda 
humanidade, na medida em que, para alcançar esse estágio, foi preciso o trabalho 
de muitos que viveram antes do produtor e de outros que compartilham sua 
contemporaneidade. Como reporta Ciampa (l987), "A história é a progressiva e 
contínua hominização do homem a partir do movimento em que este, 
diferenciando-se do animal, produz suas condições de existência, produzindo-se a 
si mesmo consequentemente." 
 Ao produzir-se o homem constrói a própria identidade. O trabalho surge 
então como categoria fundamental desse processo. Ao fazermos a clássica 
pergunta, "o que você é?", a resposta na maioria das vezes refere-se ao que você 
faz, no que trabalha. E mais, dificilmente alguém responderia "eu estou 
trabalhando com torno mecânico", mas sim, "sou torneiro mecânico". O verbo 
transforma-se em substantivo e nomeia, por decorrência identifica. Entretanto, o 
nome por si não seria bastante para discriminar identidades. Aqui o nome de uma 
profissão exprimiria o virtual lugar que o indivíduo ocuparia na produção. A 
mediação da inserção produtiva acaba por determinar a construção de uma 
identidade mais abrangente. Aqui é preciso nos remeter a categoria profissional 
como unidade estruturadora de identidade. 
 A discussão sobre categoria profissional é ampla e conflitante a nível da 
Sociologia do Trabalho como pode ser observado no estudo de Friedmann & 
Naville (1973) onde comparecem algumas definições do termo. A priori poder-
se-ia definir categoria profissional como grupo característico de trabalhadores que 
executem processos de trabalho relativamente similares, por sua vez levando à 
produção de bens específicos de determinado ramo produtivo. 
165 
 A nível da Psicologia Social, categoria profissional expressa relação de 
igualdade entre trabalhadores, ou seja, fornece elementos que permitem afirmar 
que há semelhança tanto no processo de trabalho como na forma de consumo de 
determinado grupo de trabalhadores. Sendo assim, a categoria profissional pode 
estruturar e exprimir identidade individual e social. 
 É claro que o trabalho e a inserção da força de trabalho expressando-se na 
categoria profissional não seriam os únicos elementos estruturadores da 
identidade, ou seja, não se pode afirmar que tudo aquilo que um indivíduo é está 
indelevelmente determinado pelo seu agir na produção, posto que há 
determinações que estão aparentemente fora da organização produtiva. 
Remetemo-nos necessariamenteàs instâncias superestruturais que também podem 
atuar como unidades estruturadoras de identidade. A família pode ser a primeira 
unidade com a qual a criança tem contato; a escola pode ser considerada outro 
momento atuante na estruturação da identidade de um indivíduo; a mídia, com sua 
avalanche de comerciais dizendo o que temos que consumir ou não, molda de 
alguma forma o modo de consumo tanto de crianças como de adultos. Entretanto, 
queremos dizer que estas instâncias acham-se de alguma forma determinadas pelo 
aparato produtivo e que possuem níveis de autonomia frente ao mesmo. 
 A permanente revolução das forças produtivas determina o ir e vir da força 
de trabalho a processos de trabalho novos e muitas vezes hostis. P.ex.: a criação do 
off-set destrói o ser produtivo do linotipista. O saber fazer do linotipista deixa de 
ter função ativa na produção e passa a ser um saber morto. Agora sua vida e seu 
ser se redimensionam. O desenvolvimento do off-set determina novos caminhos 
ao linotipista, novas possibilidades de "escolha". Por um lado, ele poderá 
apreender um novo "saber fazer" ainda inserido na produção gráfica ou então 
engrossar o contingente da economia invisível que, aqui e ali, como pontas de 
iceberg, se visibiliza nos "camelódromos" das grandes cidades. 
166 
 As revoluções produtivas e as crescentes modificações nos processos de 
trabalho, trazidas por elas, levam a um cotidiano redimensionamento da identidade 
dos homens. O crescente remanejamento da força de trabalho determina a 
construção de novas identidades que se justapõem e contradizem as anteriores. Os 
novos lugares ocupados no mundo da produção determinam salários, prestígio 
social, apreensão e destruição de saberes. A complexa interrelação desses fatores 
determina como o indivíduo trabalha, consome e pensa. Se ganha mais dinheiro 
pode comer algumas vezes em bons restaurantes e comprar roupas mais caras em 
boutiques. A crescente expropriação do saber poderá expô-lo a níveis salariais 
menores o que determinará um redimensionamento do agir social. Os restaurantes 
serão substituidos pela lanchonete, as roupas caras pela grife popular num grande 
magazine. 
 Dessa maneira, o redimensionamento da organização produtiva, o que se 
ganha em dinheiro e o que se pode consumir determinam o que o indivíduo é e 
como se relacionará com os outros homens. A mercadoria, como forma 
hegemônica das relações capitalistas, gradativamente determina até o que vestir, 
sentir, pensar e amar. 
 A arte é ilustração, expressão e recriação do cotidiano. Poderíamos aqui 
aprender um pouco com ela ao refletirmos sobre o poema "Eu Etiqueta" de Carlos 
Drumond de Andrade, mais precisamente neste trecho: 
 
"Estou, estou na moda. 
É doce estar na moda, ainda que a moda 
seja negar minha identidade, 
trocá-la por mil, açambarcando 
todas as marcas registradas, 
todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
167 
eu que antes era e me sabia 
tão diverso de outros, tão mim-mesmo, 
ser pensante, sentinte e solidário 
com outros seres diversos e conscientes 
de sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio, 
ora vulgar ora bizarro, 
em língua nacional ou em qualquer língua." 
 Os modismos são expressões da contradição destruição/construção da 
identidade. Slogans como "decisão inteligente","emoção pra valer", "a gente tem 
alguma coisa em comum", embrenham-se pelos labirintos sinápticos de nossos 
cérebros, fazendo parte de nós, independente da nossa vontade. Nesse sentido 
uma passagem de Horkheimer & Adorno (apud. Gandini, 1986) parece oferecer 
uma síntese do poema de Drummond ao referir-se aos meios de comunicação de 
massa: 
"Vemos nas telas de televisão coisas que se querem parecer com as mais 
habituais e familiares e, entrementes, o contrabando de senhas, como a de 
que todo estrangeiro é suspeito ou de que o êxito e a carreira são as 
finalidades supremas da vida, já está dado por aceito e posto em prática 
desembaraçadamente e para sempre." 
 Visando passar da teoria à prática, tentaremos demonstrar como as 
telefonistas de uma empresa estatal de telecomunicações parecem construir 
aspectos importantes da identidade por meio da inserção na organização do 
trabalho. Aqui é preciso ir a campo e surpreender a complexidade do trabalho 
realizado por estas trabalhadoras. 
 O "Projeto Saúde Mental e Trabalho" (PSM&T) realizou pesquisa em uma 
empresa estatal de telecomunicações com o objetivo de investigar o lugar 
ocupado pelo trabalho na rede hierarquizada de determinações do processo 
168 
saúde/doença mental. A pesquisa destacou a Seção de Comutação Manual 
(Tráfego) porque nela se concentram as telefonistas responsáveis pelos serviços 
que praticamente definem a finalidade da empresa. 
 A metodologia adotada pelo PSM&T está amplamente discutida em Codo 
& Sampaio & Hitomi (1991, np). Por complexo e extenso, qualquer tentativa de 
síntese correria o risco de reduzir a amplitude do método. Por outro lado, o 
objetivo deste texto é discutir a relação trabalho e identidade naquelas telefonistas 
concretas, restrigindo-nos às etapas pertinentes à Psicologia Social. 
 Os dados obtidos para análise tiveram como fontes: 
1- 05 entrevistas com superiores hierárquicos da empresa (Chefes de Distrito, de 
Divisão, de Tráfego, de Recursos Humanos, e Monitora) visando levantar: 
- a história da empresa; 
- sua inserção no mercado; 
- procedimentos administrativos em relação à seção 
investigada (Tráfego); 
- política de recursos humanos. 
2- Observação direta do processo de trabalho tendo como referência um Protocolo 
Geral de Observação visando levantar os seguintes aspectos: 
- características do local de trabalho (espaço físico, distribuição de 
mobiliário e equipamentos); 
- condições ambientais (temperatura, ruído, iluminação etc); 
- operações executadas e tecnologia adotada; 
- força de trabalho (distribuição de trabalhadores por horário e seção, 
aparência pessoal). 
169 
3- 16 entrevistas com telefonistas do serviço de Interurbano (IU) e de Informações 
(IF), realizadas a partir de roteiro semi-estruturado visando levantar dados sobre 
os seguintes aspectos do trabalho das telefonistas: 
- processo e condições do trabalho; 
- jornada de trabalho; 
- representação social do trabalho; 
- condições de consumo e reprodução. 
 Foram entrevistadas 16 telefonistas de uma população de 107 
trabalhadoras, seguindo os critérios de seleção do PSM&T. Para efeito da análise 
das questões abordadas neste texto, utilizamos das entrevistas e observações 
apenas os dados referentes a processo de trabalho, jornada de trabalho e 
representação do trabalho. 
Como trabalha a telefonista? 
 Entre os serviços prestados pela empresa, basicamente dois deles fornecem 
os elementos necessários a esta discussão, os que compõem a Seção de Comutação 
Manual (Tráfego): Serviço de Interurbano (IU) e Serviço de Informações (IF). 
 O serviço de IU processa chamadas interurbanas para locais que não 
possuem o sistema DDD, auxilia clientes a efetuarem chamadas em que encontram 
dificuldades, fornece valor de tarifas telefônicas interurbanas e encaminha 
solicitações de chamadas à EMBRATEL caso se trate de chamadas telefônicas 
internacionais. A telefonista se encarrega de receber a chamada do cliente, 
registrar os dados necessários e efetuar a chamada solicitada. Utiliza para isso o 
fone, um terminal de computador e o painel luminoso que indica presença de 
assinante na linha, aguardando atendimento ou já em conversação. 
 O serviço de IF se caracteriza pela informação dos números de telefones 
não constantes na lista de possedo assinante. Como funciona com sistema 
170 
informatizado, acabam sendo informados todos os números solicitados pelos 
clientes, exceto os que, a pedido de alguns assinantes, estão proibidos de sê-lo. O 
processo de informação é efetuado através de terminais de computadores e de 
fones. A telefonista, ao receber uma chamada, digita os dados fornecidos pelo 
cliente e, após encontrar a informação solicitada, a transmite ao solicitante. Finda 
essa sequência, inicia-se outra imediatamente, porque um novo cliente já ocupa a 
sua linha. 
 Em ambos os serviços há estimativa de tempo para atendimento ao cliente. 
No IU, o objetivo estabelecido pela empresa é que o cliente seja atendido em 10 
segundos a contar do momento em que sua chamada entre no sistema. Durante 
este período o sinal da chamada permanece aceso. Uma vez esgotado o tempo 
estipulado o sinal deixa de ser contínuo e procede como um pisca-pisca. No IF, o 
tempo é avaliado por atendimento realizado, no qual a telefonista pode dispender 
um tempo médio máximo de 37 segundos por cliente, considerado suficiente pelo 
chefe da divisão. Isso significa que se uma telefonista utilizou 12 segundos para 
transmitir uma informação solicitada, ela terá um saldo de 25 segundos a ser 
utilizado com um cliente que tomar dela mais que os 37 segundos previstos. 
 Para minimizar o tempo dispendido na comunicação entre telefonista e 
cliente e/ou telefonista e telefonista de outros postos ou empresas telefônicas são 
adotados códigos específicos e frases padronizadas. A empresa em questão tem 
adotado maior flexibilidade em relação a estas frases, ficando a critério da 
telefonista as expressões a serem usadas no atendimento, desde que não firam 
normas estabelecidas como atendimento cordial e tempo necessário. É exigido 
dela que ao atender identifique o serviço prestado e o seu nome, p. ex., 
"Informações, Maria", ou "Interurbano, Carolina". 
 Os serviços de IU e IF são prestados durante 24 horas, adotando quatro 
turnos de seis horas, com início às 5:45h, 11:45h, 17:45h e 23:30h 
171 
respectivamente. Neste caso, as telefonistas são distribuidas por turnos e o número 
delas varia de acordo com a demanda de produção. 
 As escalas são elaboradas anualmente, prevendo revezamentos mensais, 
exceção feita ao turno de 23:30h. Neste caso, adota-se o seguinte critério: por ser 
um horário de baixa demanda, são escaladas apenas 4 telefonistas para o turno 
referido. Esse grupo é dividido em dois pares que irão revezar-se semanalmente, 
ora no turno de 23:30h, ora no de 5:45h, de forma que cada par trabalhe 15 dias 
num turno e 15 no outro. 
 Em relação ao trabalho executado, as telefonistas referem queixas 
principalmente ao serviço de IF onde a repetividade é marcante, o ritmo é intenso 
e o controle é excessivo. A telefonista atende um cliente após o outro sem 
intervalo. Na medida em que um cliente desliga, um outro que se encontre 
aguardando atendimento entra na linha tão logo seja liberada. Dessa forma, o 
ritmo de trabalho é determinado pelo equipamento com o qual trabalha, sendo 
impossível sair da posição, a menos que peça para bloquear as chamadas à sua 
mesa. Uma telefonista dá o seguinte depoimento: "No IF é super cansativo, você 
trabalha sem parar e o sinal cai direto no ouvido. Você acaba de atender um, o 
outro já está na linha aguardando" (Entrev. 11). Outra telefonista afirma: "Na IF, é 
um sinal atrás do outro, é mais cansativo que no IU apesar de não ter movimento 
de braço como no IU. Tem hora que você não consegue engolir a saliva" (Entrev. 
13). 
 O controle é feito por supervisoras (monitoras) que têm acesso a todas as 
mesas através de um terminal. Assim conseguem entrar na linha de qualquer 
telefonista do serviço de IF, ouvir seu atendimento, sem que esta se dê conta do 
fato. As referências a esta forma de controle são várias. Para efeito de ilustração, 
citaremos dois depoimentos: 
172 
1- "Lá (IF) é mais agitado, porque o sinal é contínuo. Você não pode isolar muito 
(impedir que a ligação caia na mesa), só por necessidade. Tem sempre uma 
monitora que está te ouvindo" (Entrev. 13); 
2- "As monitoras ficam vigiando a gente. Na IF, elas entram na linha escondidinho 
e ficam ouvindo a gente o tempo todo. A gente não sabe que elas estão ouvindo 
você. Simplesmente entram na linha, você está conversando com o usuário, elas 
ficam quietinhas pra pegar você. Se você pisa na bola, ela levanta de lá e te chama 
a atenção" (Entrev. 4). 
 No caso do serviço de IU, o controle de produção e o ritmo de trabalho em 
horários de pico são os motivos de reclamação mais frequentes. 
 O controle de produção é realizado diariamente. Cada telefonista toma 
conhecimento, de hora em hora, do número de chamadas acessadas, efetuadas, 
canceladas, atendidas com impossibilidade de serem completadas, e retidas. Se a 
produção revela-se baixa, há cobrança por parte das supervisoras para que se 
aumente o ritmo de atendimento, o que nem sempre é possível nos horários de 
grande demanda. 
 Os picos são determinados pela redução de tarifa ou por períodos definidos 
do horário comercial. Esses momentos são considerados os mais tensos da jornada 
de trabalho. Quando interrogadas sobre o momento de maior tensão, a maioria faz 
referências como as seguintes: 
1- "É quando tem muito sinal chamando e você não pode fazer nada. Você está 
atendendo ali, você tem um limite de atendimento. O máximo que você pode fazer 
é mandar o cliente esperar, mas mesmo assim você vê aquele monte de sinal na 
mesa e não pode fazer nada, você fica impotente" (Entrev. 9); 
2- "O ritmo é tumultuado, porque se você fosse atender todo mundo, você ficaria 
doida, mas não dá pra gente fazer porque cansa demais (...) Tem dia que a gente dá 
vontade de pegar o aparelho e jogar longe e sumir dali, porque nem todo dia você 
173 
está com aquela disposição prá trabalhar, qualquer barulhinho está te irritando. (...) 
Quando as monitoras estão por perto, pressionam pra aumentar o ritmo" (Entrev. 
11); 
3- "Começa a piscar, congestiona o Brasil inteiro, você joga, dá o máximo e tudo 
ocupado. O cliente quer falar e você não consegue ligar. Te cansa e você não faz 
nada, não agrada a ninguém" (Entrev. 13); 
4- "É apertadíssimo e é irritante porque a gente trabalha e não faz nada, não 
produz praticamente nada, porque não há circuito vago, é horário de 
congestionamento. Então às vezes você atende o mesmo cliente umas dez vezes 
porque não completa. Acho que ele fica enjoado de 'ver' a gente. A gente fica 
rezando prá ele falar, pra não atender ele mais" (Entrev. 2) 
 O produto de trabalho é referido, na maioria das vezes, como sendo a 
chamada telefônica, as ligações completadas, a comunicação entre o cliente e o 
interlocutor solicitado, as informações fornecidas. O produto é percebido como 
distinto em IF e em IU. No primeiro caso, esse produto é indireto na medida em 
que o cliente utilizará a informação fornecida para efetuar uma chamada; no 
segundo, o produto é direto, pois o cliente é colocado em contato com quem 
pretende falar. 
 Para algumas telefonistas, o produto é referido como sendo o lucro que a 
empresa obtém com o seu trabalho. Uma entrevistada afirma: "Prá empresa é 
grana, prá mim é desgaste" (Entrev. 8). Outra questiona: "O que eu produzo? O 
que posso dizer que eu produzo no IU? Não estou achando lógica. Acho que não 
produzo nada. Agora prá empresa é lucro. É tão repetitivo... produto?... você não 
vê... não tem" (Entrev. 13). 
 Quando indagadas sobre o significado e a importância do produto de 
trabalho para si, referem-se ao salário que recebem, à obrigação cumprida, à 
satisfação do cliente. Algumas admitem não haver significadoalgum. A satisfação 
174 
no trabalho está relacionada à satisfação do cliente. Para efeito de demonstração, 
citaremos alguns depoimentos: 
1- "É importante porque estou dando alguma coisa para as pessoas, estou 
informando, estou servindo" (Entrev. 11); 
2- "Não tenho condições de responder isso, porque não consigo ver isso" (Entrev. 
12); 
3- "Se você faz alguma coisa que agradou, eu gosto, fico satisfeita se satisfaz 
alguém. Agora quando não consigo atender é chato, porque o cliente fica 
aborrecido" (Entrev. 13); 
4- "Acho que é importante porque cumpro a minha obrigação" (Entrev. 15); 
5- "Prá mim não tem nenhuma (importância). Tem prá empresa (...) Prá mim? Eu 
continuo a mesma coisa, meu salário é a mesma coisa. É a empresa que tem lucro" 
(Entrev. 4) 
 Em relação à jornada de trabalho, as reclamações praticamente são referidas 
a qualquer turno, sendo mais crítico o de 23:30. O revezamento impede a 
organização do cotidiano, afetando a vida familiar, afetiva e social. O turno de 
23:30, além desses problemas, também se reflete no ciclo de sono porque obriga a 
dormir em horários diurnos, na maioria das vezes não tão reparadores da energia 
física e mental consumida durante a jornada. Algumas referências são 
elucidativas: 
1- "De noite não foi feito prá trabalhar não, foi feito pra você se divertir, passear. 
Por isso aqui ninguém arruma namorado. Sábado, ao invés de você ir namorar, ir 
numa festa, você tem que vir trabalhar. Só tem solteirona aqui" (Entrev. 4); 
2- "O turno alternado é muito cansativo, seu organismo não acostuma. Você não 
tem horário prá almoço, não tem horário prá jantar, não tem prá tomar banho, você 
não tem horário prá nada. Você não consegue se organizar" (Entrev. 5); 
175 
3- Sobre o turno das 23:30h, "eu acho um dos piores. Eu fico doente se eu ficar 
fazendo (trabalhando) à noite. Não consigo dormir de dia, fico tensa, prá mim não 
dá (...) Quando faço, eu chego em casa coloco um pano bem escuro na janela prá 
ver se eu consigo dormir. Se tiver um barulhinho sequer eu não durmo, fico 
nervosa, fico com os nervos super abalados, perco a noção de tempo. Levanto lá 
pelas quatorze horas, almoço, vejo televisão, tento dormir outra vez, às vezes saio, 
mas é horrível" (Entrev. 7); 
4- "Você não sabe se vai chegar viva ou morta, se vai ser estuprada ou cair num 
bueiro, dependendo do horário. Isso é horrível" (Entrev. 16). 
 Sobre a saúde, referem sintomatologia variada, sendo mencionados com 
maior frequência a insônia, cefaléia e nervosismo. Sugerem menos 
frequentemente problemas oftalmológicos, auditivos e de garganta, depressão, 
ansiedade, dores nas pernas, nos braços e nas costas. Os depoimentos abaixo são 
ilustrativos: 
1- "Eu estou com problemas de nervos, mas estou fazendo tratamento. Toda vez 
que eu venho trabalhar aqui eu fico me sentindo mal. Tenho dificuldade prá 
dormir. Estou tomando um remédio prá relaxar porque eu estou muito tensa, 
descontrolada emocionalmente" (Entrev. 4); 
2- "Tenho dor de cabeça, dor nas pernas, um monte de coisas, insônia, dor nas 
costas. Está ligado ao trabalho em si. Você tem que trabalhar de acordo com quem 
está trabalhando. Tudo isso são coisas que você tem que está ligado numa hora só. 
Acho que isso desgasta muito a mente. Acho que o trabalho mental cansa mais que 
o trabalho físico" (Entrev. 8); 
3- "Eu tive problemas de insônia depois que eu comecei a fazer de 19:00h até o 
00:45, porque antes era esse horário. Eu fiz muito esse horário. Foi aí que voi 
vindo a insônia" (Entrev. 1). 
O Trabalho da telefonista e a conformação da Identidade 
176 
 Do exposto até aqui, podemos destacar alguns aspectos relativos ao 
trabalho da telefonista: 
1) controle da produtividade marcado pela sofisticação tecnológica (estatística 
obtida por programas de computador, supervisão realizada por monitora através 
de escuta através de terminal); 
2) perda de controle sobre o processo de trabalho, porque o ritmo é definido pela 
organização, pelo instrumento de trabalho (maquinário) e pela demanda; 
3) dificuldade de reconhecimento do produto de trabalho; 
4) comunicação instrumentalizada visando eficiência e rapidez na prestação do 
serviço (fraseologias, códigos etc); 
5) jornada de trabalho realizada em esquema de revezamento de turnos 
interferindo no cotidiano fora do trabalho. 
 Tentaremos analisar esses itens procurando estabelecer relação entre eles, 
posto que não aparecem de forma isolada, mas em processo de interdeterminação 
complexa. 
 A empresa define um objetivo a ser alcançado: produzir determinado 
número de chamadas que atenda seu mercado e se converta em lucro. Analisando 
por esse ângulo, é fácil afirmar que uma telefonista é prestadora de serviços e que 
o produto do seu trabalho é a chamada telefônica completada. É essa chamada 
que é vendida pela empresa entre outras mercadorias expressas na forma de 
serviços prestados. 
 A prestação de serviços não produz valor mas agrega capital circulante ao 
patrimônio financeiro da empresa. Isto é, a função de prestar serviços transfere 
massa de mais-valia do mercado, capta massa de capital que precisa ser investida 
ou intermediada para criar mais valor. No caso de uma empresa de 
telecomunicações essa função mediadora apareceria no próprio serviço que 
realiza. A fatia mais expressiva do faturamento de uma empresa desse porte não 
177 
vem das chamadas domésticas, não é fruto do conflito amoroso de um casal 
resolvido pelo telefone, nem das trocas de receitas de bolo entre donas de casa. Na 
realidade a maior parte do faturamento é fruto da comunicação humana 
transformada em mercadoria para realizar transações econômicas. Esse 
faturamento começa com a comercialização do direito de uso de linhas telefônicas, 
concomitante à venda de ações. O restante é captado a partir da ocupação de linha 
propriamente dita. Dessa forma uma infinidade de circuitos eletrônicos são 
mobilizados para que multinacionais transmitam comandos que determinarão a 
tática para a distribuição de mercadorias em qualquer setor do país ou fora dele. 
Executivos realizam extensas reuniões telefônicas para determinarem a estratégia 
de marketing a ser seguida ou quais as novas necessidades de mercado. As linhas 
de Fax são "oferecidas" por verdadeiras fortunas. Os modens interligam extensos 
sistemas informatizados. Esse contexto econômico é extremamente complexo, 
pode expressar-se no mais singelo diálogo, passando pela transmissão de áudio de 
uma partida de futebol até às disputas das redes de televisão pelas informações, 
via satélite, sobre os acontecimentos de uma guerra. 
 Nesse complexo circuito as telefonistas ocupam um pequeno espaço, mas 
nem por isso menos importante. Na empresa investigada elas correspondem 
apenas a 6,8% do quadro de trabalhadores, mas ocupam uma seção onde a 
presença humana, apesar de todo o aparato tecnológico, é necessária ainda à 
finalidade da empresa, ou seja, a captação direta (IU) e indireta (IF) de recursos 
financeiros. Vejamos que lugar é esse. 
 No serviço de IU a chamada telefônica aparece claramente como 
mercadoria se considerarmos que, a partir do momento em que o cliente inicia sua 
conversação, a ocupação da linha começa a ser computada e o preço da utilização 
vai direto para sua conta. A telefonista aí agiu como intermediária entre o cliente e 
seu interlocutor ao completar a chamada. A chamada telefônica interurbana 
possui, por sua vez, valor de uso para o cliente, na medida em que satisfaz uma 
178 
necessidade sua, falar com alguém à distância, mas possui valor de uso portador 
de valor para a empresa de telecomunicações porque se converte em lucro. Aqui a 
telefonistaassume o lugar de agente mediador na transferência de capital do 
mercado para a empresa. 
 No serviço de IF o quadro é bem diverso. Esse serviço funciona como uma 
extensão da lista telefônica. Esta é fornecida pela empresa como brinde. Da 
mesma forma, o serviço prestado dentro da empresa visando fornecer informações 
sobre números de telefones deve parecer ao cliente como tal, e, sendo assim, não 
é registrado na sua conta qualquer pedido de informação desse gênero. Ora, se é 
brinde, o serviço não se reverteria em lucro para a empresa. Se é desprovido de 
valor lucrativo, possuindo apenas valor de uso para o cliente, não constituiria 
mercadoria. O que levaria uma empresa então a manter um serviço com essas 
características? 
 A função da informação, seu valor de uso para a empresa, é criar a 
demanda no mercado, criar uma necessidade que se exprima no uso da 
informação obtida pelos clientes para a realização das chamadas telefônicas, ou 
seja, o valor de uso se exprime na captação indireta de dinheiro no mercado que é 
formado pela clientela. De acordo com uma entrevistada, "Eles dizem que na IF 
cada informação que você dá é uma chamada que entra. Você informa o número, a 
pessoa liga e a empresa ganha" (Entrev. 14). 
 Há portanto uma contradição no discurso empresarial entre brinde e 
mercadoria. O discurso ideológico da empresa enfatiza que o brinde visa apenas 
facilitar a utilização do sistema telefônico pelo cliente, torná-lo mais próximo. Na 
realidade o brinde tem função mediadora de lucro, mediadora da transferência de 
capital do mercado para a empresa. Os livros de contabilidade empresarial 
geralmente despem-se da hipocrisia ideológica dos discursos de marqueting, 
fazendo com que a gratuidade do brinde não apareça aí como "dinheiro perdido" 
mas sim como capital investido. O pressuposto é claro: se alguém solicita ao 
179 
serviço de IF um número de telefone é porque vai efetuar a chamada, portanto vai 
pagar pela ocupação do sistema telefônico. E a telefonista onde fica? Mais uma 
vez intermediária da captação financeira, mas agora intermediária indireta e quase 
invisível. Seu trabalho não aparece como produtor de mercadoria, mas como 
"cartão de visita" da empresa, dá margem a afirmações como: "Na IF, eu acho 
aquilo ali uma perda de tempo, às vezes uma perda de dinheiro. A gente trabalha 
de graça" (Entrev. 2). 
 A telefonista acaba sendo mediadora de um complexo circuito financeiro, 
porém só aparece como voz solitária e solidária do outro lado da linha. Frases, 
palavras, gestos e afetos limitados pelo tempo, como termômetros da 
produtividade. Vejamos como se desdobra esta questão. 
 Define-se que cada telefonista deve atender um cliente num tempo de 37 
segundos (IF) ou de 10 segundos (IU), o que significa ser este um ritmo a ser 
obedecido. Mecanismos são criados para que ele seja cumprido: vigilância 
constante e equipamento de tecnologia de ponta. A produção fica subordinada ao 
que a empresa define como objetivo final. Junto com a produção também a 
telefonista se submete. 
 O aparato tecnológico rouba-lhe a definição de um tempo próprio de ação. 
Não há como interromper o processo, resta-lhe apenas seguí-lo. Isso fica claro 
quando se observa o serviço de IF, tão logo um cliente sai da linha, um outro 
entra. A telefonista age como se fosse a extensão da própria máquina, uma quase-
máquina acionada a cada sinal auditivo indicando presença de cliente. O trabalho 
humano aparece robotizado, cerceado de gesto criativo, de ação significativa mais 
visível. Os movimentos, as expressões físicas e verbais aparecem como definidos 
e automáticos. 
 A produtividade do trabalho se expressa numa estatística que de longe 
indica quanto de fato produziu, como ocorre no IF em que produção é dada pelo 
tempo médio e não pelo número de clientes atendidos. E quando indica - 
180 
como no IU onde os números são mais definidos e é possível saber quantos 
clientes atendeu e quantos deixou de fazê-lo - o resultado serve como advertência. 
Uma telefonista quando perguntada sobre formas de controle de produtividade 
reporta o seguinte: 
"Eles sabem qual a sua posição, quantas ligações você fêz, sua capacidade, o 
computador mostra tudo. Têm as monitoras também que te fiscalizam, 
principalmente na IF, lá é mais rigoroso. No IU tem a estatística que passa de hora 
em hora pra você saber quantos assinantes você atendeu. Na IF fiscalizam sem 
você saber, elas ficam no sigilo" (Entrev. 13). 
 A produção é marcada pela contradição 
quantidade/qualidade. Produzir muito e, ao mesmo tempo, produzir bem; tempo 
determinando o ritmo da produção, impondo a necessidade de controle; a 
comunicação humana transformada em comunicação instrumental obedecendo 
ritmo automático necessário à eficiência, eficácia e rapidez da produção. 
 Sendo assim, a telefonista comunica-se com o cliente utilizando uma 
linguagem padronizada, com códigos, expressões específicas pouco criativas e 
pessoais. Ouve, digita, informa ou ouve, digita, processa a chamada. Fala o 
mínimo necessário, apenas para se fazer compreendida pelo cliente e ganhar 
tempo. Neste aspecto, a telefonista seria uma de-codificadora e re-codificadora das 
mensagens emitidas pelo cliente e pelo computador, ou seja, uma mediadora entre 
um e outro. 
 A linguagem é expressão do agir humano e, dessa forma, é sempre 
portadora de significados e também de afetividade que pode se expressar em 
palavras, em gestos ou na própria entonação da voz. No trabalho da telefonista, a 
linguagem toma o caráter de instrumento de trabalho literalmente. A empresa 
preconiza a expressão da afetividade como tática de aproximar o cliente aos 
serviços prestados. O afeto é controlado e até moldado em acordo com 
181 
exigências de gentileza com o cliente sem entretanto encorajá-lo a permanecer na 
linha além do estritamente necessário. A função da linguagem nesse contexto é 
econômica, sendo também um dos mediadores da captação financeira. 
 A telefonista tenta dar sentido próprio a esse instrumento de trabalho, a 
linguagem, na medida em que busca algumas variações na forma de comunicar-
se com o cliente, adotando, quando pode, expressões próprias. Se no entanto não 
ocorrem variações significativas, há, ao menos, a possibilidade de entonação da 
voz, ora mais agressiva, ora mais amável, de acordo com o que estiver sentindo no 
momento, e de acordo com a atitude do cliente frente ao seu trabalho. 
 Em termos proporcionais, a quantidade de telefonistas na empresa parece 
ser pouco significativa se comparada ao total da força de trabalho. A jornada é de 
apenas 6 horas, no entando determina vinculação quase simbiótica entre trabalho 
e casa. É a organização do trabalho que define a que horas dorme, almoça, janta, 
se diverte, faz amigos e ama. 
 Diante do exposto é possivel afirmar que o trabalho exercido pelas 
telefonistas pode estruturar sua identidade? 
 Partimos do pressuposto de que a identidade se estruturaria, também, de 
acordo com o lugar que o indivíduo ocupa na produção, logo, de acordo com o 
trabalho que ele realiza. Se é assim, aspectos relacionados ao trabalho tais como o 
processo de trabalho em si, relação com a chefia e companheiros de trabalho, 
controle e jornada de trabalho, fariam com que a telefonista se comportasse e se 
identificasse como tal mesmo fora da organização. 
 Culturalmente a telefonista cristaliza determinados traços ou 
comportamentos consagrados pelo senso comum como tipicamente femininos. 
Muitos desses traços, como afetividade, submissão, delicadeza, compõem o 
conjunto de características exigido pela empresa para a função de telefonista (éfato que raramente existem homens telefonistas). Por outro lado, na relação com 
182 
os clientes, a telefonista deve racionalizar o tempo de atendimento adotando 
expressões calculadas e pouco afetivas. Ora, aqui se faz presente a contradição 
racionalidade-afetividade. A telefonista deve estruturar, ao menos no trabalho, 
identidade contraditória, ora trazendo o que aprendeu desde a infância, ora 
repondo o que aprendeu no trabalho. Sente-se satisfeita se o cliente se sentiu 
satisfeito com o trabalho que prestou. Atende com delicadeza o cliente que lhe 
cumprimentou com um sonoro "bom dia" ou "boa noite". Demonstra agressividade 
na voz se do outro lado da linha a voz é autoritária. Sente-se gratificada quando 
pode auxiliar um cliente que lhe relata um infortúnio antes de lhe pedir uma 
informação ou uma chamada a cobrar, porém não pode ser confidente porque não 
é essa a sua função e o tempo corre. Age como a empresa pede e a supervisora 
cobra. Trabalha no ritmo do equipamento e da demanda e, quando termina a 
jornada, continua agindo como se precisasse correr sob a urgência do tempo como 
demonstra um dos depoimentos: 
"É horrível, se eu vou na sala do meu chefe eu converso em dois segundos, tudo é 
rapidíssimo, urgente, correndo, voando. Aí é a paranóia que voce tem. Chega no 
final voce tá cansada, doida. Voce adquire isso no serviço 102 (IF). Esperar um 
ônibus? Esperar um ônibus você morre, você precisa ver. Eu acho que se gravar 
ou filmar o que passa na sua cabeça quando você está esperando qualquer coisa, 
você morre. Deve ser uma coisa horrível, você gravar aquilo que você faz. Você 
pega uma paranóia total, é tudo rápido, rápido, falo rápido, tem coisa que ninguém 
entende o que eu falo. Horrível...isso tudo depois do sistema (informatizado), eu 
não tenho nem dúvida. Tudo tem que ser voando, todo mundo que trabalha lá é 
assim. Quando você está num lugar que depende dos outros aí você se aborrece" 
(Entrev. 16). 
 Por último, estrutura sua vida fora do trabalho em função da organização do 
trabalho. Leva, depois da jornada, a expectativa da volta ao trabalho, não tanto 
183 
pelo significado realizador que ele possa ter, mas porque a escala de turnos a 
obriga a cronometrar e delimitar as atividades extra-empresa. 
 Le Guillant et alii (1984) e Dejours (1987) já apontaram que o trabalho de 
telefonista provoca verdadeira invasão na vida cotidiana. Ela atende ao telefone 
em casa e se identifica como se estivesse no trabalho; ao ruído da descarga do 
banheiro responde "fim da linha"; e assim por diante. Porém estes autores 
enfocaram a possibilidade de produção específica de uma patologia, levando ao 
plano do psíquico as questões levantadas pela Medicina do Trabalho em torno das 
doenças profissionais. 
 Ora, se o trabalho pode acumpliciar-se com a produção de doenças 
psíquicas é porque pode acumpliciar-se com a permanente produção da identidade. 
Daí deduzir-se que a categoria trabalho ocuparia um importante lugar na rede 
hierarquizada de determinações da identidade. 
 
Conclusão 
 
 O trabalho de uma telefonista, em toda a sua complexidade, parece 
determinar hábitos, gestos, expressões, enfim, modos de vida. A identidade 
estruturada na organização produtiva poderia extrapolá-la, isto é, a telefonista 
continua sendo telefonista em casa, no lazer, com o namorado, com os filhos, no 
consumo etc. Ser telefonista é se enquadrar às exigências da organização 
produtiva. A identidade de telefonista aparece como se fosse dada, exigida, e não 
construida pelo sujeito que se identifica como tal. Por fim, a telefonista vive o 
estar sendo o que faz durante quase vinte e quatro horas por dia. 
 Entretanto o processo de estruturação da identidade não é unilateral, resta à 
telefonista o espaço para trazer à organização produtiva o que ela é e está sendo 
184 
mesmo fora do trabalho. Isso pode ser notado quando dentro do próprio processo 
de trabalho busca formas alternativas de atendimento, mudança de turnos na escala 
ou mesmo arriscar a possibilidade de escamotear o controle das monitoras 
torcendo para que as mesmas não estejam na escuta do seu terminal. 
 Finalizando, temos consciência de que os estudos realizados sobre o 
trabalho humano, mesmo aqueles presos a uma abordagem que presta tributo ao 
marxismo em Psicologia, não têm conseguido abarcar com êxito a complexidade 
do objeto em questão. O estudo aqui realizado esbarrou nessa mesma 
complexidade. Acreditamos entretanto que o mesmo representa um avanço frente 
à Psicologia Organizacional clássica na qual o trabalho humano nunca é discutido 
de modo totalizador, como historicamente determinado, mas sim, de modo 
fragmentado e reducionista, em conceitos como carga mental, insatisfação e 
satisfação no trabalho, tarefas repetitivas etc. Não se trata aqui de rejeitar todo 
um arcabouço teórico da Psicologia Organizacional, mas transcendê-lo e explicitá-
lo como fruto do trabalho alienado, das necessidades criadas pelo trabalho 
taylorizado e do fordismo. 
 Se entendermos identidade também como praxis, só saberemos o que um 
indivíduo é no momento em que captarmos como e porque ele age. Dessa forma 
escaparemos do cárcere subjetivista e esquizofrênico que a Psicologia viu-se 
prisioneira até hoje. 
185 
Capítulo 10. 
RELAÇÕES CRECHE-FAMíLIA 
 WANDERLEY CODO 
 ANA MARIA A MELLO 
 
 As creches, como lugar pedagógico, não asilar, não paternalista; que se 
massificam, cobrindo cada vez mais as necessidades das famílias trabalhadoras; e 
se extendendo às classes médias e altas urbanas; é fenômeno social relativamente 
novo no Brasil. 
 Novos, portanto, são os problemas levantados pela instituição, neste 
contexto. Novos e complexos: implicam em questões nutricionais, pedagógicas, 
psicológicas, sociológicas, e por onde mais se arrastar os domínios das ciências 
humanas. A demanda técnica que circunda as creches tem, como sempre, vocação 
globalizante. Implicam, a um só tempo, em uma inserção na estrutura econômica e 
ideológica da sociedade e também na intervenção social. Aqui também a técnica 
não é ingênua e não pode se preservar virgem, parte e retorna para o universo 
social que a reclama e/ou possibilita. 
 Estas notas visam contribuir para a discussão do locus que a creche ocupa 
em nossa estrutura social, partindo de um pressuposto singelo: se quisermos 
compreender os problemas que se apresentam nas creches, devemos nos perguntar 
que demanda concreta atendem; que tensões são geradas na relação com a 
instituição família; qual a inserção social obtida. 
 Existem várias maneiras de realizar esta compreensão. Estudar a creche em 
sua dinâmica interna? Compará-la com instituições análogas? Verificar 
heterogeneidade ou homogeneidade da oferta de creches em acordo com 
186 
heterogeneidade ou homogeneidade das demandas? Nosso objeto é mais singelo. 
Trata-se de revelar uma questão anterior: que mudanças no conjunto da sociedade 
impuseram as creches ao tecido social urbano? 
 Há vinte ou trinta anos, no Brasil e no resto do mundo, vigia um modelo 
familiar bastante estruturado. O homem se encarregava do trabalho remunerado 
fora de casa, que deveria ser suficiente para o atendimento das necessidades de 
toda a família. A lei que regulamentou o salário mínimo fazia referência explícita 
ao suprimento da cesta básica, provisão suficiente para o sustento de uma família 
de quatro pessoas. Tácito, portanto, que a mulher não estaria incluída no mercado 
de trabalho formal. Para a mulher se destinava o papel de "rainha do lar", 
responsável pela reprodução da força de trabalho: o cuidado dos filhos, da casa, do 
marido; mãe, esposa, dona de casa.Criticável e criticado este modelo apresentava 
como resolvida a questão da reprodução da força de trabalho, particularmente a da 
criação dos filhos. Roupa suja e limpa se resolve em casa. Todo o carinho, 
educação, cuidados, alimentação, eram problemas domésticos, restritos às quatro 
paredes do lar. Até aqui, com todos os riscos e venturas, entregue a mulher. 
 A história da família é longa e complexa. Surge ao fim da organização 
clânica e já aparece no Velho Testamento com uma estrutura próxima à 
atualmente existente: Abraão x Sara x Isaac; José x Maria x Jesus; Raimundo x 
Severina x Francisquinho. Disso nos interessa destacar o peso de milhares de anos 
de formação social, econômica e ideológica sobre os ombros das mudanças atuais. 
 Tempo mais que suficiente para uma cristalização de papéis, sentimentos, 
consciência do homem e da mulher, marcando a família como instituição bastante 
solidificada, principalmente no que tange ao cuidado dos filhos. Estamos dizendo 
que o papel feminino de reprodutora das relações de produção, de mãe e esposa, 
teve o espaço histórico suficiente para se impor na rede social contemporânea. 
Portando toda aquela história da humanidade, a divisão sexual do trabalho 
inventou uma mulher com disposição para a renúncia de si mesma em prol de sua 
187 
prole, bastante susceptível aos julgamentos morais, arrimo afetivo da sociedade, 
afeita a tarefas repetitivas e privadas, sensível, recatada, enfim, culpável. Paralela 
e complementarmente foi se desenvolvendo o estereótipo masculino. Nada disto 
representa mera "ideologia" ou preconceito social sobre homem e mulher, mas, e 
principalmente, exigência da divisão de trabalho que a sociedade engendrou. 
Como um trabalhador da construção civil deve ter músculos fortes, ou não 
sobrevive, também a mulher deveria levar em conta primeiramente o afeto pelos 
filhos ou não sobreviveria. 
 Há mais ou menos três mil anos a divisão de trabalho entre os sexos foi 
esta. Mas, somente no capitalismo, esta divisão veio propiciar verdadeira batalha 
campal, autêntica guerra civil. Ao inaugurar o reinado masculino (o produtor de 
mercadorias); ao inventar o indivíduo livre; ao destacar a demanda feminina pela 
cidadania, como se vê no movimento sufragista dos Estados Unidos, no 
movimento feminista dos anos 60, empurrados e empurrando uma nova divisão de 
trabalho produzida pela entrada maciça da mulher no mercado de trabalho e 
produzindo a ideologia de igualdade entre os sexos. 
 Em apenas vinte ou trinta anos houve uma transformação radical do antigo 
modelo familiar. Do ponto de vista objetivo, o capitalismo entrou em um 
movimento recessivo, queda brutal da taxa de lucros que implicou em redução real 
de salários, obrigando a mulher a frequentar o mercado de trabalho, de início com 
salários menores e depois dividindo com o marido a receita doméstica. Nos EUA, 
por exemplo, o número de trabalhadoras multiplicou-se por 10, entre 1940 e 1980. 
De 1960 aos nossos dias um forte movimento de defesa da igualdade das mulheres 
perante os homens conseguiu impor mudanças drásticas na estrutura social e 
familiar: direito ao controle da concepção na França em 1967; aborto livre nos 
EUA em 1973; reconhecimento de filhos ilegítimos, divórcio e possibilidade de 
controle financeiro do casal, no Brasil, já na década de 80. 
188 
 A velha estrutura familiar entrou em um verdadeiro caleidoscópio onde é 
possível encontrar qualquer coisa, menos um modelo definido. Aumenta o número 
de separações, crescem as cohabitações, uniões sem casamento, ou famílias 
agregadas, pais separados que voltam a se reunirem. A virgindade deixa de ser um 
valor inquestionável. A sexualidade antes do casamento passa a ser prática 
aceitável. 
 A sociedade como um todo e a mulher em particular vive perante a seguinte 
contradição: toda uma educação, uma moral e uma definição de papéis que impõe 
a tarefa de reprodução dos filhos ao lar, e nele à mulher; que exige o carinho, o 
cuidado e a culpa como pré-requisito de formação da personalidade; e, por outro 
lado, a mulher participando concretamente, por imposição econômica e/ou 
ideológica, do mercado de trabalho, onde as exigências são rigorosamente outras. 
Aqui ao invés do carinho, a objetividade; ao invés do cuidado, a disputa; ao invés 
da culpa, a sedução. A produção impõe a objetificação, restringe o tempo dedicado 
à prole, torna orfão o afeto dentro da família, pois a mulher,que historicamente foi 
seu portador, hoje tem diante de si o universo da mercadoria, o mensurável 
critério do dinheiro.Do ponto de vista das relações interpessoais instala-se um 
autêntico caos que tem como epicentro a família e como desdobramento o 
respeitável número de descasamentos registrados atualmente. 
 Qual é o desaguadouro institucional da crise entre a produção e a 
reprodução da força de trabalho? 
 Para tornar mais claro o conceito de "desaguadouro institucional da crise" 
vale a pena usar uma metáfora: Quando um casal inicia um processo de desquite, o 
conjunto de suas vidas sofre uma redefinição, todos os afetos revividos, 
redirecionados, todo o cotidiano em ebulição, e só uma pontinha desta revolução 
pode ser dita, explicitada. Com isto a definição da pensão alimentícia, que do 
ponto de vista técnico-jurídico demanda uma rápida reunião e uma assinatura, se 
transforma amiúde em uma ciranda dolorosa e interminável, onde o advogado 
189 
intermedeia autêntico tiroteio afetivo. Do ponto de vista psicológico, a 
escrivaninha do advogado cumpre o papel de permitir que se exponha o até agora 
implícito, a luta pelo que até hoje só se sofreu. 
 Pois bem, pela primeira vez na história da humanidade, a produção da 
existência entrou em conflito frontal com a reprodução da existência. Grave 
confronto dos homens consigo mesmos, outra vez não dito, outra vez doloroso, 
revisitador de nossos afetos e fantasias, medos e limites. 
 A creche é o desaguadouro institucional deste conflito entre a produção de 
mercadorias, o trabalho remunerado e alienado, e a criação de nossos filhos, locus 
inconteste dos nossos afetos e culpas, como pretendemos demonstrar. 
 Declinemos com mais vagar esta questão. Existem duas famílias em luta de 
vida e morte convivendo hoje dentro de cada família. 
 A primeira, nossa já conhecida, dispõe de uma mulher cuja principal 
característica é a dedicação a prole; a identidade se apresenta como de mãe, 
fundamentalmente; o carinho e o cuidado como modo de reconhecimento de si 
mesma, representação perante o mundo, sustentáculo quase único da existência 
dos filhos. Torna-se impossível a esta mulher separar amor e culpa, portadora 
quase exclusiva do afeto nas relações familiares, esta mulher faz do afeto o seu 
modo de expressão. Obrigatoriamente o quadro se complementa com o de um 
homem que está obrigado a desenvolver características quase sempre opostas. 
 A outra família que se desenvolve por dentro e em luta com a primeira, se 
espanta com a mulher inserida no mercado de trabalho, responsável por um setor 
da produção, cohabitando com suas frustações e seu fascínio, dona dos projetos de 
auto-desenvolvimento, obrigada a submeter-se à objetividade da mercadoria, 
abandonando os ditames do coração em troca da quantificação medida pelo salário 
mensal. Paradoxalmente forçada a redistribuir seu afeto pelo mundo, horizontes 
ampliados para o exercício da sua identidade, disputando espaço com os homens, 
190 
aliando-se com eles enquanto trabalhadores iguais nas tarefas e na posição de 
oprimidos. 
 Se o nosso objeto de estudo não fosse a família e sim cada mulher concreta, 
veríamos os dois ideais de mulher em conflito dentro de sua subjetividade, guerra 
civil interiorizada.Culpa nascendo da luta contra a culpa. Corpo e atenção na 
fábrica, mas o coração na creche. Aliviada pelo que a creche representa de 
possibilidades para o novo papel e morrendo de medo de perder o afeto para a 
instituição creche, experenciada de modo paranóide, como mãe sem rosto, 
madrasta dos velhos contos de terror. 
 Não há o que lastimar nesta situação. Todos nós a reinvidicamos. Todos 
nós reprovamos um modelo familiar que transforma homens e mulheres em 
estranhos, obrigados à prisão perpétua de uma convivência até que a morte os 
possa separar. Um modelo que, sem queixumes politicamente expressos, fazia da 
opressão feminina e da reificação masculina, o sustentáculo das relações 
interpessoais. 
 Os parceiros no leito foram parceiros na enxada, hoje parceiros na fábrica. 
E da fábrica o afeto foi exilado, energia coagulada na família, dentro dela na 
mulher, de dentro dela sempre ameaçado de novos exílios. A entrada da mulher no 
mercado de trabalho torna orfão o afeto, ameaça a reprodução material e espiritual 
das novas gerações. 
 O modo de resolver este antagonismo entre a vida e a continuidade da vida, 
a produção e a reprodução, foi a intervenção do estado, a reprodução pública da 
força de trabalho: a creche. 
 O que fazer com o carinho e o cuidado, a atenção e a culpa, depositados na 
família por estes dois últimos dois mil anos? Onipresente e sem vias de expressão, 
resta deslocá-los para onde os nossos filhos estejam: objetos, talvez vítimas de 
toda esta herança. 
191 
 Agora é o momento de perguntar: Com quais problemas a creche convive? 
Que relações eles estabelecem com o quadro esboçado acima? 
 Considerando os péssimos equipamentos e a péssima assistência que as 
creches públicas oferecem aos trabalhadores brasileiros, não há qualquer análise 
possível das queixas e reclamações. São evidentes, óbvias, e justas. Mas supondo 
estes problemas superados, instalar-se-ia o paraíso? Reclamações desapareceriam? 
Vemos que não. E aqui há o que questionar. 
 A Nutrição conta hoje com um acúmulo de conhecimentos que lhe permite 
saber qual a dosagem de cada um dos componentes para uma alimentação infantil 
balanceada e apetitosa. Mas atuando numa creche, o nutricionista se descobre 
pasmo no centro de uma guerra campal entre o danonimho de cenoura e a cenoura 
sem markenting ou corantes. A técnica da qual o nutricionista é portador sabe das 
vantagens da cenoura in vivo. Mas o departamento de markenting da indústria de 
alimentos sabe da culpa que as mães carregam. Sabe também que a relação 
nutridor-nutrido é excelente sustentáculo para inúmeras formas de reparação. 
Entre culpa e reparação, quanta ansiedade, quanta dramatização de cuidado por 
parte do nutridor, quantas demandas numa só demanda por parte do nutrido. 
 No ato de alimentar, outra eclosão da mesma guerra entre novos e velhos 
papéis da mulher. Por isto, o que em princípio seria uma decisão técnica banal - 
suco natural de cenoura x markenting da cenoura em potinho - se transforma em 
guerra aberta entre mães e creche, na qual entre mortos e feridos sucumbem todos: 
os técnicos da creche deslocando o tempo reservado às crianças para uma paciente 
explicação às mães do caráter nutricional da dieta; as mães perdendo sono e 
simpatia pela creche, que insiste em proibí-la de depositar suas culpas na sacola. A 
questão fica pendente, pois não é de nutrição que os dois lados da contenda estão 
falando, embora apenas nutrição apareça no discurso. 
 A Psicopedagogia já sabe que não se pode tratar criança como parafuso em 
linha de montagem: alguém perfilando fraldas, alguém perfilando crianças sobre 
192 
as fraldas, alguém cravando fita crepe nas fraldas, um último alguém inserindo 
mamadeiras na boca de uma estridente e voraz esteira de carnes rosadas e 
lágrimas. 
 Mas fujamos da caricatura. Nada sequer semelhante é possível aceitar. E 
esta é uma recusa consensual, questão sobre a qual não paira polêmica. Na relação 
com a criança é necessário atenção individualizada, muito carinho, tempo de 
contato, olho no olho. No entanto, na hora do fim do expediente, mães ávidas 
querem resgatar rapidinho suas crias, recuperá-las e fazer de conta que o tempo da 
creche não existiu para os filhos. Rápido, rápido, o tempo urge. Aí se impõe a 
linha de montagem. 
 Um psicopedagogo na creche está posto diante de um problema 
aparentemente insolúvel: ao treinar os funcionários para que estabeleçam relações 
afetivas com as crianças recupera neles a figura de mãe da nossa história, 
estabelece não raro uma disputa afetiva entre mãe e pajem. A primeira com o seu 
posto balizado pela história; a segunda, pela vida. Aqui, se houver carinho e 
cuidado adequados pelo funcionário, este aparece ante a família como um 
usurpador do seu afeto maior. No geral a mãe começa a implicar com detalhes do 
tipo - a criança não deveria dormir das 13 às 14 horas, mas sim das 13:10 às 14:10. 
Se não houver carinho, real ou suspeitado, os funcionários se transformam perante 
os pais em autênticos lobos-maus, permanentemente à espreita para devorar 
criança indefesa. 
 Simultâneo com a desconfiança, há também um profundo sentimento de 
gratidão da parte de quem sabe que sem estes cuidados ao filho, a vida dos pais 
seria impossível. Para a mulher operária há o alimento que seu salário não 
permitiria. Para a mulher de classe média, há a liberdade e a autonomia que ela 
aprendeu a amar tanto quanto aos filhos. 
 Tomemos um exemplo cotidiano em creche: Determinada mãe vivia 
reclamando da funcionária responsável pelos cuidados de seu filho, e a recíproca 
193 
era tão ou mais insistente. Após as férias, mãe e funcionária retornam cada uma 
delas com uma lembracinha para a outra, devidamente acompanhada de troca de 
elogios. Passadas três semanas, retorna o mesmo quadro, reclamações mútuas,cada 
vez mais irritadas. 
 Como decifrar esta descontínua querela? Mãe apaziguada pelas férias, 
quando viveu integralmente o dia-a-dia do filho? Mas estaríamos polarizando a 
questão, depositando a gestação do conflito somente a partir da mãe. As coisas 
ficam mais concretas e complexas, simultaneamente mais claras, quando 
descobrimos que a funcionária era também mãe e que deixava dois filhos em 
creche pública de periferia para ganhar dinheiro cuidando, em outra creche, dos 
filhos de outras mães. 
 A creche se apresenta como o locus de toda uma série de confrontos: 
sociais, políticos, morais. A velha repressão sexual, a idéia da sexualidade, 
principalmente da sexualidade infantil, como um demônio a ser estirpado da 
consciência dos homens, os prazeres do corpo como portadores da desgraça; 
versus uma nova cultura, amante do corpo, reinvidicadora do prazer, agora 
entendido como um direito e/ou uma necessidade, portadora de uma concepção 
que não esquizofreniza o corpo, que sabe que a criança deve explorar a si com a 
mesma curiosidade benvinda am quem tem o mundo por conhecer. E eis de novo a 
creche pasma, ao se encontrar no papel de juiz e réu de toda a nossa história. O 
corpo é visto através dos medos do adulto que reprimiu sua sexualidade e não a 
tolera explícita, naturalizada, no filho entregue à creche. A creche não pode ser um 
outro que se distinga e critique os pais. A creche precisaria ser um eu-mesmo, 
portadora integral da família na ausência da família. E quantas ambiguidades 
surgem da expressão deste novo e radical confronto. 
 A creche aparece hoje, e não poderia ser de outra forma,como uma síntese 
mágica entre o amor e o ódio. O depositário dos conflitos não ditos, que sempre 
povoou o universo familiar. O palco privilegiado do combate moral com o qual 
194 
convivemos desde a proibição do incesto.Se ela é a herdeira da nova família, a 
viabilizadora da nova mulher, a possibilidade de garantia da sobrevivência, da 
reprodução material e espiritual, fatalmente se transformará no desaguadouro 
institucional de todos os conflitos que sublinhavam até ontem a estrutura familiar. 
 Aquela família, onde o pai era a força e a mãe o afeto, onde o pai era a 
brutalidade da vida e a mãe a doce fantasia, onde o pai era a autoridade da 
produção e a mãe o encanto da ternura, aquela família desapareceu. 
 A família de hoje, orfã da ternura, busca reinventá-la e luta unânime contra 
a força de produção.Ama e odeia a instituição portadora dos novos conflitos entre 
a objetividade e a subjetividade. 
 A creche é herdeira dos nossos velhos/novos conflitos, realizando as 
ambiguidades dos pais em relação aos filhos. Se antes os filhos representavam as 
ambiguidades da família, eleitos pela culpa para encarnar o conflito familiar, agora 
são os pais que o encarnam, e há que procurar modo de expressão. 
 Impossível resolver os problemas da creche com estas reflexões? Sem 
dúvida, mas, será possível resolvê-los sem elas? 
 
195 
Capítulo 11. 
HISTERIA EM CRECHES 
 WANDERLEY CODO 
 
 Este estudo foi realizado a pedido dos funcionários e com a cooperação do 
corpo diretor de uma creche pública localizada dentro de uma universidade 
paulista, como parte de suas atividades de treinamento, além da coleta de dados, 
foi realizada uma palestra e algumas reuniões com a psicóloga da creche visando a 
elaboração de estratégias de treinamento futuro que pudessem levar em conta as 
relações subjetivas do trabalhador com o seu trabalho. 
 Apesar do seu cárater preliminar, decidimos publicá-lo por duas razões 
distintas; primeiramente porque os dados se mostram bastante coerentes, dando às 
hipóteses levantadas um poder heurístico digno de ser levado em conta. 
Teóricamente este é um caso interessante na medida em que os problemas 
encontrados não decorrem da tarefa propriamente dita, ou das relações de trabalho 
estrito senso, mas do confronto entre o papel social que a instituição ocupa e o 
modo como está organizada a sociedade em questão, o que leva os pesquisadores a 
prestar atenção, além das variáveis clássicas que tem mostrado comprometer a 
saúde mental do trabalhador, a investigar a inserção histórica da empresa, o modo 
como a empresa se insere nas relações sociais. 
 42 Sujeitos divididos em 2 grupos, o primeiro chamado de TC 
(trabalhadores em creche), composto por 19 trabalhadoras de uma creche pública 
universitária, em contato direto com as crianças( recreacionitas), com idade 
variando de 23 a 44 anos (média = 29.4 ), o segundo (utilizado como comparação), 
composto de 23 trabalhadoras administrativas da mesma instituição 
(universidade), submetido portanto às mesmas variáveis institucionais, chamado 
196 
de TNC (trabalhadoras "não creche"), com idade variando de 22 a 43 anos (média 
= 30.3) tendo as mesmas garantias institucionais e salários similares àqueles do 
grupo TC. 
 1. Variáveis Demográficas: idade, sexo tempo de trabalho e função foram 
coletados por um questionário aplicado em todos os sujeitos da creche (TC) e em 
uma amostra de trabalhadoras administrativas de uma Universidade pública 
 2- As condições de trabalho foram investigadas pela observação direta do 
processo de trabalho e uma entrevista aberta com as trabalhadoras, onde 
descreviam seu trabalho e aspectos subjetivos relacionados a ele. 
 3. Os dados epidemiológicos foram coletados pela aplicação do MMPI 
(Inventário Multifásico Minestota de Personalidade), validado no Brasil. Os perfis 
psicológicos obtidos foram classificados pelos seguintes critérios: Perfil 
NORMAL (com T score menor que 60 para todas as escalas clínicas ou apenas 
uma escala com T score entre 60 e 69), Perfil de RISCO (perfil que apresenta 2 ou 
mais escalas no intervalo de 60 a 69) e Perfil PROBLEMATICO (com uma ou 
mais escalas com T score maior ou igual a 70). Optou-se por esta classificação por 
que o critério canônico, usado em outros estudos, facilita uma virtual rotulação, já 
que apresenta critérios de classificação em intervalos de T score menores além de 
nomear estes mesmos intervalos como "borderline" e" patológico". Além disso, 
anamneses pilotos realizadas revelaram uma tendência do inventário em 
apresentar falsos positivos em algumas escalas. 
As recreacionistas 
1. Condições Sócio ecônomicas 
 Em ambos os grupos nós não encontramos problemas sócio-econômicos 
classicamente ligados a problemas de saúde Mental no trabalho: Os salários estão 
acima da média dos trabalhadores brasileiros na mesma função, todos gozam de 
197 
estabilidade no emprêgo, o que é incomum no Brasil. Em certo sentido tratam-se 
de trabalhadores privilegiados, levando-se em conta a realidade brasileira. 
2. Local e Condições de trabalho. 
 Nenhum problema em relação a ruídos, rotina, rítmo, relacionamento com 
chefia, segurança no trabalho, turnos ou outros que possam estar vinculados aos 
problemas já estudados em Saúde Mental e Trabalho. 
 As recreacionistas (TC) se dividem em três grupos conforme a idade das 
crianças que atendem: o primeiro de 0 a 1 ano de idade, o segundo de 1 a 3 anos e 
o terceiro de 3 a 7 anos de idade. Para efeitos deste artigo os dados foram 
reunidos. 
3. Função 
 A função das recreacionistas, em síntese, é a de fazer ou ajudar a fazer tudo 
o que a criança necessitar em uma creche, de maneira que sua estadia seja 
confortável e de acordo com o projeto educacional da organização: Receber mães 
e crianças. organizar suas roupas, ajuda-la a vestir-se, organizar jogos e 
brinquedos, colocar as crianças para dormir, banha-la e alimenta-la. Mais ou 
menos como uma clássica dona de casa, sem as tarefas de cozinha e com a 
inclusão do programa educacional da creche, que, no geral consiste na orientação 
das atividades de jogo e as relações criança/criança e criança recreacionista, em 
termos de aprendizagem, cooperação e etc. 
 As orientações em geral incluem treinamentos frequentes com o objetivo de 
"nunca perder a paciência", "nunca institucionalizar as crianças" "nunca dizer:- É 
assim!, é fundamental persuadir a criança" "dar atenção particular, individual, cada 
criança é uma criança". 
 As recreacionistas se queixam muito das mães, parecem competir com o 
cuidado que as mesmas dispensam aos filhos, ao mesmo tempo se queixam que as 
198 
mães deveriam fazer alguns dos cuidados que elas realizam (sobre esta 
ambiguidade, vide artigo anterior) 
 Os sujeitos de TNC estão expostos a condições extremanente similares de 
trabalho, no geral suas funções podem ser classificadas como administrativas e 
burocráticas. 
 A tabela 1 mostra porcentagens obtidas em função da classificação dos 
perfis psicológicos construidods a partir do MMPI nos critérios NORMAL, 
RISCO e PROBLEMATICO nos dois grupos. Nota-se que o perfil problemático 
foi encontrado para 15.8% dos sujeitos em TC e 21.8% para TNC. Comparações 
realizadas pelo X2 não revelaram diferenças significativas nos critérios; Normal 
Risco e Problemático ; entre os grupos. Há poucos dados sobre a prevalência de 
doenças mentais no Brasil. As poucas pesquisas disponíveis relatam dados que 
variam de 15 a 20 % (AQUI CITAR ESSAS PESQUISAS). Assim pode-se 
concluir que a possibilidade dos dois grupos estudados apresentarem riscos de 
psicopatologia é pouco evidente, mais notadamente em TC.** 
 
 TABELA 1- Classificação dos perfis psicológicos obtidos, a partir do 
MMPI nos critérios NORMAL, RISCO e PROBLEMÁTICO para os 
grupos TC e TNC. 
 
 NORMAL RISCO PROBLEMATICO
TC 63.1% 21.0% 15.8% 
TNC 65.2% 13.0% 21.7%A ausência de patologia a níveis expressivos e a necessidade de analisar os 
resultados do MMPI em termos de tendência bem como os resultados expressos 
199 
pelas escalas clínicas, nos levaram a apresentar os percentuais de sujeitos que 
mostraram T score maior ou igual a 60 em cada escala clínica (vide tabela 2). 
Assim Chama a atenção a alta prevalência de Histeria no grupo TC quando 
confrontado com TNC (31.7% para TC e 8.7% para TNC), outro dado que chama 
a tenção é o percentual obtido para HS em TC (21.0%) quando comparado a TNC 
(8.7%). As maiores porcentagens obtidas para NTC encontram-se em torno de 
21.0% (Escalas "MF" e "MA"). Comparações pelo X2 revelaram diferença 
significativa apenas para a escala "HY" em TC ( p=0.05). 
TABELA 2- Prevalência das escalas clínicas no MMPI (T score maior ou 
igual a 60) nos dois grupos de trabalhadores. 
PREVALÊNCIA (%) 
 
TNC TC 
HS 8.7 21.0 
D 4.3 5.3 
HY 8.7 31.6 
PD 8.7 10.5 
MF 21.7 10.5 
PA 17.4 5.3 
PT 4.3 0 
SC 8.71 5.8 
MA 21.7 5.3 
SI 13.0 10.5 
 
 Devido ao fato de trabalharmos com grupos pequenos e, mesmo assim, os 
resultados a nível da Escala HY (Histeria) serem significativos, é possível 
considerar o grupo TC como sendo o de um perfil histérico a nível border line. As 
200 
diferenças em HS (Hipocondria), poderiam ser atribuídas à contaminação já 
detectada entre as escalas HS e HY (Graham, J.R. 1987). 
 A histeria é considerada de prevalência maior entre as mulheres, no entanto 
as trabalhadoras do grupo NTC, da mesma instituição, aproximadamente com a 
mesma faixa etária não mostram o mesmo quadro, o que fortalece a hipótese de 
que são as condições de trabalho que se tornam responsáveis pelas diferenças 
encontradas nesta escala. 
 
TRABALHO E SAÙDE MENTAL NAS 
RECREACIONISTAS 
 
 A histeria, ou melhor a conversão histérica é um sintoma ligado ao afeto: se 
alguém investe sua energia afetiva em um objeto impossível, a tendência 
predominante será redirecionar esta "catexia" para sí mesmo. Historicamente, as 
mulheres se formaram para investir seu afeto no cuidado dos filhos. 
 Freud relata um caso de cura de histeria utilizando o método hipnótico, 
tratava-se de uma "primípara...que alimentava a ilusão de ser boa nutriz, que não 
consegue amamentar seu filho" Passou a desenvolver a sintomatologia histérica. 
Freud intervem, e em "sugestão hipnótica lhe afirma "não tenha medo você será 
uma excelente nutriz e a criança se criará divinamente...". 
 É possível dizer que o objeto afetivo desta mãe era portador de uma 
contradição: amava muito seu filho, seu filho precisava dela para alimentar-se, no 
entanto não podia alimentar seu filho. 
 Kolb aponta o cárater utilitário da conversão "A reação histérica de 
conversão permite ao paciente com uma defesa contra a ansiedade, ser capaz de 
manter o seu auto-respeito e, ao mesmo tempo, cumpre algum propósito, cuja 
201 
aquisição seria, de outro modo, proibida. Ela pode tornar possível um 'escape' de 
uma situação intolerável; pode fornecer os recursos para uma exoneração de si 
mesma, uma desculpa para as próprias fraquezas, serve como expediente para 
obter a atenção ou possibilita à pessoa fugir de algum dever, evitar uma 
responsabilidade, expressar algum despeito ou rancor ou realizar algum propósito 
que não seria suportado num exame de consciência." (p. 396) 
 Para Ey (...), na Histeria "O indivíduo luta consigo mesmo em uma 
situação contínua de conflito interior. Ele não consegue assumir o papel de seu 
personagem, identificar-se com ele e dar autenticidade a sua pessoa; e é nessa 
espécie de jogo artificial, com um aspecto de falsidade, que o neurótico vive sua 
angústia. Esta é, apesar de certas aparências, uma angústia que não depende das 
situações, mas cujo ponto de partida é interno e inconsciente...a angústia se 
transfere para o plano somático (conversão psicossomática, distúrbios funcionais 
diversos), e o indivíduo, incapaz de assumir a verdade de seu personagem, utiliza 
todos os meios de expressão somática para representar para si e para os outros a 
comédia de uma formação artificial de sintomas, constituindo a histeria." (p. 126) 
 O estudo de caso com as recreacionistas demonstra que estas trabalhadoras 
estão inseridas neste tipo de conflito que a psicopatologia clássica encontra na 
etiologia da histeria. 
 Enquanto profissionais, as mulheres que se dedicam cotidianamente ao 
cuidado de crianças, necessitam comportar-se formalmente como mães: 
propiciando carinho, atenção e cuidados, particularizando a atenção à cada 
criança. Ao mesmo tempo não podem ser uma mãe, devem entregar os filhos para 
suas mães no final do expediente. Devem se envolver afetivamente e não podem 
fazê-lo no mesmo espaço de trabalho e com as mesmas pessoas. 
 Metaforicamente, quando as crianças chamam as recreacionistas de "tias", 
traduzem esta ambiguidade com uma espécie de consciência ingênua. A "tia" é um 
parente como a mãe e mais distante do que aquela. 
202 
 As recreacionistas precisam parecer com as mães e não podem. Precisam 
também e em igual proporção, ter uma relação "fria", profissional e também não 
podem. Sem outras formas de expressão deste conflito, sua única alternativa é a de 
desenvolver uma "quase-histeria", lido pelo MMPI como uma manifestação 
"borderline" ou uma "tendência histérica". 
 Se outra forma de expressão estivesse disponível, o sintoma não ocorreria. 
Mas as recreacionistas não podem expor este conflito para as crianças, tampouco 
para as mães, ou ainda para as condições de trabalho na instituição, pelo menos na 
creche que estudamos. Esta é a razão para o desenvolvimento da "histeria" a níveis 
"borderline". 
 Dados secundários corroboram as observações acima. Na palestra onde 
devolvemos os resultados, depois de tranquilizar as trabalhadoras, mostrando que 
aquele trabalho não era uma função de risco em termos de saúde mental, estando 
inclusive abaixo do que se poderia esperar em termos de patologia, e mostrando a 
tendência border line em Histeria, foi geral a concordância de que a ambiguidade 
afetiva em relação às crianças e mães era o ponto mais sensível da jornada de 
trabalho, inclusive para o único homem (retirado desta análise), o qual também 
apresentava os mesmos sintomas. 
 A psicóloga da creche me procurou pós apresentação para discutir melhor 
os resultados e solicitando assessoria; Haveria alguma forma de tornar o trabalho 
mais agradável e reduzir aqueles sintomas? 
 Sugeri que se promovessem o que chamamos de 'reunião sem pauta', onde 
as pessoas pudessem falar o que lhes viesse à cabeça, inclusive reclamar dos pais, 
das crianças, dos outros colegas, em clima o mais aberto possível e sem nenhuma 
interferência da psicóloga, exceto como facilitadora da expressão afetiva. Tinha 
em mente encontrar uma forma de expressão afetiva interna ao próprio grupo que 
pudesse operar como uma via afetiva substituta , para a qual se operasse o 
203 
deslocamento das frustações afetivas que tinham lugar a cada vez que as mães 
viessem retirar as crianças no final do dia. 
 Uma semana depois a psicóloga solicitou uma outra entrevista, me dizendo 
que uma observação mais acurada revelara um detalhe até então desapercebido, o 
grupo da manhã era obrigado a esperar o ônibus por mais ou menos uma hora 
depois do fim do expediente, ficaram pois reunidos sem ter o que fazer, em 
condições, portanto, muito parecidas a que eu tinha proposto a psicóloga observou 
aquelas reuniões informais e notou o que qualificou de "clima histérico" das 
mesmas, -"As pessoas ficam falando besteiras, o assunto várias vezes é a 
sexualidade...". 
 Naquele caso, devido ao reduzido númerode trabalhadores, e também por 
não haver alternações ou turno noturno, os dois casos apontados na literatura como 
responsáveis por stress no trabalho, decidimos não levar em conta o turno de 
trabalho embora contássemos com os dados em nossos computadores. Retornando 
aos dados, o resultado foi significativo: Nenhuma das pessoas daquele turno 
apresentavam sintomas histéricos. 
 Classicamente, estes resultados demandam uma ampliação da amostra. 
Infelizmente esta estratégia é impossível. Hoje sabemos que váriaveis como: 
salário, cultura organizacional, rotina, processo de trabalho, relacionamento com 
as chefias e etc. impactam significamente os dados sobre Saúde Mental e 
Trabalho. A tentativa de ampliar o número de sujeitos buscando uma 
"generalização" dos dados teria como resultado o seu oposto, tão diferentes seriam 
as condições de trabalho que já não poderíamos afirmar mais nada sobre os 
resultados, qualquer que fossem eles. Em outras palavras, é preciso ceder à 
tentação de iludir as diferenças concretas do trabalho através do apagamento 
artificial das mesmas, por exemplo através do sofisticado tratamento quantitativo 
que corra o risco de eliminar, ao invés de compreender as diferenças qualitativas. 
204 
 Isto não significa que devamos abrir mão da necessidade de generalização, 
apenas buscar outras maneiras de atingi-la, neste caso comparando este estudo de 
caso com todas as suas particularidades com outros desenvolvidos alhures. Até o 
momento não os encontramos, resta esperar que este estudo permita que outros 
semelhantes, em outros países e instituições possam ocorrer. 
 Nas últimas décadas pudemos observar uma mudança radical no papel da 
mulher: Antes exclusivamente esposa, como uma "especialista" na reprodução da 
vida. Psicologicamente falando, pode-se dizer que esta divisão de trabalho 
transformava a mulher em senhora das relações afetivas. Nos últimos anos esta 
situação mudou radicalmente com a entrada das mulheres no mercado formal de 
trabalho, uma área onde não há espaço para a subjetividade, o território do 
dinheiro é o território da objetividade. 
 Nenhuma mudança social pode se realizar sem custos: neste caso, 
entregando a outras mulheres a função de substituir a mãe. 
 Na época de Freud as donas de casa comumente se tornavam histéricas, 
agora este parece ser o legado das recreacionistas: Novos tempos, novas 
manifestações de doença mental. 
205 
PARTE III 
 
O sofrimento psíquico nas organizações 
206 
 Esta terceira e última parte do livro reune pesquisas sobre Saúde Mental & 
Trabalho, realizadas pelo projeto SM&T, direta ou indiretamente sobre minha 
coordenação, evidentemente cada um dos estudos e/ou categorias profissionais 
abordadas tem razão por si só de comparecem neste trabalho. No entanto há 
também outras razões que talvez valesse a pena apontar: 
 O estudo assinado por Jackson e Lucia aparecem como o primeiro capítulo 
desta parte, por que foi exposto de maneira a destacar todas as fases de 
investigação que consideramos importantes para o estudo de Saúde Mental e 
Trabalho, é quase que uma aplicação estrito-senso do modelo apresentado no 
capítulo 5, parte I . Também assinado por Jackson, agora em conjunto com Cleide, 
o estudo sobre o trabalho textil, é uma das poucas aplicações dos conhecimentos 
advindos de saúde mental e trabalho na clínica psicológica/psiquiátrica, vale a 
pena observar que as teses de que o trabalho conforma a identidade, portanto tem 
o seu papel na composição da doença mental, não só podem ser aplicados na 
clínica ortodoxa, par e passo com outras descobertas, como ainda é capaz de 
revelar ao clínico, olhares que d'outra forma seriam incessíveis, ou quiçá 
demorariam muito tempo para serem revelados. 
 Luis e Leila trazem uma discussão, basada em fortes evidências empíricas, 
do uso das novas tecnologias e suas consequências para a saúde mental no 
trabalho, mas talvez o mais importtante do seu trabalho seja exatamente o alerta 
que se faz para os segmentos sociais que se propõe a defender os trabalhadores, 
particularmente os sindicatos, sobre a necessidade de ficar atentos e sem 
preconceitos às novas tecnologias (just in time, por exemplo). 
 Estive prestando uma assessoria ao trabalho da dupla, quando trabalhavam 
em um sindicato de Rio Grande do Sul, pude testemunhar o espanto de alguns 
dirigentes sindicais, ao serem chamados por uma das empresas da região para 
contribuir com as reformulações de trabalho que a gerência de recursos humanos, 
na prática, o sindicato não soube como encaminhar a discussão. É claro que haverá 
207 
quem já tenha estudado o assunto no meio sindical, mas não faltam dirigentes dos 
trabalhadores que ainda se baseiam na velha equação salário/risco de acidentes no 
trabalho, e que naturalmente se encontram desarmados exatamente quando as 
condições de trabalho melhoram um pouco. 
 Ainda sobre a nova organização do trabalho que versam os artigos sobre 
Paranoia em digitadores e a "síndrome do trabalho vazio, em bancários". O 
primeiro estudo se constitue em um alerta para as novas formas de côntrole 
automatizadas (informatizadas), fornecendo ao trabalhador o que pode parecer 
como uma maior autonomia, e na verdade transformando-o em um vigilante de sí 
mesmo. Se uma definição aceitável da paranóia é a de quando a vigilância é 
introjetada, ou seja, o indivíduo se torna inimigo de sí mesmo, o tipo de côntrole 
do trabalho pelo computador precisa ser repensado em termos de saúde mental. 
 Uma última palavra sobre a "síndrome do trabalho vazio", dos trabalhos 
deste livro foi o que mais sofreu divulgação anterior., vale a pena registrar a 
dúvida que alguns colegas e o nosso próprio grupo de pesquisa (onde me incluo) 
tivemos sobre estes resultados. No entanto, nenhum sde nós tem dúvida de que o 
trabalho joga um papel importante na conformação da udentidade, e no trabalho, 
evidentemente, a relação com o produto. 
 A "síndrome" é claro, merece e merecerá sempre melhores estudos, mas me 
parece um bom fechamento do livro, a constatação, que deveria ser óbvia, de que 
o relacionamento do trabalhador com o produto do seu trabalho não pode ser 
esquecido por quem queira entender melhor o universo do trabalho, em particular 
suas relações com a saúde/doença mental. 
 Ainda há outra razão para que estes estudos venham a compor um livro, e 
redigidos desta forma, com um rigor que por vezes parecerá cansativo ao leitor: É 
que de médico, louco e analista de saúde mental no trabalho cada um tem um 
pouco. 
208 
 Nestes vários anos em que me didico ao tema, sempre que vou ministrar 
uma aula, conferência ou asssemelhados, cada debate que se trava, nos congressos 
ou nas esquinas, sempre alguém tem hipóteses, quiçá convicções de porque este ou 
quele trabalho ocasiona sofrimento. No entanto, quão diferente é o quadro, quando 
alguém tenta estudar o assunto com o rigor que ele merece. 
 Durante os anos em que coordeno o projeto Saúde mental & Trabalho, 
investigamos quase tres mil sujeitos, uma abordagem socio-economica, 
organizacional e epidemiológico-psiquiatrica cruzadas. Algumas descobertas, 
como a paranóia em digitadores e o mal-estar do trabalho vazio em bancários 
estão sendo publicadas a seguir 
 Por ora. o que quero destacar neste esforço, na minha opinião bem 
sucedido, é que as relações entre SM&T são muito mais difíceis de detectar do 
que se poderia imaginar. Não podemos ainda ter certeza de que nossos resultados 
se relacionam, e como se relacionam com o trabalho propriamente dito. 
 Não poderia ser diferente, o trabalho é o modo de ser do Homem, como tal 
invade e se permeia com todos os níveis de sua atividade, seus afetos, suaconsciência, torna o problema díficil de pesquisar, porque permite que os sintomas 
se escondam por todos os lugares: Quem garante que os desafetos familiares, o 
chute no cachorro ao retornar à casa, não se deve a razões de ordem profissional? 
Por ser onipresente, o trabalho e seus efeitos são díficeis de detectar. 
 Por outro lado, o modo como o trabalho se organiza em nossa sociedade, 
por definição esconde suas determinações fundamentais, muitas vezes o patrão 
não paga pelo que está comprando e o trabalhador não vende o que parece estar 
vendendo: Quantos (as) recepcionistas sabem ou confessam que estão vendendo 
sedução? 
 Em terceiro lugar, as relações entre SM&T se manifestam em um plano 
individual estrito senso, embora determinadas pela estrutura social, em seu sentido 
209 
mais abrangente; é muito difícil reconstruir os nexos indivíduo- sociedade, 
particularmente quando falamos de sofrimento psíquico, que por definição se 
esconde, do portador e do outro. 
 A complexidade desanimadora que emerge a quem resolve estudar a sério o 
trabalho humano, contrasta com a ingenuidade pueril com que alguns "estudos" 
são publicados. Alguns questionários enviados pelo correio, como é hábito nos 
EUA, ou algumas entrevistas com este ou aquele dirigente sindical, como em 
alguns estudos no Brasil, basta para alardear que "os bancários", os "white-collars" 
sofrem deste ou daquele distúrbio. Ora, Quem já estudou um Banco sabe dos 
vários Bancos que se escondem dentro dele, nossos dados revelam perfil 
epidemiológico claramente distinto entre os trabalhadores de vários setores. Com a 
atual complexidade do setor de serviços é possível tomar a sério uma afirmação 
genérica sobre white-collars? 
 Entre a simpatia fácil e o rigor científico, ficamos com o segundo, mesmo 
correndo o risco de exigir um pouco além do hábito, apaciência do leitor. 
Wanderley Codo 
210 
Capítulo 12. 
SAÚDE MENTAL E TRABALHO: 
TRABALHADORES INDUSTRIAIS DE 
USINA DE AÇÚCAR E ALCOOL 
 JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO 
 LÚCIA HELENA SORATTO 
 
A CATEGORIA PROFISSIONAL E A EMPRESA: 
 - Importância econômica da produção sucroalcooleira na economia 
nacional e importância estratégica na produção de energia. 
 - A região é a maior produtora do país: 26 usinas açucareiras com 
destilarias de álcool e 21 destilarias autônomas. A produção de açúcar representa 
38.6% da paulista ou 17.7% da brasileira. A produção de álcool representa 39.0% 
da paulista ou 22.9% da brasileira. A cultura de cana na região ocupa 35.0% da 
área plantada do estado. 
 - Localização da empresa entre as vinte primeiras em produtividade, no 
ranking nacional do ramo, no ano de 1989. 
 - Produção conjunta de açúcar e álcool. 
 - A empresa realizou o processo de substituição de um modelo familiar pela 
administração profissional. 
211 
 - A empresa realizou processo de substituição de tecnologia tradicional por 
tecnologia moderna, considerada de ponta, apresentando dois nítidos momentos de 
mudança: Anos 50 (Plano de Metas) e Anos 70 (Proalcool) 
 - Abertura do campo facilitada por interesse da CIPA da empresa e 
concordância da Superintendência. 
 - A pesquisa bibliográfica encontrou literatura específica em Economia, 
Política e Tecnologia, mas as questões sanitárias do trabalho não são tocadas. 
Periódicos como "Usineiro", "Revista do Alcool", "Alcool & Açúcar", "Sugar Y 
Azucar" e "Zucker Industrie", tematizam problemas e avanços do cultivo da cana 
e da produção de açúcar e álcool. Na literatura médica e psicológica (revisão do 
Index Medicus e do Psychological Abstract, 1985/90) são encontradas pesquisas 
sobre ruído, temperatura, corpo estranho e tóxicos, porém abordados de modo 
genérico ou concretizados em outro ramo de produção. Pesquisas sobre as 
condições específicas do trabalho, principalmente relacionando saúde mental e 
trabalho, estão ausentes na literatura levantada. 
 
A POPULAÇÃO 
 
 Total de 1252 trabalhadores, distribuidos por uma diretoria, duas 
assessorias diretas (Jurídica e Planejamento e Controle de Produção/PCP), seis 
divisões (Financeira, de Projetos Especiais, Comercial, de Recursos Humanos, de 
Suprimentos, Agrícola e Industrial) e uma Sociedade Agrícola. 
 A Sociedade Agrícola e as divisões Agrícola e Industrial concentram 954 
trabalhadores, o que oferece, em macroanálise do organograma, relação de 1 
trabalhador administrativo para 3 na produção. 
 A Divisão Industrial (DI) foi escolhida porque: a) O pessoal dos setores 
agrícolas apresenta escolaridade rudimentar, no limiar do analfabetismo, o que 
212 
seria impeditivo do uso do inventário psicológico. b) Nos setores agrícolas o 
processo de trabalho obrigaria a intervenções fora da jornada de trabalho e a uma 
equipe de pesquisadores muito grande. c) O setor industrial apresenta rotatividade 
baixa e inclui parte de operação e parte de manutenção, permitindo constituição de 
grupos-comparação. 
 A DI dispõe de 214 trabalhadores, dos quais 15 foram excluidos de 
imediato: 8 por hierarquia (1 gerente, 5 chefes, 1 assistente de chefe, 1 secretária), 
7 por processo de trabalho (3 registradores de produtividade para o PCP; e 4 do 
Departamento de Engenharia Industrial/DEI, com nível superior, entre 
engenheiros e desenhistas). 
 A população epidemiológica ficou em 199 trabalhadores, distribuidos por 4 
dos 5 departamentos que compõem a DI: Manutenção Mecânica (DMM), 
Manutenção Elétrica (DME), Controle de Qualidade (DCQ) e Operação Industrial 
(DOI). 
 Todos estes trabalhadores são homens. A idade média geral é de 32.5 anos. 
As modas de idade diferem: para DOI e DMM = 33 anos, para DME e DCQ = 21 
anos. Também quanto à amplitude de variação há nítida diferença: para DOI e 
DMM = 41 anos, para DME e DCQ = 19 anos. Estas medidas de idade 
acompanham linearmente, em relação diretamente proporcional, as medidas de 
tempo de profissão e tempo de empresa. 
 Quanto à escolaridade, 54.4% possue grau de escolaridade entre primeira a 
quinta série do 1o grau e 45.6% acima de sexta série, sem nenhum sujeito de nível 
superior. Discriminando os departamentos percebe-se distribuição bastante 
desigual dos níveis de escolaridade: se em DCQ temos mais de 4/5 dos 
trabalhadores ultrapassando a 6a série do 1o grau, no DOI esta proporção é de 1/3. 
 O estudo de procedência aponta migração circunscrita a um raio de 200 km 
de Ribeirão Preto. Realidade totalmente distinta dos setores agrícolas da usina, 
213 
onde há variação sazonal e o investimento tecnológico ainda não permite mínimo 
estável de trabalhadores, seja safra ou não. 
 DCQ e DOI polarizam os indicadores. DOI concentra mais velhos, com 
mais tempo de empresa e de profissão, mais migrantes e menos escolarizados; 
DCQ concentra o oposto. 
 
PERFIL DE PRODUÇÃO: 
 
 Histórico. 
 A usina "X" foi fundada em 1938, produzindo álcool para uso 
doméstico/farmacêutico e aguardente. É de núcleo familiar e a 1ª geração comprou 
terras, optou pela cultura canavieira e iniciou produção de álcool. Nos anos 40/50 
a 2ª geração consolidou a empresa. Nos anos 70, aproveitando alta do açúcar no 
mercado internacional e financiamentos do Instituto do Açúcar e do Alcool 
(IAA), a 3ª geração triplicou a produção. Em 1978, com o Proalcool, a usina 
passou a produzir álcool carburante para consumo nacional. 
 A usina funcionava com o trabalho de famílias inteiras, morando e 
trabalhando na propriedade. O desenvolvimento ocorria pelo aproveitamento de 
prática. 
 Há um processo de modernização em curso que provoca alterações na 
organização do trabalho, fazendo variar o nº de trabalhadores por setor, 
aumentando o nº de especializações eprovocando mudanças nas funções 
necessárias à produção. 
 As árvores tecnológicas do açúcar e do álcool são enormes, porém maior 
abrangência não deve mudar a mentalidade de operação a curto prazo. As 
modificações ocorrem mais a nível de máquina. O operador só vê de diferente em 
214 
sua rotina uma redução no nº de manutenções, por exemplo. Sua principal 
preocupação produtiva parece centrar-se nos subprodutos (energia elétrica, 
bagaço, acetato etc), pois os produtos básicos, com valor agregado muito grande, 
não podem deixar de ser produzidos. 
 A fim de superarem o gap tecnológico-gerencial, foi preciso mudar a 
política dita paternalista de RH, implantando sistema administrativo baseado em 
critérios técnicos. Com esta perspectiva, em 1985, foi criado o primeiro plano de 
cargos e salários da empresa. 
 
 Competição e Relação com o Estado. 
 A usina atua num mercado de poucos produtores e praticamente um único 
comprador, a Petrobrás, quando o produto é alcool carburante. Por este produto a 
empresa entra na lógica da competição oligopolista contida por comprador 
monopsônico. O governo federal, que faz uso geopolítico do alcool carburante, 
diretamente ligado a política industrial (preservar a indústria automobilística das 
crises do petróleo) e social (garantir continuidade do acesso das classes médias ao 
carro), dá o preço dos insumos, da matéria prima e do produto. 
 A empresa teria quatro saídas para ampliar sua margem de lucro: 
exportação (barrada por política federal, para não faltar álcool carburante no 
mercado interno), desvio da produção para açúcar (barrada por política federal, 
através do controle de preços também do açúcar, com o objetivo de preservar a 
indústria nordestina que, por incorporar tecnologia mais atrasada, apresenta 
maiores custos, donde precisar do mercado externo, propiciador de melhores 
preços, para manter lucratividade idêntica à indústria do sudeste), exploração de 
novos subprodutos e incremento tecnológico para redução de custos. 
 Quanto ao açúcar, a usina atua em mercado de muitos produtores, muitos 
intermediários e até venda direta a consumidores. 
215 
 Em qualquer dos casos, as especificidades dos produtos são dadas 
independentemente do produtor, portanto são commodities. 
 
 As duas empresas: safra e entre-safra. 
 A empresa, durante a safra de cana, é uma: produção por 24 horas, de 
segunda a segunda feira, de maio a novembro. Na entre-safra, a empresa é outra: 
grande galpão de manutenção, em horário administrativo, de dezembro a abril. 
 Início e fim de safra são dados por decisão que alia considerações 
meteorológicas (regime de chuvas), organizacionais (estado da manutenção), 
econômicas (otimização da sacarose na cana, recursos financeiros disponíveis, 
pressão dos compradores) e políticos (política federal de abastecimento). A 
margem de decisão é pequena, dado o ritmo de crescimento da cana e o regime de 
chuvas. 
 Entre a produção do sudeste e a do nordeste há, em regra, 
complementariedade temporal: o que é período de safra em uma região, é 
entresafra na outra. Esta complementariedade permite a troca de trabalhadores do 
setor agrícola, em migração sazonal. 
 
 Produtos: açúcar e álcool 
 A usina moe 1 milhão de toneladas de cana, anualmente, para a produção 
de açúcar e álcool. Metade própria e metade comprada de fornecedores. A 
produtividade brasileira é de 60 ton./hectare, a paulista é de 65 a 70 ton./ hectare e 
a da usina é de 85 a 90 ton./hectare. 
 O setor tende a trabalhar com a própria produção, desaparecendo os 
fornecedores sem estrutura econômica para negociar preços. O preço da cana é 
determinado pelo teor de sacarose. Este teor pode variar de 4% a 5% em situações 
216 
normais, podendo chegar a variação de 20%. O sistema de pagamento ocasiona 
dificuldades na negociação, pois o teor é relativo, mas a contagem é absoluta. No 
início da safra o teor é sempre mais baixo, então o fornecedor tende a retardar a 
entrega da cana, prejudicando a moagem. 
 Entre o teor de sacarose da cana e a produção, há 10 anos havia perda de 
20%, hoje a perda é de 15%. Segundo o IAA a usina é o 16º lugar no Brasil, em 
eficiência. Na hora do ensaque para apresentação comercial há perda de 0.5% de 
açúcar que fica em suspensão. 
 A proporção de açúcar e álcool produzidos está em torno de 1/3 e 2/3, 
respectivamente, do total de cana moída, mas esta proporção varia de acordo com 
política federal. Na safra de 1989 houve quatro grandes mudanças: No início da 
safra o governo pediu mais álcool, pelo risco de desabastecimento do combustível; 
em seguida mais açúcar; voltou atrás e pediu mais álcool; depois mais açúcar, pelo 
risco de desabastecimento de açúcar, e isto faltando 48 dias para o fim da safra. As 
constantes mudanças na demanda afetam administradores e proprietários, 
dificultando o planejamento interno, mas parece não afetar os trabalhadores. O 
cotidiano de todos os trabalhadores é mais afetado quando a moagem é que é 
modificada. 
 A produção de açúcar está caindo e a de alcool crescendo. A capacidade da 
usina é de 1.000.000 de sacas de açúcar por safra, mas está produzindo 650.000. O 
álcool passou de 20.000.000 hectolitros por safra, para 60.000.000. Não está 
havendo investimento em novas tecnologias para o açúcar, mas é possível, apenas 
alterando a organização do trabalho, um aumento de 75% na produção. A usina 
tem condições de produzir também álcool para perfumaria, cosméticos, farmácia e 
bebidas. 
 
 Custos e Lucro 
217 
 O custo da cana é de 8 a 12 dólares por tonelada, 20 a 30 toneladas de 
faturamento e 2.0 a 2.5 de agregação de valor. O capital fixo é de 40 a 50 milhões 
de dólares. Cerca de 40% do faturamento vai para impostos, no caso do açúcar. O 
item Pessoal consome de 20 a 25% do faturamento, a compra de cana consome 25 
a 30 % e os impostos consomem 20 a 30 %. 
 O lucro, teoricamente, gira em torno de 10% sobre o faturamento, mas na 
prática gira em torno de 5%. O problema todo é como fazer funcionar uma 
economia em escala, se os preços são fixos. Não havendo quebra de máquina o 
lucro salta na medida em que não se aumentam os custos. A moenda é o gargalo 
do processo de produção e o ideal seria a moagem ocorrer no mínimo por oito 
meses consecutivos. 
 Salários 
 Não foi possível saber os valores salariais praticados pela empresa. O 
momento parece ser de grande competitividade na região: existem novas empresas 
entrando no setor e tomando trabalhadores treinados. 
 Para obtenção de lógica interna (relação entre cargos e salários dentro da 
empresa) e lógica externa (relação de cada extrato salarial com seus equivalentes 
em outras empresas) de alocação de pessoal, foi realizada uma pesquisa no 
mercado, com duração de seis meses, para a elaboração do plano de cargos e 
salários vigente. 
 Conflitos básicos: os salários não podem inflacionar a folha da empresa; 
não podem inflacionar o mercado de trabalho; a empresa não pode perder 
trabalhadores treinados; é preciso atender à política salarial do governo e é 
preciso atender às negociações coletivas realizadas nas datas-base pelos Sindicatos 
patronais com os Sindicatos dos trabalhadores. Em 1989 foi aplicado a correção 
oficial da inflação, integralmente, contrariando a política do governo (correção de 
218 
70%) e oferecendo condições mais favoráveis que as obtidas pelos trabalhadores 
na data-base anterior. 
 Pela análise dos salários declarados por amostra de trabalhadores 
entrevistado, pode-se constatar que a razão entre o maior e o menor salário 
praticado na empresa é de 12 vezes e que o menor salário praticado equivalia a 
dois salários mínimos.

Mais conteúdos dessa disciplina