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CODO, W. & SAMPAIO, J. (orgs). Sofrimento Psíquico nas Organizações. Petrópolis, RJ: Vozes,1995. Sofrimento Psíquico nas Organizações - Saúde Mental & Trabalho Wanderley Codo José Jackson Coelho Sampaio (organizadores) Índice Á guisa de apresentação......................................................................3 Parte 1. Como fazer?........................................................................6 Capítulo 1. Ideologia e Reprodução.....................................................10 (Alberto H. Hitomi) Capítulo 2. O conhecimento do trabalhador e a teoria das representações sociais.................................38 (Leny Sato) Capítulo 3. Saúde mental e trabalho, um novo (velho) campo para a investigação da subjetividade....................................................47 (Ricardo Augusto de Carvalho) Capítulo 4. Saúde e trabalho: Uma abordagem do processo e jornada de trabalho............................................................................53 (José Jackson Coelho Sampaio, Alberto H. Hitomi, Erasmo Miessa Ruiz) Capítulo 5. Saúde mental e trabalho: um modelo de investigação...........71 (José Jackson Coelho Sampaio, Wanderley Codo, Alberto H. Hitomi) Parte II. Mulher e trabalho............................................................94 Capítulo 6. A saúde da mulher trabalhadora........................................96 (Isabel Cristina Ferreira Borsoi) 2 Capítulo 7. Professora primária, amor e dor......................................107 (Hilma Tereza Tôrres Khoury Carvalho) Capítulo 8.Enfermagem, trabalho e cuidado......................................118 (Isabel Cristina Ferreira Borsoi, Wanderley Codo) Capítulo 9.Trabalho e identidade em telefonistas...............................129 (Isabel Cristina Ferreira Borsoi, Erasmo Miessa Ruiz, José Jackson Coelho Sampaio) Capítulo 10. Relações creche-família...............................................148 (Wandeley Codo, Ana Maria de A. Mello) Capítulo 11 Histeria em creches.......................................................................156 (Wanderley Codo) Parte III. Sofrimento psíquico no trabalho....................................... Capítulo 12.Saúde mental e trabalho: Trabalhadores Industriais de usina de cana de açúcar............................................168 (José Jackson Coelho Sampaio, Lucia Helena Soratto) Capítulo 13. Saúde mental e trabalho têxtil......................................191 (José Jackson Coelho Sampaio, Cleide Carneiro) Capítulo 14. Saúde Mental e Trabalho na clínica psicológica (a ser introduzido) (Maria Celeste A.G. Almeida) Capítulo 15. Os efeitos das novas tecnologias sobre os trabalhadores e suas organizações.............................................205 (Luis Antonio Lima, Leila Maria Arnaldo Nonnenmacher) 3 Capítulo 16.Paranóia e Trabalho....................................................232 (Wanderley Codo, Alberto H. Hitomi, José Jackson Coelho Sampaio, Erasmo Miessa Ruiz) Capítulo 17. A síndrome do trabalho vazio em bancários.................251 Wanderley Codo, José Jackson Coelho Sampaio, Alberto H. Hitomi, Marin Bauer) Bibliografia.................................................................................264 4 À guisa de apresentação O livro que ora entregamos a julgamento, embora tenha sua independência para qualquer leitor que por ele se aventure, segue a trilha de o " Indivíduo, Trabalho e Sofrimento", lançado pela Vozes em 1993. Aquele trabalho refletiu os primeiros vôos do Projeto Saúde Mental & Trabalho, o qual coordeno, tratava-se de lidar com questões básicas para quem quis desenvolver uma área de pesquisa, afinal? de que trabalho estamos falando, de tripalium ou poiesis?, afinal? como conceituar saúde/doença mental? Se até agora as teorias que abordam o tema foram construídas à distância dos portões das fábricas? Tratou-se de uma reunião de ensaios articulados, capaz, os autores concordávamos, de compartilhar nossas caminhadas e, com sorte, auxiliar a quem faz do trabalho alheio motivo de reflexão. Este livro parte das constatações reportadas em o "Indivíduo, Trabalho e Sofrimento", agora enfocando categorias profissionais que foram, durante estes anos, objetos de investigação. Talvez seja útil saber sua história. Em 1990/91, enquanto estava na Europa, em busca do aperfeiçoamento de metodologia para o PSM&T, o Dr. Jackson me substituiu na coordenação do projeto, entre as espinhosas incumbências que acordamos, estava a realização de um congresso sobre SM&T, seria uma chance de ouvir e debater com os colegas envolvidos com o tema. A montagem que o Dr. Jackson realizara, nos fez perceber que tinhamos diante de nós um painel, o mais completo possível à época, desta área no Brasil; 5 resolvemos então o pedido das contribuições por escrito, com a mente voltada para a realização deste livro. Seria, portanto, em um primeiro momento, a publicação de anais do 1º Encontro Nacional de SM&T. O congresso ocorreu e com aquelas características que imaginávamos, o mesmo não se deu com este livro. Algumas pessoas não entregaram o texto, outras apenas rascunhos que por mais instigantes não se prestavam à publicação. Avaliado o material que tinhamos à mão, com excessão de dois artigos, restava o nosso grupo e seus desdobramentos em outros estados. Uma pena que vários pesquisadores não puderam estar presentes, em compensação o livro que ora vem a público ganhou mais unidade, reflete, com suas riquezas e idiossincrasias nossa produção de 1988 até 1992. Jackson Sampaio e Alberto Hitomi dividiram comigo a tarefa de direção do projeto, o primeiro encarregado de Psiquiatria e Epidemiologia, o segundo coordenando as nossas incursões em sociologia do trabalho. Os psicólogos Isabel Cristina Borsoi e Erasmo Ruiz estavam praticamente em tempo integral conosco, se responsabilizando na prática por vários estudos aqui publicados. Lúcia e Cleide eram estagiárias dedicadas que participaram de perto do projeto, como bolsistas. Alhures, Luis Lima e Leila Maria trabalhavam em uma firma de consultoria em Porto Alegre utilizando o mesmo método e em parceria conosco. Hilma fazia o mesmo com sua tese de mestrado, orientada por mim em Belém do Pará. Martin Bauer foi meu parceiro, valioso e ocasional na London School of Economics, ao formular a "síndrome do trabalho vazio" na Inglaterra e Ana Maria Mello me auxiliou com sua experiência e senso inovador no estudo sobre Creches. Leny Sato e Ricardo de Carvalho comparecem aqui como dois pesquisadores dedicados e produtivos que são nesta área, Leny vem atuando sistematicamente no DIESAT, Departamento Intersindical de Estudos de Saúde do Trabalhador, atuando como pesquisadora sobre o conceito de penosidade, sua contribuição neste livro é sobre o tema, Ricardo coordena e descreve aqui a 6 experiência do NESTH, Núcleo de Estudos sobre Saúde do Trabalhador de Minas Gerais, ligado à UFMG, na minha opinião um centro interdisciplinar importante e único do país. Se notará as ligeiras diferenças de abordagem em seus artigos, mas o que deve ser ressaltado é a unidade de propósitos em cada um dos modos de atuação. Não seremos nós a dizer sobre a validade destes estudos para a melhor compreensão e intervenção na saúde mental no trabalho. Se houver alguma ela se deve, na minha opinião à uma forma de se engajar na lida científica que vale a pena explicitar. Quando garoto, leitor assíduo de história em quadrinhos, me lembro de uma ficção (se não me engano tratava-se de "Mandrake"),onde havia invasores observando a terra visando uma posterior invasão, ao passear com sua nave por uma fazenda, e depois pelo jockey clube notaram que homens serviam comida aos cavalos, concluiram portanto que os equinos eram os senhores aqui, os primeiros a serem dominados, portanto. Já iniciando a minha carreira científica, no departamento de Psicologia Experimental da USP, intrigou-me o fato de que um colega de pós-graduação escolhera como animal para suas pesquisas a periplaneta americana, nome vulgar; barata, sua resposta: "Estudo baratas porque por elas não posso ter o mínimo sentimento". Iniciei minha carreira como behaviorista, e talvez tenha abandonado os canones de Skinner exatamente pela crítica ao estranhamento como método de aquisição do conhecimento. Em uma rápida conversa que tive com Christophe Dejours em Paris, ele pediu que descrevesse o método com que trabalhávamos, quando falava que costumávamos realizar uma observação detalhada do processo de trabalho, de preferência com vídeo, ele discordou profundamente ("Nous sommes anti objetiviste"), me explicava que a observação atrapalha a atenção ao discurso do trabalhador, que a palavra dele deveria ser a única fonte de dados. 7 Pois bem, ouso discordar também deste tipo de miopia: Sei e abuso da importância de ouvir, cuidadosamente, carinhosamente os trabalhadores, mas não foi a psicanálise, exatamente os postulados que orientam o trabalho de Dejours que nos ensinou a todos que não sabemos, ou queremos esquecer as razões do nosso sofrimento? Um exemplo deve bastar: Em 1981, para a minha tese de doutoramento, olhando o controle de qualidade de uma fábrica de eletro eletrônicos, dei-me conta de um osciloscópio simplificado que atestava a qualidade de alguns circuitos. Ao entrevistar o trabalhador ele me dizia de um aparelho extremamente complicado, com "milhares de curvas", conclui na época que o trabalhador estava valorizando subjetivamente o próprio trabalho, já que sabia (inconscientemente?) que poderia ser substituído por qualquer um. O discurso apenas poderia nos revelar isto? O projeto saúde mental & trabalho, cuja parte dos resultados são mostrados neste livro, busca a objetividade mas desconfia dela, checa com o próprio sujeito a validade de suas observações, respeita o discurso alheio como critério de verdade, mas não permite que ele seja o único farol a descortinar o caminho. Tecnicamente falando, desenvolvemos uma fusão entre o método dedutivo e o método indutivo, que tem se mostrado, a nós pelo menos, como altamente produtiva. Às vezes, é claro, nos perdemos no caminho, mas quando achamos algo, as descobertas tem resistido ao crivo da praxis ou à exigência da ciência rigorosa. Que se examine o resultado. Wanderley Codo 8 Parte I. Como Fazer 9 saúde e\ou doença mental nos atinge no que temos de mais subjetivo, no sentido de pertencente estritamente ao sujeito, territórios inexpugnáveis ao outro, e via de regra a nós mesmos, não há, não pode haver dois delírios iguais: as dores que o histérico/hipocondríaco inventa, doem na exata medida de sua radical idiossincrasia, da sua impossibilidade também radical de compartilhamento, da ausência de uma racional exteriorizada, de seu desrespeito à anatomia, quem sofre é o sujeito, não mais os músculos do seu pescoço. A saúde/doença mental obriga o pesquisador a enfrentar o dilema do indivíduo, sempre outro no momento em que a lógica ousa desvendá-lo. A No entanto, e não raro, a doença mental é determinada exteriormente ao indivíduo, por fatores que chamaremos de objetivos, no sentido de independentes do sujeito: algumas drogas, por exemplo, provocam invariavelmente alucinações, os efeitos dos traumas sexuais na infância são conhecidos o suficiente para permitir aos educadores traçar uma rota profilática na escola ou na família. Eis o pesquisador obrigado, agora a percorrer caminho inverso: impõe-se a 'eliminação' da idiossincrasia, a busca de invariantes, o que, apesar das nossas diferenças individuais está provocando aqueles sintomas? É assim, particularmente na área que Le Guillant chamava de psicopatologia do trabalho, e que hoje chamamos de saúde mental no trabalho, por mais que o trabalho compareça como estranho ao sujeito que o realiza, por mais que crave a sua história em momentos alhures á existência deste trabalhador em particular, tem-se revelado capaz de provocar sofrimentos, no sentido mais intimista que esta palavra pode ter. Eis a principal armadilha que esta área de conhecimento esconde, eis também, para mim, o seu principal fascínio: A necessidade de olhar cuidadosamente a árvore, a imposição de não olvidar a floresta. Nada mais racional do que o trabalho, nada mais insensato do que a doença mental (tantas vezes insensatez aparece como sinônimo de loucura), o trabalho preso 10 inelutavelmente ao que a trama social tem de mais objetivo, a doença mental escrava do que o sujeito preserva como seu, intransferível, inominável. Tema complexo este, como se costuma dizer quando a nossa ignorância é maior do que podemos suportar. Que seja uma experiência pessoal. Ao lecionar Saúde mental e trabalho no curso de Psicologia em Ribeirão Preto, adquiri o hábito de fornecer leituras sobre os quadros psicopatológicos desta ou daquela categoria profissional, e depois solicitar a um trabalhador que nos conceda uma entrevista em profundidade, para que os alunos possam checar o material de leitura com a experiência sensível do trabalhador, tal e qual o trabalhador o reporta. Em um destes exercícios, pedi a leitura do clássico "A neurose das telefonistas", de Le Guillant, e entrevistei uma telefonista do campus, enquanto os alunos observavam. Não há como disfarçar o espanto; outro país, outras condições sociais e de trabalho, outra pessoa e, no entanto, visivelmente o mesmo quadro descrito a tanto tempo pelo médico francês. Não há também como iludir o fato de que, por melhores que sejam as descrições sobre o trabalho da telefonista e suas neuroses, por mais que cada pesquisador desta área tente sua incursão no problema, ainda não a compreendemos. Tenho para mim que as telefonistas estão encalacradas em uma linha muito tenue entre a comunicação e o silêncio, e que não se compreenderá suas neuroses enquanto não se compreender aqueles mistérios. Mas sabemos tão pouco sobre a linguagem e sequer temos idéia do que é o silêncio! Como compreender as dores d'alma que acometem aquelas trabalhadoras postas diante, milhares de vezes por dia ante um dilema tão velho? Outra vez, como passear entre a árvore e a floresta, sem perder de vista qualquer um dos dois universos, ou o que é pior, sem se deixar encantar por um deles, apagando inconscientemente o outro? 11 A primeira parte deste livro é dedicada a este problema. O primeiro texto foi escolhido por lidar com um rigor raro sobre a questão da ideologia, apesar de não abordar diretamente a questão da saúde mental no trabalho. Alberto Hitomi consegue passear com ousadia entre as várias formulações que o conceito vem sofrendo, exercitando uma crítica aguda e sempre com um mesmo eixo; como a História é capaz de produzir estórias, ou ainda, como a organização objetiva da produção produz e reproduz representações, que apesar de coletivas, ainda trazem a marca da subjetividade do seu tempo. Penso que Hitomi consegue mapear o problema (ninguém ousaria pedir para resolvê-lo, retomando escritos de Marx e seguidores a partir deles mesmos, sabendo ler, com acuidade cada uma das formulações, por mais provisórias que apareçam nos clássicos. Será inútil,suponho, discorrer sobre a importância do conceito de ideologia para as pesquisas de Saúde Mental no Trabalho. É ao mesmo problema, embora com outra abordagem que Leny Sato se dedica, percorre as formulações (basicamente francesas) de representação social, em busca de compreender o intercruzamento entre objetividade e subjetividade na formulação do conceito de trabalho penoso, chama a atenção para a necessidade do conhecimento científico ter em conta um outro conhecimento, que vai se estruturando no cotidiano de quem sofre e precisa reconhecer as mazelas do trabalho cotidiano. Ricardo Augusto relata as experiências de um grupo de Minas, há tempos e com seriedade dedicado aos problemas de saúde no trabalho, particularmente no que tange ao trabalhador enquanto sujeito, e aos modos de operar com esta subjetividade, o texto está aqui para que se ressalte a importância metodológica do discurso na compreensão do sofrimento do trabalhador. Jackson Sampaio, Hitomi e Erasmo Ruiz comparecem com uma discussão importante sobre processo e jornada de trabalho em um texto que procura mapear as variáveis que devem ser tomadas em conta no processo de trabalho, se 12 quisermos aprofundar nosso conhecimento sobre a forma como os trabalhadores adoecem na produção. Esta seção fecha com um texto que descreve a forma como o projeto Saúde Mental e Trabalho vem enfrentando a questão do método, propositalmente esquemático, o texto procurou ser um guia de atuação em pesquisa nesta área, um "how to do", que não pretende aprofundar em cada uma das direções apontadas. Além de seu valor intrínsico, para quem se interessa pela área, o texto evita que se decline a metodologia em cada um dos estudos apresentados a seguir, já que quase todos seguem os mesmos parâmetros apontados aqui. Wanderley Codo 13 Capítulo 1. IDEOLOGIA E REPRODUÇÃO ALBERTO H. HITOMI I – INTRODUÇÃO Já se tornou um lugar comum afirmar que a concepção de ideologia expressa em "A Ideologia Alemã" deve ser entendida como falsas idéias. Esta interpretação surge a partir da analogia que Marx e Engels estabelecem entre a produção de idéias, de representações, da consciência e a inversão da imagem na retina. Esta compreensão é expressa, por exemplo, por Durham (1984): "Desde os ideólogos franceses até o jovem Marx da Ideologia Alemã e permeando em seguida boa parte tanto da tradição marxista quanto da positivista, está a convicção de que 'idéias falsas' ou distorcidas (superstições para os ideólogos, ideologia para Marx) são produto de instrumento de opressão política de uma classe; e, inversamente, que 'idéias' verdadeiras, construídas pela ciência (ou pelo proletariado, ou pela ciência verdadeira que é a do proletariado) são armas e instrumentos necessários na luta contra a opressão da classe dominante" (pág. 11). Ou ainda por Boudon (1989): "Consideremos, a título de exemplo, algumas definições clássicas. Em primeiro lugar a célebre definição de Marx da Ideologia Alemã: A produção de idéias, de representações, da consciência é, antes de tudo, direta e intimamente imbricada na atividade material e comércio material dos homens. Ela é a língua da vida real. As representações, o pensamento e o comércio intelectual dos homens aparecem, aqui também, como emanação direta de seu 14 comportamento material (...). Se em toda ideologia os homens e suas relações parecem estar de cabeça para baixo, como dentro de uma câmara obscura, isto resulta de seu processo de vida histórica, exatamente como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida diretamente física. As ideologias aparecem aqui como idéias falsas - estão de cabeça para baixo - que o 'comércio material' inspira aos homens, necessariamente" (págs 26- 27). É um procedimento pouco usual e até reprovável - diríamos até mesmo indelicado - citar a citação que Boudon faz de Marx e Engels. Porém, neste caso, isso foi absolutamente necessário. A partir apenas e tão somente desse trecho, Boudon conclui que a concepção ou definição de ideologia presente em "A Ideologia Alemã" é a de idéias falsas. Boudon entende a analogia das inversões das representações e das imagens na retina como falsidade. O estar "de cabeça para baixo" é entendido como falso. Lendo mais atentamente o trecho vemos que em nenhum momento aparece o termo falsa. Por que então estar de cabeça para baixo, estar invertido significaria necessarimente ser falso? Na verdade, a noção de falsidade é uma das interpretações já consolidadas pela tradição, ossificada por toda uma linha de intérpretes e, quase sempre, contraposta à verdade. É mais o peso dessa tradição, do que o trecho que Boudon destaca dos escritos de Engels e Marx, que permite a este autor concluir que a ideologia é aí entendida como falsas idéias. E ao fazê-lo cometer um equívoco: uma citação que não comprova nada e uma interpretação que na verdade é um pressuposto de Boudon e não uma interpretação desse trecho em particular. É também verdade que essa compreensão - ideologia enquanto idéias "falsas" - pode emergir de uma leitura de "A Ideologia Alemã". 15 Mas existe um outro modo de se entender essa inversão. Chauí (1984), por exemplo, diz: "A ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe. Por ilusão não devemos entender 'ficção', 'fantasia', 'invenção gratuita e arbitrária', 'erro', 'falsidade', pois com isto suporíamos que há ideologias falsas ou erradas e outras que seriam verdadeiras e corretas. Por ilusão devemos entender: abstração e inversão. Abstração (...) é o conhecimento de uma realidade tal qual ela se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que apenas classificamos, ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal realidade foi concretamente produzida por um determinado sistema de condições que se articulam internamente de maneira necessária. Inversão (...) é tomar o resultado de um processo como se fosse seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante" (pág. 104). Uma representação ideológica é uma representação imediata da realidade, por isso, abstrata e ilusória, ou seja, invertida da realidade, pois esta não se apresenta imediatamente à consciência, apresenta-se mediatamente. Uma outra maneira de entender a inversão, em outro contexto, porém a este relacionado, é também apontado por Chauí (1984): "Quando Marx e Engels afirmam que as relações sociais capitalistas aparecem tais como são, que o aparecer e o ser da sociedade capitalista se identificaram, eles o dizem porque houve uma gigantesca inversão na qual o social vira coisa e a coisa social" (pág 59). São duas as inversões: a primeira refere-se à reificação das relações sociais, na qual "o social vira coisa e a coisa social"; a segunda ocorre no interior da consciência, o próprio processo de conhecimento da realidade. A representação imediata, a expressão consciente da forma como os homens atuam e produzem 16 materialmente é uma representação invertida porque os resultados do processo de intercâmbio aparecem como causa dessa relação. Dizer que ideologia são idéias falsas que o "comércio material inspira aos homens" (Boudon) ou que são "idéias invertidas" (Durham) é simplesmente perder este sentido da inversão, a noção de inversão enquanto ilusão e abstração, mas principalmente enquanto reificação. Cremos que é este sentido que Marx irá desenvolver, em sua forma científica, em sua crítica à Economia Política, em "O Capital". Quando Marx diz, por exemplo, no capítulo do processo de troca que os homenssão os guardiões da mercadoria, os seus representantes (personificações de forças econômicas), e que esta, como não tem pés, tem de ser levada até o mercado para ser trocada. A inversão é aí expressa enquanto fetiche da mercadoria. E não é falsa, é verdadeira. Ou ainda, no capítulo da maquinaria, quando Marx, entre outras coisas, afirma que não é a força de trabalho que usa as condições de trabalho, mas que são as condições de trabalho que usam a força de trabalho. Formulações que reforçam a compreensão da inversão como realidade, como gigantesca inversão no qual o social vira coisa e a coisa social. Não queremos afirmar que Marx sempre foi marxista, é evidente. Alguns poderiam dizer que estamos tomando dois textos qualitativamente diferentes da produção teórica de Marx, diferentes não apenas cronologicamente: um "pré- marxista" e outro marxista. Tomemos então um texto anterior e veremos que a inversão aparece ainda com mais força e mais realidade. Referimo-nos aos "Manuscritos Econômico- Filosóficos" de 1844. No terceiro manuscrito, no item [Dinheiro], Marx (1985) escreve: "Aquilo que mediante o dinheiro é para mim, o que posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Minha 17 força é tão grande como a força do dinheiro. As qualidades do dinheiro - qualidades e forças essenciais - são minhas, de seu possuidor. O que eu sou e o que eu posso não são determinados de modo algum por minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da feiúra, sua força afugentadora, é aniquilado pelo dinheiro" (pág. 30). Marx fala explícita e inequivocamente em inversão das individualidades: "A inversão e confusão de todas as qualidades humanas e naturais, a irmanação das impossibilidades - a força divina - do dinheiro repousa na sua essência genérica, alienante e auto-alienante do homem. O dinheiro é a capacidade alienada da humanidade" (pág. 31). Eis portanto o significado crítico, porque real, da inversão. O poder das mercadorias em "modificar" e transformar em seu contrário as qualidades humanas. É claro que Marx, aqui e nos trechos referidos de "O Capital" não está tratando de ideologia, mas de seus fundamentos, explicita os limites e pressupostos nos quais os indivíduos desenvolvem suas atividades. Voltemos à questão da inversão das representações. A interpretação da ideologia associada à noção de falsidade é, talvez, autorizada por Engels. Refere- se, porém, à falsidade da consciência. Na famosa carta a Mehring, Engels (1978) escreve: "A ideologia é um processo que se opera por parte do chamado pensador conscientemente, com efeito, mas com uma consciência falsa. As verdadeiras forças propulsoras que o movem, permanecem ignoradas para ele; de outro modo não seria tal processo ideológico. Se imagina, pois, forças propulsoras falsas ou aparentes. Como se trata de um processo discursivo, deduz seu conteúdo e sua forma do pensar puro, seja o seu próprio ou de seus predecessores" (pág.523, trad. minha). 18 Althusser também sustentou a interpretação da inversão como falsidade, como irrealidade. Em "Aparelhos Ideológicos de Estado" (Althusser, 1983) afirma que a ideologia aparece, em "A Ideologia Alemã" num contexto positivista e que é concebida como pura ilusão, puro sonho vazio e vão, bricolage imaginário (cf. pág. 83). Novamente a realidade da inversão e o seu significado crítico são ignorados. O que mais surpreende nessas interpretações é que justamente no texto de "A Ideologia Alemã" Marx e Engels elaboraram uma teoria materialista da história e tentam justamente mostrar a historicidade das idéias e também da ideologia. Em "A Ideologia Alemã" Engels e Marx demonstram que mesmo as ideologias possuem uma base material de existência, possui uma história que no entanto está fora delas (da história das idéias e do discurso dessas idéias). Escreveram eles: "A existência de idéias revolucionárias numa determinada época já pressupõe a existência de uma classe revolucionária" (Marx e Engels, 1984, pág.73). Ou que: "Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que dominava antes dela é obrigada, para alcançar os fins a que se propõe, a apresentar seus interesses como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade, isto é, para expressar isso mesmo em termos de idéias: é obrigada a emprestar às suas idéias a forma de universalidade, a apresentá-las como sendo as únicas racionais, as únicas universalmente válidas. A classe revolucionária surge, desde o início, não como classe; aparece como a massa inteira da sociedade frente à única classe dominante. Ela consegue isso porque no início seu interesse realmente ainda está ligado ao interesse coletivo de todas as classes não-dominantes e porque, sob a pressão das condições prévias, esse interesse ainda não pôde desenvolver-se como interesse particular de uma classe particular. Sua vitória é útil, também, a muitos indivíduos de outras classes que não alcançaram uma posição dominante, mas apenas na 19 medida em que coloque agora esses indivíduos em condições de elevar-se à classe dominante. Quando a burguesia francesa derrubou a dominação da aristocracia, permitiu que muitos proletários se elevassem acima do proletariado, mas unicamente na medida em que tornaram-se burgueses" (pag.75) (grifos meus, A.H.H.) No início, diz Marx, o interesse da classe revolucionária está realmente ligada ao interesse coletivo, a oposição entre não-dominantes e a classe dominante realmente acontece durante o período revolucionário, e os indivíduos realmente conseguem elevar-se à classe dominante, como os proletários franceses. A ideologia é entendida em "A Ideologia Alemã", portanto, fundamentalmente enquanto ação, enquanto prática, porém, ao mesmo tempo, possui uma expressão subjetiva, uma expressão cognitiva, que nada mais é do que as representações ou reflexões nascidas dessa prática ou do conhecimento de seus limites ou pressupostos; ou ainda das aspirações. Diríamos até que a ideologia possui uma estória, pois se funda na biografia ou numa história de uma subcoletividade, e não na história efetiva. Ideologia é, então, uma realidade material, pois é um conjunto de práticas, seja de um indivíduo ou de subcoletividades. No entanto, as idéias, as representações ou a própria consciência nascem, em "A Ideologia Alemã", imediatamente das práticas, das ações ou, como escreveram Marx e Engels, do processo de vida real, como "emanação direta do comportamento material". Em "A Ideologia Alemã" não existem mediações entre a ação e a consciência, entre a história e a biografia. Chamaríamos isso de mecanicismo? Hoje talvez sim. Vemos, entretanto, como a exposição de pressupostos de uma nova concepção: o materialismo histórico. II - IDEOLOGIA: UM TERMO, TRES QUESTÕES 20 Após a concepção de ideologia expressa em "A Ideologia Alemã", ou melhor, difundida a partir da compreensão de Marx e Engels sobre ideologia, a questão da ideologia e da consciência se tornou uma verdadeiro quiproquó - como diria Marx. Quiproquó: ideologia como erro, como reflexo, falsidade, mistificação, manipulação. Quiproquó: consciência falsa, reificada, infeliz, desdobrada, fragmentada, possível, etc. Qual a noção de consciência para Marx e Engels? Há, na verdade, uma dupla compreensão: enquanto conjunto de representações ou idéias e enquanto ação. É este segundo sentido que é perdido em todos esses anexos adjetivadores, essas qualificações da consciência. A compreensão da ideologia pendeu entre o erro e a mistificação maquiavélica.A consciência, e junto com ela a compreensão da questão, se fragmentou em adjetivos a ela aglutinados. Examinemos um pouco melhor esse quiproquó através de Boudon. Na obra "A Ideologia" (1989), Boudon resumiu os principais tipos de definição de ideologia e os principais tipos de explicação. Neste trabalho, Boudon argumenta em favor da definição de ideologia de tipo Marx-Aron-Parsons e denine-a "como doutrinas que repousam sobre teorias científicas, mas que são teorias falsas ou duvidosas ou indevidamente interpretadas, às quais se dá uma credibilidade que não merecem" (pag. 44). Critica a "definição moderna (de tipo Shills-Geertz- Althusser)" argumentando que esta "tem todo tipo de lacuna, a ponto de não percebermos claramente o que ela pretende designar" (pag.40). Complementa dizendo que "se definirmos a ideologia pela noção de ação simbólica, ela incluirá tanto os teoremas matemáticos (...) até o conjunto de todas as opiniões políticas. E é mesmo para uma confusão desse gênero que tende uma definição como a de Althusser, que subsume sob o vocábulo ideologia as idéias, conceitos, imagens, teorias, representações morais, filosóficas, religiosas etc." (pág. 41) Teríamos, esquematicamente, as definições de ideologia: 21 Tipos de definição de ideologia Tipos de Tradição Referidos ao critério de verdadeiro e falso Não referidos ao critério de verdadeiro e falso Tradição Marxista Marx: A ideologia como ciência falsa Lenin: A ideologia como arma na luta de classes Os teóricos da consciência-reflexo Althusser: A ideologia, atmosfera indispensável à respiração social Aron: A ideologia não advinda diretamente, mas indiretamente do verdadeiro e do falso Geertz: A ideologia como ação simbólica Tradição Não-Marxista Parsons: A ideologia, desvio em relação à objetividade científica Shils: A ideologia, tipo particular de sistema de crenças (Boudon, 1989, págs 32-33) 22 Esta não é a classificação final sobre os tipos de definição de ideologia que Boudon formula. Ele modificará e sintetizará a sua posição mais adiante (cf. pág. 87). Porém, para os nossos objetivos, essa classificação intermediária é mais importante. Dentre as definições de ideologia encontram-se: falsa consciência, consciência como reflexo, atmosfera indispensável à respiração social, desvio em relação à objetividade científica, ação simbólica, tipo particular de crenças. Vemos agora, a partir da diversidade das definições, que não se trata de uma única questão, são pelo menos três. Poderíamos distinguir, sem muito rigor, estas problemáticas como: 1 - Gnosiológica ou da Teoria do Conhecimento: a velha questão de como se adquire, ou melhor, como se constrói o conhecimento. Que, por sua vez, se desdobra em outras duas: o conhecimento científico (Ciência) e o processo de conhecimento do indivíduo - que talvez pudesse ser incluída no item 2. (falsa consciência, desvio das representações em relação à objetividade científica). 2 - Ontológica: O que é e em que consiste a consciência? (consciência como reflexo, ação simbólica). 3 - Política: Função da ideologia no sistema social (atmosfera indispensável à respiração social, tipo particular de crenças). Estas distinções e inclusões das definições nestas problemáticas devem ser consideradas como uma primeira aproximação, são, portanto, provisórias. Nosso objetivo é somente o de indicar a presença dessas problemáticas nas definições de ideologia e mostrar os distintos níveis de realidade envolvidos. Estas definições de ideologia, portanto, não possuem a homogeneidade pretendida por Boudon, que é o pressuposto para juntá-las numa mesma tabela. Referem-se a pelo menos três problemáticas distintas, embora sejam totalmente imbricadas. 23 III - IDEOLOGIA E REPRODUÇÃO Em grande parte das formulações a partir da década de 60 notamos uma profunda alteração nas definições e tratamento dados à ideologia. Ela é menos idéia e mais prática, ação; menos discurso que comportamento. Este novo sentido pode ser visto em Bourdieu com a noção de habitus, em Althusser como práticas dos aparelhos ideológicos de Estado, em Habermas como ideologia enquanto técnica e ciência. O caso extremo, dentro desta ótica, é o consumo enquanto força produtiva e ideologia, tal como postulado por Baudrillard. Gramsci, como bem lembrou Althusser, foi o único que já havia avançado nessa perspectiva. Essa perspectiva poderia ser encontrada, já em Gramsci, quando este assinala a mudança na função e na ação dos intelectuais nas sociedades contemporâneas. Eles passam de uma função retórica para o desempenho de funções dirigentes e organizativas. Interessante observar que é somente a partir da década de 60 que Gramsci começa a ser traduzido para o inglês, francês e português. Habermas e a Escola de Frankfurt em geral, Althusser, Bourdieu, Gramsci e Baudrillard sublimam uma modificação no caráter das ideologias: menos concepção de mundo que ação no mundo, menos representação do que ação representativa. Remetem também a um momento de maior complexidade das superestruturas e à maior intervenção do Estado, quer na economia, quer na legitimação dos sistemas sociais. Outras mudanças poderiam ser apontadas: Mais concreta, pois inserida no processo de reprodução social global das formações sociais. Mais integrada, ação social e controle; envolve os pólos subjetivo e objetivo. Mais científica e menos filosófica. Até interdisciplinar em alguns casos, com pesquisas empíricas. Neste 24 último item lembramos o célebre estudo de Adorno, nos anos 40, sobre a Personalidade Autoritária. Em "O Capital", Marx (1894), no capítulo da reprodução simples, já analisava o consumo individual do trabalhador como momento da produção e reprodução do capital: "O consumo individual do trabalhador continua sendo, pois, um momento da produção e reprodução do capital, quer ocorra dentro, quer fora da oficina. (...) A constante manutenção e reprodução da classe trabalhadora permanece a condição constante para a reprodução do capital. O capitalista pode deixar tranquilamente seu preenchimento a cargo do impulso de auto-preservação e procriação dos trabalhadores" (pág. 157). Althusser é o único a explorar, de um modo sistemático, porém parcial, estas indicações de Marx. Enuncia da seguinte forma a perspectiva da reprodução, condição necessária para a caracterização das instâncias superestruturais: "Pensamos que é a partir da reprodução que é possível e necessário pensar o que caracteriza o essencial da existência e natureza da superestrutura. Basta colocar-se no ponto de vista da reprodução para que se esclareçam muitas questões que a metáfora espacial do edifício indicava a existência sem dar-lhes resposta conceitual" (Althusser, 1983, pág. 62). Examinemos, brevemente, como algumas dessas questões se apresentam nos autores citados. Comecemos por Bourdieu. Bourdieu: a mediação entre sujeito e história Bourdieu (1983) define habitus como "sistema de disposições duráveis e transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades objetivas" (pág. 82). 25 Para Bourdieu (1983) o habitus é produzido pelas condições de existência das classes: "As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistema de disposições duráveis, estruturasestruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares' sem ser o produto de obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim, sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingí-los; e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente" (págs 60-61). Ortiz (1983) considera o conceito de habitus, no interior da construção bourdieana, como a mediação reencontrada entre sujeito e história: "Enquanto para Sartre, para a construção de uma teoria da prática, encontra a mediação entre sujeito e história no conceito de projeto, que sublinha a especificidade de uma ação colocada no tempo futuro, Bourdieu recupera a velha idéia escolástica de habitus que enfatiza a dimensão de um aprendizado passado" (pág. 14). Althusser: AIE - prática e imaginário Na obra "Aparelhos Ideológicos de Estado", Althusser pretende elaborar uma teoria da ideologia em geral a partir da discussão sobre a reprodução das condições sociais de produção. Antes, Gramsci já havia caminhado nessa direção, e o próprio Althusser (1983) assinala numa nota: 26 "Ao que saibamos, Gramsci é o único que avançou no caminho que retomamos. Ele teve a idéia "singular" de que o Estado não se reduzia ao aparelho (repressivo) de Estado, mas compreendia, como dizia, um certo número de instituições da "sociedade civil": a Igreja, as Escolas, os Sindicatos etc. Infelizmente, Gramsci não sistematizou suas intuições, que permaneceram no estado de anotações argutas, mas parciais" (pag.67). E, antes de Gramsci, Marx e Engels, em "A Ideologia Alemã" (1895), já escreviam: "Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e adquirem através dele uma forma política (pag.98) (grifos meus A.H.H.) Grande parte do esforço de Althusser é o de esclarecer de que forma se dá, concretamente, essa mediação e demonstrar a forma política que assumem as instituições. Althusser parte da formulação de Marx acerca da reprodução e da circulação do capital social total (Marx, 1985, seção III, livro II) para elaborar sua teoria dos aparelhos. Sintetiza da seguinte forma o processo de reprodução expresso no livro II: "Toda formação social para existir, ao mesmo tempo que produz, e para poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção. Ela deve, portanto, reproduzir: 1) as forças produtivas 2) "as relações de produção existentes" (Althusser, 1983, pag.54) A reprodução das forças produtivas consiste na reprodução dos meios de produção e na reprodução da força de trabalho. O "meio material" da reprodução da força de trabalho é o salário; porém, a reprodução da qualificação profissional - 27 segundo Althusser - é feita pela escola, e que ele entende como um conjunto de técnicas e conhecimentos e as regras do bom comportamento. Para Althusser a necessidade de reprodução da qualificação se impõe porque a força de trabalho deve ser competente, deve ser "apta a ser utilizada no sistema complexo do processo de produção" (pag. 57), sendo, portanto, uma das condições sociais de produção. E esta qualificação é reproduzida pela escola, ou melhor, pelo Aparelho Ideológico Escolar , como designa Althusser. Por Aparelho Ideológico de Estado (AIE) deve-se entender: "Designamos pelo nome de AIE um certo número de relidades que apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas" (pag.68). Entre os AIE encontram-se: AIE religiosos, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, de informação e cultural. Althusser distingue ainda entre o Aparelho Repressivo de Estado (ARE) - o governo, a administração, o exército, polícia, prisões etc. - e os AIE: o ARE "funciona através de violência" ao passo que os AIE "funcionam através da ideologia" (pag.69). Segundo Althusser o ARE e os AIE são os reponsáveis pela reprodução das relações de produção e pela reprodução da superestrutura jurídico-política e ideológica. Na construção althusseriana "o aparelho de Estado que assumiu a posição dominante nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classe política e ideológica contra o antigo aparelho ideológico de Estado dominante (a Igreja), é o AIE escolar" (pag.77). Isso porque: "Ela (a escola) se encarrega das crianças de todas as classes desde o maternal, e desde o maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante aqueles anos em que a criança é mais vulnerável". Ao final do processo de escolarização-inculcação "cada grupo dispõe da ideologia que ele deve preencher na sociedade de classe: papel de explorado, (...) papel de agente da exploração, (...) de agente da repressão, (...) ou de profissionais da ideologia" (pag.79). 28 Na parte final do trabalho, na qual Althusser formula suas teses e oferece um exemplo da ideologia religiosa cristã, é onde ele faz suas críticas a Marx. Diz que a concepção da ideologia em "A Ideologia Alemã" não é marxista (sic!), e argumenta: "Na Ideologia Alemã, esta fórmula (a de que a ideologia não tem história) aparece num contexto nitidamente positivista. A ideologia é concebida como pura ilusão, puro sonho, ou seja, nada. Toda a realidade está fora dela. (...) A ideologia é então para Marx uma bricolage imaginário, puro sonho, vazio e vão, constituído pelos "resíduos diurnos" da única realidade plena e positiva, a da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente sua existência. (...) Na ideologia alemã a tese de que a ideologia não têm história é portanto uma tese puramente negativa que significa ao mesmo tempo que: 1) a ideologia não é nada mais do que puro sonho (fabricada não se sabe por que poder a não ser pela alienação da divisão do trabalho, porém esta determinação é negativa). 2) a ideologia não tem história, o que não quer dizer que ela não tenha uma história (pelo contrário, uma vez que ela não é mais que o pálido vazio invertido da história real) mas que ela não tem uma história sua" (pag.83). Para terminar a exposição da formulação de Althusser resumamos suas teses sobre a ideologia: Tese 1 (forma imaginária da ideologia): "A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência" (pag. 85). 29 Tese 2 (materialidade da ideologia): "A ideologia tem uma existência material; no aparelho e em suas práticas" (pag. 88) Tese 3 : "A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos. 3.1: Sua submissão ao Sujeito 3.2: Reconhecimento mútuo 3.3: Garantia de que tudo está bem" (pag. 102-103) E Althusser conclui: "É, certamente, em última instância, a reprodução das relações de produção e demais relações que dela derivam" (pag. 104). Gramsci: uma teoria das superestruturas? Em Os Intelectuais e a Organização da Cultura (I), Gramsci teoriza sobre as instâncias superestruturais. Diz que em grandes traços podem ser distinguidos dois grandes planos superestruturais: 1o Plano: Sociedade Civil, constituída pelo conjunto de organismos ditos privados "que corresponde à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade". 2o Plano: Sociedade Política ou Estado, "que corresponde à função de domínio direto ou de comando que se expressa no Estado e governo jurídico." (cf. I: pág. 11)Segundo Gramsci "os intelectuais são os 'comissários' do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia e do governo político", isto é: 1) do consenso 'espontâneo' dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce 'historicamente' do prestígio (...) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 30 2) do aparato de coerção estatal que asssegura 'legalmente' a disciplina dos grupos que não 'consentem', nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo" (cf. I: pág. 11). Diz ainda em I que a principal instância para a elaboração de intelectuais é a escola. E estabelece uma analogia entre a complexidade do processo produtivo de um determinado país e as suas máquinas e a complexidade da formação social e a elaboração dos intelectuais pela rede de escolas: "A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e pela sua hierarquização: quanto mais extensa for a 'área' escolar e quanto mais numerosos forem os 'graus' 'verticais' da escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um determinado Estado. Pode-se ter um termo de comparação na esfera da técnica industrial: a industrialização de um país se mede pela sua capacidade de construir máquinas que construam máquinas e na fabricação de instrumentos que construam máquinas, etc. (...) Do mesmo modo ocorre na preparação dos intelectuais e nas escolas destinadas a tal preparação, escolas e instituições de alta cultura são similares. Neste campo, igualmente, a quantidade não pode ser destacada da qualidade" (I: pág. 9). Em Concepção Dialética da História (CDH) Gramsci (1987) propõe uma relação das instâncias que compõem a "organização cultural que movimenta o mundo ideológico em um determinado país e cuja investigação seria necessária para o exame de seu funcionamento prático": "A escola - em todos os seus níveis - e a igreja são as duas maiores organizações culturais em todos os países, graças ao número de pessoal que utilizam. Os jornais, as revistas e a atividade editorial, as instituições escolares privadas, tanto enquanto integram a escola de Estado, como enquanto instituições 31 de cultura do tipo das universidades populares. Outras profissões incorporam em sua atividade especializada uma fração cultural não desprezível, como a dos médicos, dos oficiais do exército, da magistratura. Entretanto, deve-se notar que em todos os países, ainda que em graus diversos, existe uma grande cisão entre as massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais próximos à periferia nacional, como os professores e os padres" (CDH: pág.29). Gramsci acrescenta ainda que é o conjunto das superestruturas que mediam a relação entre os intelectuais e o mundo da produção, "como no caso dos grupos sociais fundamentais", dos quais os intelectuais são os "funcionários" (cf. CDH: pág. 10). Vemos agora, com clareza, o que constitutem as "anotações agudas mas parciais" a que Althusser se referia quando falava da obra de Gramsci na formulação de uma teoria sobre a ideologia e as instâncias superestruturais. Destaquemos apenas "alguns indícios" presentes nestas "intuições parciais": - Uma nova formulação ou interpretação da teorização marxista clássica da superestrura jurídico-política e ideológica (sociedade civil e sociedade política), indicando a dinâmica específica de cada plano superestrutural: o funcionamento através da hegemonia e de domínio ou comando. - A mediação realizada pelos intelectuais entre a base econômica e a superestrutura, que unificam a formação social através do consenso espontâneo e da coerção. Indica também uma mudança na característica dos intelectuais, que deixam a função retórica para desempenhar funções organizativas e técnicas. - Formulação de uma teoria da ideologia enquanto realidade material: materialidade expressa nas organizações culturais que "movimentam o mundo ideológico". - Importância que a organização escolar desempenha na elaboração dos intelectuais nas sociedades ocidentais; e o papel que desempenham na reprodução 32 da qualificação profissional e na hierarquização dos intelectuais em "criadores das várias ciências, da filosofia, da arte". os "admnistradores" e os "divulgadores" (cf. I: págs 11-12) Rouanet (1978) é ainda mais veemente, e diz que não pode ser identificada qualquer contribuição original de Althusser às formulações gramscianas, "para o desenvolvimento das observações argutas, mas parciais": "Pois a teoria dos AIE é, do princípio ao fim, (com uma ressalva importante, que mencionaremos mais tarde), a teoria gramsciana do funcionamento da hegemonia na sociedade civil. Gramsciana, a extensão do conceito de Estado, para abranger não apenas o aparelho repressivo, funcionando à base da violência, como também o aparelho ideológico (Gramsci fala, explicitamente, em aparelho hegemônico) funcionando à base do consenso. Gramsciano, o objetivo dos AIE: assegurar a reprodução das relações sociais de produção, termo novo para designar o que Gramsci chamaria, simplesmente, de preservação da hegemonia burguesa, através do cimento ideológico. Gramsciano, a enumeração dos AIE: a religião, a escola, o sistema político, o sistema cultural. Gramsciana, a primazia atribuída à escola entre os AIE" (pág. 102). Habermas: Racionalização - trabalho e interação No artigo "Técnica e Ciência enquanto Ideologia" Habermas (1993) irá desenvolver o conceito weberiano de racionalização, retomado por Marcuse, para examinar a mudança no caráter da ideologia nas sociedades industriais avançadas. Este processo de racionalização progressiva está associado, segundo Habermas, à institucionalização do progresso técnico e científico. A aplicação da razão técnica seria, ao mesmo tempo, dominação e ideologia. Este processo de racionalização seria uma novidade na história mundial: 33 "Ao nível do seu desenvolvimento técnico-científico, as forças produtivas parecem portanto entrar numa nova constelação com as relações de produção: elas agora funcionam não mais como fundamento da crítica das legitimações em vigor para os fins de um iluminismo político, mas, em vez disso, convertem-se elas próprias no fundamento de legitimação. Isso é concebido por Marcuse como uma novidade na história mundial" (pág. 315). A técnica e a ciência tornam-se, segundo Habermas, as principais forças produtivas, "caindo por terra as condições de aplicação da teoria do valor do trabalho de Marx" (cf. pág. 330). Porém, ao mesmo tempo, a técnica e a ciência se tornam ideologia, pois: "Elas substituem as legitimações tradicionais de dominação, ao se apresentarem com as pretensões da ciência moderna e ao se justificarem a partir da crítica da ideologia. As ideologias e a crítica da idelogia são co-originárias. Nesse sentido não pode haver ideologias pré-burguesas" (pág. 326). Não apenas a teoria do valor de Marx perderia a sua aplicação universal, mas até mesmo o conceito de classes e de ideologia: "A sociedade capitalista modificou-se a tal ponto que as duas categorias chaves da teoria de Marx, a saber, luta de classes e ideologia, não podem ser aplicadas sem restrições". Sobre o fundamento do modo de produção capitalista a luta de classes constitui-se como tal pelaprimeira vez, criando assim uma situação objetiva a partir da qual foi possível reconhecer retrospectivamente a estrutura de classe das sociedades tradicionais, cuja constituição era imeditamente política. O capitalismo regulado pelo Estado, surgido a título de reação contra as ameaças ao sistema, geradas pelo antagonismo aberto entre as classes, vem apaziguar o conflito de classes. O sistema de capitalismo em fase tardia é definido por uma políotica de indenizações que garante a fidelidade das massas assalariadas, isto é, por meio de 34 uma política de evitar conflitos, de tal modo que o conflito que, tanto agora como antes, é incorporado na estrutura da sociedade, com a valorização do capital à maneira privada, é aquele conflito que permanece latente com uma probabilidade relativamente maior. Ele recua face a outros conflitos que decerto também dependem do modo de produção, porém, que não podem tomar a forma de um conflito de classes (pág.323). Dado esse - sombrio - quadro, voltemos a examinar como Habermas desenvolve o conceito de racionalização. Para reformular esse conceito Habermas (1983) começa estabelecendo a distinção entre trabalho e interação: "Entendo por 'trabalho', ou agir-racional-com-respeito- a-fins, seja o agir instrumental, seja a escolha racional, seja a combinação dos dois. O agir instrumental rege-se por regras técnicas baseadas no saber empírico. Elas implicam, em cada caso, prognósticos condicionais sobre acontecimentos observáveis, físicos ou sociais; esses prognósticos podem se evidenciar como corretos ou como falsos. O comportamento de escolha racional é regido por estratégias baseadas no saber analítico. Elas implicam derivações a partir de regras de preferência (sistemas de valores) e de máximas universais." Por outro lado, entendo por agir comunicativo uma interação mediatizada simbolicamente. Ela se rege por normas que valem obrigatoriamente, que definem as expectativas de comportamento recíprocas e que precisam ser compreendidas e reconhecidas por, pelo menos, dois sujeitos agentes. Normas sociais são fortalecidas por sanções. Seu sentido se objetiva na comunicação mediatizada pela linguagem corrente" (pág. 321). Estabelecida a distinção entre trabalho - como agir instrumental ou agir racional - e interação - como agir comunicativo, Habermas (1983) passa a classificar os sistemas sociais segundo a predominância de um ou outro tipo de ação. Para ele são dois os subsistemas, o quadro institucional e os sistemas do agir-racional-com-respeito-a-fins, que são assim definidos: 35 "O quadro institucional de uma sociedade consiste de normas que guiam as interações verbalmente mediatizadas. Mas existem subsistemas, tais como o sistema econômico e o aparato de Estado, para ficarmos com os exemplos de Max Weber, nos quais são institucionalizadas principalmente proposições sobre ações racionais-com-respeito-a-fins. Do lado oposto, encontram-se subsistemas, tais como família e parentesco, que decerto são conectados a um grande número de tarefas e habilidades, mas que repousam principalmente sobre as regras morais da interação. Assim, no plano analítico convém distinguir, de modo geral: (1) o quadro institucional de uma sociedade ou o mundo do viver sócio-cultural e (2) os subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins 'encaixados nesse quadro institucional" (págs 321-322). Baudrillard: o sistema de necessidades como força produtiva Baudrillard (s/ d.) em A Sociedade de Consumo, a exemplo de Habermas, identifica e assinala as modificações no caráter da ideologia no capitalismo em sua fase tardia: "Em termos breves e sumários, diremos que o problema fundamental do capitalismo contemporâneo não é a contradição entre 'a maximização do lucro' e a 'racionalização da produção' (ao nível do empresário), mas entre a produtividade virtualmente ilimitada (ao nível da tecno-estrutura) e a necessidade de vender os produtos. Nesta fase, é vital para o sistema controlar não só o aparelho de produção, mas a procura de consumo; não apenas os preços, mas o que se procurará a tal preço. O efeito geral, que por meios anteriores ao próprio acto de produção (sondagens, estudo de mercado) quer posteriores (publicidade, 'marketing', condicionamento), é 'roubar' ao compredor - esquivando-se nele a todo o controlo - o poder de decisão e transferí-lo para a empresa, onde poderá ser manipulado" (págs 79-80). 36 Elabora um genealogia do consumo para demonstrar, o progressivo movimento de racionalização do sistema industrial, no qual o sistema de necessidades torna-se "força consumptiva": "Ao longo da história do sistema industrial, pode-se rastrear-se a genealogia do consumo: 1. A ordem de produção produz a máquina/força produtiva abstrata, sistema técnico radicalmente diferente do instrumento tradicional; 2. Produz o capital/força produtiva racionalizada, sistema de investimento e de circulação racional, radicalmente diferente da 'riqueza' e dos anteriores modos de troca. 3. Produz a força de trabalho assalariado, força produtiva abstrata, sistematizada, radicalmente diferente do trabalho concreto, do trabalho tradicional. 4. Produz assim as necessidades, o sistema das necessidades, a procura/força produtiva como conjunto racionalizado, integrado, controlado, complementar dos outros três no processo de total controlo das forças produtivas e dos processos de produção. As necessidades enquanto sistema diferem radicalmente da fruição e da satisfação. São produzidas como elementos de sistema e não como relação de um indivíduo ao objeto" (pág. 84). Mais adiante Baudrillard afirma que o consumo, ao se tornar força produtiva, torna-se, ao invés de esfera de realização das necessidades e da liberdade, a dimensão da coação: "As necessidades e as satisfações dos consumidores são forças produtivas, atualmente forçadas e racionalizadas como as outras (forças de trabalho, etc.). O consumo, onde quer que o explorávamos (com dificuldade), contra a intenção da ideologia vivida, como dimensão da coação: 1. Dominado pelo constrangimento de significação, ao nível da análise estrutural. 37 2. Dominado (pelo constrangimento de produção e do ciclo da produção, na análise estratégica (sócio-econômica-política)" (págs 93-94). Para Baudrillard o sistema de consumo juntamente com o sistema eleitoral são as duas fontes principais de legitimação do sistema industrial: "A mística bem alimentada (...) da satisfação e da escolha individuais, ponto culminante de uma civilização da 'liberdade', constitui a própria ideologia do sistema industrial, justificando a arbitrariedade e todos os danos coletivos: lixo, poluição, desculturação - de fato, o consumidor é soberano em plena selva de fealdade em cujo seio se lhe impôs a liberdade de escolha. A fieira invertida (ou seja, o sistema de consumo) completa, e vem revezar, no plano ideológico, o sistema eleitoral. O 'drugstore' e a cabine de voto, lugares geométricos da liberdade individual, são também as duas mamas dos sistema" (pág. 81). IV - CAPITAL MONOPOLISTA: A base material da racionalização e da ideologia O ponto comum a todas essas formulações de ideologia é, além daquelas já apontadas, a associação das alterações à passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo em sua fase e estruturação monopolista. Recentemente alguns autores falam de uma nova e mais radical ruptura: as sociedades pós-industriais fundadas na tecnologia informatizada. Em alguns momentos Baudrillard (s/ d.), em "A Sociedade de Consumo", alterna os termos sociedade industrial e sociedade pós-industrial (cf., por exemplo, pág.47). Não teremos, infelizmente, oportunidade de abordar essa. Braverman (1981) assim caracteriza o capital monopolista, indicando a passagem do capitalismo concorrencial para monopolista a partir 1870-1880: "Concorda-se geralmente que o capital monopolista teve início nas últimas duas ou três décadas do século XIX. Foi então que a concentração e centralização do capital, sob a forma dos primeiros trustes, cartéis e outras formas de 38 combinação, começaram a firmar-se; foi então, consequentemente, que a estrutura moderna da indústria e das finanças capitalistas começou a tomar forma. Ao memo tempo a rápida consumação da colonização do mundo, as rivalidades internacionais e os conflitos armados pela divisão do globo em esferas de influência econômica ou hegemonia inauguraram a moderna era imperialista. Desse modo, o capitalismo monopolista abrange o aumento de organizações monopolistas no seio de cada país capitalista, a internacionalização do capital, a divisão internacional do trabalho, o imperialismo, o mercado mundial e o movimento mundial do capital, bem como as mudanças na estrutura do poder estatal" (págs 215-216). Para Habermas (1983) a ruptura ou transição se dá, aproximadamente, a partir de 1875: "Até a metade do século XIX, o modo de produção capitalista se impôs a tal ponto, na Inglaterra e na França, que Marx pôde reconhecer o quadro institucional da sociedade nas relações de produção e, ao mesmo tempo, criticar o fundamento de legitimação da troca dos equivalentes. Ele elaborou a crítica da ideologia burguesa em forma de economia política: sua teoria do valor trabalho destruiu a aparência de liberdade, na qual a relação de violência social, subjacente à relação do trabalho assalariado, tornara-se irreconhecível pela instituição jurídica do livre contrato de trabalho". (...) "Desde a última quarta parte do século XIX, nos países capitalistas mais avançados, duas tendências de desenvolvimento podem ser notadas: (1) um acréscimo da tendência intervencionista do Estado, que deve garantir a estabilidade do sistema, e (2) uma crescente interdependência entre a ciência e a técnica, que transformou a ciência na principal força produtiva. Ambas as tendências perturbam aquela constelação do quadro institucional e dos 39 subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins, pela qual se caracterizava o capitalismo desenvolvido dentro do liberalismo" (págs 327-328). Esse novo estágio altera até mesmo a concepção marxista de formação social, a relação entre o sistema econômico e o sistema de dominação: "Política não é apenas mais um fenômeno de superestrura. Se a sociedade não continua mais a se auto-regular de 'maneira autônoma' como uma esfera subjacente ao Estado e por ele pressuposta - e essa era a verdadeira novidade do modo capitalista de produção - a sociedade e o Estado não estão mais numa relação que a teoria marxista determinou como relação entre a base e a superestrutura. Mas, então, uma teoria crítica da sociedade também não pode mais ser formulada exclusivamente em termos de uma crítica da economia política" (Habermas, 1983, pág. 328). Gramsci identifica uma alteração na relação entre sociedade civil e sociedade política a partir de 1848. Em diversos pontos de "Maquiavel, a Política e o Estado Moderno" (MPE) Gramsci (1989) apresenta a distinção entre as sociedades oriental e ocidental, que apresentam diferentes configurações de sociedade civil e sociedade política. A distinção é traçada na polêmica de Gramsci contra as concepções revolucionárias de Trotski e Rosa Luxenburg. Para caracterizá-la destacaremos três trechos: "A técnica política moderna mudou completamente depois de 1848, depois da expansão do parlamentarismo, do regime associativo sindical e partidário, da formação de amplas burocracias estatais e 'privadas' (político-privadas, partidárias e sindicais) e das transformações que se verificaram na política num sentido mais largo, isto é, não só do serviço estatal destinado à repressão da delinquência, mas do conjunto das forças organizadas pelo Estado e pelos particulares para tutelar o domínio político e econômico das classes dirigentes" (pág. 65). 40 "No Oriente, o estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, entre o Estado e a sociedade civil havia uma justa relação, e em qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas" (pág. 75). "Conceito político da chamada 'revolução permanente', surgido antes de 1848, como expressão cientificamente elaborada das experiências jacobinas de 1789 em Termidor. A fórmula é própria de um período histórico em que não existiam ainda os grandes partidos políticos de massa e os grandes sindicatos econômicos, e a sociedade estava ainda, por assim dizer, no estado de fluidez sob muitos aspectos: maior atrazo do campo e monopólio quase completo da eficiência político-estatal em poucas cidades ou numa só (Paris para França); aparelho estatal relativamente pouco desenvolvido e maior autonomia da sociedade civil em relação à atividade estatal; determinado sistema das forças militares e do armamento nacional; maior autonomia das economias nacionais no quadro das relações econômicas do mercado mundial, etc" (pág. 91-92). A diferença fundamental entre as sociedades oriental e ocidental, ou das sociedades anteriores e posteriores a 1848, é justamente a maior complexidade dos planos superestruturais presentes nas segundas, que pode ser constatada na expansão do parlamentarismo, nos grandes partidos de massa e sindicatos econômicos, na expansão das burocracias, dos serviços estatais, etc. No oriente o Estado era o centro do poder e da vida nacional, por isso a sociedade civil era "primordial e gelatinosa". É a partir da distinção entre oriente e ocidente que Gramsci elabora sua estratégia revolucionária para as sociedades ocidentais: a fórmula da hegemonia civil. 41 A mesma temática pode ser encontrada em Pollock, associando a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo de Estado e a alteração nas formas ideológicas. Cohn (1986) diz: "A universalização do primado do valor de troca sobre o valor de uso, da equivalência sobre a diferença qualitativa, imprime à sociedade como um todo a lógica da ideologia. (...) O todo, para se reproduzir como tal, é o falso: apóia-se na falsidade necessária e portanto nuito real da ideologia. Mas isso, a rigor, aplica-se ao capitalismo concorrencial. No capitalismo monopolista concebido por Pollock, ou seja, como capitalismo de Estado, em que as relações diretas de poder substituem as relações de poder mediadas pelo lucro e pela propriedade, abre-se a possibilidade de se ter a mercadoria sem a contrapartida ideológica da igualdade. O nome disso é fascismo" (pág. 13). A ideologia passa assim a ser uma das condições de reprodução da sociedade burguesa: "Na versão da TCS [Teoria Crítica da Sociedade], sobretudo devido à contribuição de Horkheimer, mas com a adesão de Adorno, a elaboração da idéia de que a reprodução da sociedade burguesa se faz por processos que necessariamente passam pela consciência dos homens é levada um passo adiante, para chegar-se à formulação de que, na realidade, ela passa pela configuração socialmente determinada dos próprios homens que, no final, a reproduzem. Vale dizer, a questão de como se sustenta e se reproduz o sistema, recebe uma resposta - a ideologia - e passa-se a outra questão, sobre quem a sustenta. E aqui a respostacombina a análise ideológica com a pesquisa sóciopsicológica, em busca dos tipos de personalidade social" (Cohn, 1983, pág. 14). A este novo estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista, a este novo caráter da ideologia, correspondem formas de sustentação e reprodução também novos, ou seja, novas formas de controle. Não mais normativos, mas baseados em excitantes externos: 42 "As sociedades industrialmente desenvolvidas parecem aproximar-se do modelo de um controle de comportamento que, em vez de ser guiado por normas, é antes dirigido por excitantes externos. A direção indireta por estímulos estabelecidos aumentou, principalmente nos setores da liberdade aparentemente subjetiva (comportamento nas eleições, no consumo, no tempo livre). A rubrica social-psicológica da nossa época é caracterizada menos pela personalidade autoritária do que pela desestruturação do superego. Um aumento do comportamento adaptativo é apenas o reverso da medalha de um processo de dissolução da esfera de interação verbalmente mediatizada, dentro da estrutura do agir racional-com-respeito-a-fins" (Habermas, 1983, págs 332-333). Gramsci, em "Americanismo e Fordismo" (Gramsci, 1989, MPE: págs 375- 413) analisava o americanismo e o fordismo no contexto da passagem do individualismo econômico para a economia programática: "No geral, pode-se dizer que o americanismo e o fordismo derivam da necessidade iminente de organizar uma economia programática e que os diversos problemas examinados deveriam ser os elos da cadeia que assinalam exatamente a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática. Estes problemas surgem em virtude das diversas formas de resistência que o processo de desenvolvimento encontra, resistência provocada pelas dificuldades inerentes à societas rerum e à societas hominum. Um movimento progressista iniciado por uma determinada força social não deixa de ter consequências fundamentais: as forças subalternas, que deveriam ser 'manipuladas' e racionalizadas de acordo com os novos objetivos, resistiram inevitavelmente" (págs 375-376). E em que reside precisamente essa dificuldade? Gramsci responderá que a racionalização do processo de produção e de trabalho, através da introdução de novos métodos, cria, e, ao mesmo tempo, pressupõe, uma nova ética sexual: 43 "Toda crise de coerção unilateral no campo sexual acarreta um delírio "romântico" que pode ser agravado pela abolição da prostituição legal e organizada. Todos estes elementos complicam e tornam dificílima qualquer regulamentação do problema sexual e qualquer tentativa de criar uma nova ética sexual que esteja de acordo com os novos métodos de trabalho e de produção. Por outro lado, é necessário criar essa regulamentação e uma nova ética. Deve-se destacar o relevo que os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas relações sexuais dos seus dependentes e de suas famílias; a aparência do 'puritanismo' assumida por este interesse (como no caso do proibicinismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não é possível desenvolver o novo tipo de homem solicitado pela racionalização da produção e do trabalho, enquanto o instinto sexual não for absolutamente regulamentado, não for também ele racionalizado" (MPE: págs 391-392, grifos meus, AHH). Assim sendo, a modificação no modo de vida, ao mesmo tempo em que é condicionada pelos novos métodos de produção e de trabalho, torna-se também uma condição para o sucesso da implantação desses novos métodos, ou seja, a nova ética sexual torna-se uma das condições sociais da produção em moldes fordianos, e essa ética reproduzirá a forma das relações de produção: será racionalizada e regulamentada. Mais adiante Gramsci (1989) observa: "É interessante notar que não se tentou aplicar ao americanismo a fórmula de Gentile sobre a 'filosofia que não se enuncia através de fórmulas, mas se afirma na ação'; isto é significativo e instrutivo, porque se a fórmula tem valor, é exatamente o americanismo que pode reivindicá-la. Ao contrário, quando se fala de americanismo, diz-se que ele é 'mecanicista', grosseiro, brutal, isto é, 'pura ação', opondo-se a ele a tradição, etc. (...) Esta contradição pode explicar muitas coisas: por exemplo, a diferença entre a ação real que modifica essencialmente tanto o homem como a realidade exterior (a cultura real), o que é o americanismo, 44 e o esgrimismo galhofeiro que se autoproclama ação, mas só modifica o vocabulário, não as coisas; o gesto exterior, não o homem interior. A primeira está criando um futuro que é intrínseco à sua atividade objetiva e sobre a qual prefere silenciar. O segundo apenas cria fantoches aperfeiçoados, moldados sobre um figurino retoricamente prefixado, e que cairão no nada quando forem cortados os fios externos que lhe dão a aparência de movimento e de vida" (págs 401-402). Vemos, portanto, nesses autores, que a problematização da ideologia é inserida na reprodução global das formações sociais. Em Althusser a necessidade de reprodução liga-se, ou melhor, expressa-se enquanto necessidade de reprodução da qualificação profissional; em Habermas, a reprodução do agir racional, a razão capitalista, está vinculado diretamente ao crescimento das forças produtivas; em Baudrillard o sistema de necessidades é elemento que integra o próprio sistema produtivo; em Bourdieu os estilos de vida e os gostos de classe reproduzem as condições de existência das classes. Constitui também um ponto comum a racionalização progressiva de todas as esferas da vida social: racionalização do instinto e da produção para Gramsci; do trabalho e da interação para Habermas; do trabalho e do tempo livre para Baudrillard. Gramsci parece ser o primeiro a pensar a unidade base/superetruturas na perspectiva da reprodução global das formações sociais. Pensa essa unidade em termos políticos: designa-a de bloco histórico, cimentado pela hegemonia do grupo dominante que é difundida pelos intelectuais. O momento da ruptura é consenso: a partir das últimas décadas do século XIX, na passagem para o capitalismo monopolista. As alterações indicadas por Gramsci, já a partir de 1848, são avaliações predominantemente políticas, do que do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, como em Braverman e Habermas. 45 Outra questão a ser investigada também é histórica: os contextos semelhantes em que Gramsci e A Escola de Frankfurt elaboram suas teorias: regimes totalitários, fascista e nazista. Se é verdade que existem semelhanças nas formulações e contextualizações da ideologia entre os autores que aqui analisamos, o mesmo não é valido para os seus pressupostos e perspectivas. Apontemos algumas incompatibilidades: Althusser e Gramsci conservam como pressuposto as lutas de classes. Na Escola de Frankfurt a luta de classes entra num estado de latência, elas são suspensas através de programas substitutivos de satisfação, pela distribuição e pela barganha (cf. Habermas, 1983, pág. 334). Gramsci vê possibilidade de ruptura do ciclo de reprodução, ou seja, uma perspectiva revolucionária através da estratégia de hegemonia civil. Em Alguns Temas da Questão Meridional, Gramsci (1978) demostra que para o proletariado romper o ciclo de reprodução global da formação social italiana, este deve resolver as questões meridional e vaticana. Permitam-nos, agora, propor algumas esquematizações desses movimentos: Como vimos, para Althusser o ARE e os AIE são os reponsáveis pela reprodução das relações de produção e pela reprodução da superestrutura jurídico- política e ideológica: ARE e AIEs -->>
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