Prévia do material em texto
CODO, W. & SAMPAIO, J. (orgs). Sofrimento Psíquico nas Organizações. Petrópolis,
RJ: Vozes,1995.
Sofrimento Psíquico nas
Organizações - Saúde Mental &
Trabalho
Wanderley Codo
José Jackson Coelho Sampaio
(organizadores)
Índice
Á guisa de apresentação......................................................................3
Parte 1. Como fazer?........................................................................6
Capítulo 1. Ideologia e Reprodução.....................................................10
(Alberto H. Hitomi)
Capítulo 2. O conhecimento do trabalhador
e a teoria das representações sociais.................................38
(Leny Sato)
Capítulo 3. Saúde mental e trabalho, um novo (velho) campo
para a investigação da subjetividade....................................................47
(Ricardo Augusto de Carvalho)
Capítulo 4. Saúde e trabalho: Uma abordagem do processo e
jornada de trabalho............................................................................53
(José Jackson Coelho Sampaio, Alberto H. Hitomi,
Erasmo Miessa Ruiz)
Capítulo 5. Saúde mental e trabalho: um modelo de investigação...........71
(José Jackson Coelho Sampaio, Wanderley Codo,
Alberto H. Hitomi)
Parte II. Mulher e trabalho............................................................94
Capítulo 6. A saúde da mulher trabalhadora........................................96
(Isabel Cristina Ferreira Borsoi)
2
Capítulo 7. Professora primária, amor e dor......................................107
(Hilma Tereza Tôrres Khoury Carvalho)
Capítulo 8.Enfermagem, trabalho e cuidado......................................118
(Isabel Cristina Ferreira Borsoi, Wanderley Codo)
Capítulo 9.Trabalho e identidade em telefonistas...............................129
(Isabel Cristina Ferreira Borsoi, Erasmo Miessa Ruiz,
José Jackson Coelho Sampaio)
Capítulo 10. Relações creche-família...............................................148
(Wandeley Codo, Ana Maria de A. Mello)
Capítulo 11 Histeria em creches.......................................................................156
(Wanderley Codo)
Parte III. Sofrimento psíquico no trabalho.......................................
Capítulo 12.Saúde mental e trabalho: Trabalhadores
Industriais de usina de cana de açúcar............................................168
(José Jackson Coelho Sampaio, Lucia Helena Soratto)
Capítulo 13. Saúde mental e trabalho têxtil......................................191
(José Jackson Coelho Sampaio, Cleide Carneiro)
Capítulo 14. Saúde Mental e Trabalho na clínica psicológica (a ser introduzido)
(Maria Celeste A.G. Almeida)
Capítulo 15. Os efeitos das novas tecnologias sobre
os trabalhadores e suas organizações.............................................205
(Luis Antonio Lima, Leila Maria Arnaldo
Nonnenmacher)
3
Capítulo 16.Paranóia e Trabalho....................................................232
(Wanderley Codo, Alberto H. Hitomi, José Jackson Coelho Sampaio,
Erasmo Miessa Ruiz)
Capítulo 17. A síndrome do trabalho vazio em bancários.................251
Wanderley Codo, José Jackson Coelho Sampaio, Alberto H. Hitomi,
Marin Bauer)
Bibliografia.................................................................................264
4
À guisa de apresentação
O livro que ora entregamos a julgamento, embora tenha sua independência
para qualquer leitor que por ele se aventure, segue a trilha de o " Indivíduo,
Trabalho e Sofrimento", lançado pela Vozes em 1993.
Aquele trabalho refletiu os primeiros vôos do Projeto Saúde Mental &
Trabalho, o qual coordeno, tratava-se de lidar com questões básicas para quem
quis desenvolver uma área de pesquisa, afinal? de que trabalho estamos falando,
de tripalium ou poiesis?, afinal? como conceituar saúde/doença mental? Se até
agora as teorias que abordam o tema foram construídas à distância dos portões das
fábricas? Tratou-se de uma reunião de ensaios articulados, capaz, os autores
concordávamos, de compartilhar nossas caminhadas e, com sorte, auxiliar a quem
faz do trabalho alheio motivo de reflexão.
Este livro parte das constatações reportadas em o "Indivíduo, Trabalho e
Sofrimento", agora enfocando categorias profissionais que foram, durante estes
anos, objetos de investigação.
Talvez seja útil saber sua história.
Em 1990/91, enquanto estava na Europa, em busca do aperfeiçoamento de
metodologia para o PSM&T, o Dr. Jackson me substituiu na coordenação do
projeto, entre as espinhosas incumbências que acordamos, estava a realização de
um congresso sobre SM&T, seria uma chance de ouvir e debater com os colegas
envolvidos com o tema.
A montagem que o Dr. Jackson realizara, nos fez perceber que tinhamos
diante de nós um painel, o mais completo possível à época, desta área no Brasil;
5
resolvemos então o pedido das contribuições por escrito, com a mente voltada para
a realização deste livro.
Seria, portanto, em um primeiro momento, a publicação de anais do 1º
Encontro Nacional de SM&T. O congresso ocorreu e com aquelas características
que imaginávamos, o mesmo não se deu com este livro. Algumas pessoas não
entregaram o texto, outras apenas rascunhos que por mais instigantes não se
prestavam à publicação. Avaliado o material que tinhamos à mão, com excessão
de dois artigos, restava o nosso grupo e seus desdobramentos em outros estados.
Uma pena que vários pesquisadores não puderam estar presentes, em
compensação o livro que ora vem a público ganhou mais unidade, reflete, com
suas riquezas e idiossincrasias nossa produção de 1988 até 1992.
Jackson Sampaio e Alberto Hitomi dividiram comigo a tarefa de direção do
projeto, o primeiro encarregado de Psiquiatria e Epidemiologia, o segundo
coordenando as nossas incursões em sociologia do trabalho. Os psicólogos Isabel
Cristina Borsoi e Erasmo Ruiz estavam praticamente em tempo integral conosco,
se responsabilizando na prática por vários estudos aqui publicados. Lúcia e Cleide
eram estagiárias dedicadas que participaram de perto do projeto, como bolsistas.
Alhures, Luis Lima e Leila Maria trabalhavam em uma firma de consultoria
em Porto Alegre utilizando o mesmo método e em parceria conosco. Hilma fazia o
mesmo com sua tese de mestrado, orientada por mim em Belém do Pará. Martin
Bauer foi meu parceiro, valioso e ocasional na London School of Economics, ao
formular a "síndrome do trabalho vazio" na Inglaterra e Ana Maria Mello me
auxiliou com sua experiência e senso inovador no estudo sobre Creches.
Leny Sato e Ricardo de Carvalho comparecem aqui como dois
pesquisadores dedicados e produtivos que são nesta área, Leny vem atuando
sistematicamente no DIESAT, Departamento Intersindical de Estudos de Saúde do
Trabalhador, atuando como pesquisadora sobre o conceito de penosidade, sua
contribuição neste livro é sobre o tema, Ricardo coordena e descreve aqui a
6
experiência do NESTH, Núcleo de Estudos sobre Saúde do Trabalhador de Minas
Gerais, ligado à UFMG, na minha opinião um centro interdisciplinar importante e
único do país. Se notará as ligeiras diferenças de abordagem em seus artigos, mas
o que deve ser ressaltado é a unidade de propósitos em cada um dos modos de
atuação.
Não seremos nós a dizer sobre a validade destes estudos para a melhor
compreensão e intervenção na saúde mental no trabalho. Se houver alguma ela se
deve, na minha opinião à uma forma de se engajar na lida científica que vale a
pena explicitar.
Quando garoto, leitor assíduo de história em quadrinhos, me lembro de uma
ficção (se não me engano tratava-se de "Mandrake"),onde havia invasores
observando a terra visando uma posterior invasão, ao passear com sua nave por
uma fazenda, e depois pelo jockey clube notaram que homens serviam comida aos
cavalos, concluiram portanto que os equinos eram os senhores aqui, os primeiros a
serem dominados, portanto. Já iniciando a minha carreira científica, no
departamento de Psicologia Experimental da USP, intrigou-me o fato de que um
colega de pós-graduação escolhera como animal para suas pesquisas a periplaneta
americana, nome vulgar; barata, sua resposta: "Estudo baratas porque por elas não
posso ter o mínimo sentimento".
Iniciei minha carreira como behaviorista, e talvez tenha abandonado os
canones de Skinner exatamente pela crítica ao estranhamento como método de
aquisição do conhecimento.
Em uma rápida conversa que tive com Christophe Dejours em Paris, ele
pediu que descrevesse o método com que trabalhávamos, quando falava que
costumávamos realizar uma observação detalhada do processo de trabalho, de
preferência com vídeo, ele discordou profundamente ("Nous sommes anti
objetiviste"), me explicava que a observação atrapalha a atenção ao discurso do
trabalhador, que a palavra dele deveria ser a única fonte de dados.
7
Pois bem, ouso discordar também deste tipo de miopia: Sei e abuso da
importância de ouvir, cuidadosamente, carinhosamente os trabalhadores, mas não
foi a psicanálise, exatamente os postulados que orientam o trabalho de Dejours
que nos ensinou a todos que não sabemos, ou queremos esquecer as razões do
nosso sofrimento?
Um exemplo deve bastar:
Em 1981, para a minha tese de doutoramento, olhando o controle de
qualidade de uma fábrica de eletro eletrônicos, dei-me conta de um osciloscópio
simplificado que atestava a qualidade de alguns circuitos. Ao entrevistar o
trabalhador ele me dizia de um aparelho extremamente complicado, com "milhares
de curvas", conclui na época que o trabalhador estava valorizando subjetivamente
o próprio trabalho, já que sabia (inconscientemente?) que poderia ser substituído
por qualquer um. O discurso apenas poderia nos revelar isto?
O projeto saúde mental & trabalho, cuja parte dos resultados são mostrados
neste livro, busca a objetividade mas desconfia dela, checa com o próprio sujeito a
validade de suas observações, respeita o discurso alheio como critério de verdade,
mas não permite que ele seja o único farol a descortinar o caminho.
Tecnicamente falando, desenvolvemos uma fusão entre o método dedutivo
e o método indutivo, que tem se mostrado, a nós pelo menos, como altamente
produtiva. Às vezes, é claro, nos perdemos no caminho, mas quando achamos
algo, as descobertas tem resistido ao crivo da praxis ou à exigência da ciência
rigorosa.
Que se examine o resultado.
Wanderley Codo
8
Parte I.
Como Fazer
9
saúde e\ou doença mental nos atinge no que temos de mais subjetivo, no
sentido de pertencente estritamente ao sujeito, territórios inexpugnáveis ao
outro, e via de regra a nós mesmos, não há, não pode haver dois delírios
iguais: as dores que o histérico/hipocondríaco inventa, doem na exata medida de
sua radical idiossincrasia, da sua impossibilidade também radical de
compartilhamento, da ausência de uma racional exteriorizada, de seu desrespeito à
anatomia, quem sofre é o sujeito, não mais os músculos do seu pescoço. A
saúde/doença mental obriga o pesquisador a enfrentar o dilema do indivíduo,
sempre outro no momento em que a lógica ousa desvendá-lo.
A
No entanto, e não raro, a doença mental é determinada exteriormente ao
indivíduo, por fatores que chamaremos de objetivos, no sentido de independentes
do sujeito: algumas drogas, por exemplo, provocam invariavelmente alucinações,
os efeitos dos traumas sexuais na infância são conhecidos o suficiente para
permitir aos educadores traçar uma rota profilática na escola ou na família. Eis o
pesquisador obrigado, agora a percorrer caminho inverso: impõe-se a 'eliminação'
da idiossincrasia, a busca de invariantes, o que, apesar das nossas diferenças
individuais está provocando aqueles sintomas?
É assim, particularmente na área que Le Guillant chamava de
psicopatologia do trabalho, e que hoje chamamos de saúde mental no trabalho, por
mais que o trabalho compareça como estranho ao sujeito que o realiza, por mais
que crave a sua história em momentos alhures á existência deste trabalhador em
particular, tem-se revelado capaz de provocar sofrimentos, no sentido mais
intimista que esta palavra pode ter.
Eis a principal armadilha que esta área de conhecimento esconde, eis
também, para mim, o seu principal fascínio: A necessidade de olhar
cuidadosamente a árvore, a imposição de não olvidar a floresta. Nada mais
racional do que o trabalho, nada mais insensato do que a doença mental (tantas
vezes insensatez aparece como sinônimo de loucura), o trabalho preso
10
inelutavelmente ao que a trama social tem de mais objetivo, a doença mental
escrava do que o sujeito preserva como seu, intransferível, inominável.
Tema complexo este, como se costuma dizer quando a nossa ignorância é
maior do que podemos suportar.
Que seja uma experiência pessoal.
Ao lecionar Saúde mental e trabalho no curso de Psicologia em Ribeirão
Preto, adquiri o hábito de fornecer leituras sobre os quadros psicopatológicos desta
ou daquela categoria profissional, e depois solicitar a um trabalhador que nos
conceda uma entrevista em profundidade, para que os alunos possam checar o
material de leitura com a experiência sensível do trabalhador, tal e qual o
trabalhador o reporta. Em um destes exercícios, pedi a leitura do clássico "A
neurose das telefonistas", de Le Guillant, e entrevistei uma telefonista do campus,
enquanto os alunos observavam.
Não há como disfarçar o espanto; outro país, outras condições sociais e de
trabalho, outra pessoa e, no entanto, visivelmente o mesmo quadro descrito a tanto
tempo pelo médico francês. Não há também como iludir o fato de que, por
melhores que sejam as descrições sobre o trabalho da telefonista e suas neuroses,
por mais que cada pesquisador desta área tente sua incursão no problema, ainda
não a compreendemos.
Tenho para mim que as telefonistas estão encalacradas em uma linha muito
tenue entre a comunicação e o silêncio, e que não se compreenderá suas neuroses
enquanto não se compreender aqueles mistérios. Mas sabemos tão pouco sobre a
linguagem e sequer temos idéia do que é o silêncio! Como compreender as dores
d'alma que acometem aquelas trabalhadoras postas diante, milhares de vezes por
dia ante um dilema tão velho? Outra vez, como passear entre a árvore e a floresta,
sem perder de vista qualquer um dos dois universos, ou o que é pior, sem se deixar
encantar por um deles, apagando inconscientemente o outro?
11
A primeira parte deste livro é dedicada a este problema.
O primeiro texto foi escolhido por lidar com um rigor raro sobre a questão
da ideologia, apesar de não abordar diretamente a questão da saúde mental no
trabalho. Alberto Hitomi consegue passear com ousadia entre as várias
formulações que o conceito vem sofrendo, exercitando uma crítica aguda e sempre
com um mesmo eixo; como a História é capaz de produzir estórias, ou ainda,
como a organização objetiva da produção produz e reproduz representações, que
apesar de coletivas, ainda trazem a marca da subjetividade do seu tempo. Penso
que Hitomi consegue mapear o problema (ninguém ousaria pedir para resolvê-lo,
retomando escritos de Marx e seguidores a partir deles mesmos, sabendo ler, com
acuidade cada uma das formulações, por mais provisórias que apareçam nos
clássicos. Será inútil,suponho, discorrer sobre a importância do conceito de
ideologia para as pesquisas de Saúde Mental no Trabalho.
É ao mesmo problema, embora com outra abordagem que Leny Sato se
dedica, percorre as formulações (basicamente francesas) de representação social,
em busca de compreender o intercruzamento entre objetividade e subjetividade na
formulação do conceito de trabalho penoso, chama a atenção para a necessidade
do conhecimento científico ter em conta um outro conhecimento, que vai se
estruturando no cotidiano de quem sofre e precisa reconhecer as mazelas do
trabalho cotidiano.
Ricardo Augusto relata as experiências de um grupo de Minas, há tempos e
com seriedade dedicado aos problemas de saúde no trabalho, particularmente no
que tange ao trabalhador enquanto sujeito, e aos modos de operar com esta
subjetividade, o texto está aqui para que se ressalte a importância metodológica do
discurso na compreensão do sofrimento do trabalhador.
Jackson Sampaio, Hitomi e Erasmo Ruiz comparecem com uma discussão
importante sobre processo e jornada de trabalho em um texto que procura mapear
as variáveis que devem ser tomadas em conta no processo de trabalho, se
12
quisermos aprofundar nosso conhecimento sobre a forma como os trabalhadores
adoecem na produção.
Esta seção fecha com um texto que descreve a forma como o projeto Saúde
Mental e Trabalho vem enfrentando a questão do método, propositalmente
esquemático, o texto procurou ser um guia de atuação em pesquisa nesta área, um
"how to do", que não pretende aprofundar em cada uma das direções apontadas.
Além de seu valor intrínsico, para quem se interessa pela área, o texto evita que se
decline a metodologia em cada um dos estudos apresentados a seguir, já que quase
todos seguem os mesmos parâmetros apontados aqui.
Wanderley Codo
13
Capítulo 1.
IDEOLOGIA E REPRODUÇÃO
ALBERTO H. HITOMI
I – INTRODUÇÃO
Já se tornou um lugar comum afirmar que a concepção de ideologia expressa em
"A Ideologia Alemã" deve ser entendida como falsas idéias. Esta interpretação
surge a partir da analogia que Marx e Engels estabelecem entre a produção de
idéias, de representações, da consciência e a inversão da imagem na retina.
Esta compreensão é expressa, por exemplo, por Durham (1984):
"Desde os ideólogos franceses até o jovem Marx da Ideologia Alemã e
permeando em seguida boa parte tanto da tradição marxista quanto da positivista,
está a convicção de que 'idéias falsas' ou distorcidas (superstições para os
ideólogos, ideologia para Marx) são produto de instrumento de opressão política
de uma classe; e, inversamente, que 'idéias' verdadeiras, construídas pela ciência
(ou pelo proletariado, ou pela ciência verdadeira que é a do proletariado) são
armas e instrumentos necessários na luta contra a opressão da classe dominante"
(pág. 11).
Ou ainda por Boudon (1989):
"Consideremos, a título de exemplo, algumas definições clássicas. Em
primeiro lugar a célebre definição de Marx da Ideologia Alemã:
A produção de idéias, de representações, da consciência é, antes de tudo,
direta e intimamente imbricada na atividade material e comércio material dos
homens. Ela é a língua da vida real. As representações, o pensamento e o comércio
intelectual dos homens aparecem, aqui também, como emanação direta de seu
14
comportamento material (...). Se em toda ideologia os homens e suas relações
parecem estar de cabeça para baixo, como dentro de uma câmara obscura, isto
resulta de seu processo de vida histórica, exatamente como a inversão dos objetos
na retina resulta de seu processo de vida diretamente física.
As ideologias aparecem aqui como idéias falsas - estão de cabeça para
baixo - que o 'comércio material' inspira aos homens, necessariamente" (págs 26-
27).
É um procedimento pouco usual e até reprovável - diríamos até mesmo
indelicado - citar a citação que Boudon faz de Marx e Engels. Porém, neste caso,
isso foi absolutamente necessário.
A partir apenas e tão somente desse trecho, Boudon conclui que a
concepção ou definição de ideologia presente em "A Ideologia Alemã" é a de
idéias falsas. Boudon entende a analogia das inversões das representações e das
imagens na retina como falsidade. O estar "de cabeça para baixo" é entendido
como falso.
Lendo mais atentamente o trecho vemos que em nenhum momento aparece
o termo falsa. Por que então estar de cabeça para baixo, estar invertido significaria
necessarimente ser falso? Na verdade, a noção de falsidade é uma das
interpretações já consolidadas pela tradição, ossificada por toda uma linha de
intérpretes e, quase sempre, contraposta à verdade. É mais o peso dessa tradição,
do que o trecho que Boudon destaca dos escritos de Engels e Marx, que permite a
este autor concluir que a ideologia é aí entendida como falsas idéias. E ao fazê-lo
cometer um equívoco: uma citação que não comprova nada e uma interpretação
que na verdade é um pressuposto de Boudon e não uma interpretação desse trecho
em particular. É também verdade que essa compreensão - ideologia enquanto
idéias "falsas" - pode emergir de uma leitura de "A Ideologia Alemã".
15
Mas existe um outro modo de se entender essa inversão. Chauí (1984), por
exemplo, diz:
"A ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe. Por ilusão não
devemos entender 'ficção', 'fantasia', 'invenção gratuita e arbitrária', 'erro',
'falsidade', pois com isto suporíamos que há ideologias falsas ou erradas e outras
que seriam verdadeiras e corretas. Por ilusão devemos entender: abstração e
inversão. Abstração (...) é o conhecimento de uma realidade tal qual ela se oferece
à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que apenas
classificamos, ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal realidade
foi concretamente produzida por um determinado sistema de condições que se
articulam internamente de maneira necessária. Inversão (...) é tomar o resultado de
um processo como se fosse seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as
consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante" (pág. 104).
Uma representação ideológica é uma representação imediata da realidade,
por isso, abstrata e ilusória, ou seja, invertida da realidade, pois esta não se
apresenta imediatamente à consciência, apresenta-se mediatamente.
Uma outra maneira de entender a inversão, em outro contexto, porém a este
relacionado, é também apontado por Chauí (1984):
"Quando Marx e Engels afirmam que as relações sociais capitalistas
aparecem tais como são, que o aparecer e o ser da sociedade capitalista se
identificaram, eles o dizem porque houve uma gigantesca inversão na qual o social
vira coisa e a coisa social" (pág 59).
São duas as inversões: a primeira refere-se à reificação das relações sociais,
na qual "o social vira coisa e a coisa social"; a segunda ocorre no interior da
consciência, o próprio processo de conhecimento da realidade. A representação
imediata, a expressão consciente da forma como os homens atuam e produzem
16
materialmente é uma representação invertida porque os resultados do processo de
intercâmbio aparecem como causa dessa relação.
Dizer que ideologia são idéias falsas que o "comércio material inspira aos
homens" (Boudon) ou que são "idéias invertidas" (Durham) é simplesmente perder
este sentido da inversão, a noção de inversão enquanto ilusão e abstração, mas
principalmente enquanto reificação.
Cremos que é este sentido que Marx irá desenvolver, em sua forma
científica, em sua crítica à Economia Política, em "O Capital". Quando Marx diz,
por exemplo, no capítulo do processo de troca que os homenssão os guardiões da
mercadoria, os seus representantes (personificações de forças econômicas), e que
esta, como não tem pés, tem de ser levada até o mercado para ser trocada. A
inversão é aí expressa enquanto fetiche da mercadoria. E não é falsa, é verdadeira.
Ou ainda, no capítulo da maquinaria, quando Marx, entre outras coisas,
afirma que não é a força de trabalho que usa as condições de trabalho, mas que são
as condições de trabalho que usam a força de trabalho. Formulações que reforçam
a compreensão da inversão como realidade, como gigantesca inversão no qual o
social vira coisa e a coisa social.
Não queremos afirmar que Marx sempre foi marxista, é evidente. Alguns
poderiam dizer que estamos tomando dois textos qualitativamente diferentes da
produção teórica de Marx, diferentes não apenas cronologicamente: um "pré-
marxista" e outro marxista.
Tomemos então um texto anterior e veremos que a inversão aparece ainda
com mais força e mais realidade. Referimo-nos aos "Manuscritos Econômico-
Filosóficos" de 1844. No terceiro manuscrito, no item [Dinheiro], Marx (1985)
escreve:
"Aquilo que mediante o dinheiro é para mim, o que posso pagar, isto é, o
que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Minha
17
força é tão grande como a força do dinheiro. As qualidades do dinheiro -
qualidades e forças essenciais - são minhas, de seu possuidor. O que eu sou e o
que eu posso não são determinados de modo algum por minha individualidade.
Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o
efeito da feiúra, sua força afugentadora, é aniquilado pelo dinheiro" (pág. 30).
Marx fala explícita e inequivocamente em inversão das individualidades:
"A inversão e confusão de todas as qualidades humanas e naturais, a
irmanação das impossibilidades - a força divina - do dinheiro repousa na sua
essência genérica, alienante e auto-alienante do homem. O dinheiro é a
capacidade alienada da humanidade" (pág. 31).
Eis portanto o significado crítico, porque real, da inversão. O poder das
mercadorias em "modificar" e transformar em seu contrário as qualidades
humanas. É claro que Marx, aqui e nos trechos referidos de "O Capital" não está
tratando de ideologia, mas de seus fundamentos, explicita os limites e
pressupostos nos quais os indivíduos desenvolvem suas atividades.
Voltemos à questão da inversão das representações. A interpretação da
ideologia associada à noção de falsidade é, talvez, autorizada por Engels. Refere-
se, porém, à falsidade da consciência. Na famosa carta a Mehring, Engels (1978)
escreve:
"A ideologia é um processo que se opera por parte do chamado pensador
conscientemente, com efeito, mas com uma consciência falsa. As verdadeiras
forças propulsoras que o movem, permanecem ignoradas para ele; de outro modo
não seria tal processo ideológico. Se imagina, pois, forças propulsoras falsas ou
aparentes. Como se trata de um processo discursivo, deduz seu conteúdo e sua
forma do pensar puro, seja o seu próprio ou de seus predecessores" (pág.523, trad.
minha).
18
Althusser também sustentou a interpretação da inversão como falsidade,
como irrealidade. Em "Aparelhos Ideológicos de Estado" (Althusser, 1983) afirma
que a ideologia aparece, em "A Ideologia Alemã" num contexto positivista e que é
concebida como pura ilusão, puro sonho vazio e vão, bricolage imaginário (cf.
pág. 83). Novamente a realidade da inversão e o seu significado crítico são
ignorados.
O que mais surpreende nessas interpretações é que justamente no texto de
"A Ideologia Alemã" Marx e Engels elaboraram uma teoria materialista da história
e tentam justamente mostrar a historicidade das idéias e também da ideologia. Em
"A Ideologia Alemã" Engels e Marx demonstram que mesmo as ideologias
possuem uma base material de existência, possui uma história que no entanto está
fora delas (da história das idéias e do discurso dessas idéias). Escreveram eles:
"A existência de idéias revolucionárias numa determinada época já
pressupõe a existência de uma classe revolucionária" (Marx e Engels, 1984,
pág.73).
Ou que:
"Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que dominava antes dela
é obrigada, para alcançar os fins a que se propõe, a apresentar seus interesses
como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade, isto é, para
expressar isso mesmo em termos de idéias: é obrigada a emprestar às suas idéias a
forma de universalidade, a apresentá-las como sendo as únicas racionais, as únicas
universalmente válidas. A classe revolucionária surge, desde o início, não como
classe; aparece como a massa inteira da sociedade frente à única classe dominante.
Ela consegue isso porque no início seu interesse realmente ainda está ligado ao
interesse coletivo de todas as classes não-dominantes e porque, sob a pressão das
condições prévias, esse interesse ainda não pôde desenvolver-se como interesse
particular de uma classe particular. Sua vitória é útil, também, a muitos indivíduos
de outras classes que não alcançaram uma posição dominante, mas apenas na
19
medida em que coloque agora esses indivíduos em condições de elevar-se à classe
dominante. Quando a burguesia francesa derrubou a dominação da aristocracia,
permitiu que muitos proletários se elevassem acima do proletariado, mas
unicamente na medida em que tornaram-se burgueses" (pag.75) (grifos meus,
A.H.H.)
No início, diz Marx, o interesse da classe revolucionária está realmente
ligada ao interesse coletivo, a oposição entre não-dominantes e a classe dominante
realmente acontece durante o período revolucionário, e os indivíduos realmente
conseguem elevar-se à classe dominante, como os proletários franceses.
A ideologia é entendida em "A Ideologia Alemã", portanto,
fundamentalmente enquanto ação, enquanto prática, porém, ao mesmo tempo,
possui uma expressão subjetiva, uma expressão cognitiva, que nada mais é do que
as representações ou reflexões nascidas dessa prática ou do conhecimento de seus
limites ou pressupostos; ou ainda das aspirações.
Diríamos até que a ideologia possui uma estória, pois se funda na biografia
ou numa história de uma subcoletividade, e não na história efetiva.
Ideologia é, então, uma realidade material, pois é um conjunto de práticas,
seja de um indivíduo ou de subcoletividades.
No entanto, as idéias, as representações ou a própria consciência nascem,
em "A Ideologia Alemã", imediatamente das práticas, das ações ou, como
escreveram Marx e Engels, do processo de vida real, como "emanação direta do
comportamento material". Em "A Ideologia Alemã" não existem mediações entre
a ação e a consciência, entre a história e a biografia. Chamaríamos isso de
mecanicismo? Hoje talvez sim. Vemos, entretanto, como a exposição de
pressupostos de uma nova concepção: o materialismo histórico.
II - IDEOLOGIA: UM TERMO, TRES QUESTÕES
20
Após a concepção de ideologia expressa em "A Ideologia Alemã", ou
melhor, difundida a partir da compreensão de Marx e Engels sobre ideologia, a
questão da ideologia e da consciência se tornou uma verdadeiro quiproquó - como
diria Marx. Quiproquó: ideologia como erro, como reflexo, falsidade, mistificação,
manipulação. Quiproquó: consciência falsa, reificada, infeliz, desdobrada,
fragmentada, possível, etc. Qual a noção de consciência para Marx e Engels? Há,
na verdade, uma dupla compreensão: enquanto conjunto de representações ou
idéias e enquanto ação. É este segundo sentido que é perdido em todos esses
anexos adjetivadores, essas qualificações da consciência.
A compreensão da ideologia pendeu entre o erro e a mistificação
maquiavélica.A consciência, e junto com ela a compreensão da questão, se
fragmentou em adjetivos a ela aglutinados.
Examinemos um pouco melhor esse quiproquó através de Boudon. Na obra
"A Ideologia" (1989), Boudon resumiu os principais tipos de definição de
ideologia e os principais tipos de explicação. Neste trabalho, Boudon argumenta
em favor da definição de ideologia de tipo Marx-Aron-Parsons e denine-a "como
doutrinas que repousam sobre teorias científicas, mas que são teorias falsas ou
duvidosas ou indevidamente interpretadas, às quais se dá uma credibilidade que
não merecem" (pag. 44). Critica a "definição moderna (de tipo Shills-Geertz-
Althusser)" argumentando que esta "tem todo tipo de lacuna, a ponto de não
percebermos claramente o que ela pretende designar" (pag.40). Complementa
dizendo que "se definirmos a ideologia pela noção de ação simbólica, ela incluirá
tanto os teoremas matemáticos (...) até o conjunto de todas as opiniões políticas. E
é mesmo para uma confusão desse gênero que tende uma definição como a de
Althusser, que subsume sob o vocábulo ideologia as idéias, conceitos, imagens,
teorias, representações morais, filosóficas, religiosas etc." (pág. 41)
Teríamos, esquematicamente, as definições de ideologia:
21
Tipos de definição de ideologia
Tipos de Tradição
Referidos ao critério de
verdadeiro e falso
Não referidos ao critério de
verdadeiro e falso
Tradição Marxista
Marx:
A ideologia como ciência
falsa
Lenin:
A ideologia como arma na luta
de classes
Os teóricos da
consciência-reflexo
Althusser:
A ideologia, atmosfera
indispensável
à respiração social
Aron:
A ideologia não advinda
diretamente,
mas indiretamente do
verdadeiro e do
falso
Geertz:
A ideologia como ação
simbólica
Tradição Não-Marxista
Parsons:
A ideologia, desvio em
relação à objetividade
científica
Shils:
A ideologia, tipo particular de
sistema
de crenças
(Boudon, 1989, págs 32-33)
22
Esta não é a classificação final sobre os tipos de definição de ideologia que
Boudon formula. Ele modificará e sintetizará a sua posição mais adiante (cf. pág.
87). Porém, para os nossos objetivos, essa classificação intermediária é mais
importante.
Dentre as definições de ideologia encontram-se: falsa consciência,
consciência como reflexo, atmosfera indispensável à respiração social, desvio em
relação à objetividade científica, ação simbólica, tipo particular de crenças.
Vemos agora, a partir da diversidade das definições, que não se trata de
uma única questão, são pelo menos três. Poderíamos distinguir, sem muito rigor,
estas problemáticas como:
1 - Gnosiológica ou da Teoria do Conhecimento: a velha questão de como
se adquire, ou melhor, como se constrói o conhecimento. Que, por sua vez, se
desdobra em outras duas: o conhecimento científico (Ciência) e o processo de
conhecimento do indivíduo - que talvez pudesse ser incluída no item 2. (falsa
consciência, desvio das representações em relação à objetividade científica).
2 - Ontológica: O que é e em que consiste a consciência? (consciência
como reflexo, ação simbólica).
3 - Política: Função da ideologia no sistema social (atmosfera indispensável
à respiração social, tipo particular de crenças).
Estas distinções e inclusões das definições nestas problemáticas devem ser
consideradas como uma primeira aproximação, são, portanto, provisórias. Nosso
objetivo é somente o de indicar a presença dessas problemáticas nas definições de
ideologia e mostrar os distintos níveis de realidade envolvidos.
Estas definições de ideologia, portanto, não possuem a homogeneidade
pretendida por Boudon, que é o pressuposto para juntá-las numa mesma tabela.
Referem-se a pelo menos três problemáticas distintas, embora sejam totalmente
imbricadas.
23
III - IDEOLOGIA E REPRODUÇÃO
Em grande parte das formulações a partir da década de 60 notamos uma
profunda alteração nas definições e tratamento dados à ideologia. Ela é menos
idéia e mais prática, ação; menos discurso que comportamento.
Este novo sentido pode ser visto em Bourdieu com a noção de habitus, em
Althusser como práticas dos aparelhos ideológicos de Estado, em Habermas como
ideologia enquanto técnica e ciência. O caso extremo, dentro desta ótica, é o
consumo enquanto força produtiva e ideologia, tal como postulado por
Baudrillard.
Gramsci, como bem lembrou Althusser, foi o único que já havia avançado
nessa perspectiva. Essa perspectiva poderia ser encontrada, já em Gramsci, quando
este assinala a mudança na função e na ação dos intelectuais nas sociedades
contemporâneas. Eles passam de uma função retórica para o desempenho de
funções dirigentes e organizativas. Interessante observar que é somente a partir da
década de 60 que Gramsci começa a ser traduzido para o inglês, francês e
português.
Habermas e a Escola de Frankfurt em geral, Althusser, Bourdieu, Gramsci e
Baudrillard sublimam uma modificação no caráter das ideologias: menos
concepção de mundo que ação no mundo, menos representação do que ação
representativa. Remetem também a um momento de maior complexidade das
superestruturas e à maior intervenção do Estado, quer na economia, quer na
legitimação dos sistemas sociais.
Outras mudanças poderiam ser apontadas: Mais concreta, pois inserida no
processo de reprodução social global das formações sociais. Mais integrada, ação
social e controle; envolve os pólos subjetivo e objetivo. Mais científica e menos
filosófica. Até interdisciplinar em alguns casos, com pesquisas empíricas. Neste
24
último item lembramos o célebre estudo de Adorno, nos anos 40, sobre a
Personalidade Autoritária.
Em "O Capital", Marx (1894), no capítulo da reprodução simples, já
analisava o consumo individual do trabalhador como momento da produção e
reprodução do capital:
"O consumo individual do trabalhador continua sendo, pois, um momento
da produção e reprodução do capital, quer ocorra dentro, quer fora da oficina. (...)
A constante manutenção e reprodução da classe trabalhadora permanece a
condição constante para a reprodução do capital. O capitalista pode deixar
tranquilamente seu preenchimento a cargo do impulso de auto-preservação e
procriação dos trabalhadores" (pág. 157).
Althusser é o único a explorar, de um modo sistemático, porém parcial,
estas indicações de Marx. Enuncia da seguinte forma a perspectiva da reprodução,
condição necessária para a caracterização das instâncias superestruturais:
"Pensamos que é a partir da reprodução que é possível e necessário pensar
o que caracteriza o essencial da existência e natureza da superestrutura. Basta
colocar-se no ponto de vista da reprodução para que se esclareçam muitas questões
que a metáfora espacial do edifício indicava a existência sem dar-lhes resposta
conceitual" (Althusser, 1983, pág. 62).
Examinemos, brevemente, como algumas dessas questões se apresentam
nos autores citados. Comecemos por Bourdieu.
Bourdieu: a mediação entre sujeito e história
Bourdieu (1983) define habitus como "sistema de disposições duráveis e
transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as
necessidades objetivas" (pág. 82).
25
Para Bourdieu (1983) o habitus é produzido pelas condições de existência
das classes:
"As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições
materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser
apreendidas sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente
estruturado, produzem habitus, sistema de disposições duráveis, estruturasestruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é,
como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem
ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares' sem ser o produto de obediência a
regras, objetivamente adaptadas a seu fim, sem supor a intenção consciente dos
fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingí-los; e
coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um
regente" (págs 60-61).
Ortiz (1983) considera o conceito de habitus, no interior da construção
bourdieana, como a mediação reencontrada entre sujeito e história:
"Enquanto para Sartre, para a construção de uma teoria da prática, encontra
a mediação entre sujeito e história no conceito de projeto, que sublinha a
especificidade de uma ação colocada no tempo futuro, Bourdieu recupera a velha
idéia escolástica de habitus que enfatiza a dimensão de um aprendizado passado"
(pág. 14).
Althusser: AIE - prática e imaginário
Na obra "Aparelhos Ideológicos de Estado", Althusser pretende elaborar
uma teoria da ideologia em geral a partir da discussão sobre a reprodução das
condições sociais de produção. Antes, Gramsci já havia caminhado nessa direção,
e o próprio Althusser (1983) assinala numa nota:
26
"Ao que saibamos, Gramsci é o único que avançou no caminho que
retomamos. Ele teve a idéia "singular" de que o Estado não se reduzia ao aparelho
(repressivo) de Estado, mas compreendia, como dizia, um certo número de
instituições da "sociedade civil": a Igreja, as Escolas, os Sindicatos etc.
Infelizmente, Gramsci não sistematizou suas intuições, que permaneceram no
estado de anotações argutas, mas parciais" (pag.67).
E, antes de Gramsci, Marx e Engels, em "A Ideologia Alemã" (1895), já
escreviam:
"Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante
fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de
uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e
adquirem através dele uma forma política (pag.98) (grifos meus A.H.H.)
Grande parte do esforço de Althusser é o de esclarecer de que forma se dá,
concretamente, essa mediação e demonstrar a forma política que assumem as
instituições.
Althusser parte da formulação de Marx acerca da reprodução e da
circulação do capital social total (Marx, 1985, seção III, livro II) para elaborar sua
teoria dos aparelhos. Sintetiza da seguinte forma o processo de reprodução
expresso no livro II:
"Toda formação social para existir, ao mesmo tempo que produz, e para
poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção. Ela deve, portanto,
reproduzir:
1) as forças produtivas
2) "as relações de produção existentes" (Althusser, 1983, pag.54)
A reprodução das forças produtivas consiste na reprodução dos meios de
produção e na reprodução da força de trabalho. O "meio material" da reprodução
da força de trabalho é o salário; porém, a reprodução da qualificação profissional -
27
segundo Althusser - é feita pela escola, e que ele entende como um conjunto de
técnicas e conhecimentos e as regras do bom comportamento. Para Althusser a
necessidade de reprodução da qualificação se impõe porque a força de trabalho
deve ser competente, deve ser "apta a ser utilizada no sistema complexo do
processo de produção" (pag. 57), sendo, portanto, uma das condições sociais de
produção. E esta qualificação é reproduzida pela escola, ou melhor, pelo Aparelho
Ideológico Escolar , como designa Althusser. Por Aparelho Ideológico de Estado
(AIE) deve-se entender:
"Designamos pelo nome de AIE um certo número de relidades que
apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e
especializadas" (pag.68).
Entre os AIE encontram-se: AIE religiosos, escolar, familiar, jurídico,
político, sindical, de informação e cultural. Althusser distingue ainda entre o
Aparelho Repressivo de Estado (ARE) - o governo, a administração, o exército,
polícia, prisões etc. - e os AIE: o ARE "funciona através de violência" ao passo
que os AIE "funcionam através da ideologia" (pag.69). Segundo Althusser o ARE
e os AIE são os reponsáveis pela reprodução das relações de produção e pela
reprodução da superestrutura jurídico-política e ideológica.
Na construção althusseriana "o aparelho de Estado que assumiu a posição
dominante nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classe
política e ideológica contra o antigo aparelho ideológico de Estado dominante (a
Igreja), é o AIE escolar" (pag.77). Isso porque:
"Ela (a escola) se encarrega das crianças de todas as classes desde o
maternal, e desde o maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante
aqueles anos em que a criança é mais vulnerável". Ao final do processo de
escolarização-inculcação "cada grupo dispõe da ideologia que ele deve preencher
na sociedade de classe: papel de explorado, (...) papel de agente da exploração,
(...) de agente da repressão, (...) ou de profissionais da ideologia" (pag.79).
28
Na parte final do trabalho, na qual Althusser formula suas teses e oferece
um exemplo da ideologia religiosa cristã, é onde ele faz suas críticas a Marx. Diz
que a concepção da ideologia em "A Ideologia Alemã" não é marxista (sic!), e
argumenta:
"Na Ideologia Alemã, esta fórmula (a de que a ideologia não tem história)
aparece num contexto nitidamente positivista. A ideologia é concebida como pura
ilusão, puro sonho, ou seja, nada. Toda a realidade está fora dela.
(...)
A ideologia é então para Marx uma bricolage imaginário, puro sonho, vazio
e vão, constituído pelos "resíduos diurnos" da única realidade plena e positiva, a
da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente
sua existência.
(...)
Na ideologia alemã a tese de que a ideologia não têm história é portanto
uma tese puramente negativa que significa ao mesmo tempo que:
1) a ideologia não é nada mais do que puro sonho (fabricada não se sabe
por que poder a não ser pela alienação da divisão do trabalho, porém esta
determinação é negativa).
2) a ideologia não tem história, o que não quer dizer que ela não tenha uma
história (pelo contrário, uma vez que ela não é mais que o pálido vazio invertido
da história real) mas que ela não tem uma história sua" (pag.83).
Para terminar a exposição da formulação de Althusser resumamos suas
teses sobre a ideologia:
Tese 1 (forma imaginária da ideologia): "A ideologia representa a relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência" (pag. 85).
29
Tese 2 (materialidade da ideologia): "A ideologia tem uma existência
material; no aparelho e em suas práticas" (pag. 88)
Tese 3 : "A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos.
3.1: Sua submissão ao Sujeito
3.2: Reconhecimento mútuo
3.3: Garantia de que tudo está bem" (pag. 102-103)
E Althusser conclui: "É, certamente, em última instância, a reprodução das
relações de produção e demais relações que dela derivam" (pag. 104).
Gramsci: uma teoria das superestruturas?
Em Os Intelectuais e a Organização da Cultura (I), Gramsci teoriza sobre
as instâncias superestruturais. Diz que em grandes traços podem ser distinguidos
dois grandes planos superestruturais:
1o Plano: Sociedade Civil, constituída pelo conjunto de organismos ditos privados
"que corresponde à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a
sociedade".
2o Plano: Sociedade Política ou Estado, "que corresponde à função de domínio
direto ou de comando que se expressa no Estado e governo jurídico." (cf. I: pág.
11)Segundo Gramsci "os intelectuais são os 'comissários' do grupo dominante
para o exercício das funções subalternas da hegemonia e do governo político", isto
é:
1) do consenso 'espontâneo' dado pelas grandes massas da população à
orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso
que nasce 'historicamente' do prestígio (...) que o grupo dominante obtém, por
causa de sua posição e de sua função no mundo da produção;
30
2) do aparato de coerção estatal que asssegura 'legalmente' a disciplina dos
grupos que não 'consentem', nem ativa nem passivamente, mas que é constituído
para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na
direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo" (cf. I: pág. 11).
Diz ainda em I que a principal instância para a elaboração de intelectuais é
a escola. E estabelece uma analogia entre a complexidade do processo produtivo
de um determinado país e as suas máquinas e a complexidade da formação social e
a elaboração dos intelectuais pela rede de escolas:
"A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A
complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente
medida pela quantidade das escolas especializadas e pela sua hierarquização:
quanto mais extensa for a 'área' escolar e quanto mais numerosos forem os 'graus'
'verticais' da escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um
determinado Estado. Pode-se ter um termo de comparação na esfera da técnica
industrial: a industrialização de um país se mede pela sua capacidade de construir
máquinas que construam máquinas e na fabricação de instrumentos que construam
máquinas, etc. (...) Do mesmo modo ocorre na preparação dos intelectuais e nas
escolas destinadas a tal preparação, escolas e instituições de alta cultura são
similares. Neste campo, igualmente, a quantidade não pode ser destacada da
qualidade" (I: pág. 9).
Em Concepção Dialética da História (CDH) Gramsci (1987) propõe uma
relação das instâncias que compõem a "organização cultural que movimenta o
mundo ideológico em um determinado país e cuja investigação seria necessária
para o exame de seu funcionamento prático":
"A escola - em todos os seus níveis - e a igreja são as duas maiores
organizações culturais em todos os países, graças ao número de pessoal que
utilizam. Os jornais, as revistas e a atividade editorial, as instituições escolares
privadas, tanto enquanto integram a escola de Estado, como enquanto instituições
31
de cultura do tipo das universidades populares. Outras profissões incorporam em
sua atividade especializada uma fração cultural não desprezível, como a dos
médicos, dos oficiais do exército, da magistratura. Entretanto, deve-se notar que
em todos os países, ainda que em graus diversos, existe uma grande cisão entre as
massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais
próximos à periferia nacional, como os professores e os padres" (CDH: pág.29).
Gramsci acrescenta ainda que é o conjunto das superestruturas que mediam
a relação entre os intelectuais e o mundo da produção, "como no caso dos grupos
sociais fundamentais", dos quais os intelectuais são os "funcionários" (cf. CDH:
pág. 10).
Vemos agora, com clareza, o que constitutem as "anotações agudas mas
parciais" a que Althusser se referia quando falava da obra de Gramsci na
formulação de uma teoria sobre a ideologia e as instâncias superestruturais.
Destaquemos apenas "alguns indícios" presentes nestas "intuições parciais":
- Uma nova formulação ou interpretação da teorização marxista clássica da
superestrura jurídico-política e ideológica (sociedade civil e sociedade política),
indicando a dinâmica específica de cada plano superestrutural: o funcionamento
através da hegemonia e de domínio ou comando.
- A mediação realizada pelos intelectuais entre a base econômica e a
superestrutura, que unificam a formação social através do consenso espontâneo e
da coerção. Indica também uma mudança na característica dos intelectuais, que
deixam a função retórica para desempenhar funções organizativas e técnicas.
- Formulação de uma teoria da ideologia enquanto realidade material:
materialidade expressa nas organizações culturais que "movimentam o mundo
ideológico".
- Importância que a organização escolar desempenha na elaboração dos
intelectuais nas sociedades ocidentais; e o papel que desempenham na reprodução
32
da qualificação profissional e na hierarquização dos intelectuais em "criadores das
várias ciências, da filosofia, da arte". os "admnistradores" e os "divulgadores" (cf.
I: págs 11-12)
Rouanet (1978) é ainda mais veemente, e diz que não pode ser identificada
qualquer contribuição original de Althusser às formulações gramscianas, "para o
desenvolvimento das observações argutas, mas parciais":
"Pois a teoria dos AIE é, do princípio ao fim, (com uma ressalva
importante, que mencionaremos mais tarde), a teoria gramsciana do
funcionamento da hegemonia na sociedade civil. Gramsciana, a extensão do
conceito de Estado, para abranger não apenas o aparelho repressivo, funcionando à
base da violência, como também o aparelho ideológico (Gramsci fala,
explicitamente, em aparelho hegemônico) funcionando à base do consenso.
Gramsciano, o objetivo dos AIE: assegurar a reprodução das relações sociais de
produção, termo novo para designar o que Gramsci chamaria, simplesmente, de
preservação da hegemonia burguesa, através do cimento ideológico. Gramsciano, a
enumeração dos AIE: a religião, a escola, o sistema político, o sistema cultural.
Gramsciana, a primazia atribuída à escola entre os AIE" (pág. 102).
Habermas: Racionalização - trabalho e interação
No artigo "Técnica e Ciência enquanto Ideologia" Habermas (1993) irá
desenvolver o conceito weberiano de racionalização, retomado por Marcuse, para
examinar a mudança no caráter da ideologia nas sociedades industriais avançadas.
Este processo de racionalização progressiva está associado, segundo Habermas, à
institucionalização do progresso técnico e científico. A aplicação da razão técnica
seria, ao mesmo tempo, dominação e ideologia. Este processo de racionalização
seria uma novidade na história mundial:
33
"Ao nível do seu desenvolvimento técnico-científico, as forças produtivas
parecem portanto entrar numa nova constelação com as relações de produção: elas
agora funcionam não mais como fundamento da crítica das legitimações em vigor
para os fins de um iluminismo político, mas, em vez disso, convertem-se elas
próprias no fundamento de legitimação. Isso é concebido por Marcuse como uma
novidade na história mundial" (pág. 315).
A técnica e a ciência tornam-se, segundo Habermas, as principais forças
produtivas, "caindo por terra as condições de aplicação da teoria do valor do
trabalho de Marx" (cf. pág. 330). Porém, ao mesmo tempo, a técnica e a ciência se
tornam ideologia, pois:
"Elas substituem as legitimações tradicionais de dominação, ao se
apresentarem com as pretensões da ciência moderna e ao se justificarem a partir
da crítica da ideologia. As ideologias e a crítica da idelogia são co-originárias.
Nesse sentido não pode haver ideologias pré-burguesas" (pág. 326).
Não apenas a teoria do valor de Marx perderia a sua aplicação universal,
mas até mesmo o conceito de classes e de ideologia:
"A sociedade capitalista modificou-se a tal ponto que as duas categorias
chaves da teoria de Marx, a saber, luta de classes e ideologia, não podem ser
aplicadas sem restrições".
Sobre o fundamento do modo de produção capitalista a luta de classes
constitui-se como tal pelaprimeira vez, criando assim uma situação objetiva a
partir da qual foi possível reconhecer retrospectivamente a estrutura de classe das
sociedades tradicionais, cuja constituição era imeditamente política. O capitalismo
regulado pelo Estado, surgido a título de reação contra as ameaças ao sistema,
geradas pelo antagonismo aberto entre as classes, vem apaziguar o conflito de
classes. O sistema de capitalismo em fase tardia é definido por uma políotica de
indenizações que garante a fidelidade das massas assalariadas, isto é, por meio de
34
uma política de evitar conflitos, de tal modo que o conflito que, tanto agora como
antes, é incorporado na estrutura da sociedade, com a valorização do capital à
maneira privada, é aquele conflito que permanece latente com uma probabilidade
relativamente maior. Ele recua face a outros conflitos que decerto também
dependem do modo de produção, porém, que não podem tomar a forma de um
conflito de classes (pág.323).
Dado esse - sombrio - quadro, voltemos a examinar como Habermas
desenvolve o conceito de racionalização. Para reformular esse conceito Habermas
(1983) começa estabelecendo a distinção entre trabalho e interação:
"Entendo por 'trabalho', ou agir-racional-com-respeito- a-fins, seja o agir
instrumental, seja a escolha racional, seja a combinação dos dois. O agir
instrumental rege-se por regras técnicas baseadas no saber empírico. Elas
implicam, em cada caso, prognósticos condicionais sobre acontecimentos
observáveis, físicos ou sociais; esses prognósticos podem se evidenciar como
corretos ou como falsos. O comportamento de escolha racional é regido por
estratégias baseadas no saber analítico. Elas implicam derivações a partir de regras
de preferência (sistemas de valores) e de máximas universais."
Por outro lado, entendo por agir comunicativo uma interação mediatizada
simbolicamente. Ela se rege por normas que valem obrigatoriamente, que definem
as expectativas de comportamento recíprocas e que precisam ser compreendidas e
reconhecidas por, pelo menos, dois sujeitos agentes. Normas sociais são
fortalecidas por sanções. Seu sentido se objetiva na comunicação mediatizada pela
linguagem corrente" (pág. 321).
Estabelecida a distinção entre trabalho - como agir instrumental ou agir
racional - e interação - como agir comunicativo, Habermas (1983) passa a
classificar os sistemas sociais segundo a predominância de um ou outro tipo de
ação. Para ele são dois os subsistemas, o quadro institucional e os sistemas do
agir-racional-com-respeito-a-fins, que são assim definidos:
35
"O quadro institucional de uma sociedade consiste de normas que guiam as
interações verbalmente mediatizadas. Mas existem subsistemas, tais como o
sistema econômico e o aparato de Estado, para ficarmos com os exemplos de Max
Weber, nos quais são institucionalizadas principalmente proposições sobre ações
racionais-com-respeito-a-fins. Do lado oposto, encontram-se subsistemas, tais
como família e parentesco, que decerto são conectados a um grande número de
tarefas e habilidades, mas que repousam principalmente sobre as regras morais da
interação. Assim, no plano analítico convém distinguir, de modo geral: (1) o
quadro institucional de uma sociedade ou o mundo do viver sócio-cultural e (2) os
subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins 'encaixados nesse quadro
institucional" (págs 321-322).
Baudrillard: o sistema de necessidades como força produtiva
Baudrillard (s/ d.) em A Sociedade de Consumo, a exemplo de Habermas,
identifica e assinala as modificações no caráter da ideologia no capitalismo em sua
fase tardia:
"Em termos breves e sumários, diremos que o problema fundamental do
capitalismo contemporâneo não é a contradição entre 'a maximização do lucro' e a
'racionalização da produção' (ao nível do empresário), mas entre a produtividade
virtualmente ilimitada (ao nível da tecno-estrutura) e a necessidade de vender os
produtos. Nesta fase, é vital para o sistema controlar não só o aparelho de
produção, mas a procura de consumo; não apenas os preços, mas o que se
procurará a tal preço. O efeito geral, que por meios anteriores ao próprio acto de
produção (sondagens, estudo de mercado) quer posteriores (publicidade,
'marketing', condicionamento), é 'roubar' ao compredor - esquivando-se nele a
todo o controlo - o poder de decisão e transferí-lo para a empresa, onde poderá ser
manipulado" (págs 79-80).
36
Elabora um genealogia do consumo para demonstrar, o progressivo
movimento de racionalização do sistema industrial, no qual o sistema de
necessidades torna-se "força consumptiva":
"Ao longo da história do sistema industrial, pode-se rastrear-se a genealogia
do consumo:
1. A ordem de produção produz a máquina/força produtiva abstrata, sistema
técnico radicalmente diferente do instrumento tradicional;
2. Produz o capital/força produtiva racionalizada, sistema de investimento e
de circulação racional, radicalmente diferente da 'riqueza' e dos anteriores modos
de troca.
3. Produz a força de trabalho assalariado, força produtiva abstrata,
sistematizada, radicalmente diferente do trabalho concreto, do trabalho tradicional.
4. Produz assim as necessidades, o sistema das necessidades, a
procura/força produtiva como conjunto racionalizado, integrado, controlado,
complementar dos outros três no processo de total controlo das forças produtivas e
dos processos de produção. As necessidades enquanto sistema diferem
radicalmente da fruição e da satisfação. São produzidas como elementos de
sistema e não como relação de um indivíduo ao objeto" (pág. 84).
Mais adiante Baudrillard afirma que o consumo, ao se tornar força
produtiva, torna-se, ao invés de esfera de realização das necessidades e da
liberdade, a dimensão da coação:
"As necessidades e as satisfações dos consumidores são forças produtivas,
atualmente forçadas e racionalizadas como as outras (forças de trabalho, etc.). O
consumo, onde quer que o explorávamos (com dificuldade), contra a intenção da
ideologia vivida, como dimensão da coação:
1. Dominado pelo constrangimento de significação, ao nível da análise
estrutural.
37
2. Dominado (pelo constrangimento de produção e do ciclo da produção, na
análise estratégica (sócio-econômica-política)" (págs 93-94).
Para Baudrillard o sistema de consumo juntamente com o sistema eleitoral
são as duas fontes principais de legitimação do sistema industrial:
"A mística bem alimentada (...) da satisfação e da escolha individuais,
ponto culminante de uma civilização da 'liberdade', constitui a própria ideologia
do sistema industrial, justificando a arbitrariedade e todos os danos coletivos: lixo,
poluição, desculturação - de fato, o consumidor é soberano em plena selva de
fealdade em cujo seio se lhe impôs a liberdade de escolha. A fieira invertida (ou
seja, o sistema de consumo) completa, e vem revezar, no plano ideológico, o
sistema eleitoral. O 'drugstore' e a cabine de voto, lugares geométricos da
liberdade individual, são também as duas mamas dos sistema" (pág. 81).
IV - CAPITAL MONOPOLISTA: A base material da racionalização e da
ideologia
O ponto comum a todas essas formulações de ideologia é, além daquelas já
apontadas, a associação das alterações à passagem do capitalismo concorrencial
para o capitalismo em sua fase e estruturação monopolista. Recentemente alguns
autores falam de uma nova e mais radical ruptura: as sociedades pós-industriais
fundadas na tecnologia informatizada. Em alguns momentos Baudrillard (s/ d.),
em "A Sociedade de Consumo", alterna os termos sociedade industrial e sociedade
pós-industrial (cf., por exemplo, pág.47). Não teremos, infelizmente,
oportunidade de abordar essa.
Braverman (1981) assim caracteriza o capital monopolista, indicando a
passagem do capitalismo concorrencial para monopolista a partir 1870-1880:
"Concorda-se geralmente que o capital monopolista teve início nas últimas
duas ou três décadas do século XIX. Foi então que a concentração e centralização
do capital, sob a forma dos primeiros trustes, cartéis e outras formas de
38
combinação, começaram a firmar-se; foi então, consequentemente, que a estrutura
moderna da indústria e das finanças capitalistas começou a tomar forma. Ao
memo tempo a rápida consumação da colonização do mundo, as rivalidades
internacionais e os conflitos armados pela divisão do globo em esferas de
influência econômica ou hegemonia inauguraram a moderna era imperialista.
Desse modo, o capitalismo monopolista abrange o aumento de organizações
monopolistas no seio de cada país capitalista, a internacionalização do capital, a
divisão internacional do trabalho, o imperialismo, o mercado mundial e o
movimento mundial do capital, bem como as mudanças na estrutura do poder
estatal" (págs 215-216).
Para Habermas (1983) a ruptura ou transição se dá, aproximadamente, a
partir de 1875:
"Até a metade do século XIX, o modo de produção capitalista se impôs a
tal ponto, na Inglaterra e na França, que Marx pôde reconhecer o quadro
institucional da sociedade nas relações de produção e, ao mesmo tempo, criticar o
fundamento de legitimação da troca dos equivalentes. Ele elaborou a crítica da
ideologia burguesa em forma de economia política: sua teoria do valor trabalho
destruiu a aparência de liberdade, na qual a relação de violência social, subjacente
à relação do trabalho assalariado, tornara-se irreconhecível pela instituição jurídica
do livre contrato de trabalho".
(...)
"Desde a última quarta parte do século XIX, nos países capitalistas mais
avançados, duas tendências de desenvolvimento podem ser notadas: (1) um
acréscimo da tendência intervencionista do Estado, que deve garantir a
estabilidade do sistema, e (2) uma crescente interdependência entre a ciência e a
técnica, que transformou a ciência na principal força produtiva. Ambas as
tendências perturbam aquela constelação do quadro institucional e dos
39
subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins, pela qual se caracterizava o
capitalismo desenvolvido dentro do liberalismo" (págs 327-328).
Esse novo estágio altera até mesmo a concepção marxista de formação
social, a relação entre o sistema econômico e o sistema de dominação:
"Política não é apenas mais um fenômeno de superestrura. Se a sociedade
não continua mais a se auto-regular de 'maneira autônoma' como uma esfera
subjacente ao Estado e por ele pressuposta - e essa era a verdadeira novidade do
modo capitalista de produção - a sociedade e o Estado não estão mais numa
relação que a teoria marxista determinou como relação entre a base e a
superestrutura. Mas, então, uma teoria crítica da sociedade também não pode mais
ser formulada exclusivamente em termos de uma crítica da economia política"
(Habermas, 1983, pág. 328).
Gramsci identifica uma alteração na relação entre sociedade civil e
sociedade política a partir de 1848. Em diversos pontos de "Maquiavel, a Política e
o Estado Moderno" (MPE) Gramsci (1989) apresenta a distinção entre as
sociedades oriental e ocidental, que apresentam diferentes configurações de
sociedade civil e sociedade política. A distinção é traçada na polêmica de Gramsci
contra as concepções revolucionárias de Trotski e Rosa Luxenburg. Para
caracterizá-la destacaremos três trechos:
"A técnica política moderna mudou completamente depois de 1848, depois
da expansão do parlamentarismo, do regime associativo sindical e partidário, da
formação de amplas burocracias estatais e 'privadas' (político-privadas, partidárias
e sindicais) e das transformações que se verificaram na política num sentido mais
largo, isto é, não só do serviço estatal destinado à repressão da delinquência, mas
do conjunto das forças organizadas pelo Estado e pelos particulares para tutelar o
domínio político e econômico das classes dirigentes" (pág. 65).
40
"No Oriente, o estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa;
no Ocidente, entre o Estado e a sociedade civil havia uma justa relação, e em
qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa estrutura da
sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada por trás da qual se
situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas" (pág. 75).
"Conceito político da chamada 'revolução permanente', surgido antes de
1848, como expressão cientificamente elaborada das experiências jacobinas de
1789 em Termidor. A fórmula é própria de um período histórico em que não
existiam ainda os grandes partidos políticos de massa e os grandes sindicatos
econômicos, e a sociedade estava ainda, por assim dizer, no estado de fluidez sob
muitos aspectos: maior atrazo do campo e monopólio quase completo da eficiência
político-estatal em poucas cidades ou numa só (Paris para França); aparelho estatal
relativamente pouco desenvolvido e maior autonomia da sociedade civil em
relação à atividade estatal; determinado sistema das forças militares e do
armamento nacional; maior autonomia das economias nacionais no quadro das
relações econômicas do mercado mundial, etc" (pág. 91-92).
A diferença fundamental entre as sociedades oriental e ocidental, ou das
sociedades anteriores e posteriores a 1848, é justamente a maior complexidade dos
planos superestruturais presentes nas segundas, que pode ser constatada na
expansão do parlamentarismo, nos grandes partidos de massa e sindicatos
econômicos, na expansão das burocracias, dos serviços estatais, etc. No oriente o
Estado era o centro do poder e da vida nacional, por isso a sociedade civil era
"primordial e gelatinosa".
É a partir da distinção entre oriente e ocidente que Gramsci elabora sua
estratégia revolucionária para as sociedades ocidentais: a fórmula da hegemonia
civil.
41
A mesma temática pode ser encontrada em Pollock, associando a passagem
do capitalismo concorrencial para o capitalismo de Estado e a alteração nas formas
ideológicas. Cohn (1986) diz:
"A universalização do primado do valor de troca sobre o valor de uso, da
equivalência sobre a diferença qualitativa, imprime à sociedade como um todo a
lógica da ideologia. (...) O todo, para se reproduzir como tal, é o falso: apóia-se na
falsidade necessária e portanto nuito real da ideologia. Mas isso, a rigor, aplica-se
ao capitalismo concorrencial. No capitalismo monopolista concebido por Pollock,
ou seja, como capitalismo de Estado, em que as relações diretas de poder
substituem as relações de poder mediadas pelo lucro e pela propriedade, abre-se a
possibilidade de se ter a mercadoria sem a contrapartida ideológica da igualdade.
O nome disso é fascismo" (pág. 13).
A ideologia passa assim a ser uma das condições de reprodução da
sociedade burguesa:
"Na versão da TCS [Teoria Crítica da Sociedade], sobretudo devido à
contribuição de Horkheimer, mas com a adesão de Adorno, a elaboração da idéia
de que a reprodução da sociedade burguesa se faz por processos que
necessariamente passam pela consciência dos homens é levada um passo adiante,
para chegar-se à formulação de que, na realidade, ela passa pela configuração
socialmente determinada dos próprios homens que, no final, a reproduzem. Vale
dizer, a questão de como se sustenta e se reproduz o sistema, recebe uma resposta -
a ideologia - e passa-se a outra questão, sobre quem a sustenta. E aqui a respostacombina a análise ideológica com a pesquisa sóciopsicológica, em busca dos tipos
de personalidade social" (Cohn, 1983, pág. 14).
A este novo estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista, a
este novo caráter da ideologia, correspondem formas de sustentação e reprodução
também novos, ou seja, novas formas de controle. Não mais normativos, mas
baseados em excitantes externos:
42
"As sociedades industrialmente desenvolvidas parecem aproximar-se do
modelo de um controle de comportamento que, em vez de ser guiado por normas,
é antes dirigido por excitantes externos. A direção indireta por estímulos
estabelecidos aumentou, principalmente nos setores da liberdade aparentemente
subjetiva (comportamento nas eleições, no consumo, no tempo livre). A rubrica
social-psicológica da nossa época é caracterizada menos pela personalidade
autoritária do que pela desestruturação do superego. Um aumento do
comportamento adaptativo é apenas o reverso da medalha de um processo de
dissolução da esfera de interação verbalmente mediatizada, dentro da estrutura do
agir racional-com-respeito-a-fins" (Habermas, 1983, págs 332-333).
Gramsci, em "Americanismo e Fordismo" (Gramsci, 1989, MPE: págs 375-
413) analisava o americanismo e o fordismo no contexto da passagem do
individualismo econômico para a economia programática:
"No geral, pode-se dizer que o americanismo e o fordismo derivam da
necessidade iminente de organizar uma economia programática e que os diversos
problemas examinados deveriam ser os elos da cadeia que assinalam exatamente a
passagem do velho individualismo econômico para a economia programática.
Estes problemas surgem em virtude das diversas formas de resistência que o
processo de desenvolvimento encontra, resistência provocada pelas dificuldades
inerentes à societas rerum e à societas hominum. Um movimento progressista
iniciado por uma determinada força social não deixa de ter consequências
fundamentais: as forças subalternas, que deveriam ser 'manipuladas' e
racionalizadas de acordo com os novos objetivos, resistiram inevitavelmente"
(págs 375-376).
E em que reside precisamente essa dificuldade? Gramsci responderá que a
racionalização do processo de produção e de trabalho, através da introdução de
novos métodos, cria, e, ao mesmo tempo, pressupõe, uma nova ética sexual:
43
"Toda crise de coerção unilateral no campo sexual acarreta um delírio
"romântico" que pode ser agravado pela abolição da prostituição legal e
organizada. Todos estes elementos complicam e tornam dificílima qualquer
regulamentação do problema sexual e qualquer tentativa de criar uma nova ética
sexual que esteja de acordo com os novos métodos de trabalho e de produção. Por
outro lado, é necessário criar essa regulamentação e uma nova ética. Deve-se
destacar o relevo que os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas
relações sexuais dos seus dependentes e de suas famílias; a aparência do
'puritanismo' assumida por este interesse (como no caso do proibicinismo) não
deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não é possível desenvolver o novo
tipo de homem solicitado pela racionalização da produção e do trabalho, enquanto
o instinto sexual não for absolutamente regulamentado, não for também ele
racionalizado" (MPE: págs 391-392, grifos meus, AHH).
Assim sendo, a modificação no modo de vida, ao mesmo tempo em que é
condicionada pelos novos métodos de produção e de trabalho, torna-se também
uma condição para o sucesso da implantação desses novos métodos, ou seja, a
nova ética sexual torna-se uma das condições sociais da produção em moldes
fordianos, e essa ética reproduzirá a forma das relações de produção: será
racionalizada e regulamentada.
Mais adiante Gramsci (1989) observa:
"É interessante notar que não se tentou aplicar ao americanismo a fórmula
de Gentile sobre a 'filosofia que não se enuncia através de fórmulas, mas se afirma
na ação'; isto é significativo e instrutivo, porque se a fórmula tem valor, é
exatamente o americanismo que pode reivindicá-la. Ao contrário, quando se fala
de americanismo, diz-se que ele é 'mecanicista', grosseiro, brutal, isto é, 'pura
ação', opondo-se a ele a tradição, etc. (...) Esta contradição pode explicar muitas
coisas: por exemplo, a diferença entre a ação real que modifica essencialmente
tanto o homem como a realidade exterior (a cultura real), o que é o americanismo,
44
e o esgrimismo galhofeiro que se autoproclama ação, mas só modifica o
vocabulário, não as coisas; o gesto exterior, não o homem interior. A primeira está
criando um futuro que é intrínseco à sua atividade objetiva e sobre a qual prefere
silenciar. O segundo apenas cria fantoches aperfeiçoados, moldados sobre um
figurino retoricamente prefixado, e que cairão no nada quando forem cortados os
fios externos que lhe dão a aparência de movimento e de vida" (págs 401-402).
Vemos, portanto, nesses autores, que a problematização da ideologia é
inserida na reprodução global das formações sociais. Em Althusser a necessidade
de reprodução liga-se, ou melhor, expressa-se enquanto necessidade de reprodução
da qualificação profissional; em Habermas, a reprodução do agir racional, a razão
capitalista, está vinculado diretamente ao crescimento das forças produtivas; em
Baudrillard o sistema de necessidades é elemento que integra o próprio sistema
produtivo; em Bourdieu os estilos de vida e os gostos de classe reproduzem as
condições de existência das classes.
Constitui também um ponto comum a racionalização progressiva de todas
as esferas da vida social: racionalização do instinto e da produção para Gramsci;
do trabalho e da interação para Habermas; do trabalho e do tempo livre para
Baudrillard.
Gramsci parece ser o primeiro a pensar a unidade base/superetruturas na
perspectiva da reprodução global das formações sociais. Pensa essa unidade em
termos políticos: designa-a de bloco histórico, cimentado pela hegemonia do
grupo dominante que é difundida pelos intelectuais.
O momento da ruptura é consenso: a partir das últimas décadas do século
XIX, na passagem para o capitalismo monopolista. As alterações indicadas por
Gramsci, já a partir de 1848, são avaliações predominantemente políticas, do que
do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, como em Braverman
e Habermas.
45
Outra questão a ser investigada também é histórica: os contextos
semelhantes em que Gramsci e A Escola de Frankfurt elaboram suas teorias:
regimes totalitários, fascista e nazista.
Se é verdade que existem semelhanças nas formulações e contextualizações
da ideologia entre os autores que aqui analisamos, o mesmo não é valido para os
seus pressupostos e perspectivas. Apontemos algumas incompatibilidades:
Althusser e Gramsci conservam como pressuposto as lutas de classes. Na Escola
de Frankfurt a luta de classes entra num estado de latência, elas são suspensas
através de programas substitutivos de satisfação, pela distribuição e pela barganha
(cf. Habermas, 1983, pág. 334). Gramsci vê possibilidade de ruptura do ciclo de
reprodução, ou seja, uma perspectiva revolucionária através da estratégia de
hegemonia civil. Em Alguns Temas da Questão Meridional, Gramsci (1978)
demostra que para o proletariado romper o ciclo de reprodução global da formação
social italiana, este deve resolver as questões meridional e vaticana.
Permitam-nos, agora, propor algumas esquematizações desses movimentos:
Como vimos, para Althusser o ARE e os AIE são os reponsáveis pela
reprodução das relações de produção e pela reprodução da superestrutura jurídico-
política e ideológica:
ARE e AIEs -->>reprodução das relações de produção e
reprodução da superestrutura jurídico-política e ideológica.
Para Habermas a racionalização progressiva da sociedade se expande do
sistema do agir-racional-com respeito-a-fins para o quadro institucional:
Sistemas do
agir racional
Quadro Institucional
com-respeito...
Trabalho Propagação Subsistemas
Agir-racional-com-respeito...==> Interação
46
Gramsci: a hegemonia vem da fábrica e os intelectuais são os funcinários da
hegemonia do grupo dominante.
Fábrica-----hegemonia vem da fábrica ==> Superestruturas
Funcionários da ideologia Racionalização
Regulamentação
Para Baudrillard a sociedade industrial se articula em quatro
sistemas/forças produtivas:
sistema técnico ---> sistema de investimento e de circulação --->
força de trabalho assalariado ---> sistema das necessidades
* * *
Se, em "A Ideologia Alemã" a consciência era produto da "emanação direta
do comportamento material", agora ela aparece como uma "rica totalidade de
determinações". É evidente que no tempo de Marx e Engels muitas dessas
determinações não existiam: a sociedade civil era "gelatinosa". Não se pode, nem
se deve, criticar Marx a partir de quase cento e cinquenta anos de história, de
desenvolvimentos.
Mas e agora, dada essa rica totalidade? Que fazer com ela? O que fazer com
"tantas mediações" e, o mais importante, como compatibilizá-las? Será um novo
quiproquó?
47
Capítulo 2.
O CONHECIMENTO DO
TRABALHADOR E A TEORIA DAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
LENY SATO(1)
Não é de hoje que se busca construir um conhecimento sobre como o
Trabalho pode afetar a Saúde a partir do conhecimento do próprio trabalhador.
Uma das experiências conduzidas nesse sentido e conhecida internacionalmente é
aquela desenvolvida pelo movimento operário italiano entre fins da década de 60 e
meados da década de 70, conhecido como Modelo Operário)ODONE e
cols.,1986). Seu nascimento e prática deu-se no seio da intensificação da atividade
do movimento sindical italiano pela busca da melhoria das condições de trabalho e
saúde. O Modelo Operário expressava uma possibilidade de os trabalhadores de
base serem os sujeitos de um processo de geração de conhecimento que viesse a
nortearas reivindicações de melhoria de condições de trabalho e saúde. Ele parte
do pressuposto de que os trabalhadores são portadores de um conhecimento
gerado no seu dia a dia de trabalho e que este deve ser privilegiado, sendo o ponto
de partida da luta pela saúde nos locais de trabalho.
A expansão do Modelo Operário deu-se fora da Itália e tem sido adotada
por diversas entidades sindicais, inclusive no Brasil, além de ser objeto de reflexão
e de referência para vários estudos da área da Saúde, como por exemplo os de
LAURELL e NORIEGA(1989), LAURELL(1984), LAURELL E
11. Mestre em Psicologia Social, Psicóloga do Centro de Vigilância Epidemiológica da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e assessora técnica do DIESAT
(Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de
Trabalho).
48
NORIEGA(1987), BERLINGUER E BIOCCA(1987) E MALLET(1988).
Particularmente LAURELL e NORIEGA(1989), LAURELL(1984) e
BERLINGUER e BIOCCA(1987) procuram analisar criticamente os pressupostos
e os desdobramento do Modelo Operário. Dentre as questões por eles abordadas,
focalizaremos especialmente aquela, expressa mais claramente por LAURELL e
NORIEGA(1989), quanto às características e modos de expressão da experiência-
subjetividade operária e as categorias que possibilitam organizar e analisar os
achados obtidos a partir dela. Quanto às características experiência-subjetividade
operária, esses autores identificam que "a concepção que se perfila mais
claramente nos textos <sobre o Modelo Operário> é a subjetividade-experiência
operária, como conhecimento latente acumulado, resultado do viver e atuar numa
determinada realidade, cujo portador é o grupo homogêneo, ou seja, a coletividade
que compartilha dessa realidade" (LAURELL e NORIEGA, 1989:88).
Posteriormente a organização dos dados é feita a partir de categorias -
grupos de risco - forjados pela Medicina do Trabalho, Engenharia de Segurança e
outras disciplinas da área. É neste ponto que voltamos a LAURELL e NORIEGA
(1989) os quais apontam uma contradição ao Modelo Operário "... pois ao mesmo
tempo em que enfatiza a potencialidade da subjetividade-experiência operária de
revelar a realidade de um modo diferente da ciência formal, ordena a experiência
no mesmo molde desta" (p.87). Podemos então dizer que ele adota como ponto de
partida a subjetividade-experiência operária, mas apoia-se como ponto de chegada
em categorias da ciência formal - grupos de riscos. Isto leva-nos a outro ponto
para reflexão, que diz respeito ao entendimento que se tem quanto à natureza da
experiência-subjetividade operária, ou seja, o saber do trabalhador. Segue então a
questão: Seguiria o saber do trabalhador a mesma lógica adotada no conhecimento
construído pelas ciências sendo, portanto, os seus produtos facilmente
intercambiáveis?
49
Entendemos que não. GRIMBER(1988), preocupada em estudar a
construção social dos processos de saúde e doença nos trabalhadores gráficos
entende que as representações dos trabalhadores com respeito à relação saúde e
trabalho "...conforma um saber que não se reduz ou se esgota nos aspectos comuns
às categorias médicas, tampouco nos parece que pode ser pensado em termos de
limitação ou de versão empobrecida do saber médico - ainda quando efetivamente
nos casos individuais este saber possa adotar essa forma" (p.10). HARRISON
(1988), por sua vez, estuda as representações de risco entre operários e entende
que elas dependem tanto do contexto social onde ela se constrói como da natureza
do risco.
Para a Psicologia Social, as representações sociais, noção introduzida por
MOSCIVICI em 1961, são uma forma de conhecimento prático, o saber do senso
comum, socialmente contruído para dar sentido à realidade da vida cotidiana e,
incluída nela está a realidade de trabalho e saúde. SPINK(1989) entende que este
saber tem dupla função: "estabelece uma ordem que permita aos indivíduos
orientarem-se em seu mundo material e social e dominá-lo; e possibilitar a
comunicação entre os membros de um determinado grupo."(p.2). O conhecimento
prático assume expressões criativas, não sendo, portanto, mera cópia de uma
realidade objetiva pré-existente, porém, tampouco é produto exclusivo da
imaginação. Sua construção dá-se na interface objetivo-subjetivo, coletivo-
indiviadual. Conforme JODELET (1985) "o conceito de representação social
designa uma forma de conhecimento específico, o saber do senso comum, cujos
conteúdos manifestam a operação de processos generativos e funcionais
socialmente caracterizados. Em sentido mais amplo, designa uma forma de
pensamento social" (p.474). Desta forma o conteúdo das representações sociais, a
sua construção e as suas modificações estão sempre situadas no contexto social em
que ocorrem.
50
Há dois processos básicos de contrução das representações sociais: o
primeiro, a ancoragem, "refere-se à inserção orgânica do que é estranho no
pensamento já construído, Ancoramos, portanto, o desconhecido em
representações já existentes" (SPINK, 1989:7) o que contempla a necessidade de
tornar o estranho em familiar; o segundo processo, a objetivação, refere-se à
cristalização de uma representação, ou seja " a constituição formal do
conhecimento. A objetivação é essencialmente, uma operação formadora de
imagens..."(SPINK,1989:8). Ainda quanto ao processo de sua construção, embora
as representações sociais se cristalizem, isto não quer significar que sejam
imutáveis, pois sofrem modificações.
São as representações estruturadas, no sentido de que sofrem influências
sociais, são dotadas de uma lógica e tem uma função cognitiva; mas também
estruturantes, na medida em que dão significado à realidade e incorporam numa
rede de significados aquilo que é estranho.
Assim entendido, não se pode afirmar que o conhecimento prático, na
perspectiva das representações sociais siga a mesma lógica adotada pela ciência, já
que, por exemplo, para o trabalhador, a noção de doença tem seu núcleo em torno
da atividade-inatividade, a doença pode ser vista como forma de evitar, como
"desculpa" encobridora de um desejo de afastar-se do trabalho, estando essa visão
estreitamente relacionada com os usos que se fazem do corpo. Por outro lado, para
a medicina ela é entendida a partir do estado orgânico, funcional e anatômico do
corpo.
Apesar de existirem evidências quanto à distinção de noções para o
conhecimento do senso comum e para o científico, com relação ao mesmo objeto,
entendemos que podem existir funções semelhantes para ambos: instrumentalizar
os indivíduos para atuar em seus mundo, inclusive no mundo do seu trabalho. Elas
norteiam as práticas, as relações interpessoais e a relação com os objetos de
trabalho.
51
SPINK(1989) classifica os estudos da área da saúde que utilizam-se da
teoria das representações sociais e aponta a sua fertilidade no campo de estudos
sobre o processo saúde-doença "porque permitem explorar a interface entre o
senso comum e o pensamento científico, seja este concebido como corpo de
conhecimentos ou como relações sociais com um grupo definido corporativamente
como detentor do saber" (p.11).
Se concordamos que o conhecimento do trabalhador pode ser entendido à
luz da teoria das representações sociais, cabe então pensar sobre como acessá-lo,
isto é, acessar a sua lógica, o seu conteúdo (que responderia à questão: o que
determinada representação significa?; ou: qual o significado de determinado
objeto?) e processo de sua construção (que responde à questão: porque
determinada representação forjou-se deste modo?). Em primeiro lugar é necessário
identificar através de quais formas as representações sociais se expressam. Elas
são sensíveis através das diversas formas de linguagem (pictórica, verbal,escrita) e
através das práticas.
Quanto às técnicas empregadas, é também SPINK(s.d.) quem as
sistematiza, recortando de diversos estudos que empregam a noção de
representações sociais as estratégias utilizadas para apreendê-las empiricamente.
Essa sistematização é precedida por uma discussão epistemológica quanto ao
estatuto dessa noção na psicologia social, à sua natureza e a ênfase priorizada -
quer na busca dos conteúdos quer nas condições de sua produção. Nesse estudo a
autora identifica três formas de obtenção dos dados: técnicas verbais, técnicas não
verbais e observação. Dentre as técnicas verbais "há sem dúvida, uma nítida
preferência, pelo emprego de entrevistas abertas, conduzidas a partir de um roteiro
mínimo" (p.13), havendo também os estudos que empregam questionários. Entre
as não verbais há os que se utilizam de associação-livre, que comporta
características de técnica projetiva. A observação é identificada como tendo papel
52
importante no estudo das representações sociais pois libera o pesquisador da
quantificação e experimentação prematura.
O passo seguinte refere-se às formas de análise dos dados coletados, ou
seja, qual o trabalho de organização e leitura dos dados que possibilita mantermo-
nos dentro da lógica do conhecimento do trabalhador. Entendemos ser este um
passo bastante importante, mas que do mesmo modo que a fase de coleta de dados
não comporta regras passíveis de fácil replicação. O rigor parece residir em
mantermo-nos alerta para o objetivo de cada estudo e para o pressuposto quanto à
existência de uma lógica própria, provavelmente inacessível a uma primeira leitura
dos dados.
Foi nessa perspectiva que desenvolvemos estudo visando caracterizar o
conceito de trabalho penoso a partir do conhecimento prático do trabalhador, no
caso motoristas de ônibus urbanos. Assim, enfatizamos a busca da compreensão
do significado das representações sociais. Adotamos como técnicas de coleta de
dados a observação e acompanhamento do trabalho, conversas, e entrevistas
conduzidas a partir de um roteiro, priorizando a apreensão deste conhecimento
através da linguagem verbal e das práticas do trabalho. Posteriormente analisamos
os dados mediante técnica de análise de conteúdo a partir do que denominamos
palavras-índice de "penosidade", buscadas no vocabulário empregado pelos
motoristas. Quanto às práticas buscamos apreender o seu conteúdo significativo,
guiando-nos pela questão: para que elas são empregadas?
Assim, concluímos que para os trabalhadores o trabalho é penoso quando
seu contexto gera incômodo, esforço e sofrimento demasiados, sobre o
qual(contexto) ele não tem controle. Vale à pena reportarmo-nos ao significado do
trabalho penoso encontrado nos estudos da área de saúde do trabalhador, onde
evidenciamos primeiramente que não existem estudos buscando conceituar o
trabalho penoso, mas que o adjetivo penoso é empregado em vários estudos,
existindo basicamente tres tendências: a primeira que engloba a maioria dos
53
estudos empíricos, filiados à Fisiologia do Trabalho e Ergonomia, para os quais o
trabalho é penoso quando demanda esforço físico; a segunda onde os estudos
adjetivam como penosas as condições de trabalho que geram esforço e sofrimento
mental e, por último, alguns estudos que entendem ser o trabalho penoso quando
gera sofrimento físico e mental (SATO, 1991).
É interessante identificarmos a aproximação e o afastamento das versões
científicas do trabalho penoso e a versão do conhecimento prático. Em primeiro
lugar está colocada na versão do conhecimento prático uma quantificação quanto
ao esforço, incômodo e sofrimento. Isto leva-nos a identificar que a penosidade do
trabalho não reside na simples existência destas exigências no trabalho. Esta
constatação aproxima-se dos estudos ergonômicos que visam qunatificar esforços,
através de medidas de gasto calórico, consumo de oxigênio, dentre outros
indicadores. Porém afasta-se desta mesma abordagem pois o método de
identificação daquilo que é demasiado, no caso do conhecimento prático, é
subjetivo, obtido na vivência dos diferentes contextos de trabalho; apesar de ser
quantitativo não numérico, sendo sua positividade expressa através de advérbios
de intensidade ou de expressões que evidenciam uma quantificação. Este limite do
suportável - Limite Subjetivo-, ademais é mutável, conhecido na relação com o
trabalho e depende do contexto em que se trabalha, daí a impossibilidade de ser
padronizado, através de um terceiro.
Desta forma, o refinamento para a definição do que é penoso, quando se
utiliza a noção de representações sociaisi, implica necessariamente que o
trabalhador seja sujeito do processo de construção do conhecimento sobre a
relação saúde e trabalho.
Uma segunda noção nuclearmente presente na caracterização do trabalho
penoso pela versão do conhecimento prático é a de Controle - controle do
trabalhador sobre os contextos de trabalho. Essa noção não é nova quando se
discute o trabalho saudável ou não saudável, como evidenciam vários estudos
54
como os de DEJOURS(1986), GUSTAVSEN(s.d.) e de HARRISON(1988).
Porém através do conhecimento prático pudemos identificar quais são os
requisitosnecessários para o exercício do Controle por parte do trabalhador. São
eles: Familiaridade, que diz respeito à intimidade e conhecimento sobre a tarefa
realizada; Poder, que diz respeito à possibilidade de o trabalhador interferir e
mudar o trabalho de acordo com suas necessidades; Limite Subjetivo, que diz
respeito ao quanto, quando e como é possível suportar as estimulações dos
contextos de trabalho. Quando não estão simultaneamente presentes estes três
requisitos que sustentam o Controle dá-se a Ruptura - ruptura do equilíbrio sendo
justamente aí que os problemas de saúde são sentidos pois o Limite Subjetivo não
é respeitado. Aparecem então as doenças, os acidentes e o sofrimento é
demasiado.
Um terceiro aspecto diz respeito aos recortes da expressão empírica do
trabalho, naquilo que pode interferir na saúde. A medicina do trabalho, a
engenharia de segurança, a psicologia do trabalho e a ergonomia recortam as
condições de trabalho em somatório de agentes (físicos, químicos, biológicos,
dentre outros). Por sua vez, para o conhecimento prático, o trabalho é visto como
um todo indiviso, o qual denominamos de contexto de trabalho, este todo não é
somatório de partes ou agentes sendo ele identificado como bom ou ruim não
apenas pela presença ou ausência de determinados fatores, mas pela combinação
entre eles. Mais ainda, nessa perspectiva, um determinado contexto de trabalho é
identificado como bom ou ruim na relação que o trabalhador pode com ele manter,
quer seja ela de maior ou de menor controle.
Também o conhecimento prático nos mostra como, apesar da ausência de
poder para interferir efetivamente nos contextos que geram esforço, incômodo e
sofrimento demasiados, os trabalhadores evitam continuamente a ruptura. São
Ações Adaptativas que modificam o trabalho planejado sem no entanto replanejá-
lo, o que significa ter que se defrontar com a repetição dos mesmos problemas
55
diariamente(2). São formas de se relacionar com o trabalho apesar dos limites por
ele impostos e, ao mesmo tempo, respeitar o próprio limite subjetivo.
Tais ações são coletivamente construídas, recebem denominações
específicas, são identificadas por todos os trabalhadores mas são individualmente
praticadas, na medida que estão referenciadas ao limite de cada trabalhador, o qual
é diferente de pessoa para pessoa. Sua construção dá-se na prática de trabalho,
tanto através da vivência direta como através da observação e da troca de
informações entre os colegas. Essas ações adaptativas ao modificarem o trabalho
planejado interferem diretamente na qualidade do produto (no caso o serviço
prestado), podendo tanto melhorá-la como torná-la mais precária, pois o que está
em jogo é a busca da possibilidade de o trabalhador continuar trabalhando apesar
dos contextos penosos e não a procura de aperfeiçoamento da qualidade do
serviço. Da mesma forma, elas podem se apresentar como comportamentos
perigosos - interpretados genericamente pela engenharia de segurança-medicina do
trabalho como ato inseguro. Se nos fixarmos na visão mais imediata , ao nível
apenas do comportamento, é provável que analisemos e avaliemos as ações
adaptativas inadequações do trabalhador ao trabalho e não como o jeito possível
de continuar trabalhando nos contextos existentes.
Ao serem analisados como inadequações do trabalhador ao trabalho, sendo
indesejáveis à produção, pode-se adotar práticas que eliminem esses
comportamentos através de programas e campanhas educativas ou de um processo
de seleção rigoroso, voltados para o controle de variáveis no trabalhador
mantendo-se intocáveis os contextos de trabalho. Porém, em não havendo a
compreensão sobre a real motivação que os conforma, essas seriam medidas
2 As ações adaptativas evidenciam, como em outros estudos (DANIELLOU, LAVILLE e
TEIGER, 1989: FREDERICO, 1979: LINHART, 1980: LEPLAT e CUNY, 1983) que há
uma organização do trabalho com procedimentos previstos e há aquela que de fato
ocorre.
56
paliativas e pouco eficazes pois não estão sendo tomadas em conta as
possibilidades concretas de trabalhadores "reais" trabalharem e conviverem em
determinados tipos de contextos de trabalho também "reais". O entendimento
dessas motivações foi possibilitado pela leitura da realção saúde e trabalho na
perspectiva das representações sociais, pois são formas de conhecimento que
informam as práticas e as relações interpessoais.
Através desse exemplo, onde se investigou um conceito da área de saúde do
trabalhador através da noção de representações sociais, evidenciou-se que o
conhecimento prático é regido por uma lógica própria, que pode encontrar pontos
de tangência e de distanciamento com a lógica e os achados do conhecimento
científico, utilizando-se de métodos próprios- vivência, observação e troca de
informações. Em termos práticos, no sentido de visualizar a aplicação da noção de
representações sociais em saúde do trabalhador, da mesma forma que elas nos
conduzem à identificação de quando o trabalho é incômodo, elas também nos
indicam quando ele é confortável. Nessa perspectiva, o papel do técnico nessa área
seria o de compreender o significado das representações sociais respeitando a sua
lógica, o que pressupõe a necessidade de conduzir a investigação a partir das
categorias que dela emergem, explicitá-las e trazê-las ao debate. É importante
frizar que o conhecimento prático não se constitui numa distorção ou versão
empobrecida do saber científico e oficial. Trata-se de um outro conhecimento que
adota recortes da realidade diversos deste e cuja presença se expressa através das
práticas cotidianas, a princípio desprovidas de conteúdo significativo.
Nosso objetivo foi o de trazer ao debate alguns aspectos que definem um
"status" próprio do conhecimento do senso comum a partir da leitura da teoria das
representações sociais, cujo emprego mostra-se fértil não apenas para o trabalho
de pesquisa em saúde do trabalhador mas também no trabalho aplicado à
prevenção de problemas de saúde. Porém não se trata de substituí-lo ou opô-lo ao
conhecimento científico, pois existe uma série de doenças ocupacionais, como as
57
intoxicações por exemplo, que talvez as representações sociais tenham pouco
acesso ao que diz respeito à sua identificação; elas podem, genericamente, nos
informar sobre a existência de substâncias químicas no local de trabalho e
sensações de mal-estar, cuja associação causal tem sido procedida pela medicina e
pela toxicologia, não significando, portanto, que as representações sociais venham
a ser uma perspectiva epistemológica que substitua o conhecimento acumulado e
em deselvolvimento pela ciência formal, dado que conforma e adota recortes
distintos da realidade.
58
Capítulo 3.
SAÚDE MENTAL E TRABALHO
UM NOVO (VELHO) CAMPO PARA A
QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE
RICARDO AUGUSTO DE CARVALHO
I – INTRODUÇÃO
Temos procurado investigar o sofrimento mental e sua correlação com o
"locus" laborativo.
Chamamos atenção para o fato de que os efeitos do trabalho sobre a saúde
não se limitam ao que é reconhecido legalmente como doença profissional, e
mesmo esta não é uma entidade que independe de sua forma de manifestação no
sujeito.
Nos interessa compreender as diferentes maneiras de resistência, as
estratégias de defesa a nível da estrutura psíquica: como os trabalhadores
constroem a sua subjetividade.
Temos estudado dentro deste eixo de análise, a categoria de bancários, as
telefonistas, os "informáticos", os professores de 1o e 2o graus. O que observamos
é que os chamados "transtornos psíquicos" se apresentamquando as exigências do
meio e do trabalho ultrapassem as capacidades de adaptação do sujeito, ou de suas
possibilidades defensivas.
59
Pensamos que a construção pelo trabalhador de um saber sobre o seu
sofrimento diferencia-o e o inscreve num campo subjetivo: a elaboração de um
saber sobre si mesmo, de um saber que o localiza. O trabalhador pretende
significar a estranheza do mal que lhe acomete, assim como tenta dar significados
na construção de um saber sobre aquilo que desconhece do processo de produção e
trabalho. A economia psicissomática de cada trabalhador expressa normas
diferenciadas de sofrimento que no entanto revelam um único produto: a
subordinação aos processos organizacionais de gestão em busca de um maior
controle. A dominação e a produção de corpos úteis só é possível a partir de uma
estratégia concernente ao aparelho mental, pela criação do condicionamento
produtivo, do comportamento estereotipado que se constitui como auto-violência,
além de fonte de mais valia.
Observamos formas de resitência, mesmo que, e ainda através do
sofrimento e das estratégias defensivas mobilizados contra a possibilidade de
adoecimento.
Naturalmente, toda correlação dentro desta abordagem deve atentar e ter
como objeto de análise, tanto o perfil do processo produtivo, a organização do
trabalho, as formas de gestão, na relação com cada categoria de trabalhadores,
assim como dentro de cada categoria profissional, as diferenças de cunho
estrutural evidenciada em cada sujeito.
Para nós, a estruturação de identidade subjetiva não se dá historicamente,
assim como o trabalho é uma formação histórica, a identidade psicológica dos
indivíduos alicerça-se nas relações de trabalho.
Nos interessa captar o sentido produzido pelo trabalhador, como e de que
forma ele se faz "surgir" sujeito, como e de que forma seu sintoma, seu
sofrimento, pode inscrever como tal.
60
Temos buscado em nossas pesquisas duas orientações metodológicas
básicas:
1. O estudo baseado no "pensar" e "sentir" dos trabalhadores. Dando espaço
à fala, às suas expressões singulares, mas também um trabalho de interpretação,
buscando desvendar o discurso enquanto uma estrutura de representação que
provoca a emergência da subjetividade e nos informa sobre a cena do trabalho,
assim como dos processos-respostas colocados em pratica pelo trabalhador em sua
relação com a organização do trabalho. Análise basicamente qualitativa, que
coloca no centro a subjetividade como instrumento de conhecimento.
2. Uma práxis investigativa com grupos de trabalhadores homogêneos
(mesmo processo de trabalho, mesma categoria profissional) e heterogêneo
(processo de trabalhao e categoria diferenciados), que se constitui também em uma
prestação de serviços em Saúde Mental e Trabalho: uma forma de aprender a lidar
com o conjunto de fatores do mundo do trabalho que influenciam a estrutua
subjetiva. A perspectiva grupal como produtora de um conjunto de idéias
interpretativas que permita aos trabalhadores uma autonomia crítica em relação a
si próprios. Buscamos uma análise dinâmica dos processos psíquicos mobilizados
pela confrontação do sujeito com a cena do trabalho.
Nossa intenção demarca uma ética na escolha do campo e a necessidade de
se pensar a vida do "homem no trabalho", não excluindo as relações sociais de
produção e os "sujeitos destas relações", o que sem dúvida diz respeito a um
estudo de natureza inter-disciplinar.
UMA PRÁXIS INVESTIGATIVA EM SAÚDE MENTAL E TRABALHO
Pretendemos relatar uma experiência de estágio investigação implantado no
Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, desde
agosto de 1990.
61
Objetivamos ao mesmo tempo, abrir um novo campo de atuação para o
psicólogo e estabelecer indicadores de ação por parte deste profissional, a nível
das relações que se estabelecem entre o Trabalho e Saúde Mental.
Tomamos como pressuposto, principalmente, o referencial teórico de
Christhophe Dejours (A loucura no Trabalho, Plaisir et Souffrance. O Corpo entre
a Biologia e a Psicanálise, basicamente) que vem sistematizando as implicações
que se evidenciam entre a Saúde Mental e Trabalho. Também queremos apontar
os trabalho de Jurandir Freire Costa, de grande contribuição em nossas reflexões.
A leitura da demanda nas instituições é a grande orientadora desta práxis
investigada que vem se realizando, a saber:
- Ambulatório de Doenças Profissionais do Hospital das Clínicas da Universidade
Federal de Minas Gerais - ADP-UFMG
- Núcleo de Saúde dos Trabalhadores vinculados ao Ministério do Trabalho e ao
Ministério da Saúde- NUSAT
- Centro de Reabilitação Profissional do Instituto Nacional de Seguridade Social-
CRP
- Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações do Estado de
Minas Gerais- SINTTEL-MG
- Sindicatos dos Trabalhadores em Estabelecimentos Bancários do Estado de
Minas Gerais.
Além destas instituições existem estagiários-pesquisadores na UTE-MG
(União dos Trabalhadores do Ensino); no Sindicato dos Trabalhadores
Eletricitários (Sindieletro-MG), que se encontram em fase de leitura da demanda e
da elaboração de uma proposta conjunta de ação. Em cada grupo atuam dois
profissionais de saúde mental que, sob supervisão, intercambiam aos papéis de
coordenador e observador (considero aqui, também estudantes de psicologia do
último ano de curso, assim como médicos do trabalho e psiquiatras), sendo que a
62
participação dos trabalhadores é voluntária, mediante contrato psicológico e
estabelecido coletivamente.
Cabe elucidar que trata-se de uma prática investigativa dos impasses
teórico-metodológicos, quanto dos de ordem institucional.
O nosso trabalho se constrói em torno de algumas constatações do
entendimento que a doença não existe enquanto uma entidade absoluta, a priori e
independente da sua forma de expressão e manifestação no sujeito; de que o
trabalho produz um processo de adoecimento, e que no espaço grupal, se coloca
como o "locus" privilegiado da produção subjetiva dos trabalhadores. De que
forma?
Consideramos que é no processo grupal no coletivo dos trabalhadores, nas
trocas das vivências subjetivas, que se viabiliza a construção de um projeto, que
foi obstaculizado pela O.T. O grupo, assim configurado pode propiciar a
emergência do ser sujeito, enquanto no mundo laboral só há espaço para o ser
trabalhador. Ser trabalhador desponta como único elemento identificatório
possível, marcado pelo padecimento nesta forma de existir. Queremos aqui afirmar
a identidade psicológica alicerçada no traço identificatório trabalhador.
No grupo, opera-se a nomeação do sofrimento que serve de veículo à
subjetividade. É dado significado ao que ocorre, configura-se um campo possível
de elaboração de um saber do trabalhador sobre si mesmo: o sujeito emerge e
expressa-se numa diferença, ele não é mais apenas o ser do trabalho ou ainda, ele
pode construir um saber que o localize, no repensar e sentir a própria identidade
profissional e social.
A questão é saber o que o sujeito diz e como diz, para falar da implicação
do trabalho com seu sofrimento e mesmo adoecimento representações são
compartilhadas no grupo.
63
Perguntamos, no modo como o trabalho é organizado, é possível trabalhar
sem sintoma?
Por exemplo: a organização do trabalho das telefonistas onde observamos a
vinculação do comportamento laboral ao comportamento adotado fora do trabalho,
que tem como resultado a estereotipia de fala (fraseologia) e a escrita truncada. No
significado dos modos operatórios, na contradição fundamental entre um
instrumento destinado à comunicação,e a interdição determinada pela organização
do trabalho, temos a hiperatividade como marca do condicionamento produtivo.
Na expressão oral cortada, que temos a denúncia da incomunicabilidade.
Outro exemplo é o caso das portadoras de tenossinovite de uma indústria
mineira de fabricação de chicotes para automóveis. As trabalhadoras queixam-se
de dores não plausíveis de explicação pelo nexo causal médico, que não "lê" que a
inscrição sintomática se dá um processo de subjetivação na diferança entre os
sujeitos, onde aí reconhecemos a variância estrutural.
No caso dos bancários, cuja organização do trabalho já examinada em
pesquisas brasileiras, a relação sujeito-máquina dá substrato às representações
expressas nas queixas destes trabalhadores: "mente ocupada"; "trabalho até
dormindo"; "minha cabeça manda uma mensagem e meu corpo não obedece";
"minha cabeça tem dois fios e quando se encontram dá choque".
Os mecanismos e absorção da vida mental do trabalhador produzem, sem
dúvida, impactos, cujas manifestações reveladas no discurso destes sujeitos, nos
direciona o olhar e a escuta de como as representações concretizam algo novo,
daquilo que só existia fragmentada. Há um compartilhamento das representações,
a participação é feita através da linguagem constituidora de sentido para os
sujeitos que aí se reconhecem.
Cremos que a compreensão do vivido no trabalho produz o sentido e este
sentido produz o sujeito. O trabalhador pretende significar a estranheza do mal que
64
lhe acomete. O trabalhador alienado de seu desejo torna-se sujeito em si mesmo,
automático em sua ação que está subordinada, e não referenciada, no desejo do
outro. No caso das categorias supra-citadas, o trabalhador sempre está em deficit
com a organização do trabalho, que lhe pede sempre mais, e esta relação vai
determinar também uma falta do trabalhador consigo próprio: ele está excêntrico
ao seu desejo, que não lhe pertence e o seu desejo se torna a própria organização.
Queremos chamar atenção para a dimensão bivalente do sofrimento, que nos
aponta uma resistência no sintoma quando o trabalhador para poder continuar
trabalhando, faz dele o desejo da organização, introjeta o "modus operandi" da
máquina que se revela no seu modo operatório e o modelo mental. Torna-se
então, artífice do seu próprio sofrimento.
A complexidade destes mecanismos psíquicos, que não trataremos aqui,
nos informa da dialética da construção dos sistemas defensivos. Aquilo que faz
sofrer é também a forma de resistir. A resistência existe onde há dominação.
Perguntamos: a organização do trabalho aparece como desencadeante de um
processo que poderia não passar do nível potencial? Julgamos que a organização
do trabalho desencadeia na estrutura psíquica, é o deslocamento da identidade
subjetiva pelo traço identificatório do trabalho com fins a um maior controle e
produtividade. O sofrimento também é fonte de mais valia, e é também um
sinalizador que coloca o trabalhador em questão, mesmo que seja com seu sintoma
sofrimento ou através dele: vemos aí a subjetividade como instrumento de
conhecimento.
Quisemos com esta reflexão discutir a necessidade de uma intervenção
configurada pelo que, expressam de maneira significativa os próprios
trabalhadores, na dimensão e magnitude do sofrimento mental no trabalho.
Cada trabalhador buscará formas, saídas, convivência com o seu sofrimento
e mesmo cura. Ainda que, talvez esta "cura" o exponha a uma nova doença.
65
A consideração da prática com Grupos possui extensa literatura, que ao
mesmo tempo que nos suporta, nos inquieta dada a complexidade do objeto.
Psicopatologia do Trabalho, mas enfrentamos os riscos desta práxis quando
escutamos uma telefonista: "é bom eu estar aqui prá saber que não estou louca".
Nossa intenção demarca uma ética na escolha do campo e uma certeza na
orientação de olhar: como nos diz Eleger "O trabalho em si é uma orientação que
não cura e nem faz adoecer; o que cura, enriquece a personalidade ou faz adoecer
são as condições humanas e inumanas em que o trabalho é realizado.
66
Capítulo 4.
SAÚDE E TRABALHO:
UMA ABORDAGEM DO PROCESSO E
JORNADA DE TRABALHO
JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO
ALBERTO HARUYOSHI HITOMI
ERASMO MIESSA RUIZ
INTRODUÇÃO
Para discutirmos processo e jornada de trabalho, primeiro se impõe colocar
a questão do trabalho mesmo: realização ou maldição, cerceador do gesto criativo
ou expressão de criatividade, construtor da identidade ou o principal determinante
da transformação de sangue, suor e imaginário humanos em valores de troca? Este
maniqueismo é falso, na medida em que trabalho nas sociedades capitalistas
exprime simultaneamente estas contradições.
Partindo-se da premissa de que alguém trabalhe apenas oito horas por dia, o
trabalho ocuparia diretamente metade do nosso tempo de vigília, um terço de
nossas vidas, servindo de equivalente universal para nos identificarmos uns
perante os outros (- "Quem é voce?" - "Ah, sou mecânico"). Mas o trabalho é
mais, é força, tempo e habilidade que se vende para obter condições de morar,
vestir, comer. Como se isso não bastasse, o trabalho nos situa na hierarquia social
de valores, visível no prestígio social de algumas profissões frente a outras
(médicos e garis, advogados e borracheiros, metalúrgicos e crecheiras etc). Assim
67
o trabalho nos remete para possibilidades diferentes de consumo, felicidade,
adoecimento e morte.
Neste ponto podemos afirmar que existe uma onipresença do trabalho
humano em todas as expressões da vida social. Tudo que consumimos traz a marca
de algum produtor, traz a expressão concreta de sua subjetividade e/ou media a
subjetividade do projetista. Qualquer argumentação de autosuficiência individual
cai por terra durante uma crise de abastecimento ou uma greve que retire das
prateleiras dos supermercados a cerveja, o suco de frutas ou a carne. O trabalho
humano cria cada vez mais uma complexa rede de interdependência entre os
homens. O mais instigante disso tudo é perceber que, quanto mais aumenta o nível
de alienação, mais são reificados os produtos, mais perdemos a consciência do
trabalho como elo fundamental da sobrevivência física e espiritual de qualquer
indivíduo e sociedade. As lojas e supermercados transformam-se em "árvores"
produtoras de televisores, geladeiras, biscoitos, geléias etc. Sob outra forma
voltamos à função de "caçadores/coletores".
A forma como se estruturam as relações sociais de produção determina
quem sobreviverá das migalhas do próprio trabalho e quem acumulará por meio do
trabalho alheio. Através dos processos ideológicos, mediados pelo trabalho,
relações de opressão e exploração econômica serão justificadas e legitimadas
tanto pelos dominantes como pelos dominados.
Outras instâncias, como família ou religião, poderiam cumprir um papel
mais importante que o trabalho na estruturação da identidade. Entretanto não se
pode esquecer que essas instâncias, embora gozando de autonomia relativa,
acabam sendo de alguma forma mediadas pela organização produtiva. Pensemos
no seguinte: A crescente expropriação da classe trabalhadora faz com que a
mulher se lance no mercado de trabalho para complementar a renda doméstica, o
que implica num redimensionamento radical da estrutura familiar dos
trabalhadores nos grandes centros urbanos. As creches aparecem aqui como um
68
novo agente social na construção de identidades, valores e normas. A presença
física constante da mãe desaparece, a figura materna é multifacetada nas
recreacionistas e na mãe biológica.
Hoje, principalmente nas sociedades capitalistas periféricas,estamos tão
prisioneiros do trabalho como mero negócio desigual, da venda de força de
trabalho por salários aviltados, da dolorosa negociação de um preço suportável
para a sobrevivência, do medo crônico do desemprego, que nem percebemos as
inumeráveis possibilidades realizadoras do trabalho. Não encontramos prazer na
atividade que transforma o mundo e nos transforma, achamos que é necessário
passar pelo trabalho como inferno, pela negociação salarial como purgatório, para
alcançarmos o paraiso do consumo. Mas o salário conseguido não permite acesso
ao mundo do que necessitaríamos e/ou desejaríamos consumir. Assim, os vários
sindicatos lutam pela redução da jornada, pelo aumento dos intervalos, pela
extensão das férias e licenças remuneradas, por ganhos de poder de compra. O
trabalho transforma-se em maldição que, se não pode ser afastada, pode pelo
menos ser diminuida. O salário não cumpre função promotora de existência
através do consumo mas de mera e cansativa subsistência.
É hora de sistematizarmos alguns conceitos, tomando Marx (s/d) por base:
1- Trabalho é atividade humana de intertransformação com a natureza.
2- Trabalho parte de um projeto concebido idealmente até encarnar-se
em resultado prático-material que expressa objetivamente a subjetividade do
produtor.
3- Trabalho implica tanto em realização da identidade, como em
mercadoria, coisa a ser vendida em troca de acesso à sobrevivência.
4- Trabalho tem dupla natureza:
a) Atividade material, intencional, voltada para a realização de um produto
necessário aos homens, e que envolve instrumentos e procedimentos. Esta
69
natureza do trabalho pode ser chamada de trabalho concreto, expresso através do
processo de trabalho.
b) Modo de transformação desta atividade em mercadoria, voltada para a
realização dos interesses do capital, enfim, o modo como o trabalho é explorado.
Esta natureza do trabalho pode ser chamada de trabalho abstrato, expresso através
do tempo comprado pelo capital ao trabalhador.
Estas naturezas são indissociáveis: uma instrumentaliza e significa a outra.
Qualquer estudo do trabalho só poderá entendê-lo contemplando este duplo e
contraditório aspecto. Qualquer tentativa de modificá-lo só poderá efetivar-se a
partir do entendimento deste duplo e contraditório aspecto.
Certa vez, entrevistando médico do trabalho, registramos a ocorrência do
seguinte diálogo:
Pesquisador - "Que obstáculos a empresa tem colocado diante de suas
atividades ?"
Médico - "Ah, nenhuma. Nada do que eu fiz, sugestões que dei, decisões
que tomei, foram questionadas. Tenho toda liberdade."
Pesquisador - "Mas não há possibilidade de nenhum atrito? Imaginemos
que haja algum, o que aconteceria?
Médico - "Não ocorreria atrito. Se eu fizer algo que desgoste, eles me
demitirão logo, sem conversa."
Quer dizer, a liberdade que ele dizia ter, no início do diálogo, era apenas a
liberdade de fazer o que a empresa quer. A lógica de qualquer empresa é dada pelo
lucro. As transformações possíveis são aquelas que aumentem ou pelo menos não
afetem a escala de lucro. A maioria das políticas de recursos humanos e
organização do trabalho visaram até hoje a implementação de produtividade com
redução de custos. As virtuais melhorias obtidas para a preservação da força de
trabalho foram secundárias, não eram objetivo primordial, a não ser quando ficava
70
claro que investimentos em melhorias de condições de trabalho se refletiriam na
qualidade e competitividade do que era produzido. A lógica do capital subverte
toda e qualquer lógica humanista.
Frente a esse quadro, que prática política e econômica os trabalhadores
realizarão para obter melhor condição de trabalho? Lutas corporativas ou
classistas? Associação de interesses com os detentores dos meios de produção?
Docilidade à espera de filantropia?
Que lógica política e econômica a empresa praticará para conceder?
Entender como custo ou investimento? Repassar para os preços? Transformar as
concessões qualitativas em redução de salários? Transformar concessões
quantitativas na deterioração das condições de trabalho?
Buscando compreender alguns elementos do aspecto concreto do trabalho -
posto, local, operação, ritmo, postura, ferramenta, instrumento, máquina, matéria
prima, produto - Medicina do Trabalho, Engenharia do Trabalho e Ergonomia têm
oferecido grandes contribuições para a melhora da ambiência do trabalho, de seu
conforto mínimo. Mas ao não reconhecer que o significado objetivo do que
acontece no posto de serviço é dado pelos desígnios do capital, e não pelos
trabalhadores, e ao desconsiderar o imaginário do trabalhador que reelabora e
reapropria fatos e significados segundo particular experiência de mundo, estes
saberes se perdem na fragmentação, caem no ardil do que pretendiam revelar.
Medicina do Capital, Engenharia do Capital, Ergonomia do Capital.
Pensemos na Ergonomia. Dejours (1987) nos lembra que mesmo as
mudanças realizadas por ela levam a novos problemas que a mudança não previa.
A cadeira que acomoda mais anatomicamente a coluna levará a uma dor no braço
esquerdo. Isso por si já mostra o quanto a Ergonomia, fruto da fragmentação,
fragmenta o corpo a ponto de não conseguir mais dar conta do que seccionou, e,
acabada a novidade da mudança, o novo conforto se revela máscara da velha
exploração.
71
O processo de trabalho não se restringe aos elementos mais concretos. É
preciso ver qualificações, funções, cooperação, hierarquia, sociabilidade, marca,
disciplina. É preciso ver a relação entre um trabalhador e outro, tanto no que se
refere aos objetivos do trabalho, como para a possibilidade do papo camarada, da
sociabilidade civil, leiga. É preciso ver a hierarquia, correia de transmissão das
ordens: interesse econômico se transformando em norma, orientação técnica e
disciplina. É preciso ver a acumulação de competência humana dentro de uma
máquina, transformando trabalhador em fiscal de visores, alavancas, tomadas,
botões. É preciso ver o ajuste do trabalhador a cada tarefa.
A Psicologia Organizacional, dita Industrial ou do Trabalho, tem tentado
dar conta destas questões e inúmeros avanços proporcionou ao conhecimento. Mas
ao tomar o trabalhador individualmente, como se trabalho fosse escolha livre
baseada em específicos do desejo, questão de vocação, fôro íntimo, tendências
inatas; e quando supõe empresa autônoma sem sobredeterminações oriundas do
Estado e das outras empresas, este saber se perde no espontaneismo, no
individualismo, no ardil daquilo que pretendia revelar. O trabalho então mostra-se
esquizofrenizado nos conceitos de carga mental, insatisfação no trabalho. A
subjetividade humana é tomada por expressões numéricas da eletricidade
galvânica da pele, percepções de luzes e cores, impressões desse ou daquele ruido.
A Psicologia da Indústria tayloriza seu objeto por que é uma Psicologia
taylorizada: Psicologia do Capital.
É preciso entender o gesto, o significado do gesto para o capital, para a
produção do produto específico e para o trabalhador. É preciso entender as
possibilidades que o trabalhador tem de se identificar ou não com o produto, de
reconhecê-lo como seu, de saber que se torna um pouco mais eterno através de
cada coisa que faz. Se o trabalhador não pode fazer isto, ele não vive a cada gesto,
ao contrário, ele morre a cada gesto. Mesmo que não morra fisicamente vai se
instalando um vazio na alma, uma corrosão da alegria, frustração dos projetos,
72
fracasso das esperanças. É preciso que as pesquisas científicas transponham o
limite da quantidade à qualidade, significando as expressõesnuméricas obtidas
pelos instrumentos de coleta.
E a preocupação com turnos? E a extensão absoluta da jornada de
trabalho? Há quem afirme que pai trabalhador, submetido a grande carga horária
sob regime de turno, gera psicodinâmica de dependência entre os filhos. Talvez
seja excessiva extrapolação, que se explica apenas por uma saudável luta contra
estudos reducionistas que tomam turno como agressão a relógio biológico
universal, imutável, natural. O certo é que procede investigar esta questão.
O que tem mais impacto? História de migrações rural-urbanas - prontidões
adquiridas para a vida agrária, quase sempre encarada com bucólica nostalgia, em
choque com os treinamentos necessários para o desenvolvimento de corpo,
conduta e cultura operárias? Ou a quotidiana migração pendular casa-trabalho-
casa, que preenche de violência urbana e sobressaltos do transporte público os
riscos de uma vida fora do trabalho, esgotando vida familiar e lazer?
Não é somente o volume de renda que tem significado, por incluir o
trabalhador nesta ou naquela escala de possibilidades de reprodução. A história
anterior de crescimento ou queda (o patamar do momento é vivido como perda ou
como vitória?), a forma (se fixa ou por produtividade) e as oscilações de força,
atenção e saúde afetando ou não a escala de renda, compõem com o volume uma
única unidade de explicação.
Achamos que existem trabalhos incapazes de dar prazer, mesmo se
retirarmos dele o perigo, a condição insalubre. Por exemplo, não vemos graça
alguma em coletar lixo nas ruas, em carregar nas costas sacos e mais sacos de
açúcar em algum cais de porto, ou em triturarmos os próprios ossos pondo
britadeira contra asfalto ao sol causticante dos trópicos. A máquina, portanto, pode
ser boa, pode ir substituindo o trabalho humano em inúmeras atividades, mas
somente se o trabalhador puder controlá-la, aprender a fazê-la e aprender com ela.
73
É preciso que o trabalhador, enquanto cidadão e consumidor, possa gozar de todos
os bens sociais produzidos; possa entender que não há realização no átomo
especializado de trabalho que lhe compete, mas na massa organizada do trabalho
humano, voltada para a satisfação de quem trabalha e não só dos que detêm os
meios de produção.
Mas a máquina incorpora trabalho humano dentro dela e o gesto de
controlar a máquina não é mais o gesto de produzir. O que isto muda na
representação sobre trabalho? O que isto muda na consciência? E quando esta
mudança acontece simultânea com a do capital que se realiza na especulação em
vez de realizar-se na produção? Máquina e especulação expropriando trabalho e
significados do trabalho. Máquina e especulação aglutinando trabalho morto.
Se não é possível entender tarefa sem seus contextos doadores de
significado, não é possível descobrir os significados sem as tarefas que os
materializem.
Haveria, por exemplo, um jeito metalúrgico de viver, adoecer e morrer?
João Cabral de Melo Neto, grande poeta pernambucano, nos ensinou que há uma
morte Severina, aquela que camponeses migrantes experimentam no nordeste, eles
que mal sabem o que terão a cada dia, vida comprada a retalhos, morrem em
massa, a grosso, de desemprego, fome, diarréias, epidemias.
Haveria um jeito metalúrgico, um jeito borracheiro, um jeito sapateiro de
viver, adoecer e morrer? E o que, na vida de metalúrgicos, borracheiros e
sapateiros organizaria, estruturaria, este jeito? Achamos que são seus trabalhos.
Mas o que, nestes trabalhos? E como? Impõe-se entender estes trabalhos em sua
múltipla complexidade, coisa que não aparece fácil pois cada um de nós está
passando ingentes e urgentes dificuldades financeiras, cada um de nós está
prisioneiro de um único posto ou de um conjunto tão simples de gestos, que
confundimos trabalho com o jeito com o qual ele aparece para cada um de nós
isoladamente. Confundimos trabalho com o inferno desta atividade cerceada de
74
gesto criativo e mal paga que quase todos experimentam. E então, em vez de
lutarmos pela qualificação do trabalho desejamos licenças, pequenas idenizações
pelos riscos que corremos e a aposentadoria, nem que seja a morte em vida da
aposentadoria por invalidez do marceneiro que direciona a mão de encontro a serra
elétrica.
Processo de Trabalho
Neste momento, para efeitos didáticos, nós também vamos dividir o
trabalho. Deixaremos de lado as questões de salário e jornada, migração pendular
casa-trabalho-casa, tempo livre, uso do tempo livre e quanto de mês ainda sobra ao
fim do dinheiro. Vamos nos concentrar na discriminação dos elementos que
compõem o processo de trabalho, segundo a concepção do Projeto Saúde Mental e
Trabalho (Sampaio, Hitomi & Codo, 1990; Codo, Sampaio & Hitomi, np).
Cada um dos elementos listados adquire sempre pelo menos três
significados simultâneos e contraditórios: para o trabalhador, para a racionalidade
do processo que leva à produção de um produto específico e para o capitalista.
Exemplo: FUNÇÃO - para o trabalhador é quase sinônimo de profissão, é sua
qualificação especializada, pode até ser seu orgulho; para a produção daquele
produto, é conjunto de atividades que compõem etapa necessária para a
transformação de uma tira de couro em sapato, de madeira em mesa, por exemplo;
para o capitalista é divisão de trabalho que permite controle do trabalho, exercício
de poder sobre o trabalhador.
Mas, listemos os elementos, agrupados segundo afinidades:
I. POSTO E LOCAL
75
POSTO - Área de realização da função. Pode ser fechada ou aberta, real
(presença permanente do trabalhador) ou virtual (atenção em determinados
momentos, intervalos regulares ou irregulares, com liberdade de ambulação),
realizando corpo coletivo real de trabalho (presença de todos os trabalhadores da
função em mesma área, interagindo para além das necessidades do processo de
trabalho) ou corpo coletivo virtual (isolamento do trabalhador, perda até do
contacto visual com seus pares).
LOCAL - Área física do posto, expressando as condições em que o
processo de trabalho será exercido. Isto envolve higiene, luminosidade, ruído,
ventilação, temperatura, estado de conservação dos instrumentos, proporção de
área livre em relação ao número de trabalhadores (nível de aglomeração,
território), existência e uso de equipamentos de proteção. O conforto do
trabalhador é despesa para o capitalista, é custo que ele vai poder ou não repassar
para o preço do produto, dependendo do mercado.
II.OBJETO DE TRABALHO, MATÉRIA PRIMA E PRODUTO
OBJETO DE TRABALHO - Elemento da natureza que não sofreu qualquer
transformação pelo homem.
MATÉRIA PRIMA - Elemento que já sofreu alguma transformação e se
coloca como objeto a ser novamente transformado. Pode ser natural (madeira,
couro, látex) ou artificial (borracha sintética, plásticos), orgânico ou inorgânico,
acessível diretamente (contacto manual) ou indiretamente (através de pinças, com
proteção de luvas, etc), familiar ou desconhecido ao trabalhador, anódino ou
tóxico.
PRODUTO - Resultado da transformação de matéria prima. É matéria
prima mais trabalho, algo que não existiria sem necessidades, imaginação e
trabalho humanos. Pode ter as características atribuidas à matéria prima (natural X
artificial, orgânico x inorgânico, acesso direto x indireto, familiar x desconhecido,
76
anódino x tóxico) e outras, como ser real (algo que se materializa) ou virtual (a
materialização se dá como serviço). A questão do produto fica muito complicada,
principalmente no setor de serviços da economia. Qual é o produto de uma
prostituta, de um caixa bancário, de um psicólogo? Se não há produto, o quehá?
Se não há produto, há trabalho? Se o produto é desconhecido ou virtual, como
pode o trabalhador encontrar nele a marca de sua mão? Vinicius de Morais, grande
poeta carioca, fez um operário olhar o mundo e em tudo ver sua marca, porém em
coisas não mais acessíveis, desde que sobre elas foi aposta a impressão digital do
capital, a lógica da mercadoria.
III. GESTO, OPERAÇÃO E TAREFA
GESTO - Movimento do corpo, mais ou menos delimitado, relacionado a
uma finalidade imediata.
OPERAÇÃO - Conjunto de gestos que permite realização de parte ou etapa
necessária de trabalho proposto. É modo de execução da tarefa.
TAREFA - Objetivo e modo de execução do trabalho. A tarefa é atividade
com sentido técnico, direcionada a um fim que é a produção da parte do processo
de trabalho atribuída a um trabalhador. É objetivo e conjunto de operações que se
tem como projeto.
IV. RITMO E POSTURA
RITMO - Número de operações por período de tempo. Quando os
trabalhadores conseguem reduzir extensão da jornada de trabalho, podem ter esta
conquista perdida por avanços tecnológicos e/ou organizacionais que o capital
incrementa. O que o trabalhador fazia em 8 hs/dia, passa a fazer em 5 hs/dia, por
exemplo. Se a redução obtida tiver sido para 6 hs/dia, isso quer dizer que o capital
ganhou 1 hora/dia a mais de produtividade por trabalhador. Esta guerra civil tem
limite: os custos das inovações tecnológicas e as impossibilidades biológicas por
parte do trabalhador, pois nenhum ser humano aguenta ficar freneticamente
77
apertando parafusos, movendo alavancas, batendo solas além de um certo período
de tempo.
POSTURA - Posições ocupadas pelo corpo durante as operações. Em pé,
parados. Em pé, andando. Sentados, semi-inclinados, mãos para baixo, mãos para
cima, cabeça apoiada, cabeça sem apoio, presença ou ausência de apoiadores de
pés e pescoços. O ser humano paga com varizes, lombalgias, dores dos músculos
de sustentação, o preço de ter conquistado o andar ereto, e de o obrigarem a ficar
assim, por longo tempo.
V. FERRAMENTA, MÁQUINA E INSTRUMENTO
FERRAMENTA - Elemento material simples, aposto entre corpo e objeto
de trabalho, que potencia força e habilidade humanas. É um potencializador, não
substitui e não incorpora controle, saber, habilidade.
MÁQUINA - Elemento material complexo que incorpora saber e habilidade
humanos, acumulando trabalho dentro dele. A princípio pode precisar de força
motriz externa, depois pode incorporar a força motriz, por fim pode incorporar até
determinados processos de decisão.
INSTRUMENTO - Todo elemento material que se interponha entre o
homem e a natureza, no afã de transformá-la. Pode ser a mão do homem,
ferramentas, máquinas, máquinas-ferramentas. Qual o grau de desenvolvimento
técnico dos nossos instrumentos? O que eles nos consomem: energia física em
proporção substituível? Energia física na fronteira das impossibilidades de
reposição, o que nos fadiga, nos estafa? Energia mental transformada em atenção
concentrada, em proporção substituível? Energia mental, no limite da não
substuição, invadindo de mal estar nossa vida inteira, invadindo de sobressaltos
nosso sono e nossos sonhos?
VI. DISCIPLINA, SOCIABILIDADE E MARCA
78
DISCIPLINA - Juntamente com decisões referentes à produção e normas
técnicas, o sistema de seleção de pessoal, a administração de pessoal, os
treinamentos e a hierarquia passam disciplina. O capital se acha investido da
missão civilizadora de educar e instruir os trabalhadores, estes bárbaros. Disciplina
é treinamento moral, regulação das condutas, atitudes, comportamentos. Junto
com as normas técnicas também passam orientações sobre modo de vestir, uso dos
cabelos, horários e temas de conversa, sociabilidade ideologizada, aquela que o
capital considera melhor para todos, por ser melhor para ele. Todos sabem do
número de vezes que podem ir ao banheiro e que os fiscais não intervêem apenas
nos impositivos da produtividade mas também na vida privada. Neste item entram
desde a impessoalidade das fardas até os concursos de operário-padrão.
SOCIABILIDADE - Padrão de relacionamento entre os trabalhadores e
deles com a hierarquia. A conversa possível. O surgimento de amizades,
afetivando o espaço do trabalho. A descoberta de direitos, politizando o espaço do
trabalho. Se os trabalhadores são autóctones ou são migrantes, trarão costumes
familiares e culturais diferentes para dentro da empresa. Estes costumes,
modificados pela disciplina, conformam a sociabilidade possível.
MARCA - Possibilidade de identificação do trabalhador com seu produto.
O artesão reconhece um sapato feito por ele, descobre nele aquele detalhe
característico. Mas o trabalhador em linha industrial de montagem pode até cruzar
com seu produto e não reconhecê-lo. O latifundiário marca suas terras com cerca,
nome de fantasia e documentos legais. O pecuarista marca seu gado, a ferro e
fogo, com signos que o distingam do gado de outro pecuarista. Um industrial pode
distinguir sua mercadoria por um modelo próprio, que terá as mesmíssimas
características independente de ter passado pelas mãos do trabalhador fulano ou
beltrano. Mas o movimento que tirou do trabalhador a capacidade de marcar
seu produto, hoje também tira do capitalista a capacidade de marcar sua
mercadoria. Os economistas chamam determinadas mercadorias de
79
"commodities", são mercadorias sem qualquer diferença de um fabricante para
outro: aço, gasolina, álcool, açúcar e sal são "commodities", por exemplo. A
diferença fica por conta do nome do distribuidor.
VII. QUALIFICAÇÃO, FUNÇÃO, COOPERAÇÃO E
HIERARQUIA
QUALIFICAÇÃO - Conjunto de saberes teóricos e/ou práticos apreendidos
pelo trabalhador, seja num treinamento específico numa empresa, ou acumulado
em empregos anteriores, que podem ou não ser aplicados naquele trabalho
específico. Em sentido mais restrito qualificação pode ser entendida como
treinamento prévio e continuado investido no trabalhador, aquilo que ele precisa
saber para dar conta da função. Quanto mais qualificação, mais o trabalhador
tende a ter controle sobre seu trabalho, a decidir mais livremente, além de ser mais
zelado pelo capitalista pois representa investimento.
FUNÇÃO - Expressão da divisão do trabalho. Realiza a parte da tarefa
especializável, por trabalhador ou grupo de trabalhadores. Realiza a competência
treinada.
COOPERAÇÃO - O modo como os trabalhadores e as funções se
articulam, visando maximizar resultados. Os resultados são vetores de uma luta
permanente: interesse do capital, objetivo específico do processo, interesse do
trabalhador. Dependendo da força relativa de cada uma das partes, o resultado
estará mais próximo de um ou outro dos interesses. Esta cooperação pode ser real
(expressa no quotidiano das relações) ou virtual (intermediada por instrumentos ou
documentos).
HIERARQUIA - Determina as formas de divisão de trabalho e de
cooperação. Nela se realiza o controle e as tomadas de decisão. Dependendo do
lugar na hierarquia, variará o poder de decisão. Aí fica claro se somos sócios,
80
cúmplices ou escravos. A hierarquia é a correia de transmissão dos objetivos do
interesse dominante, é instrumento de poder.
Jornada de Trabalho
Se trabalho abstrato não se expressa diretamente, pela sua própria natureza,
podemos surprendê-lo de modo transverso através da jornada de trabalho. Mas é
necessário ousar incluir aqui a questão da remuneração do trabalho, como
elemento constituinte da categoria analítica "jornada de trabalho", não como item
a ser analisado em separado. Impõe-se enfatizar que, tanto para "processo" comopara "jornada", a discriminação dos elementos serve para fins analíticos, ajudam a
identificar que dados coletar na realidade de cada categoria profissional, deste
modo permitindo o entendimento, a explicação do que pode estar acontecendo na
vida, na saúde, na doença e na morte bancárias, metalúrgicas, borracheiras,
sapateiras, severinas.
Concentremo-nos então na discriminação dos elementos que compõem
jornada de trabalho, agrupados segundo afinidades:
I. TRABALHO NECESSÁRIO E CATEGORIAS GENÉRICAS DE
EXPLORAÇÃO
TRABALHO NECESSÁRIO - Quantidade necessária de trabalho
suficiente para obter remuneração que possibilite reprodução mínima da força de
trabalho.
TRABALHO EXCEDENTE - Tempo a mais de trabalho que permite
acumulação de capital. A força de trabalho precisa reduzir jornada e aumentar
salário para valorizar trabalho. O capital precisa aumentar jornada, ou intensificá-
la, e reduzir salário para se valorizar.
81
MAIS VALIA ABSOLUTA - Forma de valor excedente, além do
suficiente para remuneração do trabalho necessário. Caracterizada pela extensão
absoluta da jornada de trabalho.
MAIS VALIA RELATIVA - Forma de valor excedente, além do suficiente
para remuneração do trabalho necessário. Caracterizada pela intensificação do
ritmo de produção (por organização ou tecnologia), com jornada absoluta reduzida
e/ou constante.
II. JORNADA
EXTENSÃO DE JORNADA - Tempo máximo comprado pela empresa,
considerando a necessidade de trabalho necessário e excedente. Pode se apresentar
com teto diário, semanal ou mensal. Avaliar a proporção tempo-comprado x
tempo-não comprado (dito livre).
MODULOS CONTINUOS - Extensão e número. Em quantas partes
contínuas a jornada é fragmentada por intervalos.
INTERVALOS - Extensão, número e natureza (excluidos ou incluidos no
tamanho do tempo comprado), legalidade (formais ou informais) e destinação
(repouso e refeições).
PREPARAÇÃO PARA O TRABALHO - Extensão, posição, frente a
jornada. Urge considerar se o tempo necessário para o trabalhador trocar de
roupa, munir-se de equipamentos de segurança e receber distribuição de tarefas
acontece antes ou depois dele assinar o cartão de ponto.
DESLOCAMENTO CASA-TRABALHO-CASA - Extensão, posição
frente a jornada. As vezes esta migração pendular adquire extensão assemelhada
ao da própria jornada, submetendo o trabalhador ao modo como o sistema de
transportes é estruturado. Há pessoas que trabalham oito horas/dia e passam até
cinco horas/dia em ônibus e trem.
82
FÉRIAS - Data fixa ou a escolher, gozo individual ou coletivo,
possibilidades de parcelamento, possibilidades de acréscimo de folgas permitidas
no correr do ano.
HORA-EXTRA - Número, proporção sobre jornada, habitualidade,
distribuição pelo mês e natureza (compulsória ou opcional). Constitui um mais-
trabalho, porém remunerado. Implica em redução do tempo dito livre.
TURNO - Disperso pela semana útil ou concentrado em plantões. Fixo ou
revezado, diária, semanal ou mensalmente. Ritmo sono/vigília respeitado ou
desrespeitado. A disponibilidade social do trabalhador em sintonia ou distonia
com o tempo dominante da disponibilidade social de seus grupos.
III. SALÁRIO
ESCALA - Magnitude, referência a piso nacional, lugar ocupado na
distribuição nacional, posição frente a renda per capita, coerência interna
(referência aos outros salários praticados por sua empresa), coerência externa
(referência aos salários praticados pelas outras empresas que empregam a
categoria profissional), posição na renda familiar. Se permite adquirir a cesta
básica ou não (utilizar aqui os conceitos de "consumo simples/consumo extenso"
e de "reprodução absoluta").
POSIÇÃO HISTÓRICA - Se a atual escala salarial é ganho, perda ou
manutenção de escala precedente. Aqui se inclui a discussão do conceito de
"reprodução relativa" (o nível de reprodução historicamente atingido e que foi
incorporado como mínimo natural tolerável).
TIPO - Fixo, variável (prestação de serviço, produtividade) ou mixto (fixo
+ variável, ocorrência de adicionais permanentes). Dimensão de ganho dada a
priori ou a posteriori, permitindo planejamentos e expectativas diferentes. Quanto
83
ao recebimento podendo ser integral ou parcelado, com permissão ou não de
saques através de vales.
ADICIONAIS - Número, proporção sobre salário, natureza (compulsório
ou opcional para a empresa) e tipos (por tempo de trabalho, férias, exercício de
chefia ou função técnica especializada, existência de salários extra sem
contrapartida de jornadas extra, idenizatórios de más condições de trabalho como
insalubridade e/ou periculosidade, abono-família etc).
DESCONTOS - Número, proporção sobre salário, natureza (compulsório
ou opcional para o trabalhador) e tipos (por jornada não cumprida; para benefícios
sociais como FGTS e IAPAS; para programas de previdência da empresa etc).
REMUNERAÇÃO DE HORA-EXTRA - Proporção sobre a hora-padrão e
proporção sobre salário. É adicional ligado a mais-trabalho. Não tem acréscimos
sociais, não é incorporado ao padrão salarial com vistas a aposentadoria.
Determinado pela empresa, significa baixa possibilidade de controle pelo
trabalhador, principalmente quando existe desemprego e salários baixos.
PRODUTIVIDADE - Adicional que representa alguma participação do
trabalhador nos resultados financeiros globais da empresa. O salário seria um pro
labore acrescentado por um adicional de acionista (ação também representada pelo
mesmo trabalho que fez juz ao pro labore).
RITMO ORÇAMENTARIO - O modo como o salário é gasto, o ritmo
temporal dos dispêndios e as possibilidades de investimento e poupança. Se
aquisição imediata dos bens de consumo minimamente necessários, empenhando
logo o salário por inteiro e passando o resto do mês desmonetarizado. Se rolagem
permanente de pequenos créditos nos fornecedores. Se planejamento de compras a
vista e a prestação. Se planejamento de despesas diárias, semanais e mensais, com
empenho de todo salário. Se planejamento de qualquer tipo, com sobra para
investimento e/ou poupança.
84
Discussão Final
Associações entre os elementos componentes do processo de trabalho,
ligadas a associações entre os elementos componentes de jornada de trabalho e
assalariamento, resultam, historicamente, em modos bem diversos de organização
da produção. No Brasil é possível encontrar todos convivendo simultaneamente. A
economia brasileira tem destas surpresas.
Talvez seja conveniente citar, aqui, os principais modos de organização da
produção, com seus respectivos padrões de adoecimento, claro que de modo
genérico. Quais são?
COOPERAÇÃO SIMPLES - Baseia-se no ofício e em incipiente divisão de
trabalho. Tarefas e ferramentas do artesão numa oficina. A matéria prima é
natural, os instrumentos são rudimentares, o uso da força humana é intenso e
prolongado, com grande variedade e mobilidade. O controle sobre o trabalhador
vai variar em acordo com o modo de produção na qual ela se insere.
MANUFATURA - Aumenta a divisão do trabalho, parcializando,
decompondo, hierarquizando e reorganizando tarefas. Início da constituição do
trabalhador coletivo. Há controle direto e coercivo sobre o trabalhador. Matéria
prima e ferramenta continuam, mas o esforço se estereotipa e a mobilidade cai. O
trabalho ainda mostra-se artesanal mas se parcializa e o nível de produtividade
aumenta.
MAQUINISMO SIMPLES - A máquina determina o modo de trabalhar,
mas ainda cabe ao trabalhador pô-la em marcha, verificá-la e ajustá-la. Para
controlar e incentivar o trabalho, surgem, respectivamente, o supervisor e o
estímulo financeiro de produtividade.Instala-se competição na própria relação
entre os trabalhadores. Surgem a matéria prima artificial e os turnos. As operações
são monótonas, repetitivas, em alta velocidade, com jornada extensiva.
85
TAYLORISMO/FORDISMO - Divisão extrema do trabalho, convertendo o
trabalhador em objeto na produção. As tarefas são fracionadas em gestos simples,
otimizados, automatizados. Introdução de técnica de gerenciamento que amplifica
o estímulo financeiro e introduz a dedicação ideológica do trabalhador à empresa.
Introdução das linhas de montagem que fragmentam ainda mais as tarefas,
desqualificando a força de trabalho e facilitando o controle disciplinar e de
qualidade da produção. O incremento da produtividade acarreta a diminuição dos
preços finais e aumento do consumo.
AUTOMAÇÃO DISCRETA - Forma técnica de produzir e método de
gerenciamento que introduz o controle computadorizado do processo de trabalho.
Uma vez programado, o computador conduz os movimentos das máquinas e
harmoniza o conjunto do processo.
AUTOMAÇÃO DE FLUXO CONTINUO - Transformação física e
química do objeto de trabalho, o que implica em sistema fechado de alto risco,
com possibilidade de malefícios que podem atingir todo o ambiente circunvizinho
à empresa. Controle do processo por computador e fixação do trabalhador no
posto, vigiando monitores (usado mais comumente em indústrias que lidam com
material radioativo e biológico).
Segundo o predomínio de cada um destes principais modos de organização
da produção, mas considerando que não se concretizam puros, podemos tentar a
construção dos padrões principais de adoecimento:
COOPERAÇãO SIMPLES E MANUFATURA - Baixa esperança de vida,
baixa estatura das crianças, problemas infecciosos e nutricionais, privação social e
biológica. Entre as doenças mentais, prevalência de problemas neuro-psiquiátricos
como retardamentos, epilepsias e psicoses orgânicas.
MAQUINISMO SIMPLES E TAYLORISMO/FORDISMO - Baixa
esperança de vida, sobrecarga dos aparelhos nervoso, endócrino e cárdio-vascular.
86
Entre as doenças mentais, transtornos associados a tensão psico-social, sobretudo
vinculados ao desenvolvimento da personalidade, além de distúrbios ligados a
ansiedade, depressão, hipocondria e alcoolismo.
AUTOMAÇÃO DISCRETA E DE FLUXO CONTINUO - Notável
extensão dos transtornos ligados a tensão psico-social, competição, desgaste da
atenção, conflito entre possibilidades materiais reais e ambiçõees de consumo.
Aumenta a prevalência de problemas tóxico-ambientais e de mortalidade por
causas externas, como acidentes e suicídios.
Num país em que o capital se realiza na especulação (over, dólar, bolsas
de valores, inflação) e o mercado interno é secundário, qualquer trabalho se
desqualifica. O poder dos operários de uma fábrica, que tenha 60% de seu lucro
oriundo da especulação, é 60% menor que o poder dos operários de uma fábrica
que tira todo seu lucro da produção. O momento atual abre uma grande questão
para os trabalhadores: a) Lutar pelo socialismo. b) Tornar este capitalismo pelo
menos mais civilizado, produtivo - mas capitalismo produtivo não seria
capitalismo mais competente em nos explorar? c) Ou, terceira via, juntar a
produtividade do capitalismo com a justiça social do socialismo.
Não temos resposta para isso. Além do que transcende os objetivos desta
série de conferências, para fins de treinamento.
Neste momento é necessário aprender com os trabalhadores. Como cada
elemento simples do processo de trabalho pode estar afetando vida e saúde? De
que modo? Com que proximidades ou distâncias estes elementos geram
consequências na metalurgia, na borracha, no vestuário? Como cada um destes
elementos atua e adquire significado na vida de um soldador, de um torneiro
mecânico, de um colador de solado em sapatos?
Pensamos que antes da emergência de condições propiciadores da opção
político-econômica, outra ingente e urgente tarefa se impõe para os trabalhadores:
87
legitimar nossas organizações, da CIPA aos Sindicatos, demonstrando que não é
só salário que qualifica o trabalho e o trabalhador.
Nada daquilo que temos falado acontece sem vitórias e derrotas, sem luta.
A lógica da valorização da mercadoria está em permanente guerra civil com a
lógica da valorização do trabalho. Há um Líbano em cada empresa, tão
quotidiano, tão difuso, tão sem grandes lances, tão fragmentado que a gente nem
percebe o tamanho do Líbano. A greve é ponto a nosso favor. A inflação é contra.
A constituição de uma CIPA é ponto a nosso favor. A taxa de acidentes de
trabalho é contra, pois representa baixa em nossas fileiras.
Somente uma organização competente, tanto no sentido político como no
sentido técnico, envolvendo assessorias em saúde que instrumentalizem com
pesquisa e cuidado a luta dos trabalhadores, pode reverter este quadro.
A luta exclusiva por salário às vezes ajuda a fragmentar os trabalhadores
em inúmeros segmentos a competirem entre si, enquanto a bandeira da
organização do trabalho, condições de trabalho e saúde unem a todos na luta pela
vida.
88
Capítulo 5.
SAÚDE MENTAL E TRABALHO: UM
MODELO DE INVESTIGAÇÃO
JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO
WANDERLEY CODO
ALBERTO HARUYOSHI HITOMI
A investigação das relações provavelmente existentes entre saúde mental e
trabalho, intuidas empiricamente, associadas logicamente, ricas em consequências
práticas quando operam intervenções, não têm revelado da questão nada mais que
rápidas iluminações. Sabe-se, acredita-se, denuncia-se... mas não se comprova,
não se apreende o como e o quando.
Tal investigação pode servir de suporte a novo continente intelectual,
capaz de articular Medicina do Trabalho, Sociologia do Trabalho, Psicologia do
Trabalho ("Organizacional", "Industrial"), Epidemiologia, Ergonomia, Psiquiatria
e Psicologia clínicas; além de permitir a articulação entre pesquisadores,
prestadores de serviço, organismos normatizadores de assistência, legisladores e as
representações politicamente organizadas dos trabalhadores. Sempre é necessário
lembrar que, para a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o trabalhador
brasileiro é um arquipélago semovente de ossos, músculos e vísceras, sem
imaginação, sem psiquismo.
A temática da saúde e da doença está, surpreendente e radicalmente, se
renovando. A concepção que trata os termos desta equação como realidades
diversas, capazes de fundar ciências específicas; transmutou-se em quantidades
89
diferentes de uma mesma realidade; em qualidades diferentes de uma mesma
realidade; agora em um processo dinâmico, com historicidade revelável, totalidade
complexa a ser explicada. O aumento da esperança de vida; a redução dos
sofrimentos mais diretamente traumáticos sobre o corpo físico; a tercialização da
economia; o surgimento e crescimento de automatização e informatização; a
redução da duração da jornada de trabalho, substituida por exploração do ritmo e
transferindo conflitos da ordem da produção para a ordem do consumo; estão
deslocando o lugar preferencial de expressão dos problemas, das fragilidades, dos
mal estares, das doenças, do físico para o psíquico. A temática é nova enquanto
busca a compreensão de um processo crítico entre saúde e doença, assentado sobre
o chão da história. Também é nova enquanto uso do marxismo como matriz
teórica de um método científico, entendido como o mais capacitado a dar conta de
objeto tão sutil, tão extraordinariamente problemático.
A temática do trabalho vem exigindo estudo aprofundado do universo
concreto, quotidiano, dos trabalhadores reais, construtores de si e do mundo,
diferenciados, inseridos em distintascategorias profissionais, por sua vez inseridas
em ramos diferenciados de produção ou prestação de serviços. O trabalho tem sido
entendido como simples, parcializado, tomado por algum de seus elementos
constitutivos. Mas o trabalho é outra totalidade complexa desafiando
entendimento, móvel sobre móvel, gerando subjetividade, relações sociais,
identidade, produtos, mercadorias: no ventre da produção de consciência e no
ventre dos negócios. O desafio atual é dimensionar esta complexidade, reconhecer
os valores sociais que o trabalho gera, reconhecer que o trabalho desvalorizado
engendra nova natureza de valores sociais. O trabalho desvalorizado (expansão do
trabalho morto, trabalho incorporado nas máquinas; expansão do trabalho incapaz
de gerar relações sociais; expansão da especulação), desvaloriza o trabalhador,
fragilizando-o de modo irrecuperável, mesmo na presença de "ambiente saneado"
e de "perfeitos ajustes anatômicos corpo/instrumento".
90
Alguns saberes têm se constituído na tentativa de dar conta destes
problemas. Mas em rápido vôo rasante, pelas tendências dominantes, o que
podemos ver?
A Medicina do Trabalho tem longa história, pode ter seu surgimento datado
do séc. IV A.C., quando Hipócrates escreveu sobre doença de mineradores. Com o
peso de sua longa história e da grande influência sobre a legislação, toma a doença
como individual e biológica, toma o trabalho como simples (separa os elementos
posto, local, matéria prima, natureza do produto) desenvolvendo as categorias
analíticas "insalubridade", "periculosidade", "doença profissional". Entende a
relação imediata entre aqueles elementos do trabalho com o corpo físico do
trabalhador idiossincrático. A Medicina do Trabalho tem buscado desvelar
ambiente físico do trabalho, ajuste territorial população/espaço, natureza físico-
química de matérias primas e produtos. Louve-se o esforço, a real contribuição
que tem possibilitado avanços e melhorado o entorno próximo do trabalhador,
embora apenas enquanto presente na empresa.
A Sociologia do Trabalho, vive dores de nascimento; não está consolidada
como área de saber, pelo menos no Brasil; e se desenvolve, desde o nascedouro,
dentro da órbita do marxismo. Centra-se na investigação do trabalho abstrato, na
equação jornada/salário, no ritmo de transformação do salário em consumo,
produzindo relações sociais e mais valia.
A Psicologia do Trabalho tem história que se desenvolve no último meio
século. Vem influenciando táticas de seleção e treinamento, disciplina e
organização do trabalho, mas não tematiza as determinações exteriores à
organização, não tematiza o adoecer, toma o trabalho como simples (gesto, tarefa,
função, hierarquia) e, basicamente, se envolve com a administração de conflitos e
competências no quadro da necessidade de divisão do trabalho, além da alocação
do pretenso "right man in the right place". A busca de trabalho é entendida como
escolha, não como necessidade, por isto inserida na névoa rósea de uma vocação
91
natural, pairando por sobre a história dos homens. Contenta-se com o intestino
sistêmico das empresas, desconhecendo a questão do poder e das determinações
externas.
A Psicologia Social, principalmente aquela de extração norte-americana,
que tomou corpo no correr das décadas 1940/50, constitui "Saúde Mental" como
área aplicada, mas como campo difuso, elusivo, conotativo, nada avançando para
além de um patinar em pântano conceitual. Torna "tipo" o frequente, busca
estabelecer limiar de tolerância social a desvio, propõe instituições e redes
assistenciais passando por cima da necessidade de definir objeto, e erige o objeto
personalidade como seu problema.
A Epidemiologia, esta ciência básica da Medicina, que, em cortes
transversais, busca estabelecer associações lógicas, e em cortes longitudinais, quer
comprovar causas, não tem sabido o que fazer, até porque se instala sobre modelo
causal e fetichiza a estatística. Traça proporções e frequências a partir daquilo
denunciado socialmente e acatado pelos serviços, num perverso percurso entre
denúncia, rótulo e diagnóstico; acata o normal estatístico como normal moral;
pensa todo o fenômeno do sofrimento psíquico a partir da compreensão
psiquiátrica da psicose; e aceita população como categoria natural. Os estudos
epidemiológicos têm sido decompostos em estudos de múltiplas relações parciais,
com tratamento igualitário de variáveis, sem hierarquizá-las e sem considerar suas
interrelações. Em vez de uma concepção teórica, o que se tem é um processo de
ensaio e erro, formalizado pela tradição, que vai codificando questões em
características de pessoa, espaço e tempo.
A Ergonomia apresenta história bem recente, a princípio ligada a questões
de Engenharia. Influência a adaptação de equipamentos, distribuição de
equipamentos e circulação dos trabalhadores. Toma o trabalho como simples
(atenção, gesto, postura, relação anatômica homem/máquina) e, apenas muito
92
recentemente, começa a tematizar a doença. No campo do psíquico introduz a
categoria explicativa "carga mental".
A Clínica, psicológica ou psiquiátrica, ensimesmada em relações duais,
termina por escotomizar a presença de um no outro através do fetiche da
neutralidade do técnico. Tem por tarefa restaurar ou instaurar normalidades, mas
não questiona normalidade e se perde no arrolamento infinito, descritivista-
classificatório, dos fenômenos. Por fim, sucumbe à construção de cardápios de
queixas e emoções. Parece que há uma interioridade e uma exterioridade sempre
hostis, e que somente no cenário da relação clínica, a paz e o equilíbrio podem
ocorrer. Um âmago a-histórico do sujeito o pertubaria, um mundo de conflitos sem
sínteses e elaborações o perturbaria, mas ali, no lugar da relação terapêutica, tudo
se esclarece e se resolve. Vende-se ilusão.
O vestíbulo da pretensão de apreender processo saúde mental/doença
mental como processo histórico-social e recortar tal objeto sobre população, nos
obriga a repensar produção, distribuição, população, processo saúde/doença,
doença mental/loucura e sintoma/personalidade, daí, mais que nunca, estamos
desafiados a repensar o método. O espectro de um problema está poderosamente
rondando as Ciências Sociais: como apreender o fenômeno da doença mental
como processo histórico?
Consideremos saúde/doença como um processo histórico, cuja dinâmica é
uma tríplice, interdependente e contraditória natureza: biológica, psicológica e
social. A genética expressa concentrações de transformações sucessivas a longo
prazo. O fisiológico e o psicológico são campos de transformações mais imediatas
do biológico. O indivíduo é o fenômeno que expressa a totalidade das experiências
históricas dele e de seu mundo. A relação entre indivíduo e sociedade é de duas
totalidades que se interdeterminam e se intercontêem: o indivíduo está na
sociedade e a sociedade no indivíduo. Mas de que modo se pertencem e se
expressam? Aqui se impõe retomar o conceito marxista de alienação. Existe a
93
coisa, o significado da coisa, o sujeito que significa, a capacidade de representar, a
representação da coisa, a representação do sujeito e a representação da capacidade
de representar - tantas mediações, tantas contradições.
Consideremos que o sujeito é simultaneamente pertinente a dois campos do
mundo sócio-econômico: produção (trabalho) e reprodução (consumo). No campo
da produção, enquanto realizador de trabalho alienado, o sujeito se consome, mas,
enquanto realizador de trabalho (gerador de bens, construtor de identidade,
metabolismo homem-natureza), o sujeito se produz. No campo da reprodução,
enquanto realizador de consumoalienado, o sujeito se consome, mas, enquanto
realizador de consumo (geração de filhos, construção de tempo livre, de nutrição e
de relações sociais para além do trabalho), o sujeito se produz.
Imaginemos situação primitiva em que o sujeito humano se relaciona e
utiliza, diretamente, meios e objetos naturais. O tempo decorrente entre os
movimentos, determinados constrangimentos de natureza física ( Se os homens
tivessem meio metro de altura, a história teria sido igual ?) e a casualidade,
produzem as possibilidades de constituição do psíquico e de sua autonomia
relativa frente aos seus constituintes.
A existência deste protopsíquico gera as condições de um projeto que
permite a representação, no sujeito, do mundo objetivo e de si mesmo. O projeto
introduz uma novidade na relação sujeito/natureza, através de dimensão
mediatizadora - o trabalho. O trabalho transforma a natureza e, pela realidade
desta transformação, transforma o sujeito que foi capaz de realizá-lo, introduzindo
outra dimensão mediatizadora - a sociedade.
Fica estabelecido deste modo sistema multidimensional de relações,
contradições e determinações, onde o mais complexo (sociedade) supera/domina
os menos complexos (psíquico - biológico - inorgânico) e se expressa através
deles. Neste social, gradativamente, primeiro se destacam, depois se contradizem,
por fim se antagonizam (com o advento da alienação) duas esferas:
94
1ª Esfera - PRODUÇÃO = Onde o sujeito se consome (trabalho alienado) e
se produz (relações sociais, bens para a esfera do consumo, pedagogia de uma
visão de mundo).
2ª Esfera - CONSUMO = Onde o sujeito se produz (gera filhos, repousa,
habita, come, se veste, estuda, se locomove) e se consome (consumo alienado).
A nível empírico, vivendo o quotidiano dos fenômenos, a segunda esfera se
apresenta como primeira.
PROCESSO DE CONSUMO = a) De coisas e significados que vêem do
mercado (Economia)
b) De coisas e significados |que vêem do salário social (Política).
c) De coisas que permanecem vindo diretamente da natureza (Ecologia).
PROCESSO DE PRODUÇÃO = a) De coisas e significados a serem
distribuídos através do mercado, de modo diferenciado em sociedades classistas
(Economia).
b) De coisas e significados que não chegam ao mercado, por produção e consumo
imediatos a nível de subsistência familiar.
c) Resíduos colaterais em retorno à natureza (Ecologia).
A relação entre produção e consumo, mediada pela distribuição, deve ser o
eixo da investigação e da interpretação epidemiológicas.
Aqui é necessário uma pausa para definir saúde mental, e nos acode a
clássica proposta de Pichon Rivière: "Saúde Mental é o aprendizado da realidade,
através da compreensão, enfrentamento e manejo criador/integrador dos conflitos".
Consideremos que o fenômeno doença seja uma das expressões do modo
como os homens vivem - adoecer, morrer, sofrer a condição humana
historicamente marcados -, denotando inferioridade prática diante das
95
possibilidades vitais expressáveis no campo da saúde; e que se expressa por
sintomas. O sintoma sendo a ponta empírica deste iceberg de expressões.
Mas sistematizemos esta questão de modo mais didático: Níveis básicos =
Físico ou psíquico. Aí teremos de nos perguntar sobre a presença do físico na
determinação da base psíquica e sobre a presença do psíquico na determinação da
base física. Nível de expressão = Físico ou psíquico. Estamos admitindo base
física e nível físico de expressão, base física e nível psíquico de expressão, base
psíquica e nível psíquico de expressão, base psíquica e nível físico de expressão.
Aí teremos que nos perguntar sobre a rede de interdeterminações entre base e
expressão, além de avaliar a que distância do fenômeno, na hierarquia de
determinação, trabalho e consumo se situam. Modos de expressão = forma
empírica das doenças aparecerem nos indivíduos. Sintomas = elementos simples
do modo de expressão.
Se nosso objeto é a relação trabalho/processo saúde-doença mental,
entendida esta relação como processo histórico, com biológico e social se
interexpressando e se interconstituindo, há que pensar agora os procedimentos de
construção do objeto. Apreensão, interpretação e explicação são interdependentes,
portanto aqui se impõe ultrapassar o conhecimento em si (concreto representado)
pelo conhecimento para si (concreto pensado), tomando a realidade como uma
totalidade essência/fenômeno.
Que método pode apreender este processo - com passado, expressão atual e
futuro - trajetória não necessariamente predeterminada pelas partes ou pelos
momentos ? Que método pode dar conta das partes sempre entendidas como
produtos de um vínculo com a totalidade ? Que método pode partir do empírico e
despregar-se dele, não se tornando apenas empiricismo ? Que método pode dar
conta do fenomênico sem volver-se apenas fenomenologia ? Que método pode
incorporar e superar a indução e a dedução, a análise e a síntese, a lógica formal ?
Que método pode articular o uso de instrumentos teóricos (conceitos, hipóteses,
96
categorias analíticas), instrumentos de investigação (inventários, questionários,
entrevistas, testes, que possam detectar, destacar, mensurar e/ou qualificar os
fenômenos a serem estudados) e instrumentos de interpretação ( interpretações e
estatística); sem perder de vista objetivos do estudo, natureza da população cuja
história fornecerá significado aos dados, e natureza do fenômeno estudado?
O desenvolvimento, tanto da Filosofia como da Ciência, têm oferecido
grande número de instrumentos e táticas para apreensão do real. Ora buscando dar
conta da unidade, ora da contradição, da diversidade ou da possibilidade de lei
geral, da objetividade ou da subjetividade, da expressão momentaneamente
congelada ou de seu dinamismo. Uma destas possibilidades tem sido dado pelo
Método Dialético, cujo ponto de partida é o objeto e seu objetivo é a reconstrução
teórica do objeto. Não fala apenas de coisas, mas de coisas-em-relação-e-
significação, quer surpreender os movimentos e suas qualificações. Pensa a
realidade sob específica formação social dentro do modo de produção capitalista,
daí supõe que entre a coisa e a representação da coisa há mais do que supõe nosso
vão empirismo; mais ainda, supõe que cada coisa pode ter, no mínimo, três
significados contraditórios: para o capital, para a realização específica de um
processo específico, para a subjetividade do sujeito que a realiza. A tradição deste
Método é rica, complexa, contraditória, como para exemplificar suas proposições,
através de reestruturações e reutilizações, de Demócrito a Hegel. O século XIX
presenciará a revolução encetada por Marx, desdobrada posteriormente em
complexas e variadas tendências: as que reinventam Hegel; as que pedem socorro
a Kant; as fundamentalistas, que buscam a verdade revelada nas obras de Marx; as
que partem das categorias marxistas (marxianas?) para novos e insuspeitos vôos;
até aquelas que, afirmando a possibilidade de exposição dialética, negam a
possibilidade de uma investigação dialética.
Além de tudo isso, o método foi tornado metafísica pelas exegeses políticas
dos últimos 70 anos. Impõe-se reconstituí-lo, realizar uma recuperação
97
epistemológica do marxismo e desdobrá-lo para a produção científica de
conhecimentos, com atenção e rigor: método de investigação - método de
interpretação - método de exposição. A empreita passa pela releitura do Hegel de
"A Ciência da Lógica" e do Marx dos "Grundrisse", pela releitura de Lucien
Goldmann, Karel Kosik, George Lukacs e Pavel Kopnin. É óbvio que uma
posição, pelo menos, pode ser assumida: nossa posição nagaláxia metodológica
pode ser localizada nas coordenadas, no espaço da dialética.
O seguinte diagrama de Granda (1987) permite visualizar um fértil percurso
para o pensamento construir juizos. Por aí nossos esforços caminham.
Pressionado pela sensorialização da realidade e por algum conjunto tosco
de idéias explicadoras, instala-se o problema: que lugar trabalho ocupa na rede de
determinações do processo saúde/doença mental?
Há uma fase de conjecturas e versões, caracterizando uma espécie de juizo
apolítico, que vai às informações, aos dados, questionando-os e traduzindo-os; em
seguida buscando estabelecer relações analógicas, causais, aleatórias ou
complexas, com o objetivo de construir uma primeira teoria sobre o objeto.
Aí surgem as hipóteses que, através de movimentos ascendentes do
pensamento, à procura de essências, e movimentos descendentes do pensamento, à
procura de formas, alcançam o nível dos juizos verdadeiros possíveis naquele
determinado momento histórico, para aquele grupo intencionalmente configurado.
O que, efetivamente, podemos retirar desta discussão sobre método?
a) A abordagem, necessariamente, deve ser interdisciplinar.
b) A compreensão, sempre holística, buscando reconstruir totalidades
significativas.
c) Permanente resgate da história.
98
E é deste modo que, tomando trabalho como construtor da subjetividade e
da sociedade; tomando categoria profissional como população significativa, classe
social expressa no quotidiano de trabalho; tomando alienação como característica
básica de sociedades capitalistas; e tomando saúde/doença como qualidades
diferentes do fenômeno vital, fenômeno histórico, expressão do que acontece na
esfera da produção e do consumo, principalmente do que acontece na esfera da
produção e do consumo de significados no que diz respeito à questão específica da
saúde/doença mental; poderemos começar a esboçar uma teoria sobre a gênese do
sofrimento psíquico, deste mais estável, paralizador, incapacitante, denominado
doença mental.
Por enquanto precisamos confiar no que instrumentos, produzidos dentro
do quadro de referências de outras teorias, estarão, recortando, contando e
medindo para nós. Mas, conscientes destes problemas e destas angustiantes
limitações, armados de precárias indicações, nos pomos em campo. De que
modo?
INSTRUMENTOS TEORICOS
A categoria "categoria profissional" permite operacionalizar, através de
uma construção intelectual, o conceito "classe social", e articular os três principais
saberes postos em confronto. Para a Sociologia do Trabalho lidaremos com a
hipótese de ser classe social expressa no quotidiano dos agentes de produção (não
é segmento de classe, é expressão de classe); para a Psicologia do Trabalho
lidaremos com a hipótese de ser unidade conformadora de identidade
pessoal/social (considerando outras unidades - p.ex.: família, escola - que lugar
ocupa na rede hierarquizada de determinações de fenômenos psíquicos
concretos?); e para a Epidemiologia lidaremos com a hipótese de constituir
população significativa, configurando condições idênticas de existência.
99
A categoria "perfil de produção" sintetiza um conjunto específico de formas
pelas quais os sujeitos daquele grupo significativo ("categoria profissional")
produzem suas condições de existência. O "perfil de produção" sintetiza as
expressões da dupla e contraditória natureza do Trabalho. Trabalho se expressa
através de duas variáveis: trabalho abstrato = inexpressível por sua natureza, pode
ser apreendido através de indícios, de modos de comparecimento como por
exemplo a equação jornada/salário; trabalho concreto = expresso por sua vez
através do processo de trabalho. Esta categoria, para os fins de nossos estudos, é
explicativa, independente.
A variável jornada/salário pode ser montada pelo mapeamento de seus
elementos simples (indicadores): extensão da jornada, turno, extensão e número
dos intervalos, migração pendular casa-trabalho-casa, ritmo orçamentário,
magnitude do salário, horas-extras, remuneração de horas-extras, férias, relação
salário absoluto/poder de compra, posição do salário atingido na história do
sujeito, bonificações específicas da empresa, bonificações coletivamente ganhas,
adicionais, inserção sindical, data-base de negociação sindical, descontos salariais
por redução de jornada, descontos salariais por razões sociais.
A variável processo de trabalho pode ser montada pelo mapeamento de
seus elementos simples (indicadores): posto, local, matéria prima, produto,
operação, atividade, tarefa, postura, ritmo, ferramenta, máquina, instrumento,
disciplina, relações sociais na produção, marca, qualificação, função, cooperação,
hierarquia
A categoria "alienação", o rompimento entre o produto e o produtor,
sintetiza as experiências de expropriação das possibilidades objetivadas do
homem, sejam como forma de produtos ou como forma de relações. É categoria
importante do marxismo, que deixa de ser especulativa quando se desdobram as
categorias concretas da divisão do trabalho, do assalariamento, da mercadoria, da
força de trabalho como mercadoria, do impedimento do produtor em se reconhecer
100
nos seus produtos. Somente na condição de considerarmos trabalho como essência
do homem, alienação seria o estranhamento entre o homem e sua essência.
A categoria "perfil de características psicológicas e psicopatológicas"
sintetiza um conjunto específico de formas pelas quais os sujeitos daquele grupo
significativo ("categoria profissional") respondem psiquicamente aos
constrangimentos imediatos da realidade. Estas formas são padrões de resposta,
tendências de personalidade/ sintomas de sofrimentos psíquico. Há aqui que
distinguir doença, de não frequente, de anormal, de mau; e de distinguir saúde, de
frequente, de normal, de bem. Há também que distinguir decantações ontogênicas
de tendências, das expressões mais claras de defesas (no sentido psicanalítico
mesmo) e das representações que o sujeito elabora sobre o que sente ou expressa.
Este perfil sintetiza as expressões da tríplice e contraditória natureza do processo
saúde/doença mental: biológica, social e psicológica.
Para além das distinções apontadas, o pano de fundo deste debate estará
colocado pela distinção doença mental X alienação. O processo saúde/doença
mental é entendido como processo social articulador das possibilidades de
recuperar a unidade conflitual entre objetividade e subjetividade, rompida pela
alienação. A contradição sujeito objeto (s-o) permite a constituição da
subjetividade. O estranhamento do sujeito com seus produtos, do sujeito com a
sociabilidade e do sujeito consigo mesmo torna aquela contradição antagônica e
permite a ruptura s-o. O vazio pressiona por preenchimento, por finalidades e
significações. As tentativas de recuperar a unidade conflitual perdida são de vários
tipos: ideologia, religião, hobbies, militância política, dedicação familiar, doença
mental, o próprio trabalho etc. Em que condições a forma "doença mental"
aparece ? De que modos, por sua vez, esta forma se expressa?
Neste ponto devemos admitir que o psicológico exprime as outras duas
naturezas e acatá-la como variável que pode ser montada pelo mapeamento de
seus elementos simples: escalas e níveis. O conjunto de características que se
101
concretiza em cada indivíduo, marcado por sua especificidade histórica, através de
vetores pessoais, sociais e culturais, forma quadros ajustados a expectativas,
portanto designáveis como personalidade, apresentando padrões de respostas
expressos por representações, opiniões, atitudes, prontidões para ação, preditascomo aceitáveis, normais, identificáveis como frequentes. Ou podem, a partir de
determinados limites, extrapolar para dentro do inaceitável, do não normal, do
identificável como não frequente, aí podendo se inserir dentro de categorias
descritivas como desvio, marginalidade, doença. Três ordensde necessidade se
impõem: 1a) Distinguir padrões de resposta psicológica às exigências da vida. 2a)
Distinguir o normal do não normal, através do estudo de distribuição, em
contraponto com noção coletiva de adequação. 3a) Distinguir personalidade de
sintoma, através do estudo de distribuição, em contraponto com noção coletiva de
bem estar. Ora, para a primeira necessidade, tanto a Psiquiatria como a Psicanálise
vêm oferecendo o conceito de mecanismo de defesa, que, na dependência do uso
mais ou menos especializado, mais ou menos cristalizado, vai configurando
padrões de resposta, padrões que podemos chamar "escalas". Para a segunda
necessidade, os instrumentos existentes de mapeamento psicológico já trazem
embutidos, por causa de seus pré-testes, de suas hipóteses, de suas matrizes
teóricas, algumas expectativas traduzíveis por intensidade de resposta, por "nível"
quantidade de resposta. Por algum enviesamento, provavelmente ligado a questões
ideológicas, os instrumentos confundem normal com saúde, não normal com
patológico. Portanto, o nível deve ser aceito enquanto poder descritivo , e posto
sob suspeita seu poder qualificador. Pensando em termos de "escalas", acataremos
provisoriamente a seguinte classificação = Obsessividade, Depressão,
Hipocondria, Histeria, Mania, Ambivalência, Síndrome de Introversão/extroversão
social, Psicopatia, Paranóia, Masculino/Feminino. Em termos de "níveis"
acataremos, num primeiro momento = frequente X não frequente, normal X risco
X problemático, e deixaremos o julgamento saúde X doença, para etapa posterior
de aprofundamento.
102
OBJETO
O campo de relacionamentos possíveis entre trabalho e processo
saúde/doença mental.
Táticas de abordagem do objeto
Investigação interdisciplinar, para construção e varredura do máximo
possível dos níveis analíticos que possam ser identificados na existência concreta
do objeto.
Cada nível analítico permite a construção de um estudo caso. O resultado
final é permitido pela articulação dos estudos de caso.
NíVEIS ANALÍTICOS E ÁREAS POSTAS EM INTERDISCIPLINARIDADE
Genérico sócio-econômico = Sociologia do Trabalho
(categoria profissional)
Concreto sócio-econômico = Psicologia do Trabalho
(empresa)
Concreto população significativa = Epidemiologia
(grupo de trabalhadores paradigmáticos)
Concreto individual = Clínica
(trabalhadores selecionados)
Objetivos
Construir os dois termos da equação perfil de produção X perfil
psicológico/psicopatológico, testar modelos de investigação, comprovar as
hipóteses referentes ao processo de determinação, fornecer instrumentos para a
transformação organizacional do trabalho e fornecer elementos para a modificação
das leis trabalhistas.
103
No plano mais estrito da investigação científica pretende-se explicar o
perfil de características psicológicas e psicopatológicas desenvolvido por
determinada população significativa. A pergunta fundamental é: qual o lugar que
trabalho ocupa na hierarquia de determinações do perfil
psicológico/psicopatológico de um grupo ?
Hipótese
O perfil produtivo tem, ao lado de outros momentos significativos da vida
humana, como a infância e a adolescência, papel preponderante na rede complexa
de determinantes e significadores dos fenômenos encontráveis no perfil de
características psicológicas e psicopatológicas, é possível, se tomarmos como
objeto de investigação um grupo intencionalmente constituido a partir da inserção
no mundo do trabalho, compreender melhor o processo saúde e doença mental.
Instrumentos de Investigação (Coleta De Dados)
Literatura e fontes primárias. De interesse da economia, da sociologia, da
psicologia e da epidemiologia daquela categoria profissional em estudo.
Ficha de identificação geral. Levanta dados gerais demográficos (sexo,
idade, residência, procedência, escolaridade), relativos a trabalho (profissão,
função, tempo de profissão, tempo de função, tempo de empresa) e relativos a
queixas psicológicas anteriores ao trabalho naquela profissão.
Organograma da empresa. Aponta o sistema de controle e a rota por onde
passam as decisões dentro da empresa. Esclarece a hierarquia, o who's who do
poder e a divisão de trabalho segundo a lógica do capital, da produção de mais
valia.
Fluxograma do processo de produção. Aponta a idade histórica da
organização do trabalho e da tecnologia aplicadas. Esclarece a divisão de trabalho
segundo a lógica da produção de um produto específico, de um valor de troca.
104
Folha salarial. Estabelece o perfil de remuneração da empresa, sua política
salarial, a existência ou não de um plano de cargos e salários, os ganhos
secundários embutidos e as indenizações de danos (periculosidade, insalubridade,
penosidade).
Entrevistas de Sociologia do Trabalho, por fonte. Aplicável a proprietários,
maiores acionistas e principais administradores, no que se refere à empresa, e aos
principais líderes políticos da categoria (cipeiros eleitos, dirigentes sindicais etc).
Entrevistas de Organização do Trabalho, por fonte. Aplicável a todos os
que ocuparem lugar na hierarquia de decisão da empresa: gerentes, chefes,
supervisores, encarregados etc.
Protocolo de observação direta do processo de trabalho. Identificar,
quantificar (o que for mensurável) e hierarquizar os 20 elementos simples que
constituem o processo de trabalho.
Observação por vídeo do processo de trabalho. Instrumento mixto, que
serve para colher dados e ser editado como instrumento de exposição. Como
instrumento de coleta de dados também é mixto, pois permite observação de
trabalho e registro de depoimentos, simultaneamente.
Inventário psicológico multifásico censitário. Instrumento de massa, para
atingir a população de trabalhadores significativos da categoria na empresa,
objetivando levantar respostas que permitam montar padrões de personalidade e
indicar possibilidades de sintoma. O nível de investigação é estatístico,
probabilístico, tendo por meta mapear distribuições, identificar associações lógicas
e levantar tendências.
Entrevista clínica de aprofundamento. Realiza a checagem do inventário
psicológico de massa, sobre amostra de trabalhadores, mapeia resultados
referentes a outras unidades historicamente configuradoras do sujeito (consumo,
escola, família, sexualidade, locus de controle, antecedentes sanitários, projeto de
105
futuro, migração etc) e a representação que cada sujeito construiu sobre seu
quotidiano de trabalho.
"Group feedback analisis" Reuniões de grupo com os sujeitos envolvidos,
devolvendo os resultados, checando as hipóteses ao nível experencial do grupo,
elaborando estratégias de intervenção no trabalho em busca da prevenção do
sofrimento.
Diário de campo. Em todas as atividades as atividades de campo, o
pesquisador registra num caderno de campo, impressões, comentários,
acontecimentos não previstos no planejamento das ações e no treinamento.
Etapas de Campo
1. Identificação da Categoria Profissional. Considerando importância do
setor ou subsetor econômico, idade histórica do desenvolvimento tecnológico,
número de trabalhadores envolvidos, grau de organização política da categoria
profissional, história sindical, bibliografia existente sobre comprometimentos
sanitários da categoria profissional, possibilidade de articular demanda de pesquisaa partir da categoria e acessibilidade política da equipe de pesquisa com relação a
sindicatos, empresas e cipas; escolher a categoria profissional a ser investigada e
demarcar a territorialidade, sempre buscando investigar setores de ponta, pelo
provável maior desenvolvimento produtivo-organizacional.
2. Identificação da Empresa. Supondo que uma categoria profissional não
se realiza no vazio, e sim através de concretizadores; que, sob o modo de produção
capitalista, o concretizador fundamental na esfera econômica é o capital; e que as
empresas expressam especificamente esta função do capital; é necessário
identificar as empresas que realizem a lógica do setor ou subsetor da economia
onde se insira a categoria profissional escolhida, principalmente considerando que
o capitalismo vivido não é mais concorrencial (como na concepção liberal). Aqui é
106
necessário lembrar que em setores oligopolizados, 2 ou 3 empresas podem dar a
lógica de todo o setor ou subsetor da economia.
Mas quantas empresas escolher ?
Deve-se proceder a uma estratificação do setor ou subsetor, considerando
regime de propriedade (estatal, privado, economia mixta) e tipo de competição
prevalente (oligopólio? monopólio? competição simples?). Somente a partir deste
estudo será possível estabelecer o número e quais empresas poderiam servir de
campo para a investigação pretendida. Da lista de empresas equivalentes por
estrato, pode-se proceder a sorteio ou nos submetermos às imposições do real
(qual delas permitirá acesso?). Constrangimentos políticos, ligados à
disponibilidade de recursos ou a resistências ao acesso, podem impedir a escolha
de empresas segundo esta lógica, então, a empresa possível, constituirá estudo de
caso-empresa, sem a atribuição de representar paradigma para um setor. O que é
inevitável, em qualquer dos casos, é sejam construidas as inserções da empresa
estudada em seu setor ou subsetor econômico, na história teconológica e na
história política deste grupo específico de trabalhadores.
3. Abertura do campo. Esta é uma etapa basicamente política. Estar-se-á
atendendo a demanda ou criando demanda? Qual enviesamento de entrada os
objetivos da pesquisa suportam sofrer e os instrumentos podem corrigir? A entrada
sindical pode fazer a empresa se retrair e hostilizar a participação dos
trabalhadores; ou fazer a pesquisa cair na luta ideológica dentro do campo sindical
identificando-se com alguma corrente, além de receber dos trabalhadores uma
exacerbação de queixas e expectativas visando colocar a pesquisa como
intermediária de reinvindicações que não encontraram canal político adequado. A
entrada empresarial pode fazer os trabalhadores se retrairem e hostilizarem a
pesquisa, respondendo burocraticamente ao que lhes for perguntado, camuflando
problemas para não oferecerem pretexto para possíveis reações da empresa. A
entrada bonapartista, a pairar por cima do sindicato e da empresa, não acontece na
107
prática, pois, no mínimo a empresa tem de autorizar a entrada dos pesquisadores,
se não quisermos pesquisar na ilegalidade.
Encontrada a fórmula de entrada, avaliado e dimensionado o viés
suportável, definidos os rituais de contacto e motivação, iniciar o campo concreto.
4. Estudos gerais de Sociologia do Trabalho. Os procedimentos agora
visam dar conta da configuração do caso empresa: história das políticas
econômicas praticadas pela empresa, modo de inserção da empresa em seu setor
ou subsetor de produção, relação empresa/sindicatos, recuperação das greves
ocorridas na empresa, número de trabalhadores, índice apoio/operacionais. Aqui se
esboça a história da empresa, do setor ou subsetor econômico, da categoria
profissional e de seus sindicatos. Além de entrevistas e análise de fontes primárias,
correr a empresa com uma ficha geral de identificação dos trabalhadores que
permita análise de indicadores demográficos (idade, sexo, escolaridade, função,
procedência, tempo de profissão, tempo de função).
5. Estudos específicos de Sociologia do Trabalho. Neste momento se inicia
o levantamento específico da expressão do trabalho abstrato (equação
jornada/salário), visando construção do perfil de produção. Todos os indicadores
de jornada de trabalho e de remuneração podem ser obtidos diretamente dos
departamentos correspondentes da empresa, da análise da folha salarial e através
de entrevistas com os trabalhadores. Diante de dificuldades, alguns indicadores
podem ser obtidos indiretamente, através do estudo das folhas de contribuição
sindical compulsória que o sindicato pode fornecer. O problema da folha de
contribuição sindical é que ela fornece elementos para levantamento da massa de
salário fixo, não sendo possível retirar dela o que forem gratificações,
antecipações e salários secundários.
6. Estudos de Psicologia do Trabalho. Operacionaliza-se a investigação da
expressão do trabalho concreto (organização objetiva do trabalho = processo de
108
produção X processo de trabalho), visando construção do perfil de produção.
Todos os indicadores de processo de trabalho podem ser obtidos através da
checagem do organograma real e formal da empresa, através da montagem do
fluxograma da processo de produção e de entrevistas de organização de trabalho
aplicadas a todos os trabalhadores situados na hierarquia de decisão da empresa. O
que se levanta aqui é o processo de trabalho objetivo e seu significados, tanto para
o capital como para a produção de um produto específico. O processo de trabalho
como aparece na consiência dos trabalhadores, sob forma de representação, será
obtido quando da aplicação das entrevistas de aprofundamento, após a aplicação
do inventário psicológico.
7. Montagem do "perfil de produção". Este é um nível intermediário de
terminalidade da investigação, pois o que temos, ao finalizar esta etapa, é um
diagnóstico organizacional, acrescido das sobredeterminações oriundas da equação
jornada/salário, da lógica competitiva da empresa e do papel que esta desempenha
no setor ou subsetor da economia. A montagem do perfil deve destacar cada
expressão e cada categoria explicativa extraida da descrição e da interpretação dos
fenômenos encontrados no mundo específico de trabalho desta categoria
profissional. Para revelar os elementos relevantes do perfil naquele grupo
específico de trabalho, procede-se ao rastreamento, identificação e qualificação
dos 40 elementos (indicadores) das expressões "processo de trabalho" e "equação
jornada/salário".
Porém, diagnóstico organizacional, com maior ou menor abrangência,
maior ou menor complexidade, não é o objetivo final desta investigação. O que
temos é a revelação operacionalizável de um dos termos da relação constituinte do
objeto: perfil de produção explica perfil psicológico/psicopatológico ?
Para a montagem deste perfil se articulam resultados obtidos pelas
entrevistas de sociologia do trabalho e de organização do trabalho, a parte da
entrevista clínica de aprofundamente referente a representação sobre o quotidiano
109
de trabalho, o protocolo de observação direta do processo de trabalho e a
observação por vídeo do processo de trabalho.
8. Identificação do(s) grupo(s) de estudo (configuração da população
epidemiológica). Da posse dos elementos do organograma da empresa, do
fluxograma do processo de trabalho e de dados das entrevistas de organização do
trabalho, surgem condições para a definição, dentro da empresa, do(s) grupo(s) de
estudo. Que critérios permitirão a inclusão de um sujeito no campo de
características que o definem como pertinente a determinada categoria profissional
? O faxineiro do banco é bancário ? Que elementospermitem a configuração da
população, como homogênea neste(s) atributo(s), para fins de estudo
epidemiológico, considerando a hipótese que afirma o lugar do trabalho na
determinação do processo saúde/doença mental?
O corte a ser dado, obrigatoriamento o será pela localização dos sujeitos frente à
finalidade do processo de produção.
9. Estudo epidemiológico censitário. Estabelecido o critério de inclusão dos
sujeitos, configurada a população, aplicar sobre ela um instrumento que permita
discriminar padrões de personalidade e de sintomas, com aplicabilidade e
replicabilidade garantidas. O instrumento deve permitir descrição de tendências,
identificação de prevalências, discriminar formas de expressão, permitir
comparação crítica com perfil psicológico/psicopatológico de outros grupos e a
revelação de associações lógicas com variáveis explicativas.
10. Estudo epidemiológico de aprofundamento. Obtido o rastreamento -
tendências, prevalências, probabilidades, associações lógicas - urge testar o obtido
e compreender como tais tendências e probabilidades se tornam fenômeno nos
sujeitos idiossincráticos. Obtido o levantamento objetivo das características da
organização do trabalho, para o capital e para o processo de produção do produto
específico, urge identificar e compreender qual o significado subjetivo para o
trabalhador, como as características objetivas estão representadas na consciência.
110
O instrumento aqui é extenso, aberto e para aplicação individual. Estes indivíduos
para entrevista são localizados amostralmente, em processo de estratificação o
mais exaustivo possível: classificação ligada à organização do trabalho + sexo +
idade + classificação segundo padrão de respostas ao inventário psicológico +
inserção no grupo que contenha as escalas prevalentes. Os aplicadores e os
entrevistados não de qual estrato o entrevistado foi retirado, o que configura esta
etapa como estudo duplo cego.
11. Montagem do "perfil de características psicológicas e
psicopatológicas". Este é o outro nível intermediário de terminalidade da
investigação, pois o que se tem, ao seu final, é um complexo e sofisticado
diagnóstico das condições psicológicas do grupo, já apontando para a
discriminação do que seja personalidade e sintoma, já apontando para a
discriminação de padrões e tendências (escalas de classificação de orientação das
respostas). Uma rigorosa identificação do universo dos fenômenos psicológicos do
grupo, ultrapassa a investigação empirista, fenomênica, descritiva, se significada à
luz de suas sobredeterminações. Para reduzir o problema da identificação dos
modos concretos de operação e das representações subjetivas; o problema das
discriminações saúde/doença, normal/não normal, qualidade/simbolização
quantitativa arbitrária; e o problema da discriminação mal/alienação; este perfil
pode ser construido em dois cortes: epidemiológico e clínico, donde o uso dos
dados fornecidos por inventário psicológico multifásico censitário e pela entrevista
clínica de aprofundamento. Neste último corte se apresentam para descarte uma
série de hipóteses clássicas (família, infância, sexualidade) e são mapeados os
modos de realização da construção do sujeito fora do trabalho.
12. Identificação e interpretação das relações entre perfis. Chega-se então
à terminalidade pretendida. Tendo sido construido os dois perfis, acatado um
como precisa revelação de fenômenos a serem explicados e o outro como fonte
das determinações significadoras, proceder à operacionalização dos elementos
111
explicativos, hierarquizando-os. Neste ponto tem-se a possibilidade do
estabelecimento de leis gerais e da projeção de resultados para populações que
partilhem das características definidoras da população estudada.
Instrumentos de Interpretação
Computação:
1. Registro e análise computadorizada da Ficha de Identificação Geral e
do Protocolo de Observação Direta do Processo de Trabalho. Os dois
instrumentos agrupam questões fechadas, quantificáveis, registráveis em banco de
dados, que alimenta programas de análise descritiva, objetivando configurar
distribuições e proporções.
2. Registro e análise computadorizada do inventário psicológico. O
instrumento utilizado para coleta de dados é o Inventário Minnesota Multifásico
de Personalidade (MMPI). Este banco de dados alimenta vários programas de
análise, uns incorporando instrumentos estatísticos descritivos, outros
incorporando analíticos, paramétricos e não paramétricos.
O MMPI se organiza em torno de 10 escalas, 4 de validação e 10 para
estabelecimento de padrões de resposta personalidade/sintoma (escalas chamadas
de clínicas).
Frente às escalas de validação, o critério canônico manda considerar
invalidado o inventário que apresentar pelo menos uma escala com escore igual ou
superior a 70. Como isto pode implicar na perda de muitos sujeitos e como os usos
clínicos do MMPI autorizam só considerar alguns escores altos se isto for
acompanhado por substanciais alterações de escores nas escalas clínicas. Este
modelo de investigação opta por considerar invalidação se as escalas K e F
tiverem escore superior a 80 e as escalas ? e L tiverem escores superiores a 70.
Frente às escalas clínicas, a análise se desenvolve em duas etapas:
112
1a etapa = Usar um critério empírico (legítimo de todo modo, mais
legítimo ainda neste caso porque o próprio MMPI foi construido deste modo) para
definir como Normal as escalas com escore na faixa 30-70 (inclusão dos
extremos), e como Não Normal as escalas com escore abaixo de 30 e acima de 70.
Quando estivermos lidando com o sujeito e o escore de suas escalas, a
classificação se dará canonicamente: Normal, Border Line ( 61-70 ), Patológico (
acima de 70 ). Quando estivermos descrevendo população, a classificação se dará
de outro modo: Normal (conjunto de sujeitos que apresentam todas as escalas na
faixa 30-70, mais os sujeitos que apresentarem apenas uma escala Border Line ),
Risco ( conjunto de sujeitos que apresentarem mais de uma escala Border Line ) e
Problemático ( conjunto de sujeitos que apresentarem pelo menos uma escala
Patológica ). Esta etapa do estudo busca dimensionar a probabilidade de
ocorrência de problemas psicológicos no grupo, as proporções segundo as
classificações, a distribuição destas proporções segundo atributos (demográficos e
de trabalho) e as tendências expressivas. Acatar o cânone para a análise escala por
escala dos sujeitos se dá para que não se perca o diálogo com as publicações que
se utilizam do MMPI, e por estarmos ligados a cada sujeito, onde se permite
leitura clínica provisória, a ser confirmada ou não quando do corte de
aprofundamento. Introduzir o critério normal X risco X problemático se justifica
pelo abandono dos sujeitos, pois passou-se a pensar suas inserções em populações,
acatando o poder descritivo das escalas mas rejeitando seu poder qualificador. Por
exemplo, reconhece-se a existência de um problema naquele grupo de sujeitos,
mas qual o problema?
2a etapa = Como o MMPI foi desenvolvido prioritariamente para uso
clínico, deste modo tendo vasta aplicação, a discriminação consolidada nos
manuais sobre escores por escala, é critério a ser seguido nesta etapa. Se dentro da
população puder ser constituido grupo-estudo e grupo-comparação, será possível
identificarmos escalas prevalentes por grupo e analisar significância das diferenças
113
encontráveis, através de testes não paramétricos. O corte que estabelece as escalas
prevalentes, prevalência solitária de uma escala ou prevalência associada podendo
sugerir síndrome, é empiricamente definido a cada grupo de estudo.3. Registro e análise computadorizada das Entrevistas (de Sociologia de
Trabalho, por fonte; de Psicologia do Trabalho, por fonte; Clínica de
Aprofundamento). Todos estes instrumentos de coleta de dados são modulares: a)
Apresentam um conjunto de questões fechadas, quantificáveis, em banco de
dados, que alimentam programas de análise descritiva. b) Apresentam outro
conjunto de questões, estas abertas, não quantificáveis, em banco de dados
Dataflex, que só permitem análise de discurso. Os programas de análise para o
módulo quantificável objetivam configurar proporções e distribuições.
Estatïstica:
Embora simbolizados por números (escores), as escalas que o MMPI
configura representam qualidades, e qualidades de um sujeito. Esta natureza as
define como variáveis nominativas.
Toda vez que a investigação considerar a comparação entre perfis
psicológico/psicopatológicos de dois grupos, ou, dentro de cada população, entre
perfil psicológico/ psicopatológico e outro qualquer atributo não mensurável do
sujeito, estaremos no campo da estatística não paramétrica.
Toda vez que a investigação considerar, dentro de um mesmo grupo, a
relação entre elementos quantificáveis do "perfil de produção", entendido como
variável independente, explicativa, e "perfil psicológico/psicopatológico",
estaremos no campo da estatística paramétrica, pelo próprio cânone da Estatística,
que autoriza a escolha do instrumento pela posição da variável (independente ou
dependente).
A necessidade de tratar dados em nível nominal (por exemplo, a presença
ou ausência de psicopatologia, sexo, entre outros) e o pressuposto teórico de que
114
estamos tratando com a interrelação complexa entre variáveis, nos leva a bandonar
a tentativa de uma relação direta entre uma variável dependente e uma variável
independente, buscando a construção de curvas de regressão logística, onde cada
uma das variáveis aparece com um peso, determinável mas não exclusivo na
construção da rede de determinações.
Formas de Exposição.
A questão fundamental é a inversão da ordem de investigação. O "perfil
psicológico/psicopatológico", obtido depois dos estudos de sociologia e
organização do trabalho, depois de configurada a população, é exposto em
primeiro lugar: a coisa a ser explicada, a coisa como aparece no quotidiano de vida
dos sujeitos. Mas, deste perfil, o que primeiro se expõe são os elementos
epidemiológicos, as tendências e associações lógicas, sobre população. Daqui se
parte para o que se encontra no "perfil de produção", fazendo nexo com os
instrumentos teóricos, e se retorna ao individual concreto, idiossincrático, obtido
através da entrevista clínica de aprofundamento, de onde se extrai a representação
sobre o quotidiano de trabalho, além das inserções dos sujeitos no processo de
consumo. Ascensional/descensional, analítico/crítico, ir/vir, reconstituição
pensada da totalidade que desafiou o processo de investigação.
115
Parte II
Mulher e Trabalho
116
O projeto Saúde Mental & Trabalho, por aspirar a realização de pesquisa
aplicada, muitas vezes foi solicitado a observar o trabalho da mulher. Por sorte
contávamos com uma pesquisadora inciciante, com uma apacidade de trabalho
rara e uma perspicácia igualmente rara, falo (homenageio) de Izabel Cristina, a
qual conduziu com brilho e tenacidade a maior parte das pesquisas publicadas
aqui.
Se verá em cada um dos textos a tensão entre a produção e a reprodução na
vida da mulher contemporânea. Textos que iniciam uma discussão importante e
que esbarram na impossibilidade de esgotá-la.
Ao considerar a divisão de trabalho sexualmente definida, em uma história
antiga e que se arrastou até poucos anos atrás, é possível concluir que à mulher se
destinava os haveres da reprodução , dos filhos, do lar, do marido.
O que fazia a dona-de-casa, com o avental todo sujo de ovo, a rainha do
lar? Era responsável pelo cuidado. Ora, sabe-se que a conquista do mercado de
trabalho formal pela mulher se deu, prioritariamente, em profissões nas quais o
cuidado ainda comparece. Professoras, enfermeiras, recreacionistas em creches,
por exemplo, profissões que são consideradas preconceituosamente como
(femininas), de dedicam fundamentalmente ao cuidado.
Se o trabalho, como venho afirmando, é importante na configuração da
identidade, a divisão de trabalho homem-mulher na História deve ter tido um
papel importante na diferenciação psicológica entre o homem e a mulher,
compondo o que hoje é objeto de estudo de uma psicologia do gênero. Quaisquer
que sejam aquelas diferenças, deve ajudar uma compreensão mais aprofundada do
que é a atividade de cuidar.
O cuidado enquanto atividade é imediato: importa para quem cuidad a
necessidade do outro, independente da racionalidade que subjaz à quixa. Assim, a
mãe em relação com o pimpolho apresnde a adivinhar seus desejos, antecipar seus
pedidos, olho no olho, os psicanalistas sabem da dificuldade do pai, ou qualquer
outro, penetrar nesta relação simbiótica. Mal comparando, quando a enfermeira,
117
vestida com suas obrigações profissionais, se dedica a cuidar do enfermo, precisa,
por dever do ofício, aliviar seu sofrimento, compreender seus dramas. Se o
paciente sente dor é preciso intervir com um analgésico. Mas as comparações
param aqui. O uniforme branco é portador de outras obrigações: o paciente sente
dor, mas a prescrição médica impede o consumo do analgésico agora, e a
enfermera, o que fará: profissional doo cuidado deve antender à necessidade,
prócere da medicina, deve deixá-la bradar sem assistência?
É que, enquanto atividade, o trabalho é mediado, ou melhor, se define pelo
fato de que é portador de uma racionalidade externa aos sujeitos que estão
envolvidos nele, entre a necessidade do outro e a realização da tarefa se impõe
uma outra lógica.
A velha dona-de-casa, se sabe, carregava consigo os seus conflitos, e a
mulher engajada no meraco formal de trabalho?
– Ainda carrega o peso da herança histórica.
– Seu trabalho, nos casos que examinamos à frente, ainda traz o cuidado como
distinção, e com ele as marcas de qualquer trabalho, se definindo pelo salário,
pela função explicitada por outro, o cargo, o departamento de pessoal.
Esta seção abre com o artigo de Cristina Borsoi sobre a inserção histórica
do trabalho da mulher, servindo como introdução a alguns estudos de caso, onde
se avaliam profissões que, em sua esmagadora maioria, são exercidas por
mullheres.
Se verá, poucos são os anos que separam o arquétipo da “rainha do lar” da
mulher contemporânea, engajada irreversivelmente no mercado de trabalho. Pouco
tempo se as contas fossem feitas por um historiador, tempo suficiente para marcar
a personalidade das mulheres que trabalham no mercado formal, objeto de nossas
investigações.
Se verá, novos tempos, novas manifestações de doença mental.
Wanderley Codo
118
Estranho movimento, o feminista, aquele que teve o seu auge nas décadas
de 50 e 60. Em uma época em que poder-se-ia dividir o mundo em esquerda e
direita, defensores do capital os primeiros, do trabalho os segundos: a mesma
necessidade eclodia dos dois lados, o regime capitalista precisando da mulher
como força de trabalho, e as mulheres denunciando o trabalho doméstico como
opressor, repetitivo, escravizador. En passant, para quem está sobrevive como
"voyeur do trabalho alheio", como eu, raramente encontrei nas organizações um
trabalho mais variado e criativo, não rotineiro, do que o de preparar o mais frugal
almoço.
Pelo bem e pelo mal, pela ideologia da esquerda e/ou pelas necessidades do
capital, o fato é que as mulheres entraram massissamenteno mercado de trabalho,
muitas vezes sendo convocadas a fazer o que a História lhes ensinara a fazer: o
cuidado.
O projeto saúde mental & trabalho, por aspirar a realização de pesquisa
aplicada, muitas vezes foi solicitado a observar o trabalho da mulher. Por sorte
contávamos com uma pesquisadora iniciante, com uma capacidade de trabalho
rara e uma perpicácia igualmente rara, falo (homenageio) de Isabel Cristina, a qual
conduziu com brilho e tenacidade a maior parte das pesquisas publicadas aqui.
Se verá em cada um dos textos a tensão entre a produção e a reprodução na
vida da mulher contemporânea. Textos que iniciam uma discussão importante e
que esbarram na impossibilidade de esgotá-la.
O cuidado enquanto atividade é imediato: importa para quem cuida a
necessidade do outro, independente da racionalidade que subjaz a queixa.
Enquanto atividade, o trabalho é mediado, entre a necessidade do outro e a
realização da tarefa se impõe uma outra lógica. Assim, o enfermo sente dor, mas a
prescrição médica impede o consumo do analgésico agora, e a enfermeira, o que
fará: profissional do cuidado deve atender à necessidade, prócere da medicina,
deve deixa-lá bradar sem assistência.
119
O quadro se parece com o de Anna O, a famosa paciente de Freud,
encalacrada entre a necessidade de cuidar do seu pai e a dor que deveria
manifestar. Freud, já se sabe, foi por outro caminho. No entanto, é pelo menos
intrigante notar que os resultados são identicos; histeria lá e aqui. Enfim, esta é
uma tentativa de abordar os problemas de saúde mental da mulher trabalhadora,
sem feminismo, mas com um profundo senso de justiça.
Wanderley Codo
120
Capítulo 6.
A SAÙDE DA MULHER
TRABALHADORA
IZABEL CRISTINA FERREIRA BORSOI
A preocupação em estudar a saúde do trabalhador é de data recente. Apenas
no decorrer da I Grande Guerra, os próprios trabalhadores começaram a se
organizar na luta por melhores condições de vida e de trabalho, visando a própria
saúde. A princípio suas lutas tinham como foco central a mera sobrevivência
enquanto seres humanos.
É somente a partir do final da II Grande Guerra que a luta pela prevenção
de acidentes, contra as doenças e pelo direito a cuidados médicos torna-se efetiva
no seio da classe trabalhadora. (Vide Dejours, 1987).
Essa referência histórica marca também a inserção em massa das mulheres
no mercado de trabalho como resultado do alistamento, também em massa, dos
homens e da grande necessidade de produção industrial durante o período de
guerra (Nogueira, l982 - p. 12).
De acordo com Nogueira, foi a utilização em larga escala da mão-de-obra
feminina durante a guerra que permitiu conhecer, de forma detalhada os problemas
relacionados ao trabalho da mulher.
121
Ser mulher trabalhadora implica em carregar problemas relativos ao
trabalho que necessariamente não são os mesmos enfrentados pelo trabalhador do
sexo masculino.
No Brasil, apesar dos dados do Censo de l980 indicarem que mais de 12
milhões de mulheres estão engajadas no processo produtivo, correspondendo a 27
% da PEA, praticamente não há registros sobre saúde ocupacional da mulher.
Barroso (1982) observa que essa omissão "deriva de uma invisibilidade
geral do trabalho feminino, cuja existência é negada pela ideologia dominante que
define a mulher pelo seu papel na reprodução da espécie, unicamente" (p. 7).
A autora destaca ainda que:
"Em outros paises, começa a existir uma crescente preocupação com as
condições do trabalho feminino e suas implicações para a saúde da
trabalhadora. As mulheres que têm lutado para garantir seu direito à igualdade
no acesso ao emprego e na remuneração têm também incluido entre suas
reivindicações fundamentais a implantação de condições de trabalho que
assegurem - para si e para seus companheiros - a manutenção da saúde física e
mental"(p. 9).
Uma questão que vem sendo discutida atualmente por muitos estudiosos é a
jornada de trabalho feminina, que começa em casa, continua na empresa e termina
(quando termina) novamente em casa. Isto é, a jornada de trabalho de uma mulher
assalariada normalmente se desdobra em duas ou mais, se estende além da fábrica,
do escritório, em função das tarefas domésticas, cuja realização é repetitiva e
indispensável.
É ainda Barroso que ressalta que o trabalho doméstico, além de ser
repetitivo e estender a jornada de trabalho, apresenta duas características que
contribuem para levar muitas mulheres à fadiga crônica e à exaustão física e
mental: não tem descanso semanal e nem férias remuneradas. Soma-se a isso o
122
fato de ser uma atividade desvalorizada socialmente, não ajudando, portanto, a
elevar a auto-estima da trabalhadora.
São dois mundos que se complementam e se confundem, não podendo,
portanto, serem vistos separados um do outro.
Ronci investiga o trabalho de operárias de uma seção da Fábrica Olivetti de
Scarmagno, na Itália, com o objetivo de verificar se existe uma correlação
frequente entre emancipação pelo trabalho e emancipação pessoal.Indagando
sobre as motivações e as satisfações das operárias no seu trabalho, a autora busca
estabelecer em que medida a identidade dessas mulheres está ligada à atividade
profissional ou então a uma atividade de expressão familiar.
Os resultados revelam que as operárias consideram que o trabalho que
realizam na fábrica é monótono e desinteressante, e que o único aspecto
importante é que a atividade possibilita resolver problemas econômicos. Além
disso, há evidência de que elas não se reconhecem em seu próprio trabalho. Não
há participação efetiva na produção, nem tampouco ocorre maior integração e
socialização no que toca ao grupo de trabalho, embora o sistema adotado pela
empresa seja o trabalho em equipes ("ilhas"), cujos ritmos de produção são
determinados pelas próprias operárias.
Essa atitude por parte das operárias é justificada com base no fato de que
não ocorre repartição ou remodelação dos papéis familiares. A vida familiar e a
vida no trabalho são vividas de forma inconciliável, manifestando-se então na
forma de conflito entre os papéis das trabalhadoras-mulheres-mães.
A situação encontrada pela autora acima é confirmada num outro trabalho
realizado por Pacifico no qual é abordado o mundo das operárias e das
empregadas administrativas de uma fábrica de conservas alimentícias de Nápoles,
também na Itália.
123
As operárias dão a impressão de que confundem o espaço de trabalho com
o espaço doméstico. Agem no ambiente de trabalho com se estivessem em suas
próprias casas. A esse respeito Pacifico afirma que:
"A persistência nos locais de trabalho do peso do lar, como elas costumam
dizer, é a manifestação de uma impossibilidade real, da parte delas, de separar
nelas próprias, os dois mundos que são o lar e o trabalho. A assimilação desses
dois mundos exprime-se, igualmente, por certos comportamentos externos como,
por exemplo, suas presenças nos locais de trabalho como uma atitude que pertence
mais ao mundo da dona-de-casa da operária" (l986, p. 159).
A realização profissional não aparece como fator importante. O trabalho é
procurado porque é necessário para a manutenção do grupo familiar, portanto é
apenas suportado com certa resignação quando penoso. "O produto acabado é o
trabalho que se faz para o patrão, mas o trabalho verdadeiramente fornecido se faz
para a família" (Pacifico, l986 - p. 163).
A ação política, o engajamento no sindicato, dessas operárias se dá menos
em função da consciência de sua condição de classe do que em função de
reivindicações particulares de cunho nitidamenteeconômico.
Tanto Ronci quanto Pacifico ressaltam o duplo caráter do trabalho da
mulher, qual sejam a produção e a reprodução. É evidente que o caráter produtivo
e reprodutivo do trabalho é genérico e não se restringe à mulher. A crítica vai
noutro sentido.
Historicamente, a condição de trabalho da mulher se apresenta distinta da
do homem. A mulher reivindicou para si os mesmos direitos em relação ao homem
do ponto de vista profissional, porém ainda não conseguiu libertar-se, embora
tenha dado passos largos nesse sentido, do papel de "administradora do lar"
enquanto o homem continua exercendo (ou pelo menos reivindicando) o papel de
"chefe do lar".
124
A jornada de trabalho é apenas um dos aspectos discutidos quando se trata
da saúde do trabalhador e, especialmente, da mulher trabalhadora.
A outra questão de fundo é o próprio processo de trabalho. Este entendido
como atividade orientada a um fim visando a produção de utilidades.
Atualmente, há pesquisadores preocupados em provar que há uma relação
de determinação entre o processo de trabalho e a doença mental, ou então que o
trabalho possui uma dinâmica capaz de conformar a identidade e o modo de viver
do trabalhador de acordo com a atividade que exerce.
Nesse contexto, o pano de fundo é o sistema capitalista moderno, que prima
pela separação radical entre o trabalhador e o produto do seu trabalho. Vejamos o
que Codo afirma a esse respeito:
"O capitalismo cada vez mais monopolizado e financeiro empurra uma
massa e trabalhadores para ofícios onde a questão não é mais a da 'desvinculação
entre o produto e o seu produtor' mas a inexistência mesma do produto, trabalho
'vazio', carente de valor de uso, trabalho que impede a conformação da identidade
de quem o realiza" (1988, p. 21).
A questão central deste trabalho, no entanto, não é discutir ainda saúde
mental e trabalho de forma específica, e nesse caso a argumentação acima valeria
para os trabalhadores independentemente do sexo. O que nos interessa aqui é
analisar o quadro da saúde da mulher trabalhadora. Sendo assim, é importante
verificar o impacto do processo de trabalho sobre o corpo da mulher e,
evidentemente, também sobre o seu psiquismo.
Beltrão realiza um estudo interessante sobre a relação trabalho-corpo da
mulher. A pesquisa foi realizada junto às mulheres que trabalham em usina de
beneficiamento de castanha-do-pará. Trabalho e corpo formam uma espécie de
binômio. O corpo é transformado e deformado no processo de trabalho. Ora um
acidente que decepa parte do dedo, ora os calos que brotam nas mãos, ora o
125
envelhecimento precoce decorrente das longas jornadas na usina, que quase
sempre se estendem à vida doméstica. Afirma a autora:
"(...) trabalhar na castanha implica em 'perder o corpo são' para 'apropriar-
se de um corpo não-são'. A noção de 'perda do corpo' está associada ao
desenvolvimento das atividades de trabalho durante sucessivas safras, nas quais
constrangidas,obrigadas pela situação de classe a USAR/ DESGASTAR/
TRANSFORMAR/ DEFORMAR o próprio corpo, dadas às condições de
trabalho a que se submetem" (1982, p. 103).
Trabalhando sob condições degradantes - porque as usinas de
beneficiamento não oferecem sequer instrumentos adequados para a atividade a
que se destinam -, as trabalhadoras da castanha se preocupam em proteger o corpo,
corpo do qual tem consciência de que está se transformando e perdendo o vigor
com o trabalho estafante, mas que por nada deixa de ser um corpo feminino. Esse
corpo é o único bem que de fato possuem, por isso é importante salvaguardá-lo.
Beltrão aponta para o fato de que as adversidades das condições de trabalho
e a descaracterização do corpo em consequência de tais condições são fatores que
determinam uma representação social do corpo muito específica. A operária
procura adquirir sempre uma identidade nova para se sentir valorizada apesar do
corpo transformado/deformado.
O corpo da mulher trabalhadora é objeto de estudo em alguns trabalhos
relacionados à saúde da mulher no trabalho.
Nogueira discute as diferenças morfológicas e fisiológicas entre os
organismos masculino e feminino. Do ponto de vista morfológico, as diferenças
são em relação à altura, envergadura, tamanho dos pés e mãos e altura do
cotovelo. No aspecto fisiológico, o organismo feminino se distingue do masculino
em relação ao peso, força muscular, preensão, tração e impulsão, apresentando,
126
além disso, algumas particularidades: menarca, gravidez, aleitamento e
menopausa.
O autor argumenta, entretanto, que o fato de o organismo feminino
apresentar peculiaridades tanto morfológicas quanto fisiológicas não é razão para
que ocorra impedimentos em relação a determinados trabalhos. Nega que a mulher
apresenta maior fatigabilidade no trabalho que o homem, que seu organismo é
mais susceptível a agentes químicos e que está sujeita a maior acidentabilidade.
Nogueira concorda com a afirmativa de que a estabilidade emocional da
mulher é menor do que a do homem. Afirma que a explicação para isso reside no
fato de que o organismo feminino sofre alterações hormonais no decorrer do ciclo
menstrual, atingindo o seu ápice no período pré-menstrual.
Na realidade, as peculiaridades morfo-fisiológicas do organismo feminino
exigem algumas medidas de adequação do ambiente de trabalho e alguns cuidados
especiais para que o trabalho seja realizado com eficiência. O que não justifica, no
entanto, uma legislação trabalhista protecionista para a mulher trabalhadora.
Segundo o autor, a legislação trabalhista brasileira, ao impor determinadas
restrições ao trabalho das mulheres, parte do pressuposto de que elas estão
potencialmente grávidas. Além disso, a legislação, para garantir que a mulher
atenda às exigências domésticas, considerou a proteção ao trabalho das mulheres
uma questão de ordem pública.
Manter a saúde da mulher trabalhadora tornou-se um fator de preocupação
também para o próprio empregador, uma vez que pesquisas tem apontado que as
mulheres apresentam um índice de absenteismo-doença mais elevado que os
homens.
Nogueira e Azevedo afirmam que essa constatação não está restrita ao
Brasil e que esse fato é conhecido desde a década de 30. Estudos realizados na
Polônia, Itália e Grã-Bretanha revelam resultados semelhantes.
127
Baetjer justifica essa diferença de absenteismo-doença entre os sexos com o
argumento de que as mulheres dão maior atenção às doenças de pequena
gravidade do que os homens, assumem o trabalho com menor seriedade do que os
homens e tendem a fazer duas atividades ao mesmo tempo, o trabalho na indústria
e as atividades domésticas, sofrendo interferências no repouso adequado.
Nogueira e Azevedo consideram discutível a afirmativa de que a mulher
encara o trabalho com menos seriedade e menor senso de responsabilidade do que
os homens. Na sua opinião, as mulheres apresentam de fato maior morbidade, o
que justifica um maior índice de absenteismo-doença. A morbidade pode ser
explicada pelo "(...) grande número de atribuições que a mulher passou a
assumir quando se dedicou ao trabalho fora de casa, quando, além das
responsabilidades inerentes ao próprio trabalho ainda tem a responsabilidade de
sua casa e de sua família. Muitas vezes o orçamento doméstico depende
exclusivamente do fruto do seu trabalho que, além de enfrentar a jornada de
trabalho com todos os seus problemas, ainda tem a seu cargo os
problemas familiares, tais como cuidado e orientação dos filhos, as atividades
do serviço doméstico, etc.Disso resulta uma soma de tarefas, muitas vezes com
repouso inadequado, quepossivelmente redundará em desequilíbrio do seu
estado de saúde" (1982, p. 51).
Sem apresentar uma preocupação com o absenteismo-doença, Broda
direciona sua análise sobre a saúde da mulher também para a dupla jornada,
embora considere também alguns contraintes temporais da atividade concreta
como fatores problemáticos para a saúde.
Com base numa enquete realizada numa usina têxtil, na França, o autor
chega a conclusões relevantes.
Utilizando os critérios de idade e posição familiar, conclui que as mulheres
casadas e com filhos desenvolvem patologias diferentes das jovens solteiras. No
primeiro caso, as queixas mais frequentes são palpitações, dorsalgias, lombalgias e
128
depressão. No segundo caso, aparecem irritabilidade e distúrbios de conduta.
Sendo assim, a explicação parece estar fundamentada no fato de que as mulheres
casadas e com filhos dormem menos de seis horas por noite.
De acordo com a idade, aparecem três tipos de patologias distintas. As
mulheres entre 18 e 25 anos apresentam ansiedade, tomam ansiolíticos e tendem
mais ao alcoolismo, tabagismo e à maior ingestão de café; as que se encontram na
faixa de 25-30 anos manifestam fadiga; e as mulheres entre 35 e 45 anos queixam-
se de depressão e procuram medicamentos antidepressivos e sedativos.
Pesquisando trabalhadoras de uma indústria alimentícia francesa, Broda
afirma que os sintomas de fadiga e depressão parecem estar associados à dupla
jornada, sendo que, no caso dessas mulheres, a depressão se agrava em função do
turno alternado com escalas 2x8.
A jornada, no entanto, não é o único fator problemático, embora, segundo o
autor, seja o maior determinante. A Atividade concreta, processo de trabalho,
também contribui para a debilitação da saúde das trabalhadoras. A obrigação de
rendimento na produção é apontada como maior desencadeante do nervosismo; e a
padronização dos tempos no processo produtivo, com suas características de
repetitividade, é visto como determinante para o envelhecimento prematuro.
Ao contrário de Broda, que privilegia a jornada de trabalho como principal
causa dos problemas de saúde apresentados por mulheres trabalhadoras, Le
Guillant e Dejours centralizam suas análises sobre as condições e relações de
trabalho.
Le Guillant publicou em 1956, na França, um estudo que ficou conhecido
como "A Neurose das Telefonistas", hoje um clássico que, apesar do tempo
decorrido desde a sua publicação, continua atual, ao menos, para o caso brasileiro.
E a julgar pelo trabalho publicado por Dejours em 1981, abordando a mesma
129
categoria de trabalhadoras, a análise de Le Guillant parece continuar valendo
também para a França.
Le Guillant chama a atenção para o fato de que a neurose das telefonistas
vinha despertando interesse em alguns estudiosos desde 1910. Esses trabalhos já
indicavam que os fatores desencadeantes do problema eram a sobrecarga de
trabalho, os aborrecimentos com observações injustificadas e às vezes grosseiras
dos clientes, a desclassificação social da profissão, etc..
Um destaque é dado para o estudo de S. Pacaud (1919) considerado um dos
mais sistematizados. Este autor analisou a sutileza de certos mecanismos dessa
fadiga nervosa, chegando à coclusão de que trata-se de uma "síndrome subjetiva
comum", que se manifesta através de alterações do humor e do caráter e que
apresenta somatizações variáveis.
Le Guillant, ao analisar os distúrbios do sono apresentados pelas
trabalhadoras, que, na sua opinião, são característicos dessa neurose, afirma que
eles se manifestam na forma de hipersonia diurna, insônia noturna e insônia quase
total.
Sobre as alterações somáticas, indica que trata-se de "manifestações
'córtico-vicerais' evidentes que exprimem as repercussões orgânicas do
esgotamento nervoso, aparecendo e, pelo menos inicialmente, desaparecendo com
ele" (1984, p. 9). Essas alterações aparecem na forma de angústia, palpitações,
anorexia, cefaléias persistentes, alterações cardio- vasculares e menstruais.
O autor conclui que as queixas das telefonistas tem como elemento
fundamental as condições gerais sob as quais o trabalho é efetuado. Entre as
condições de trabalho, os fatores que mais se destacam são o rendimento exigido e
o controle exercido pelas encarregadas ou supervisoras.
Os fatores extra-profissionais, entre os quais pode-se incluir o trabalho
doméstico, são considerados quase sempre secundários na gênese das alterações
130
apresentadas pelas telefonistas. Uma ressalva é feita à atitude dessas trabalhadoras
em relação à vida doméstica. Se antes eram preocupadas e ordeiras em se tratando
da própria casa, passaram a ser completamente desinteressadas.
Dejours, utilizando uma abordagem psicanalítica, discute um outro aspecto
da questão: a exploração, por parte da organização, do sofrimento da telefonista.
Com base nos estudos de Begoin, o autor afirma que "o 'nervosismo' (um
dos elementos essenciais no quadro de sua neurose) é uma doença necessária, nas
condições atuais, para a realização de suas tarefas profissionais" (1987, p. 103).
São destacados três aspectos como determinantes deste sofrimento: 1) a
finalidade da informação, esta só existe porque o catálogo é incompreensível; 2) a
forma e o conteúdo do trabalho limitados e estereotipados; 3) questões relativas à
hierarquia, ao tipo de comando e à organização do trabalho.
Por fim, Dejours conclui que:
"O que é explorado pela organização do trabalho não é o
sofrimento, em si mesmo, mas principalmente os mecanismos de defesa
utlizados contra esse sofrimento. No caso das telefonistas, o sofrimento
resulta da organização do trabalho 'robotizante', que expulsa o desejo
próprio do sujeito. A frustração e a agressividade resultantes, assim
como a tensão e o nervosismo, são utilizados especificamente para
aumentar o ritmo de trabalho" (1987, p. 104).
Tanto Le Guillant quanto Dejours abordam o trabalho e as condições em
que este se realiza como responsáveis principais pelo surgimento de problemas
relativos à saúde do trabalhador. Não se trata de uma questão de gênero. O
trabalho em si é que surge como problemático independentemente do sexo do
indivíduo que a ele se submete. Em se tratando de saúde mental, é possível que
cada categoria de trabalhadores apresente prevalência de determinadas
características psicológicas e psicopatológicas.
131
Pensando sob este prisma, o quadro da saúde da mulher trabalhadora se
complica. É necessário considerar a jornada de trabalho de forma específica. Além
do que é preciso não desconsiderar a concepção dos instrumentos e equipamentos,
projetados, na maioria das vezes, de acordo com a estrutura morfo-fisiológica do
indivíduo do sexo masculino.
Aqui não vai uma crítica a Le Guillant e a Dejours por não considerarem a
categoria gênero, mesmo porque o objetivo de ambos os autores é claro: discutir a
relação entre trabalho e psicopatologia sem uma preocupação específica com o
fato de que a categoria é composta de mulheres.
Neste aspecto, os trabalhos desses autores contribuem, e muito, para
delimitar uma nova linha de pesquisa no campo da saúde do trabalhador genérico,
principalmente no momento atual, quando pesquisadores de vários países tem
discutido o impacto do desenvolvimento tecnológico e das formas de atividades
geradas por ele sobre a vida dos trabalhadores.
O Brasil não é uma excessão. Tanto psicólogos quanto sociólogos vêm se
preocupando com a questão. Nessa direção, encontra-se o projeto "Saúde Mental e
Trabalho em Telefonistas", na realidade vinculado a um projeto mais genérico que
engloba várias outrascategorias de trabalhadores.
Para estudar a psicodinâmica do trabalho e a relação que este possa ter com
a saúde mental de telefonistas, é preciso considerar não apenas o aspecto formal
do trabalho, mas também o que ocorre fora dele, afinal estamos tratando de uma
categoria específicamente de mulheres. Para tanto, foi necessário fazer um
levantamento, ainda que suscinto, da situação da saúde da mulher trabalhadora,
conhecer um pouco do que tem sido apontado como pano de fundo para os
problemas encontrados no trabalho e na vida familiar.
132
No caso das telefonistas, torna-se necessário inclusive um estudo cuidadoso
da jornada de trabalho, uma vez que elas se submetem a jornada em turnos
alternados, além de uma análise criteriosa do processo de trabalho.
É preciso conhecer como organizam a vida doméstica e como a conciliam
com o trabalho que realizam, porque, como qualquer mulher trabalhadora,
enfrenta a clássica dupla jornada e todas as implicações decorrentes dela.
CONCLUSÃO
O estudo da saúde da mulher trabalhadora, pelo que pudemos verificar a
partir da bibliografia apontada aqui, exige que consideremos determinados
aspectos, específicos, por se tratar da condição de ser mulher.
Os problemas que afetam a mulher que trabalha fora de casa apresentam-se
mais complexos se comparados com os enfrentados pelo trabalhador do sexo
masculino.
Levamos em conta no desenvolvimento deste trabalho duas questões que
nos parecem fundamentais: a jornada de trabalho, que, na maioria das vezes,
apresenta um caráter duplo, portanto, mais extensa, e o próprio processo de
trabalho, no qual nem sempre encontramos condições adequadas à estrutura
morfo-fisiológica da mulher que a ele se submete.
Este não é um quadro específico somente do Brasil, mas observado também
em muitos outros países. No caso brasileiro, soma-se ainda uma legislação
protecionista, defensora de um conceito burguês de família. Neste caso, a proteção
à mulher é na realidade proteção à família, à prole, de forma que possa garantir a
reprodução da força de trabalho.
Apesar dos avanços da nova Constituição há ainda muito que fazer para que
a mulher trabalhadora brasileira tenha seus direitos garantidos enquanto mulher e
enquanto trabalhadora.
133
Saúde no trabalho tem sido uma "bandeira" da classe trabalhadora no Brasil
e em todos os paises desenvolvidos ou em desenvolvimento, com a diferença de
que em alguns deles algumas conquistas nesse sentido já se concretizaram.
A saúde da mulher começa pelo reconhecimento de sua capacidade
produtiva, pelo seu direito ao trabalho e pelo remodelamento dos papéis
familiares, para que a sobrecarga das atividades domésticas não recaiam somente
sobre seus ombros.
A saúde no trabalho é um direito de todo e qualquer trabalhador. Condições
de trabalho humanas, atividade produtiva realizadora, que não aliene o
trabalhador do seu "saber fazer" e do produto do seu trabalho, são condições
absolutamente necessárias para a estruturação de uma identidade realmente
humana.
Essa conquista depende tanto das mulheres quanto dos homens que vendem
sua força de trabalho.
134
Capítulo 7.
PROFESSORA PRIMÁRIA: AMOR E
DOR
HILMA TEREZA TÔRRES KHOURY CARVALHO (3)
O papel de professor primário tem sido tradicionalmente desempenhado por
mulheres. Parece haver uma concepção implícita de que as mulheres são melhores
ou mais adequadas para esta função do que os homens, já que suas atividades
implicam, de certa forma, em cuidar de crianças pequenas, "especialidade
feminina". O papel de professora primária seria, portanto, uma extensão do papel
materno. Todos já ouvimos, desde pequenos, frases como: "A escola é o segundo
lar"; "A professora é a segunda mãe" ou, mais recentemente, uma "tia";
indicadoras da conotação familiar que envolve a escola e a professora, em
particular a primária.
Se percorrermos rápida e superficialmente a história da educação, veremos
que isto nem sempre foi assim. Na Antiguidade, a educação era privilégio de
nobres, e era confiada a sábios ou filósofos; na Idade Média, embora ainda muito
restrita, era controlada pela Igreja Católica; nas Idades Moderna e Contemporânea,
principalmente após a consolidação política do modo de produção capitalista, a
3 Hilma Tereza Tôrres Khoury Carvalho é aluna do programa de Mestrado em
Planejamento do Desenvolvimento (PLADES), no núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), tendo como
Orientador de Dissertação, o Prof. Dr. Wanderley Codo, da USP/RP.
135
educação estendeu-se à "toda a população", ficando sob a responsabilidade de
instituições públicas e/ou privadas.
A mão de obra feminina sempre foi utilizada pela produção capitalista, desde os
seus primórdios, tanto na manufatura como na indústria; todavia, uma boa parcela
de mulheres, especialmente as da pequena burguesia, não trabalhavam como
operárias. Durante as primeiras fases do capitalismo, ou eram simples donas de
casa, cuidando da reprodução da força de trabalho, ou exerciam atividades cujas
características assemelhavam-se às daquele papel, tais como cuidar de doentes - as
enfermeiras, ou cuidar de crianças pequenas - as professoras primárias.
Mas ser professora primária, função aparentemente lírica, que chegou a
inspirar os compositores brasileiros ("...minha linda normalista..."), não é tão
suave e doce como pode parecer:
1) A legislação brasileira inclui o trabalho de professor entre aqueles
considerados "penosos", com direito à aposentadoria especial após 15, 20 ou 25
anos de serviço.
2) Investigações realizadas nos Estados Unidos da América, acerca do
"stress" em professores, revelaram níveis preocupantes de "stress" nesta categoria
profissional, apontando-na como "particularmente estressante"(RUSSEL et al,
1987), quadro que se agrava quando comparada à outras profissões (SHAW, et al,
s.d.).
3) Levantamento realizado pelos autores na Divisão de Assistência ao
Servidor (DIAS) e no Setor de Serviço Social da Secretaria de Educação do
Estado do Pará (SEDUC), faz inquietantes revelações sobre a saúde mental dos
professores. O levantamento se deu a partir do exame de 290 fichas de
professores, tanto da capital como do interior do Estado, que haviam solicitado
readaptação de função por motivo de saúde, nos anos de 1988, 1989 e 1990, tendo
sido submetidos a exames médico-psicológicos. Os dados demonstraram que tais
136
professores eram, em sua maioria, do primeiro grau; do sexo feminino; casadas;
situavam-se, em geral, na faixa dos 30 aos 49 anos; eram readaptadas, quase
sempre, para a função de Auxiliar de Secretaria ou de Biblioteca; e que os motivos
que as levavam a mudar de função, ou seja, os problemas diagnosticados, eram,
em primeiro lugar, os distúrbios da voz (39,3%), vindo a seguir os transtornos
mentais -neuroses e psicoses (20,3%) e, em terceiro lugar, os problemas alérgicos
(18,9%).
O presente estudo trata de professores do primeiro grau menor (1a. a 4a.
séries, o antigo curso primário) de escolas públicas da cidade de Belém, Estado do
Pará. Optou-se pelos professores do primeiro grau menor em função de lidarem,
em geral, com crianças pequenas (7 a 10 anos), o que faz supor tanto um dispêndio
maior de energias físicas e psicológicas, se comparados aos professores que lidam
com crianças maiores ou adolescentes, como também uma exposição mais intensa
à ideologia da exploração, que procura identificar o trabalho do professor com as
funções maternas ou sacerdotais.
Esta pesquisa integra projeto de dissertação de Mestrado(1), e encontra-seinacabada, o que impede uma conclusão acerca dos resultados aqui apresentados.
Todavia, o estágio alcançado já permite algumas conjecturas.
As Escolas
Através de listagens fornecidas pelas Secretarias Estadual e Municipal de
Educação, com dados do ano de 1991, foram selecionadas duas escolas de
primeiro grau menor na rêde pública estadual de ensino, e duas na rêde pública
municipal, sendo uma situada em bairro central, e a outra em bairro periférico,
dentre aquelas que, nessas áreas (centro ou periferia), eram as mais populosas em
termos de número de alunos matriculados:
137
ESCOLA-1: Estadual; Central; 90 anos desde a fundação; 1719 alunos; 62
professores em regência de classe, dos quais 28 trabalhando com 1a. a 4a. séries;
oferece ensino pré-escolar, primeiro grau menor e supletivo primeiro grau (1a. a
4a. etapas), atendendo em 4 turnos de 4 horas cada -manhã, intermediário, tarde e
noite.
ESCOLA-2: Estadual; Periférica; 40 anos; 2640 alunos; 51 professoras, das
quais 44 atuando com 1a. a 4a. séries; oferece pré-escolar e primeiro grau menor,
atendendo nos 4 turnos.
ESCOLA-3: Municipal; Central; 971 alunos; 28 professoras, das quais 23
atuando com 1a. a 4a. séries; oferece pré-escolar, alfabetização, 1a. a 4a. séries do
primeiro grau, supletivo primeiro grau (1a. e 2a. etapas), alfabetização e 1a. série
para adultos, atendendo nos 4 turnos.
ESCOLA-4: Municipal; Periférica; 25 anos; 1200 alunos; 40 professoras,
das quais 35 atuando com 1a. a 4a. séries; oferece pré-escolar e primeiro grau
menor, atendendo nos 4 turnos.
Foram sujeitos desta pesquisa 104 professoras que lecionavam 1a. a 4a.
séries do primeiro grau (21 na escola-1, 35 na escola-2, 19 na escola-3, e 29 na
escola-4), as diretoras das escolas, as supervisoras escolares (quando havia), e um
diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do Estado do Pará
(SINTEP).
Os dados foram coletados através de Observação Direta das condições e do
processo de trabalho; de uma Ficha de Identificação Geral (FIG) e de um
Inventário de Personalidade (O Inventário Multifásico Minesota de Personalidade
- MMPI), aplicados às professoras; de Entrevistas Dirigidas (com roteiro
previamente estabelecido) às diretoras, supervisoras, liderança sindical, e a uma
pequena amostra de professoras (3 em cada escola, num total de 12).
138
A FIG pedia dados demográficos, bem como de identificação profissional e
funcional. A Entrevista com as diretoras e supervisoras, abordava basicamente
questões relativas à organização do trabalho e administração de recursos humanos.
A entrevista com a liderança sindical versava essencialmente sobre a história de
lutas dos professores, e suas principais reivindicações. Já a entrevista com as
professoras, tratava de condições e organização do trabalho, condições de vida e
moradia, participação sindical, representações sobre o trabalho, relações no
trabalho, e relação saúde-trabalho.
Pelo que se pôde apreender das observações e entrevistas, as escolas públicas
estaduais e municipais possuem mais semelhanças do que diferenças.
Contam com recursos materiais e didáticos muito escassos; trabalham com
salas de aula superlotadas; seus professores em geral só possuem o segundo grau
(magistério); lidam com uma clientela (alunos) muito carente; possuem baixo grau
de absenteísmo e rotatividade da força de trabalho; o índice de reprovação é maior
na 1a. série, o que em geral atribuem à ausência de alfabetização (a Constituição
Federal só garante o ensino público e gratuito dos 7 aos 14 anos, que corresponde
da 1a. a 8a. séries do primeiro grau); possuem uma pseudo-evasão escolar, ou seja,
os alunos abandonam temporariamente a escola, para trabalharem (são feirantes,
lavadores de carro, picolezeiros, bombomzeiros, vendedores de cafezinho,
empregadas domésticas, babás,etc...) e retornam na época das provas; os
professores percebem baixos salários; não estão submetidos a qualquer esquema
sistemático e rígido de avaliação de desempenho; participam de um planejamento
de fachada, onde decidem sobre comemorações de datas cívicas e sociais, e apenas
acatam as decisões dos técnicos das Secretarias de Educação, no que tange a
conteúdo programático e livro-texto, repassadas através da supervisora escolar,
que coordena o planejamento; em geral as professoras relatam gostar da profissão,
e entendem que ser professora é ser um pouco mãe.
139
As diferenças entre escolas públicas estaduais e municipais parecem
encontrar-se nos salários e gratificações pagos, que nas escolas municipais
possuem um valor e um percentual mais elevados; nos critérios para progressão
funcional, que nas escolas estaduais são mais flexíveis; na programação e
implementação de reciclagens, que nas escolas municipais é anual, enquanto que
nas estaduais raramente acontece; no relacionamento com as diretoras, que nas
escolas municipais parecia ser mais democrático; e nas solicitações de licença-
saúde, que as estaduais referiram muitos casos por problemas mentais, enquanto as
municipais apontaram poucos, e por outros motivos.
As professoras
A análise dos dados da FIG, por escola, não revelou diferenças
significativas entre as quatro escolas estudadas
As professoras, em sua maioria, são naturais da cidade de Belém;
encontram-se na faixa dos 35 aos 45 anos; são casadas (havendo no entanto um
número significativo de solteiras); possuem 1 ou 2 filhos (havendo porém uma
porcentagem expressiva de professoras sem filhos); contam entre 11 a 20 anos de
profissão; trabalham somente um turno nas escolas alvo; e possuem apenas o
segundo grau (destacando-se o fato de que, na escola-3, a maioria possui estudos
adicionais(4)).
Todavia, quanto ao fato de possuírem ou não outro emprego, na escola-1 a
grande maioria não o tem, enquanto que na escola-4 uma maioria expressiva o
possui; já nas escolas 2 e 3, é mais ou menos equilibrado o percentual de
professores que têm e que não têm outro emprego. Entre as que têm outro
4 Estudos Adicionais é o quarto ano do curso de magistério (2 grau), que é
opcional, e habilita o professor a lecionar disciplinas específicas na 5a. e 6a. séries
do primeiro grau.
140
emprego, a esmagadora maioria possui apenas um emprego a mais, onde também
exerce a função de professora.
A análise dos dados da FIG, por organização, ou seja, por grupo de escolas,
estaduais e municipais, mostrou todavia alguma diferença em relação a número de
filhos, tempo de profissão e grau de instrução, além de uma enorme diferença
quanto a ter ou não ter outro emprego. Entre as professoras das escolas estaduais,
embora a maioria (44,6%) possua entre 1 a 2 filhos, há uma percentagem
expressiva (25%) delas que não têm filhos, e igual percentagem com 3 a 4 filhos.
Já entre as professoras das escolas municipais, o percentual das que não têm filhos
e das que têm entre 1 e 2 filhos é idêntico (41,7%), abrangendo a maioria. Quanto
ao tempo de profissão, embora os dois grupos revelassem uma maioria entre 11 a
20 anos de profissão (67,9% nas estaduais, e 66,7% nas municipais), há um dado
que vale ressaltar; enquanto nas escolas estaduais, o percentual de professoras com
mais de 20 anos de profissão corresponde a 12,5%, nas escolas municipais atinge
25%; por outro lado, o percentual de professoras com 10 anos ou menos de
profissão é maior nas escolas estaduais (19,6%) que nas escolas municipais
(6,2%). Em relação ao grau de instrução, embora a maioria, nos dois grupos, só
possua o segundo grau (64,3% nas estaduais e 43,7% nas municipais), nas escolas
municipais há um percentual significativo de professorascom estudos adicionais
(29,2%), bem como com curso superior (25%).
A grande diferença se deu entre possuir ou não outro emprego, além da escola
alvo. Coincidentemente, o mesmo percentual de professoras que não têm outro
emprego nas escolas estaduais, o têm nas escolas municipais (62,5%). Entre as que
têm outro emprego, nos dois grupos, embora a grande maioria possua apenas um a
mais, onde também exerce a função de professora, nas escolas municipais 23,3%
atua em outra função diversa da de professora, enquanto que nas escolas estaduais,
este percentual é de 9,5%.
141
Analisando-se os resultados do MMPI, por escola (ver Tabela 3), percebe-
se que a escola-1, que representa 20,6% dos casos estudados (escola-2 = 36,1%;
escola-3 = 16,5% e escola-4 = 26,8%) e efetivamente validados(5), foi a que
apresentou maior Prevalência de Suspeita de Sofrimento Psíquico (PSSP),
apontando um percentual de 40%, enquanto que nas outras escolas o PSSP foi de
20%, 6,3% e 26,9%, respectivamente para as escolas 2, 3, e 4. Foi também a
escola-1 que evidenciou maior grau de afetação nas escalas clínicas do MMPI.
Nas escalas que compõem a tétrade neurótica (Hs, Hy, D e Pt), por exemplo,
apresentou escores "t" elevados (60 ou acima) para 60% dos afetados (grupo de
"não-normais"), em todas elas. Nas escalas que integram a tétrade psicótica (Pa,
Ma, Sc e Si), o grupo de afetados mostrou escores "t" elevados para 60% em Pa e
50% em Sc. Nas escalas que formam a díade ideológica (PD e MF), exibiu escores
"t" elevados para 50% e 60% dos afetados, respectivamente. A elevação dos
escores "t", em quase todas as escalas, era quase sempre, em termos proporcionais,
mais a nível patológico do que a nível de border-line.
Na escola-2, o nível de afetação já foi bem menos intenso que na escola-1. Da
tétrade neurótica, somente duas escalas mostraram escores "t" elevados para 50%
ou mais de afetados, Hs (58,8%) e Hy (52,9%).
A escola-4 apresenta um perfil semelhante ao da escola-2, no que diz
respeito às escalas do MMPI que marcaram suas professoras. Da tétrade neurótica,
mantêve-se a díade Hs-Hy, tendo atingido 81,8% e 54,5% do grupo de afetados,
5 O MMPI, em sua versão original, estabelece um critério de validação, através de
4 escalas: ?(dúvida), L(mentira), F(êrro), e K(correção). O Projeto Saúde Mental e
Trabalho, desenvolvido na FFCL, da USP/RP, coordenado pelo Prof.Dr.
Wanderley Codo e pelo Dr. Jackson Sampaio, o denominou de critério canônico, e
estabeleceu um outro critério, a ser utilizado após aquele, denominado de critério
de validação efetiva, visando não excluir aquelas pessoas que, apesar das mentiras,
e tentativas outras de camuflar seu sofrimento, não conseguiram escondê-lo.
142
em cada uma delas, respectivamente. De modo análogo, não houve afetação
significativa para quaisquer das escalas integrantes da tétrade psicótica, mantendo-
se também a díade ideológica PD-MF, com igual porcentagem de afetados
(54,5%) em cada uma delas. Prosseguindo as comparações entre as escolas-2 e 4,
percebe-se que as diferenças existentes quanto aos resultados do MMPI
encontram-se no fato de a escola-4 apresentar um percentual maior de afetados em
Hs, enquanto que na escola-2 o maior percentual de afetados foi em PD. Outra
diferença importante, é que na escola-4, a elevação dos escores "t", em quase todas
as escalas, tendia proporcionalmente mais para o nível border-line do que para o
nível patológico, enquanto que na escola-2, ocorria exatamente o contrário. Vale
lembrar que a escola-2 é estadual, e a escola-4, municipal; mas ambas estão
localizadas na periferia da cidade.
A escola-3 foi a menos afetada. A díade neurótica Hs-Hy, assim como a
díade ideológica PD-MF, que marcaram os grupos de afetados em todas as outras
escolas, aqui não foram relevantes. Entre as professoras da escola-3, a única escala
que mostrou grau significativo de afetação foi SI, atingindo 60% dos afetados.
Vale ressaltar que esta escala não alcançou percentual relevante de afetação em
nenhuma das outras escolas. Na escola-3, assim como na escola-4 (ambas
municipais), a elevação dos escores "t", em quase todas as escalas, tendia
proporcionalmente mais para o nível border-line do que para o nível patológico,
enfatizando-se que, na escola-3, talvez devido ao número reduzido de professores,
exceto em uma escala (Pa, e não Si), os afetados o foram 100% a nível border-line.
Vale notar também, que na escola-3, 40% das escalas não apresentou qualquer
grau de afetação.
Quando agregam-se os dados das escolas 1 e 2, e os das escolas 3 e 4,
constituindo-se dois grupos de acordo com a organização político-administrativa
das mesmas, quais sejam, o grupo de escolas estaduais e o de escolas municipais,
os resultados apresentam-se menos dispersos que no corte anterior de análise,
143
apontando as escolas estaduais como bem mais afetadas que as municipais (ver
Tabela 4).
O grupo de escolas estaduais caracterizou-se pela tríade neurótica Hs-Hy-
D, bem como pela díade ideológica PD-MF, revelando uma percentagem de
59,3%, 55,6%, 51,9%, 66,7% e 55,6% de afetados, respectivamente. A elevação
dos escores "t" era proporcionalmente muito maior a nível patológico do que a
nível border-line.
O grupo de escolas municipais revelou percentual significativo de afetação
apenas na escala Hs, abarcando 68,8% de afetados. A elevação dos escores "t" foi
proporcionalmente bem maior a nível border-line do que a nível patológico, sendo
que em 40% das escalas clínicas essa elevação era 100% a nível border-line.
Do que sofrem as professoras?
A confrontação dos dados aqui levantados, com os resultados de alguns
estudos americanos acerca do "stress" em professores, parece fornecer algumas
pistas para a análise.TURK et. al. (1982), identificam sete áreas de problemas que
estariam nas orígens do "stress" do professor: ambiente escolar carente, mau
comportamento dos alunos, condições de trabalho carentes, preocupações pessoais
dos professores, relacionamento com os pais de alunos, pressões do tempo e
treinamento inadequado. Nossas professoras trabalham em condições carentes e
inadequadas, haja visto que trabalham com o mínimo possível de material
didático-pedagógico e que trabalham em salas sem ventiladores, em um clima que
varia, durante o dia, de 28 a 40 graus centígrados; muitas delas vivem
pressionadas pelo tempo, pois para aumentarem o seu rendimento mensal, têm que
correr de uma escola para outra; não têm treinamento inicial (a não ser o curso de
magistério) e, nas escolas estaduais, quase nunca têm reciclagens.
Os professores investigados por SHAW et. al. (s.d.) apresentaram um alto
grau de "stress" para eventos sobre os quais tinham pouco ou nenhum controle,
144
avaliando como mais "estressantes" aqueles que implicavam em imposição sobre
eles, e que eram usualmente de responsabilidade do diretor. O trabalho de nossas
professoras, apesar de não ser fragmentado como o de um operário que trabalha na
linha de montagem de uma fábrica, foge em muito ao seu controle, já que questões
fundamentais como a decisão do conteúdo a ser ensinado e do livro-texto a ser
adotado, por exemplo, são tomadas à sua revelia, restando-lhe tão somente
ratificá-las.
Alguns autores (RUSSEL et.al., 1987; LITT & TURK, 1985; ABBEY &
ESPOSITO, s.d.) encontraram forte correlação entre o grau de "stress" dos
professores e o montante de apoio social recebido de supervisores e/ou diretores,
e o estilo de liderança destes. Nossas professoras das escolas municipais, que
revelaram-se menos afetadas no MMPI, relataram relacionamento mais
democrático com suas diretorasdo que as das escolas estaduais, por sua vez mais
afetadas.
Partindo-se da concepção de que saúde e doença mental são partes de um
mesmo processo; que são qualidades diferentes de uma mesma realidade; e que
são produzidas ou determinadas por uma multiplicidade de fatores dinâmicos e
contraditórios, que agem e interagem de forma simultânea e complexa.
Considerando que o modo como estão organizadas as relações interpessoais e as
estruturas produtiva e reprodutiva do trabalho são alienantes e exploradoras,
principalmente para a força de trabalho feminina; e que a alienação pode conduzir
ao sofrimento psíquico. E levando-se em conta que o objeto deste estudo -o
trabalho da professora de primeiro grau menor de escolas públicas, e suas
condições de saúde/doença mental- produz-se dentro de um contexto particular,
em um país de capitalismo dependente, e em uma região atrasada em termos de
desenvolvimento econômico e social, parece-nos lícito supor que as características
psicológicas e psicopatológicas evidenciadas nesta categoria profissional, e neste
145
estudo específico, encontrem suas determinações no modo como trabalha e como
tem seu trabalho explorado.
Como Codo, Sampaio e Hitomi (1991), acreditamos que a doença mental se
instala em momentos significativos da vida do homem, quando, ocorrendo uma
ruptura entre subjetividade e objetividade, bloqueiam-se outros meios de
reapropriação secundária desta ligação. No caso específico do trabalho, momento
significativo por excelência, quando se rompe a ligação entre representação do
trabalho e trabalho concreto, e se tornam impossíveis outros meios de remendar
esta unidade perdida; meios alienantes, sem dúvida, porém inibidores do
desenvolvimento de sofrimento psíquico.
Considerando que as professoras são trabalhadoras assalariadas, cujo valor
de uso é a educação/ formação/ instrução do aluno - no caso específico, o aluno
formado a nível primário - e cujo valor de troca, a médio ou longo prazo, é a
preparação da força de trabalho para o capital; que o significado social de seu
trabalho, ou seja, educar/ formar/ instruir a força de trabalho para o capital,
contrasta com o significado pessoal de seu trabalho, ou seja, meio de subsistência
(trabalhar para ganhar dinheiro -o salário- para sobreviver); que as tentativas de
unificação/apaziguamento dessa contradição, por meio do discurso ideológico
ilustrado nas conhecidas frases, já citadas, "o magistério é um sacerdócio", "a
escola é um segundo lar", "a professora é uma segunda mãe" ou "tia", já não
surtem o efeito esperado, em decorrência da elevação do nível de consciência das
massas trabalhadoras, propiciado pela atuação dos sindicatos; e que, diante de um
quadro de recessão, de arrocho salarial, e de ameaça de desemprego,
proporcionado pela crise econômica, as expectativas de mudança das condições de
trabalho e de vida, pelos meios legais, são muito remotas. Supõe-se que haveria
um acirramento das contradições que perpassam suas relações com o trabalho,
gerando uma ruptura entre subjetividade-objetividade, sem perspectivas ou
146
possibilidades reais de resolução dos problemas, pelo menos a médio prazo,
conduzindo assim ao sofrimento psíquico.
A contradição trabalhar para educar/formar/instruir x trabalhar para
sobreviver, provavelmente afeta, de forma profunda, a identidade do professor
enquanto tal, e a relação afeto-trabalho. O aluno que ele deve educar, ensinar,
preparar para a vida, é também a força de trabalho em preparação para o capital; é
ele a razão de ser de seu salário miserável e, consequentemente, de suas precárias
condições de vida. Diríamos que o professor poderia deslocar esse afeto ao
produto do seu trabalho -a formação do aluno- cerceado pelas relações de
produção, para outras esferas compensatórias dentro do contexto de trabalho: a
amizade com outras professoras, um encontro de colegas (suas iguais) aos fins de
semana ou ao final do expediente,etc...Mas essas vias compensatórias de
recuperação da afetividade no trabalho nem sempre são realizáveis, pelo menos
para as professoras que pesquisamos, pois sendo mulheres, em geral casadas e
com filhos, têm as obrigações impostas à elas pela sociedade, em decorrência de
seu papel social de esposa, mãe e dona de casa.
Poderíamos pensar em outros mecanismos compensatórios, mais distantes
do trabalho, mas ainda assim com a função de recuperar a ligação perdida entre
representação do trabalho-trabalho concreto, mas até isso parece difícil, quando se
considera os baixos salários percebidos pelas professoras. Assim, o terreno pisado
por essas professoras parece bastante fértil para o desenvolvimento de sofrimento
psíquico.
147
Capítulo 8.
ENFERMAGEM, TRABALHO E
CUIDADO
IZABEL CRISTINA FERREIRA BORSOI (1)
WANDERLEY CODO
A enfermagem é uma profissão eminentemente feminina devido ao fato de
sua origem estar relacionada ao trabalho doméstico.
A idéia de cuidar, de proteger, esteve sempre presente na história da
mulher. Com ela ficaram as incumbências domésticas, o cuidado e a educação dos
filhos. Por extensão, o cuidado dos doentes também passou a ser parte do trabalho
feminino na medida em que exigia tarefas similares, o que nos leva a crer, que a
enfermagem, uma das mais antigas profissões femininas, surge como extensão do
trabalho doméstico (Silva, 1986; Colliere, 1986; Pires, 1989). Procriação, menor
força muscular, maior delicadeza e maior facilidade de expressar afeto parecem
ser os principais determinantes deste processo.
Na língua inglesa, a origem etimológica da expressão enfermagem vem da
palavra nurse que, originalmente, significa aquela que nutre, que cuida de crianças
e, por extensão, a que assiste o doente. Em português o termo enfermeira designa
quem cuida dos infirmus, ou seja, daqueles que não estão firmes, como crianças,
velhos e doentes (Silva, 1986).
Com este caráter o trabalho de enfermagem foi executado, até o final da
Idade Média, por religiosas, viúvas, virgens e nobres, tendo como objetivo
148
primordial a caridade. As convulsões sociais deste período incorporam também as
prostitutas que buscavam a própria salvação e cuidar dos doentes tornou-se para
elas forma de expiação.
Pires (1989) vai afirmar que na Europa, até o início do séc. XIX, esse
trabalho não era reconhecido como ofício e sequer exigia treinamento específico
para sua realização. É a partir principalmente da Guerra da Criméia (1854) que
começa a tomar caráter profissional com Florence Nightingale, que serviu como
voluntária nos hospitais militares ingleses em pleno campo de guerra. Em 1860,
Nightingale, a pedido do governo, organiza a primeira escola de formação de
trabalhadores de enfermagem, já estabelecendo separação entre enfermeiras
administradoras e prestadoras de cuidados. No Brasil, o quadro não foi muito
diferente. A enfermagem como profissão também começa a ser organizada como
esforço de guerra durante o conflito com o Paraguai (1864) tendo o nome de Ana
Neri como expoente. Mas, é somente nas últimas décadas do séc. XIX que se
inicia o processo de instrução formal de enfermagem, inicialmente visando treinar
enfermeiras psiquiátricas.
Se antes do século XIX, já havia mulheres dedicadas ao cuidado de
pacientes dentro de instituições hospitalares, com a formalização da enfermagem
como profissão, a entrada se torna maciça, mudando totalmente o caráter dessa
atividade. A caridade continua tendo sua importância, mas o que vai marcar a
diferença fundamental são as exigências de treinamento e a mediação econômica.
O ato de alimentar, banhar, proteger, administrar determinados medicamentos,enfim, o dar cuidados aos doentes passou a ser trocado por salários e a ser
mediado por técnicas específicas.
O trabalho de enfermagem, enquanto conjunto de saberes concentrado na
mão de cada trabalhador e direcionado para uma visão holística do paciente e seus
problemas, fragmentou-se em determinados conjuntos de cuidados,
149
especializando os trabalhadores em executores de funções específicas. Assim,
enquanto um trabalhador realiza cuidados básicos de alimentação e higiene do
paciente, p. ex., o outro se especializa em administrar medicamentos. Uma divisão
de trabalho semelhante a uma linha de montagem na qual quem circula é o
trabalhador. Dessa forma, os trabalhadores se transformam em força de trabalho a
ser objetivada e comprada de acordo com a demanda da função e, por decorrência,
o trabalho de cuidar adquire o caráter de mercadoria.
Este aspecto do trabalho de enfermagem introduz elementos contraditórios
na relação de cuidado do paciente. Por um lado, a prestação de cuidados exige
expressão de afeto na medida em que, na relação constante com o paciente, lida-se
com sua dor, sua dependência e sua intimidade. Por outro lado, esse cuidado é
mediado por pelo menos três fatores complicantes e interrelacionados: o salário,
fonte de sobrevivência do trabalhador; o fantasma da perda do paciente, seja por
alta-cura, seja por alta-óbito; e a obrigação de se postar frente ao paciente sempre
como profissional, não lhe sendo permitido expressar preferências ou recusas,
atração ou repulsa, por este ou aquele paciente.
O cuidado tornado profissão deixa de ser mediado apenas pela afetividade
expressa espontaneamente, seja na forma de carinho seja na forma de agressão,
como pode ocorrer no ambiente doméstico. O trabalhador de enfermagem é
treinado para uma missão importante, auxiliar na recuperação do paciente e/ou
assistí-lo em sua dor. Ao remunerar o cuidado prestado, espera-se qualidade e para
ter qualidade é preciso não só dominar as técnicas necessárias mas estar mediado
também por afetividade, nem que a expressão deste afeto seja uma representação
necessária, pois um dos códigos internalizados pela enfermagem, de acordo com
Colliere (1986), é devoção e generosidade em relação aos pacientes.
Na medida em que o cuidado adquire caráter de mercadoria, que efeitos
então pode ter sobre a saúde do trabalhador? Que lógica pode estar embutida no
150
trabalho de cuidar e o que ela pode estruturar a nível do psiquismo de quem nela
está inserido?
Em busca de dados que pudessem esclarecer aqueles pontos. realizamos
uma pesquisa com trabalhadores de enfermagem de um hospital escola estatal
desde 1990. Procuramos primeiro realizar levantamento sobre a história do
hospital, sua política administrativa e salarial e sua relevância para a região em
que está localizado. O hospital tem, numa mesma localização geográfica, 11
Serviços de Enfermagem entre os quais elegemos os cinco que lidam diretamente
com enfermarias que internam pacientes com quadros clínicos de ordem orgânica.
Os demais concentram serviços ambulatoriais, centro cirúrgico, preparação de
materiais, Psiquiatria e CTI. Nos 5 Serviços escolhidos, entrevistamos suas
diretoras e enfermeiras-chefes. Feito isso realizamos observação direta do trabalho
e por último aplicamos nos demais trabalhadores de enfermagem o Inventário
Multifásico Minesota de Personalidade (MMPI), acompanhado de um questionário
com itens demográficos, sobre condições de vida, sindicalização, salário.
Todos os procedimentos foram realizados dentro da jornada de trabalho dos
sujeitos em períodos determinados pela direção da Divisão de Enfermagem. O
inventário foi aplicado individualmente ou em grupos que variaram entre 2 e 14,
dependendo da disponibilidade de liberação por parte das Diretoras de Serviço.
Ao todo, o hospital tem 857 trabalhadores de enfermagem distribuidos
pelos 11 Serviços. Nos Serviços de Enfermagem que estamos pesquisando, a
população é de 363 sujeitos. Destes, aplicamos o inventário em 288 trabalhadores
dentre os quais 237 (82.6%) foram validados. Entre os validados, 32 são homens e
que foram excluidos da população deste estudo devido ao objetivo específico de
verificar a relação entre mulher, cuidado e saúde mental, ficando então a nossa
população constituida por 205 sujeitos.
151
A idade da população em questão pode ser observada nos seguintes
intervalos: > 30 anos - 40 sujeitos; 31-39 anos - 101 sujeitos; e > 40 anos - 58
sujeitos.
A população está distribuida pelos seguintes Serviços:
Clínica Cirúrgica - 40 trabalhadores
Clínica Pediátrica - 59 "
Clínica Médica - 47 "
Otorrino/ortopedia/oftalmologia - 38 "
Ginecologia e Obstetrícia - 21 "
Em relação à função, são 34 enfermeiras, 107 auxiliares e 64 atendentes.
Cada função exerce um leque específico de atividades. Enfermeiras são
responsáveis principalmente pelo planejamento e supervisão do trabalho exercido
pelas outras funções, auxiliares se revesam entre a administração de medicamentos
e a prestação de cuidados de manutenção do bem estar do paciente (banho,
alimentação, avaliação de sinais vitais, troca de leito, manutenção da enfermaria
etc.), por último, os atendentes são responsáveis basicamente pelos cuidados.
O nível de escolaridade formal dos sujeitos varia entre primeiro grau e
universitário:
1o grau - 61 sujeitos
2o grau - 105 "
Univers.- 39 "
Cuidado e Histeria
Em se tratando dos trabalhadores de enfermagem, o perfil histérico aparece
em 19,4% da população de pesquisa. Considerando o fato de a histeria ser tida
152
como mais frequente em mulheres, o caráter eminentemente feminino da profissão
de enfermagem, o baixo percentual de homens na população investigada (13.5%) e
o fato de o sexo não ter marcado diferença na elevação da escala histeria, levamos
em conta aqui apenas as mulheres envolvidas na pesquisa.
Considerando o conjunto dessas trabalhadoras, o perfil histérico aparece em
19,5% delas. A constituição dos grupos por Serviço de Enfermagem destaca a
Gineco/Obstetrícia com 33.3% de casos com perfil histérico, seguida das Clínicas
Médica e Pediátrica com 21,3% e 20,3%, respectivamente. Por último
encontramos a Otorrino/Oftamo/Ortopedia cuja ocorrência é de 18.4% e a Cl.
Cirúrgica com o menor percentua casos, 10%. (Vide fig. 1 na pg. 76-a).
Embora não haja significância estatística, é preciso considerar que a
Gineco/Obstetrícia se sobressai na população com o maior ìndice de casos e a
Cl.Cirúrgica chama atenção exatamente pela relação inversa. A Gineco/Obstetrícia
admite apenas mulheres gestantes de risco ou pacientes com problemas
ginecológicos de toda ordem. Além disto o quadro de pessoal de enfermagem
desta Clínica é composto apenas por mulheres.
Entre as enfermeiras encontramos 17.6% de casos com perfil histérico,
entre as auxiliares 19.6% e entre as atendentes 20.3%. É interessante apontar que
parece haver tendência a aumento de casos na relação direta a mais cuidado, na
medida em que é o auxiliar e o atendente que se mantém mais tempo próximo do
paciente, porque normalmente são eles os responsáveis pelas enfermarias e pelos
cuidados diretos como medicação, alimentação, banho etc.
Os grupos constituidos pelos intervalos de idade demonstram que a maior
ocorrência de histeria prevalece entre as trabalhadoras com 40 anos ou mais
(29.3%) seguidos das trabalhadoras no intervalo de idade 31-39 anos (16.8%) e
das mais jovens (13.6%). (Vide fig. 2 na pg. 76-a).
153
Não encontramos na literatura revisada referênciassobre influência da
idade no surgimento da histeria. Os casos relatados por Freud, em sua maioria, são
relativos a mulheres mais jovens. No nosso caso, os trabalhadores mais velhos,
como é de se esperar, são também os que têm mais tempo de trabalho no hospital.
O grupo que trabalha há 18 anos ou mais apresenta o maior índice de casos com
este perfil (35.7%)
A composição de grupos por educação parece apontar maior incidência de
casos de histeria entre as trabalhadoras de nível universitário (28.r%), seguidos
dos de nível secundário (19%) e primeiro grau (14.8%). Isto corrobora o que
Graham (1987) afirma acerca das pontuações da escala de histeria; esta se elevaria
de acordo com a elevação da escolaridade do sujeito. (Vide fig. 3 na pg. 76-b).
Por último, consideramos o turno de trabalho. Os grupos constituidos por
turno parecem demonstrar que a maior concentração de casos fica por conta do
grupo que trabalha em turno diurno fixo (33.3%), seguido do turno alternado
(24.4%) e do turno noturno fixo (15.4%) (vide fig. 4 na pg. 76-b).
É o turno diurno fixo mais uma vez que revela o maior índice de casos. Isto
contraria a literatura na medida em que esta vem apontando os turnos alternado e
noturno como mais prejudiciais à saúde. Para a nossa hipótese, este resultado faz
sentido na medida em que é no turno diurno que se concentram a maior parte dos
cuidados (banho, troca de lençóis dos leitos, alimentação, recepção de pacientes,
altas, maior frequência de verificação de sinais vitais e de administração de
medicamentos etc.) e também maior pressão sobre a realização das tarefas.
A neurose histérica há muito vem sendo apontada como ocorrendo
principalmente em mulheres. A grande maioria dos casos de histeria relatados por
Freud, p.ex., referem-se a elas. Dois casos nos chamaram a atenção por destacar
de forma mais clara o papel do cuidado e da nutrição na vida da mulher: "Frãulein
Anna O." (vol. II, p. 63) e "Um caso de cura pelo hipnotismo" (vol. I, p. 171). No
154
primeiro, a paciente dava assistência de enfermagem aos pobres e enfermos,
passando a ser enfermeira do próprio pai quando este cai doente. As crises de
histeria começam a aparecer a partir deste momento. No segundo, uma jovem mãe
se vê impossibilitada de amamentar o filho recém-nascido e só consegue fazê-lo
após, por hipnose, Freud tê-la induzido a responsabilizar também sua família pela
sua incompetência enquanto nutriz.
Freud não atribuiu ao cuidado o desenvolvimento da histeria, entretanto,
deixou entrever que a mulher tinha papéis bem delimitados na sociedade da época,
sendo alguns deles o de ser boa nutriz e boa esposa, ser afetuosa, comedida etc.
Percebeu também que a histeria sobrevinha frente a conflitos em torno da
afetividade e da dificuldade de contrariar as expectativas postas pela família e pela
sociedade em torno do que deveria ser uma mulher.
Os estudos de Freud nos permitiram formular a hipótese de que a histeria
pode estar relacionada com o trabalho de cuidado que, uma vez mediado por
questões econômicas como assalariamento, divisão do trabalho, produtividade,
gera sempre o conflito investir/desinvestir afeto na relação com o paciente.
O termo histeria remonta a Hipócrates, para quem a histeria era causada
pelo deslocamento do útero dentro do corpo à procura de umidade. Na
antiguidade, sob esta denominação, englobavam-se tanto sintomas neuróticos
como distúrbios associados às psicoses e à patologia lesional. Ey et alii (1981)
afirmam que Thomas Willis, seguindo os passos de Hipócrates, em 1682 reunia
sob a denominação de histeria a metade das doenças crônicas. É apenas no século
XIX que o quadro histérico começa a ser melhor definido. Na França, Charcot
demonstra que as influências psicológicas poderiam afetar os mecanismos
corporais, assumindo a forma de manifestações dramáticas que poderiam ser
produzidas e acalmadas por sugestão hipnótica; Babinski, na neurologia, delimitou
155
o domínio da histeria: fenômenos "pitiáticos", caracterizados por simulacros,
dramatizações, que podem ser reproduzidos pela sugestão ou persuasão.
De acordo com Ey et alli (1981), desde Babinski, sabemos "que a histeria
não é uma doença localizável, suscetível de uma definição anatomoclínica e de
uma descrição pela acumulação de sinais" (p. 473). Após Babinski, a histeria
correu o risco de ser tomada apenas como uma simulação e foi transformada em
"algo que não existe" para a neurologia.
Em 1895, Freud e Breuer inauguram novo modo de olhar o fenômeno,
associando-o à repressão sexual e criando também uma nova terapêutica. Kolb
(1986) sintetiza a concepção de Freud da seguinte maneira:
"Freud explicou os sintomas histéricos como causados por conflito
entre o superego e algum desejo que, em virtude de sua natureza, é
reprimido pelo superego, sendo conscientemente objetivado. Esta
repressão não é, no entanto, inteiramente bem sucedida e o desejo,
por isso, se expressa em uma forma disfarçada, pela `conversão' ou
na transformação de sintomas. Então a natureza e a localização dos
sintomas produzidos são mais do que eles simbolizam ou fornecem
as expressões disfarçadas do desejo reprimido e ao mesmo tempo
proporcionam algum grau do seu cumprimento ou do alívio do
estado emocional conflitivo" (p. 395).
Recentemente, Moffatt (1987) analisa a histeria do ponto de vista da teoria
dos vínculos. Para ele, a histeria seria uma das expressões de fuga do vazio
presente no indivíduo a partir do nascimento. Esta forma de defesa é uma
construção cultural, cuja primeira mediação são os próprios pais. O indivíduo
aprende que "deve re-presentar, simular emoções, valer-se de mecanismos
histéricos" diante de situações aversivas.
156
O que a literatura tem apontado até hoje é que a histeria é um fenômeno por
demais complexo, caracterizando-se como uma neurose específica e ao mesmo
tempo apresentando alguns sintomas inespecíficos que invadem outros quadros
psicopatológicos. Sob o jargão da histeria, estão expressões fóbicas, de angústia,
de conversão, de defesa etc. Os estudos atuais não tem avançado em direção de
uma nova nosologia e/ou etiologia e, quando discutem aspectos teóricos do
fenômeno, se remetem a Freud (Bliss, 1988; Mac Millan, 1990). Na tentativa de
delimitar o quadro caótico em que se encontra a concepção de histeria, o CID-10
adota, no lugar de histeria, neurose de conversão e neurose dissociativa.
A histeria tem como base a angústia gerada por alguma forma de conflito.
Pode ser tomada como dramatização de sintomas, se expressando a nível de
reações musculares e expressões corporais difusas. Revela uma espécie de falência
ou fragilidade corporal frente conflitos geradores de angústia.
De acordo com a classificação de Harris (in Graham, 1987), no MMPI, os
itens que compõem a escala histeria expressam: 1) negação da ansiedade social -
modos de agir do indivíduo frente a grupos sociais; 2) necessidade de afeto -
comportamentos no sentido de chamar a atenção para problemas e sentimentos
pessoais; 3) lassitude-mal estar - sentimento de mal estar físico e psicológico não
localizado como sensação de cansaço, melancolia, fraqueza; 4) queixas somáticas
- expressão de sintomas organicamente definidos como cefaléias, tonturas, náuses,
cansaço visual; e 5) inibição da agressão - expressão de negação a pensamentos e
atitudes que denotam algum tipo de agressividade como falar palavrões, ler sobre
crimes, ver sangue sem se sentir incomodado. Graham (1987) afirma que a escala
tem por objetivo "identificar indivíduos que utilizam reações histéricas frente a
situações de tensão" (p. 43).
Os trabalhadoresde enfermagem realizam tarefas muito similares ao
cuidado prestado pela mulher no ambiente doméstico. Circulam pelo hospital
157
alimentando os pacientes, banhando-os, administrando medicação, ouvindo suas
queixas, confortando-os etc. Não importa se o paciente é adulto, ou criança,
homem ou mulher, se sua doença é visível ou não, se é contagiosa ou não, enfim, o
cuidado tem que ser prestado considerando as especificidades dos quadros
clínicos, mas não a aparência ou o caráter do paciente enquanto pessoa, o que
significa que não deve haver discriminação de espécie alguma. O paciente, seja ele
quem for, deve ser cuidado como alguém que busca alívio e/ou cura para seu
sofrimento. Para isso, o cuidado de enfermagem é revestido de técnicas específicas
que buscam facilitar a atividade e tornar a estadia do paciente num hospital menos
extensa e dolorosa, enfim, cabe à enfermagem a dedicação e o zelo pelo bem estar
físico e espiritual desse paciente durante sua permanência.
Quando afirmamos similaridade entre cuidado de enfermagem e cuidado
doméstico, nos referimos ao ato de cuidar e à dedicação que se espera do
trabalhador em relação aos seus pacientes. A comparação termina aí. As
diferenças é que nos interessam de perto porque nelas estão as contradições da
profissão.
O cuidado de enfermagem é mediado por salário, isto significa que não se
paga apenas pela capacidade técnica do trabalhador, mas também pela dedicação e
afeto que este precisa dispor. Aqui está a principal contradição. Não se pode
transformar sentimentos em parcela de mercadoria impunemente. Este aspecto tem
seus desdobramentos:
1- Cada indivíduo enfrenta, no seu cotidiano, problemas de toda ordem, fora
e dentro do trabalho, mas se espera do profissional de enfermagem que ele
jamais expresse junto ao paciente seus dissabores diários, ao contrário,
espera-se serenidade. O modelo de mãe cuidadosa e abnegada é introjetado
pela enfermagem.
158
2- Os pacientes se instalam num hospital por tempo determinado, ora mais,
ora menos tempo, mas o fato é que sempre recebem algum tipo de alta.
Alguns pacientes retornam, outros nunca. A contradição agora pode ser entre
querer estabelecer vínculos afetivos e a impossibilidade de fazê-lo tendo em
vista o fantasma constante da perda. Uma enfermeira que lida com pacientes
oncológicos admite que seu trabalho "é uma experiência que proporciona
emoções alternadas de satisfação e angústia...é uma atividade desgastante
para o profissional de saúde, pois o envolvimento emocional é intenso".
Sobre o paciente que permanece maior tempo internado, uma Diretora de
Serviço afirma: "você acaba se ligando mais a ele, porque voce vê as
condições dele, fica sabendo se tem família se não tem etc, o pessoal se
envolve mais".
O envolvimento é praticamente inevitável, até porque a profissão traz em si
o caráter missionário e religioso que deve se expressar na dedicação ao paciente
que sofre e que pode morrer. A melhor forma de resolver o conflito talvez fosse
tratar o paciente como um corpo portador de distúrbios patológicos ou um
complexo de músculos e órgãos. Mas o que se espera do profissional de
enfermagem é que seja também o porto seguro afetivo do paciente na ausência da
família e dos amigos. A dedicação e o afeto são como que técnicas que podem ser
remuneradas. Ao estabelecer com o paciente uma relação de afeto, o trabalhador
corre o risco de sofrer. Instaura-se o conflito entre apegar-se ou não ao paciente.
Este, em sua fragilidade e dependência, solicita atenção e afeto. O trabalhador se
vê diante da necessidade de afetivar a relação e diante do receio de se haver com o
sofrimento que possa ter diante da perda.
3- O trabalhador de enfermagem lida ao mesmo tempo com a
personalização/não personalização do cuidado, na medida em que cada
paciente deve ser encarado como único, entretanto a atenção personalizada
da enfermagem deve ser compartilhada com outros tantos pacientes também
159
tidos como "únicos". A padronização rígida das técnicas uniformiza o
cuidado e de certa forma os pacientes. Menzies afirma que há uma "ética"
implícita de que os pacientes devam ser tratados de igual modo e que não há
doentes ou doenças que se individualizem e personifiquem (apud. Pitta,
1990).
O corpo do paciente não é apenas veículo que expressa morbidade, pode ser
também expressão da sexualidade que media simbolizações eróticas no paciente e
no trabalhador. O conflito que se instaura aqui é que as virtuais simbolizações
eróticas não podem assumir o plano da sexualidade explícita do trabalhador em
relação ao paciente, mas, ao mesmo tempo, a afetividade implícita à prática da
enfermagem não pode encarar o corpo com repulsa ou atração. P.ex, o simples ato
de banhar um paciente requer do profissional que genitálias sejam "deserotizadas",
ao mesmo tempo que virtuais traços repressivos do trabalhador não podem ser
traduzidos em "repulsa" pelo corpo do paciente. É Menzies que novamente afirma
que "O contato íntimo com os pacientes mobiliza fortes desejos e conteúdos
libidinosos e eróticos que podem ser difíceis de controlar" (apud. Pitta, 1990:62-
63)
A Gineco\Obstetrícia foi a clínica onde encontramos o maior índice de
casos com perfil histérico. Nela são internadas apenas mulheres com gestação de
risco ou com problemas ginecológicos. Boa parte dos cuidados envolve contato
com a área genital da paciente, ora para assepsia de rotina, ora para alguma
administração de medicamento. Durante as observações de trabalho pudemos
verificar o cuidado em relação à intimidade da paciente, biombos cercavam o leito
e, às vezes, a trabalhadora pedia licença para fechar a porta da enfermaria com o
argumento de que "a paciente vai ficar muito exposta". Aqui as trabalhadoras não
só lidam mais diretamente com a intimidade da paciente como também com
quadros patológicos que ameaçam a maternidade (a gravidez de risco, o câncer de
útero ou mama etc.).
160
As contradições apontadas até aqui parecem expressar uma lógica que o
trabalho de cuidar impõe. Esta lógica traz em si mecanismos de conflito e tensão
em torno da afetividade expressos em polos como posso/não posso, gosto/não
gosto, devo/não devo e que podem ser sintetizados na contradição
necessidade/impossibilidade de expressão de afeto. Esta tensão, quando não
resolvida, parece levar os trabalhadores de enfermagem a desenvolverem, a nível
psicológico, uma lógica histérica, embutida no trabalho que realizam e que
aparece no MMPI como histeria.
A maior evidência parece estar no fato da histeria apresentar perfil difuso
na população, apresentando concentração na Ginecologia/Obstetrícia, onde a
sexualidade está em questão - tanto pela exposição da paciente como pelo próprio
quadro clínico - e no turno diurno fixo, exatamente o que concentra a grande
maioria dos cuidados diários.
A enfermagem reproduz, de alguma forma, papéis ditos femininos relativos
ao ambiente doméstico. Mas, ao mesmo tempo em que traz as similaridades e os
valores daquela esfera, traz também as similaridades e os valores da esfera
produtiva, mercadológica. Dois mundos convivendo num mesmo espaço de tempo
e que não podem ser separados por imposição da própria profissão. Diante da
tensão frente a contradições inevitáveis, muitas trabalhadoras podem estar vivendo
uma espécie de fragilização ou de falência do corpo que pode assumir a forma de
histeria, pelo conflito entre a necessidade e a impossibilidade de vínculos afetivos,
sejam eles positivos ou negativos.
161
Capítulo 9.
TRABALHO E IDENTIDADE EM
TELEFONISTAS (6)
IZABEL CRISTINA FERREIRA BORSOI
ERASMOMIESSA RUIZ
JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO
O tema Trabalho e Identidade é sobremodo complexo e remete a uma
relação de interdeterminação, complementaridade e contradição. Teorias que
tomem os elementos desta equação de modo dicotômico ou que atribuam à
associação tanto linearidade como ausência de história parecem perder o objeto
em sua mutável realidade concreta.
Pensemos a questão da Identidade. Imaginemos indivíduos que
respondam por determinados nomes, exerçam atividades produtivas específicas
que caracterizam profissão, tenham vida social que transpasse família, trabalho,
escola, igreja, clubes etc. Por todos terem múltiplas inserções e tantos
transpassamentos comuns, eles experimentam situação semelhante. A este nível
podemos afirmar que esses indivíduos estabelecem entre si uma relação de
igualdade.
6Este tema foi desenvolvido no Projeto Saúde Mental e Trabalho, sob a orientação do Dr.
Wanderley Codo e a participação de Alberto H.Hitomi, Antonio Alvaro Soares Zuin,
Rosa Virgínia Pantoni e Lúcia Helena Sorato.
162
No entanto há uma contradição que parece clara. Se mencionamos
indivíduo, como falar de igualdade, se indivíduo quer dizer único, singular, por
decorrência diferente?
Ciampa (1985) discorre sobre o nome, o simples rótulo que permite
identificar quem é quem, cada indivíduo. Um nome é composto de um pré-nome e
de um sobre-nome. O primeiro diferencia o indivíduo dos demais membros de sua
família, o segundo o iguala à sua família e o diferencia de membros de outras
inúmeras famílias. O nome já exprime igualdade e diferença. Mas, o que é um
nome? A resposta parece singela: apenas uma identidade jurídica pressuposta sem
a participação do interessado, pois, até que se prove o contrário, até hoje nenhuma
criança em nossa cultura escolheu o próprio nome. Os pais especulam sobre o sexo
do bebê para escolher o nome pelo qual será chamado e distinguido.
Um nome, portanto, diferencia um indivíduo de todos os outros, tornando-o
igual apenas a si próprio. Aqui a "carteira de identidade" se reveste de grande
importância, porque o pressuposto é o de não haver uma pessoa igual a outra.
Portanto, cada um de nós é único. Referir determinada pessoa, entretanto, não
se reduz a invocar seu nome. Ao
chamarmos José, podemos estar invocando um pai, um filho, um amigo, um
trabalhador metalúrgico do terceiro torno, um alto
funcionário do governo ou um membro de associação comunitária. Falar de José é
invocar e reconhecer seus atributos físicos, intelectuais, sociais e profissionais.
Uma passagem em Marx (s/d) é paradigmática. Diz o autor:
"O homem se vê e se reconhece primeiro em seu semelhante, a não ser que
já venha ao mundo com um espelho na mão ou como um filósofo fichtiano
para quem basta o 'eu sou eu'. Através da relação com o homem Paulo, na
condição de semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo
163
como homem. Passa então a considerar Paulo - com pele, cabelos, em sua
materialidade paulina - a forma em que se manifesta o gênero humano."
Se o homem não se faz sozinho, mas pela relação com o outro, significa
dizer que ele é produto e produtor do processo de apropriação do outro.
Entendemos apropriação como atividade especificamente humana através da qual
o homem se descobre ao descobrir o mundo objetivo e subjetivo, fazendo-o seu.
Dessa forma podemos recorrer a Leontiev (1964): "Assim o desenvolvimento
espiritual, psíquico, dos indivíduos é o produto de um processo de apropriação,
que falta ao animal, tal como, aliás, o processo inverso de objetivação das suas
faculdades nos produtos objetivos de sua atividade."
Ao produzir, o homem torna-se sujeito que se objetiva para ser apropriado
pelo outro. Também apropria-se da exterioridade do outro e a torna sua pela
subjetivação. Ciampa (1987) parece compartilhar desta opinião ao afirmar: "Na
práxis, que é a unidade da subjetividade e da objetividade, o homem se produz a si
mesmo. Concretiza sua identidade. O devir humano é o homem, ao se
concretizar."
Apropriar e objetivar passam a ser um movimento básico da construção do
homem pelo próprio homem. A objetivação implica em exteriorização do que o
indivíduo apropriou durante o seu desenvolvimento e do que se apropria
cotidianamente, além do que lhe foi legado pela História.
O homem realiza e/ou exprime sua humanidade através do trabalho,
processo mediador pelo qual transforma a natureza e é transformado por ela. O
produto engendrado pelo trabalho se constitui então no que poderíamos chamar de
materialização da energia psíquica, ou seja, a expressão material de um projeto
anteriormente apenas idealizado. Aqui é importante frisar que a expressão do
objeto pensado é mediada pelo mundo material onde o homem vive, que o
conteúdo do seu psiquismo é determinado por esse mesmo mundo material.
164
A cadeira na qual sentamos, para trabalhar ou descansar por exemplo,
submete-se mais ou menos rigorosamente às formas do corpo e algumas vezes é
projetada com requintes ergonômicos. Significa dizer que ela não só é portadora
da história individual de quem a produziu, mas também da história de toda
humanidade, na medida em que, para alcançar esse estágio, foi preciso o trabalho
de muitos que viveram antes do produtor e de outros que compartilham sua
contemporaneidade. Como reporta Ciampa (l987), "A história é a progressiva e
contínua hominização do homem a partir do movimento em que este,
diferenciando-se do animal, produz suas condições de existência, produzindo-se a
si mesmo consequentemente."
Ao produzir-se o homem constrói a própria identidade. O trabalho surge
então como categoria fundamental desse processo. Ao fazermos a clássica
pergunta, "o que você é?", a resposta na maioria das vezes refere-se ao que você
faz, no que trabalha. E mais, dificilmente alguém responderia "eu estou
trabalhando com torno mecânico", mas sim, "sou torneiro mecânico". O verbo
transforma-se em substantivo e nomeia, por decorrência identifica. Entretanto, o
nome por si não seria bastante para discriminar identidades. Aqui o nome de uma
profissão exprimiria o virtual lugar que o indivíduo ocuparia na produção. A
mediação da inserção produtiva acaba por determinar a construção de uma
identidade mais abrangente. Aqui é preciso nos remeter a categoria profissional
como unidade estruturadora de identidade.
A discussão sobre categoria profissional é ampla e conflitante a nível da
Sociologia do Trabalho como pode ser observado no estudo de Friedmann &
Naville (1973) onde comparecem algumas definições do termo. A priori poder-
se-ia definir categoria profissional como grupo característico de trabalhadores que
executem processos de trabalho relativamente similares, por sua vez levando à
produção de bens específicos de determinado ramo produtivo.
165
A nível da Psicologia Social, categoria profissional expressa relação de
igualdade entre trabalhadores, ou seja, fornece elementos que permitem afirmar
que há semelhança tanto no processo de trabalho como na forma de consumo de
determinado grupo de trabalhadores. Sendo assim, a categoria profissional pode
estruturar e exprimir identidade individual e social.
É claro que o trabalho e a inserção da força de trabalho expressando-se na
categoria profissional não seriam os únicos elementos estruturadores da
identidade, ou seja, não se pode afirmar que tudo aquilo que um indivíduo é está
indelevelmente determinado pelo seu agir na produção, posto que há
determinações que estão aparentemente fora da organização produtiva.
Remetemo-nos necessariamenteàs instâncias superestruturais que também podem
atuar como unidades estruturadoras de identidade. A família pode ser a primeira
unidade com a qual a criança tem contato; a escola pode ser considerada outro
momento atuante na estruturação da identidade de um indivíduo; a mídia, com sua
avalanche de comerciais dizendo o que temos que consumir ou não, molda de
alguma forma o modo de consumo tanto de crianças como de adultos. Entretanto,
queremos dizer que estas instâncias acham-se de alguma forma determinadas pelo
aparato produtivo e que possuem níveis de autonomia frente ao mesmo.
A permanente revolução das forças produtivas determina o ir e vir da força
de trabalho a processos de trabalho novos e muitas vezes hostis. P.ex.: a criação do
off-set destrói o ser produtivo do linotipista. O saber fazer do linotipista deixa de
ter função ativa na produção e passa a ser um saber morto. Agora sua vida e seu
ser se redimensionam. O desenvolvimento do off-set determina novos caminhos
ao linotipista, novas possibilidades de "escolha". Por um lado, ele poderá
apreender um novo "saber fazer" ainda inserido na produção gráfica ou então
engrossar o contingente da economia invisível que, aqui e ali, como pontas de
iceberg, se visibiliza nos "camelódromos" das grandes cidades.
166
As revoluções produtivas e as crescentes modificações nos processos de
trabalho, trazidas por elas, levam a um cotidiano redimensionamento da identidade
dos homens. O crescente remanejamento da força de trabalho determina a
construção de novas identidades que se justapõem e contradizem as anteriores. Os
novos lugares ocupados no mundo da produção determinam salários, prestígio
social, apreensão e destruição de saberes. A complexa interrelação desses fatores
determina como o indivíduo trabalha, consome e pensa. Se ganha mais dinheiro
pode comer algumas vezes em bons restaurantes e comprar roupas mais caras em
boutiques. A crescente expropriação do saber poderá expô-lo a níveis salariais
menores o que determinará um redimensionamento do agir social. Os restaurantes
serão substituidos pela lanchonete, as roupas caras pela grife popular num grande
magazine.
Dessa maneira, o redimensionamento da organização produtiva, o que se
ganha em dinheiro e o que se pode consumir determinam o que o indivíduo é e
como se relacionará com os outros homens. A mercadoria, como forma
hegemônica das relações capitalistas, gradativamente determina até o que vestir,
sentir, pensar e amar.
A arte é ilustração, expressão e recriação do cotidiano. Poderíamos aqui
aprender um pouco com ela ao refletirmos sobre o poema "Eu Etiqueta" de Carlos
Drumond de Andrade, mais precisamente neste trecho:
"Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
167
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua."
Os modismos são expressões da contradição destruição/construção da
identidade. Slogans como "decisão inteligente","emoção pra valer", "a gente tem
alguma coisa em comum", embrenham-se pelos labirintos sinápticos de nossos
cérebros, fazendo parte de nós, independente da nossa vontade. Nesse sentido
uma passagem de Horkheimer & Adorno (apud. Gandini, 1986) parece oferecer
uma síntese do poema de Drummond ao referir-se aos meios de comunicação de
massa:
"Vemos nas telas de televisão coisas que se querem parecer com as mais
habituais e familiares e, entrementes, o contrabando de senhas, como a de
que todo estrangeiro é suspeito ou de que o êxito e a carreira são as
finalidades supremas da vida, já está dado por aceito e posto em prática
desembaraçadamente e para sempre."
Visando passar da teoria à prática, tentaremos demonstrar como as
telefonistas de uma empresa estatal de telecomunicações parecem construir
aspectos importantes da identidade por meio da inserção na organização do
trabalho. Aqui é preciso ir a campo e surpreender a complexidade do trabalho
realizado por estas trabalhadoras.
O "Projeto Saúde Mental e Trabalho" (PSM&T) realizou pesquisa em uma
empresa estatal de telecomunicações com o objetivo de investigar o lugar
ocupado pelo trabalho na rede hierarquizada de determinações do processo
168
saúde/doença mental. A pesquisa destacou a Seção de Comutação Manual
(Tráfego) porque nela se concentram as telefonistas responsáveis pelos serviços
que praticamente definem a finalidade da empresa.
A metodologia adotada pelo PSM&T está amplamente discutida em Codo
& Sampaio & Hitomi (1991, np). Por complexo e extenso, qualquer tentativa de
síntese correria o risco de reduzir a amplitude do método. Por outro lado, o
objetivo deste texto é discutir a relação trabalho e identidade naquelas telefonistas
concretas, restrigindo-nos às etapas pertinentes à Psicologia Social.
Os dados obtidos para análise tiveram como fontes:
1- 05 entrevistas com superiores hierárquicos da empresa (Chefes de Distrito, de
Divisão, de Tráfego, de Recursos Humanos, e Monitora) visando levantar:
- a história da empresa;
- sua inserção no mercado;
- procedimentos administrativos em relação à seção
investigada (Tráfego);
- política de recursos humanos.
2- Observação direta do processo de trabalho tendo como referência um Protocolo
Geral de Observação visando levantar os seguintes aspectos:
- características do local de trabalho (espaço físico, distribuição de
mobiliário e equipamentos);
- condições ambientais (temperatura, ruído, iluminação etc);
- operações executadas e tecnologia adotada;
- força de trabalho (distribuição de trabalhadores por horário e seção,
aparência pessoal).
169
3- 16 entrevistas com telefonistas do serviço de Interurbano (IU) e de Informações
(IF), realizadas a partir de roteiro semi-estruturado visando levantar dados sobre
os seguintes aspectos do trabalho das telefonistas:
- processo e condições do trabalho;
- jornada de trabalho;
- representação social do trabalho;
- condições de consumo e reprodução.
Foram entrevistadas 16 telefonistas de uma população de 107
trabalhadoras, seguindo os critérios de seleção do PSM&T. Para efeito da análise
das questões abordadas neste texto, utilizamos das entrevistas e observações
apenas os dados referentes a processo de trabalho, jornada de trabalho e
representação do trabalho.
Como trabalha a telefonista?
Entre os serviços prestados pela empresa, basicamente dois deles fornecem
os elementos necessários a esta discussão, os que compõem a Seção de Comutação
Manual (Tráfego): Serviço de Interurbano (IU) e Serviço de Informações (IF).
O serviço de IU processa chamadas interurbanas para locais que não
possuem o sistema DDD, auxilia clientes a efetuarem chamadas em que encontram
dificuldades, fornece valor de tarifas telefônicas interurbanas e encaminha
solicitações de chamadas à EMBRATEL caso se trate de chamadas telefônicas
internacionais. A telefonista se encarrega de receber a chamada do cliente,
registrar os dados necessários e efetuar a chamada solicitada. Utiliza para isso o
fone, um terminal de computador e o painel luminoso que indica presença de
assinante na linha, aguardando atendimento ou já em conversação.
O serviço de IF se caracteriza pela informação dos números de telefones
não constantes na lista de possedo assinante. Como funciona com sistema
170
informatizado, acabam sendo informados todos os números solicitados pelos
clientes, exceto os que, a pedido de alguns assinantes, estão proibidos de sê-lo. O
processo de informação é efetuado através de terminais de computadores e de
fones. A telefonista, ao receber uma chamada, digita os dados fornecidos pelo
cliente e, após encontrar a informação solicitada, a transmite ao solicitante. Finda
essa sequência, inicia-se outra imediatamente, porque um novo cliente já ocupa a
sua linha.
Em ambos os serviços há estimativa de tempo para atendimento ao cliente.
No IU, o objetivo estabelecido pela empresa é que o cliente seja atendido em 10
segundos a contar do momento em que sua chamada entre no sistema. Durante
este período o sinal da chamada permanece aceso. Uma vez esgotado o tempo
estipulado o sinal deixa de ser contínuo e procede como um pisca-pisca. No IF, o
tempo é avaliado por atendimento realizado, no qual a telefonista pode dispender
um tempo médio máximo de 37 segundos por cliente, considerado suficiente pelo
chefe da divisão. Isso significa que se uma telefonista utilizou 12 segundos para
transmitir uma informação solicitada, ela terá um saldo de 25 segundos a ser
utilizado com um cliente que tomar dela mais que os 37 segundos previstos.
Para minimizar o tempo dispendido na comunicação entre telefonista e
cliente e/ou telefonista e telefonista de outros postos ou empresas telefônicas são
adotados códigos específicos e frases padronizadas. A empresa em questão tem
adotado maior flexibilidade em relação a estas frases, ficando a critério da
telefonista as expressões a serem usadas no atendimento, desde que não firam
normas estabelecidas como atendimento cordial e tempo necessário. É exigido
dela que ao atender identifique o serviço prestado e o seu nome, p. ex.,
"Informações, Maria", ou "Interurbano, Carolina".
Os serviços de IU e IF são prestados durante 24 horas, adotando quatro
turnos de seis horas, com início às 5:45h, 11:45h, 17:45h e 23:30h
171
respectivamente. Neste caso, as telefonistas são distribuidas por turnos e o número
delas varia de acordo com a demanda de produção.
As escalas são elaboradas anualmente, prevendo revezamentos mensais,
exceção feita ao turno de 23:30h. Neste caso, adota-se o seguinte critério: por ser
um horário de baixa demanda, são escaladas apenas 4 telefonistas para o turno
referido. Esse grupo é dividido em dois pares que irão revezar-se semanalmente,
ora no turno de 23:30h, ora no de 5:45h, de forma que cada par trabalhe 15 dias
num turno e 15 no outro.
Em relação ao trabalho executado, as telefonistas referem queixas
principalmente ao serviço de IF onde a repetividade é marcante, o ritmo é intenso
e o controle é excessivo. A telefonista atende um cliente após o outro sem
intervalo. Na medida em que um cliente desliga, um outro que se encontre
aguardando atendimento entra na linha tão logo seja liberada. Dessa forma, o
ritmo de trabalho é determinado pelo equipamento com o qual trabalha, sendo
impossível sair da posição, a menos que peça para bloquear as chamadas à sua
mesa. Uma telefonista dá o seguinte depoimento: "No IF é super cansativo, você
trabalha sem parar e o sinal cai direto no ouvido. Você acaba de atender um, o
outro já está na linha aguardando" (Entrev. 11). Outra telefonista afirma: "Na IF, é
um sinal atrás do outro, é mais cansativo que no IU apesar de não ter movimento
de braço como no IU. Tem hora que você não consegue engolir a saliva" (Entrev.
13).
O controle é feito por supervisoras (monitoras) que têm acesso a todas as
mesas através de um terminal. Assim conseguem entrar na linha de qualquer
telefonista do serviço de IF, ouvir seu atendimento, sem que esta se dê conta do
fato. As referências a esta forma de controle são várias. Para efeito de ilustração,
citaremos dois depoimentos:
172
1- "Lá (IF) é mais agitado, porque o sinal é contínuo. Você não pode isolar muito
(impedir que a ligação caia na mesa), só por necessidade. Tem sempre uma
monitora que está te ouvindo" (Entrev. 13);
2- "As monitoras ficam vigiando a gente. Na IF, elas entram na linha escondidinho
e ficam ouvindo a gente o tempo todo. A gente não sabe que elas estão ouvindo
você. Simplesmente entram na linha, você está conversando com o usuário, elas
ficam quietinhas pra pegar você. Se você pisa na bola, ela levanta de lá e te chama
a atenção" (Entrev. 4).
No caso do serviço de IU, o controle de produção e o ritmo de trabalho em
horários de pico são os motivos de reclamação mais frequentes.
O controle de produção é realizado diariamente. Cada telefonista toma
conhecimento, de hora em hora, do número de chamadas acessadas, efetuadas,
canceladas, atendidas com impossibilidade de serem completadas, e retidas. Se a
produção revela-se baixa, há cobrança por parte das supervisoras para que se
aumente o ritmo de atendimento, o que nem sempre é possível nos horários de
grande demanda.
Os picos são determinados pela redução de tarifa ou por períodos definidos
do horário comercial. Esses momentos são considerados os mais tensos da jornada
de trabalho. Quando interrogadas sobre o momento de maior tensão, a maioria faz
referências como as seguintes:
1- "É quando tem muito sinal chamando e você não pode fazer nada. Você está
atendendo ali, você tem um limite de atendimento. O máximo que você pode fazer
é mandar o cliente esperar, mas mesmo assim você vê aquele monte de sinal na
mesa e não pode fazer nada, você fica impotente" (Entrev. 9);
2- "O ritmo é tumultuado, porque se você fosse atender todo mundo, você ficaria
doida, mas não dá pra gente fazer porque cansa demais (...) Tem dia que a gente dá
vontade de pegar o aparelho e jogar longe e sumir dali, porque nem todo dia você
173
está com aquela disposição prá trabalhar, qualquer barulhinho está te irritando. (...)
Quando as monitoras estão por perto, pressionam pra aumentar o ritmo" (Entrev.
11);
3- "Começa a piscar, congestiona o Brasil inteiro, você joga, dá o máximo e tudo
ocupado. O cliente quer falar e você não consegue ligar. Te cansa e você não faz
nada, não agrada a ninguém" (Entrev. 13);
4- "É apertadíssimo e é irritante porque a gente trabalha e não faz nada, não
produz praticamente nada, porque não há circuito vago, é horário de
congestionamento. Então às vezes você atende o mesmo cliente umas dez vezes
porque não completa. Acho que ele fica enjoado de 'ver' a gente. A gente fica
rezando prá ele falar, pra não atender ele mais" (Entrev. 2)
O produto de trabalho é referido, na maioria das vezes, como sendo a
chamada telefônica, as ligações completadas, a comunicação entre o cliente e o
interlocutor solicitado, as informações fornecidas. O produto é percebido como
distinto em IF e em IU. No primeiro caso, esse produto é indireto na medida em
que o cliente utilizará a informação fornecida para efetuar uma chamada; no
segundo, o produto é direto, pois o cliente é colocado em contato com quem
pretende falar.
Para algumas telefonistas, o produto é referido como sendo o lucro que a
empresa obtém com o seu trabalho. Uma entrevistada afirma: "Prá empresa é
grana, prá mim é desgaste" (Entrev. 8). Outra questiona: "O que eu produzo? O
que posso dizer que eu produzo no IU? Não estou achando lógica. Acho que não
produzo nada. Agora prá empresa é lucro. É tão repetitivo... produto?... você não
vê... não tem" (Entrev. 13).
Quando indagadas sobre o significado e a importância do produto de
trabalho para si, referem-se ao salário que recebem, à obrigação cumprida, à
satisfação do cliente. Algumas admitem não haver significadoalgum. A satisfação
174
no trabalho está relacionada à satisfação do cliente. Para efeito de demonstração,
citaremos alguns depoimentos:
1- "É importante porque estou dando alguma coisa para as pessoas, estou
informando, estou servindo" (Entrev. 11);
2- "Não tenho condições de responder isso, porque não consigo ver isso" (Entrev.
12);
3- "Se você faz alguma coisa que agradou, eu gosto, fico satisfeita se satisfaz
alguém. Agora quando não consigo atender é chato, porque o cliente fica
aborrecido" (Entrev. 13);
4- "Acho que é importante porque cumpro a minha obrigação" (Entrev. 15);
5- "Prá mim não tem nenhuma (importância). Tem prá empresa (...) Prá mim? Eu
continuo a mesma coisa, meu salário é a mesma coisa. É a empresa que tem lucro"
(Entrev. 4)
Em relação à jornada de trabalho, as reclamações praticamente são referidas
a qualquer turno, sendo mais crítico o de 23:30. O revezamento impede a
organização do cotidiano, afetando a vida familiar, afetiva e social. O turno de
23:30, além desses problemas, também se reflete no ciclo de sono porque obriga a
dormir em horários diurnos, na maioria das vezes não tão reparadores da energia
física e mental consumida durante a jornada. Algumas referências são
elucidativas:
1- "De noite não foi feito prá trabalhar não, foi feito pra você se divertir, passear.
Por isso aqui ninguém arruma namorado. Sábado, ao invés de você ir namorar, ir
numa festa, você tem que vir trabalhar. Só tem solteirona aqui" (Entrev. 4);
2- "O turno alternado é muito cansativo, seu organismo não acostuma. Você não
tem horário prá almoço, não tem horário prá jantar, não tem prá tomar banho, você
não tem horário prá nada. Você não consegue se organizar" (Entrev. 5);
175
3- Sobre o turno das 23:30h, "eu acho um dos piores. Eu fico doente se eu ficar
fazendo (trabalhando) à noite. Não consigo dormir de dia, fico tensa, prá mim não
dá (...) Quando faço, eu chego em casa coloco um pano bem escuro na janela prá
ver se eu consigo dormir. Se tiver um barulhinho sequer eu não durmo, fico
nervosa, fico com os nervos super abalados, perco a noção de tempo. Levanto lá
pelas quatorze horas, almoço, vejo televisão, tento dormir outra vez, às vezes saio,
mas é horrível" (Entrev. 7);
4- "Você não sabe se vai chegar viva ou morta, se vai ser estuprada ou cair num
bueiro, dependendo do horário. Isso é horrível" (Entrev. 16).
Sobre a saúde, referem sintomatologia variada, sendo mencionados com
maior frequência a insônia, cefaléia e nervosismo. Sugerem menos
frequentemente problemas oftalmológicos, auditivos e de garganta, depressão,
ansiedade, dores nas pernas, nos braços e nas costas. Os depoimentos abaixo são
ilustrativos:
1- "Eu estou com problemas de nervos, mas estou fazendo tratamento. Toda vez
que eu venho trabalhar aqui eu fico me sentindo mal. Tenho dificuldade prá
dormir. Estou tomando um remédio prá relaxar porque eu estou muito tensa,
descontrolada emocionalmente" (Entrev. 4);
2- "Tenho dor de cabeça, dor nas pernas, um monte de coisas, insônia, dor nas
costas. Está ligado ao trabalho em si. Você tem que trabalhar de acordo com quem
está trabalhando. Tudo isso são coisas que você tem que está ligado numa hora só.
Acho que isso desgasta muito a mente. Acho que o trabalho mental cansa mais que
o trabalho físico" (Entrev. 8);
3- "Eu tive problemas de insônia depois que eu comecei a fazer de 19:00h até o
00:45, porque antes era esse horário. Eu fiz muito esse horário. Foi aí que voi
vindo a insônia" (Entrev. 1).
O Trabalho da telefonista e a conformação da Identidade
176
Do exposto até aqui, podemos destacar alguns aspectos relativos ao
trabalho da telefonista:
1) controle da produtividade marcado pela sofisticação tecnológica (estatística
obtida por programas de computador, supervisão realizada por monitora através
de escuta através de terminal);
2) perda de controle sobre o processo de trabalho, porque o ritmo é definido pela
organização, pelo instrumento de trabalho (maquinário) e pela demanda;
3) dificuldade de reconhecimento do produto de trabalho;
4) comunicação instrumentalizada visando eficiência e rapidez na prestação do
serviço (fraseologias, códigos etc);
5) jornada de trabalho realizada em esquema de revezamento de turnos
interferindo no cotidiano fora do trabalho.
Tentaremos analisar esses itens procurando estabelecer relação entre eles,
posto que não aparecem de forma isolada, mas em processo de interdeterminação
complexa.
A empresa define um objetivo a ser alcançado: produzir determinado
número de chamadas que atenda seu mercado e se converta em lucro. Analisando
por esse ângulo, é fácil afirmar que uma telefonista é prestadora de serviços e que
o produto do seu trabalho é a chamada telefônica completada. É essa chamada
que é vendida pela empresa entre outras mercadorias expressas na forma de
serviços prestados.
A prestação de serviços não produz valor mas agrega capital circulante ao
patrimônio financeiro da empresa. Isto é, a função de prestar serviços transfere
massa de mais-valia do mercado, capta massa de capital que precisa ser investida
ou intermediada para criar mais valor. No caso de uma empresa de
telecomunicações essa função mediadora apareceria no próprio serviço que
realiza. A fatia mais expressiva do faturamento de uma empresa desse porte não
177
vem das chamadas domésticas, não é fruto do conflito amoroso de um casal
resolvido pelo telefone, nem das trocas de receitas de bolo entre donas de casa. Na
realidade a maior parte do faturamento é fruto da comunicação humana
transformada em mercadoria para realizar transações econômicas. Esse
faturamento começa com a comercialização do direito de uso de linhas telefônicas,
concomitante à venda de ações. O restante é captado a partir da ocupação de linha
propriamente dita. Dessa forma uma infinidade de circuitos eletrônicos são
mobilizados para que multinacionais transmitam comandos que determinarão a
tática para a distribuição de mercadorias em qualquer setor do país ou fora dele.
Executivos realizam extensas reuniões telefônicas para determinarem a estratégia
de marketing a ser seguida ou quais as novas necessidades de mercado. As linhas
de Fax são "oferecidas" por verdadeiras fortunas. Os modens interligam extensos
sistemas informatizados. Esse contexto econômico é extremamente complexo,
pode expressar-se no mais singelo diálogo, passando pela transmissão de áudio de
uma partida de futebol até às disputas das redes de televisão pelas informações,
via satélite, sobre os acontecimentos de uma guerra.
Nesse complexo circuito as telefonistas ocupam um pequeno espaço, mas
nem por isso menos importante. Na empresa investigada elas correspondem
apenas a 6,8% do quadro de trabalhadores, mas ocupam uma seção onde a
presença humana, apesar de todo o aparato tecnológico, é necessária ainda à
finalidade da empresa, ou seja, a captação direta (IU) e indireta (IF) de recursos
financeiros. Vejamos que lugar é esse.
No serviço de IU a chamada telefônica aparece claramente como
mercadoria se considerarmos que, a partir do momento em que o cliente inicia sua
conversação, a ocupação da linha começa a ser computada e o preço da utilização
vai direto para sua conta. A telefonista aí agiu como intermediária entre o cliente e
seu interlocutor ao completar a chamada. A chamada telefônica interurbana
possui, por sua vez, valor de uso para o cliente, na medida em que satisfaz uma
178
necessidade sua, falar com alguém à distância, mas possui valor de uso portador
de valor para a empresa de telecomunicações porque se converte em lucro. Aqui a
telefonistaassume o lugar de agente mediador na transferência de capital do
mercado para a empresa.
No serviço de IF o quadro é bem diverso. Esse serviço funciona como uma
extensão da lista telefônica. Esta é fornecida pela empresa como brinde. Da
mesma forma, o serviço prestado dentro da empresa visando fornecer informações
sobre números de telefones deve parecer ao cliente como tal, e, sendo assim, não
é registrado na sua conta qualquer pedido de informação desse gênero. Ora, se é
brinde, o serviço não se reverteria em lucro para a empresa. Se é desprovido de
valor lucrativo, possuindo apenas valor de uso para o cliente, não constituiria
mercadoria. O que levaria uma empresa então a manter um serviço com essas
características?
A função da informação, seu valor de uso para a empresa, é criar a
demanda no mercado, criar uma necessidade que se exprima no uso da
informação obtida pelos clientes para a realização das chamadas telefônicas, ou
seja, o valor de uso se exprime na captação indireta de dinheiro no mercado que é
formado pela clientela. De acordo com uma entrevistada, "Eles dizem que na IF
cada informação que você dá é uma chamada que entra. Você informa o número, a
pessoa liga e a empresa ganha" (Entrev. 14).
Há portanto uma contradição no discurso empresarial entre brinde e
mercadoria. O discurso ideológico da empresa enfatiza que o brinde visa apenas
facilitar a utilização do sistema telefônico pelo cliente, torná-lo mais próximo. Na
realidade o brinde tem função mediadora de lucro, mediadora da transferência de
capital do mercado para a empresa. Os livros de contabilidade empresarial
geralmente despem-se da hipocrisia ideológica dos discursos de marqueting,
fazendo com que a gratuidade do brinde não apareça aí como "dinheiro perdido"
mas sim como capital investido. O pressuposto é claro: se alguém solicita ao
179
serviço de IF um número de telefone é porque vai efetuar a chamada, portanto vai
pagar pela ocupação do sistema telefônico. E a telefonista onde fica? Mais uma
vez intermediária da captação financeira, mas agora intermediária indireta e quase
invisível. Seu trabalho não aparece como produtor de mercadoria, mas como
"cartão de visita" da empresa, dá margem a afirmações como: "Na IF, eu acho
aquilo ali uma perda de tempo, às vezes uma perda de dinheiro. A gente trabalha
de graça" (Entrev. 2).
A telefonista acaba sendo mediadora de um complexo circuito financeiro,
porém só aparece como voz solitária e solidária do outro lado da linha. Frases,
palavras, gestos e afetos limitados pelo tempo, como termômetros da
produtividade. Vejamos como se desdobra esta questão.
Define-se que cada telefonista deve atender um cliente num tempo de 37
segundos (IF) ou de 10 segundos (IU), o que significa ser este um ritmo a ser
obedecido. Mecanismos são criados para que ele seja cumprido: vigilância
constante e equipamento de tecnologia de ponta. A produção fica subordinada ao
que a empresa define como objetivo final. Junto com a produção também a
telefonista se submete.
O aparato tecnológico rouba-lhe a definição de um tempo próprio de ação.
Não há como interromper o processo, resta-lhe apenas seguí-lo. Isso fica claro
quando se observa o serviço de IF, tão logo um cliente sai da linha, um outro
entra. A telefonista age como se fosse a extensão da própria máquina, uma quase-
máquina acionada a cada sinal auditivo indicando presença de cliente. O trabalho
humano aparece robotizado, cerceado de gesto criativo, de ação significativa mais
visível. Os movimentos, as expressões físicas e verbais aparecem como definidos
e automáticos.
A produtividade do trabalho se expressa numa estatística que de longe
indica quanto de fato produziu, como ocorre no IF em que produção é dada pelo
tempo médio e não pelo número de clientes atendidos. E quando indica -
180
como no IU onde os números são mais definidos e é possível saber quantos
clientes atendeu e quantos deixou de fazê-lo - o resultado serve como advertência.
Uma telefonista quando perguntada sobre formas de controle de produtividade
reporta o seguinte:
"Eles sabem qual a sua posição, quantas ligações você fêz, sua capacidade, o
computador mostra tudo. Têm as monitoras também que te fiscalizam,
principalmente na IF, lá é mais rigoroso. No IU tem a estatística que passa de hora
em hora pra você saber quantos assinantes você atendeu. Na IF fiscalizam sem
você saber, elas ficam no sigilo" (Entrev. 13).
A produção é marcada pela contradição
quantidade/qualidade. Produzir muito e, ao mesmo tempo, produzir bem; tempo
determinando o ritmo da produção, impondo a necessidade de controle; a
comunicação humana transformada em comunicação instrumental obedecendo
ritmo automático necessário à eficiência, eficácia e rapidez da produção.
Sendo assim, a telefonista comunica-se com o cliente utilizando uma
linguagem padronizada, com códigos, expressões específicas pouco criativas e
pessoais. Ouve, digita, informa ou ouve, digita, processa a chamada. Fala o
mínimo necessário, apenas para se fazer compreendida pelo cliente e ganhar
tempo. Neste aspecto, a telefonista seria uma de-codificadora e re-codificadora das
mensagens emitidas pelo cliente e pelo computador, ou seja, uma mediadora entre
um e outro.
A linguagem é expressão do agir humano e, dessa forma, é sempre
portadora de significados e também de afetividade que pode se expressar em
palavras, em gestos ou na própria entonação da voz. No trabalho da telefonista, a
linguagem toma o caráter de instrumento de trabalho literalmente. A empresa
preconiza a expressão da afetividade como tática de aproximar o cliente aos
serviços prestados. O afeto é controlado e até moldado em acordo com
181
exigências de gentileza com o cliente sem entretanto encorajá-lo a permanecer na
linha além do estritamente necessário. A função da linguagem nesse contexto é
econômica, sendo também um dos mediadores da captação financeira.
A telefonista tenta dar sentido próprio a esse instrumento de trabalho, a
linguagem, na medida em que busca algumas variações na forma de comunicar-
se com o cliente, adotando, quando pode, expressões próprias. Se no entanto não
ocorrem variações significativas, há, ao menos, a possibilidade de entonação da
voz, ora mais agressiva, ora mais amável, de acordo com o que estiver sentindo no
momento, e de acordo com a atitude do cliente frente ao seu trabalho.
Em termos proporcionais, a quantidade de telefonistas na empresa parece
ser pouco significativa se comparada ao total da força de trabalho. A jornada é de
apenas 6 horas, no entando determina vinculação quase simbiótica entre trabalho
e casa. É a organização do trabalho que define a que horas dorme, almoça, janta,
se diverte, faz amigos e ama.
Diante do exposto é possivel afirmar que o trabalho exercido pelas
telefonistas pode estruturar sua identidade?
Partimos do pressuposto de que a identidade se estruturaria, também, de
acordo com o lugar que o indivíduo ocupa na produção, logo, de acordo com o
trabalho que ele realiza. Se é assim, aspectos relacionados ao trabalho tais como o
processo de trabalho em si, relação com a chefia e companheiros de trabalho,
controle e jornada de trabalho, fariam com que a telefonista se comportasse e se
identificasse como tal mesmo fora da organização.
Culturalmente a telefonista cristaliza determinados traços ou
comportamentos consagrados pelo senso comum como tipicamente femininos.
Muitos desses traços, como afetividade, submissão, delicadeza, compõem o
conjunto de características exigido pela empresa para a função de telefonista (éfato que raramente existem homens telefonistas). Por outro lado, na relação com
182
os clientes, a telefonista deve racionalizar o tempo de atendimento adotando
expressões calculadas e pouco afetivas. Ora, aqui se faz presente a contradição
racionalidade-afetividade. A telefonista deve estruturar, ao menos no trabalho,
identidade contraditória, ora trazendo o que aprendeu desde a infância, ora
repondo o que aprendeu no trabalho. Sente-se satisfeita se o cliente se sentiu
satisfeito com o trabalho que prestou. Atende com delicadeza o cliente que lhe
cumprimentou com um sonoro "bom dia" ou "boa noite". Demonstra agressividade
na voz se do outro lado da linha a voz é autoritária. Sente-se gratificada quando
pode auxiliar um cliente que lhe relata um infortúnio antes de lhe pedir uma
informação ou uma chamada a cobrar, porém não pode ser confidente porque não
é essa a sua função e o tempo corre. Age como a empresa pede e a supervisora
cobra. Trabalha no ritmo do equipamento e da demanda e, quando termina a
jornada, continua agindo como se precisasse correr sob a urgência do tempo como
demonstra um dos depoimentos:
"É horrível, se eu vou na sala do meu chefe eu converso em dois segundos, tudo é
rapidíssimo, urgente, correndo, voando. Aí é a paranóia que voce tem. Chega no
final voce tá cansada, doida. Voce adquire isso no serviço 102 (IF). Esperar um
ônibus? Esperar um ônibus você morre, você precisa ver. Eu acho que se gravar
ou filmar o que passa na sua cabeça quando você está esperando qualquer coisa,
você morre. Deve ser uma coisa horrível, você gravar aquilo que você faz. Você
pega uma paranóia total, é tudo rápido, rápido, falo rápido, tem coisa que ninguém
entende o que eu falo. Horrível...isso tudo depois do sistema (informatizado), eu
não tenho nem dúvida. Tudo tem que ser voando, todo mundo que trabalha lá é
assim. Quando você está num lugar que depende dos outros aí você se aborrece"
(Entrev. 16).
Por último, estrutura sua vida fora do trabalho em função da organização do
trabalho. Leva, depois da jornada, a expectativa da volta ao trabalho, não tanto
183
pelo significado realizador que ele possa ter, mas porque a escala de turnos a
obriga a cronometrar e delimitar as atividades extra-empresa.
Le Guillant et alii (1984) e Dejours (1987) já apontaram que o trabalho de
telefonista provoca verdadeira invasão na vida cotidiana. Ela atende ao telefone
em casa e se identifica como se estivesse no trabalho; ao ruído da descarga do
banheiro responde "fim da linha"; e assim por diante. Porém estes autores
enfocaram a possibilidade de produção específica de uma patologia, levando ao
plano do psíquico as questões levantadas pela Medicina do Trabalho em torno das
doenças profissionais.
Ora, se o trabalho pode acumpliciar-se com a produção de doenças
psíquicas é porque pode acumpliciar-se com a permanente produção da identidade.
Daí deduzir-se que a categoria trabalho ocuparia um importante lugar na rede
hierarquizada de determinações da identidade.
Conclusão
O trabalho de uma telefonista, em toda a sua complexidade, parece
determinar hábitos, gestos, expressões, enfim, modos de vida. A identidade
estruturada na organização produtiva poderia extrapolá-la, isto é, a telefonista
continua sendo telefonista em casa, no lazer, com o namorado, com os filhos, no
consumo etc. Ser telefonista é se enquadrar às exigências da organização
produtiva. A identidade de telefonista aparece como se fosse dada, exigida, e não
construida pelo sujeito que se identifica como tal. Por fim, a telefonista vive o
estar sendo o que faz durante quase vinte e quatro horas por dia.
Entretanto o processo de estruturação da identidade não é unilateral, resta à
telefonista o espaço para trazer à organização produtiva o que ela é e está sendo
184
mesmo fora do trabalho. Isso pode ser notado quando dentro do próprio processo
de trabalho busca formas alternativas de atendimento, mudança de turnos na escala
ou mesmo arriscar a possibilidade de escamotear o controle das monitoras
torcendo para que as mesmas não estejam na escuta do seu terminal.
Finalizando, temos consciência de que os estudos realizados sobre o
trabalho humano, mesmo aqueles presos a uma abordagem que presta tributo ao
marxismo em Psicologia, não têm conseguido abarcar com êxito a complexidade
do objeto em questão. O estudo aqui realizado esbarrou nessa mesma
complexidade. Acreditamos entretanto que o mesmo representa um avanço frente
à Psicologia Organizacional clássica na qual o trabalho humano nunca é discutido
de modo totalizador, como historicamente determinado, mas sim, de modo
fragmentado e reducionista, em conceitos como carga mental, insatisfação e
satisfação no trabalho, tarefas repetitivas etc. Não se trata aqui de rejeitar todo
um arcabouço teórico da Psicologia Organizacional, mas transcendê-lo e explicitá-
lo como fruto do trabalho alienado, das necessidades criadas pelo trabalho
taylorizado e do fordismo.
Se entendermos identidade também como praxis, só saberemos o que um
indivíduo é no momento em que captarmos como e porque ele age. Dessa forma
escaparemos do cárcere subjetivista e esquizofrênico que a Psicologia viu-se
prisioneira até hoje.
185
Capítulo 10.
RELAÇÕES CRECHE-FAMíLIA
WANDERLEY CODO
ANA MARIA A MELLO
As creches, como lugar pedagógico, não asilar, não paternalista; que se
massificam, cobrindo cada vez mais as necessidades das famílias trabalhadoras; e
se extendendo às classes médias e altas urbanas; é fenômeno social relativamente
novo no Brasil.
Novos, portanto, são os problemas levantados pela instituição, neste
contexto. Novos e complexos: implicam em questões nutricionais, pedagógicas,
psicológicas, sociológicas, e por onde mais se arrastar os domínios das ciências
humanas. A demanda técnica que circunda as creches tem, como sempre, vocação
globalizante. Implicam, a um só tempo, em uma inserção na estrutura econômica e
ideológica da sociedade e também na intervenção social. Aqui também a técnica
não é ingênua e não pode se preservar virgem, parte e retorna para o universo
social que a reclama e/ou possibilita.
Estas notas visam contribuir para a discussão do locus que a creche ocupa
em nossa estrutura social, partindo de um pressuposto singelo: se quisermos
compreender os problemas que se apresentam nas creches, devemos nos perguntar
que demanda concreta atendem; que tensões são geradas na relação com a
instituição família; qual a inserção social obtida.
Existem várias maneiras de realizar esta compreensão. Estudar a creche em
sua dinâmica interna? Compará-la com instituições análogas? Verificar
heterogeneidade ou homogeneidade da oferta de creches em acordo com
186
heterogeneidade ou homogeneidade das demandas? Nosso objeto é mais singelo.
Trata-se de revelar uma questão anterior: que mudanças no conjunto da sociedade
impuseram as creches ao tecido social urbano?
Há vinte ou trinta anos, no Brasil e no resto do mundo, vigia um modelo
familiar bastante estruturado. O homem se encarregava do trabalho remunerado
fora de casa, que deveria ser suficiente para o atendimento das necessidades de
toda a família. A lei que regulamentou o salário mínimo fazia referência explícita
ao suprimento da cesta básica, provisão suficiente para o sustento de uma família
de quatro pessoas. Tácito, portanto, que a mulher não estaria incluída no mercado
de trabalho formal. Para a mulher se destinava o papel de "rainha do lar",
responsável pela reprodução da força de trabalho: o cuidado dos filhos, da casa, do
marido; mãe, esposa, dona de casa.Criticável e criticado este modelo apresentava
como resolvida a questão da reprodução da força de trabalho, particularmente a da
criação dos filhos. Roupa suja e limpa se resolve em casa. Todo o carinho,
educação, cuidados, alimentação, eram problemas domésticos, restritos às quatro
paredes do lar. Até aqui, com todos os riscos e venturas, entregue a mulher.
A história da família é longa e complexa. Surge ao fim da organização
clânica e já aparece no Velho Testamento com uma estrutura próxima à
atualmente existente: Abraão x Sara x Isaac; José x Maria x Jesus; Raimundo x
Severina x Francisquinho. Disso nos interessa destacar o peso de milhares de anos
de formação social, econômica e ideológica sobre os ombros das mudanças atuais.
Tempo mais que suficiente para uma cristalização de papéis, sentimentos,
consciência do homem e da mulher, marcando a família como instituição bastante
solidificada, principalmente no que tange ao cuidado dos filhos. Estamos dizendo
que o papel feminino de reprodutora das relações de produção, de mãe e esposa,
teve o espaço histórico suficiente para se impor na rede social contemporânea.
Portando toda aquela história da humanidade, a divisão sexual do trabalho
inventou uma mulher com disposição para a renúncia de si mesma em prol de sua
187
prole, bastante susceptível aos julgamentos morais, arrimo afetivo da sociedade,
afeita a tarefas repetitivas e privadas, sensível, recatada, enfim, culpável. Paralela
e complementarmente foi se desenvolvendo o estereótipo masculino. Nada disto
representa mera "ideologia" ou preconceito social sobre homem e mulher, mas, e
principalmente, exigência da divisão de trabalho que a sociedade engendrou.
Como um trabalhador da construção civil deve ter músculos fortes, ou não
sobrevive, também a mulher deveria levar em conta primeiramente o afeto pelos
filhos ou não sobreviveria.
Há mais ou menos três mil anos a divisão de trabalho entre os sexos foi
esta. Mas, somente no capitalismo, esta divisão veio propiciar verdadeira batalha
campal, autêntica guerra civil. Ao inaugurar o reinado masculino (o produtor de
mercadorias); ao inventar o indivíduo livre; ao destacar a demanda feminina pela
cidadania, como se vê no movimento sufragista dos Estados Unidos, no
movimento feminista dos anos 60, empurrados e empurrando uma nova divisão de
trabalho produzida pela entrada maciça da mulher no mercado de trabalho e
produzindo a ideologia de igualdade entre os sexos.
Em apenas vinte ou trinta anos houve uma transformação radical do antigo
modelo familiar. Do ponto de vista objetivo, o capitalismo entrou em um
movimento recessivo, queda brutal da taxa de lucros que implicou em redução real
de salários, obrigando a mulher a frequentar o mercado de trabalho, de início com
salários menores e depois dividindo com o marido a receita doméstica. Nos EUA,
por exemplo, o número de trabalhadoras multiplicou-se por 10, entre 1940 e 1980.
De 1960 aos nossos dias um forte movimento de defesa da igualdade das mulheres
perante os homens conseguiu impor mudanças drásticas na estrutura social e
familiar: direito ao controle da concepção na França em 1967; aborto livre nos
EUA em 1973; reconhecimento de filhos ilegítimos, divórcio e possibilidade de
controle financeiro do casal, no Brasil, já na década de 80.
188
A velha estrutura familiar entrou em um verdadeiro caleidoscópio onde é
possível encontrar qualquer coisa, menos um modelo definido. Aumenta o número
de separações, crescem as cohabitações, uniões sem casamento, ou famílias
agregadas, pais separados que voltam a se reunirem. A virgindade deixa de ser um
valor inquestionável. A sexualidade antes do casamento passa a ser prática
aceitável.
A sociedade como um todo e a mulher em particular vive perante a seguinte
contradição: toda uma educação, uma moral e uma definição de papéis que impõe
a tarefa de reprodução dos filhos ao lar, e nele à mulher; que exige o carinho, o
cuidado e a culpa como pré-requisito de formação da personalidade; e, por outro
lado, a mulher participando concretamente, por imposição econômica e/ou
ideológica, do mercado de trabalho, onde as exigências são rigorosamente outras.
Aqui ao invés do carinho, a objetividade; ao invés do cuidado, a disputa; ao invés
da culpa, a sedução. A produção impõe a objetificação, restringe o tempo dedicado
à prole, torna orfão o afeto dentro da família, pois a mulher,que historicamente foi
seu portador, hoje tem diante de si o universo da mercadoria, o mensurável
critério do dinheiro.Do ponto de vista das relações interpessoais instala-se um
autêntico caos que tem como epicentro a família e como desdobramento o
respeitável número de descasamentos registrados atualmente.
Qual é o desaguadouro institucional da crise entre a produção e a
reprodução da força de trabalho?
Para tornar mais claro o conceito de "desaguadouro institucional da crise"
vale a pena usar uma metáfora: Quando um casal inicia um processo de desquite, o
conjunto de suas vidas sofre uma redefinição, todos os afetos revividos,
redirecionados, todo o cotidiano em ebulição, e só uma pontinha desta revolução
pode ser dita, explicitada. Com isto a definição da pensão alimentícia, que do
ponto de vista técnico-jurídico demanda uma rápida reunião e uma assinatura, se
transforma amiúde em uma ciranda dolorosa e interminável, onde o advogado
189
intermedeia autêntico tiroteio afetivo. Do ponto de vista psicológico, a
escrivaninha do advogado cumpre o papel de permitir que se exponha o até agora
implícito, a luta pelo que até hoje só se sofreu.
Pois bem, pela primeira vez na história da humanidade, a produção da
existência entrou em conflito frontal com a reprodução da existência. Grave
confronto dos homens consigo mesmos, outra vez não dito, outra vez doloroso,
revisitador de nossos afetos e fantasias, medos e limites.
A creche é o desaguadouro institucional deste conflito entre a produção de
mercadorias, o trabalho remunerado e alienado, e a criação de nossos filhos, locus
inconteste dos nossos afetos e culpas, como pretendemos demonstrar.
Declinemos com mais vagar esta questão. Existem duas famílias em luta de
vida e morte convivendo hoje dentro de cada família.
A primeira, nossa já conhecida, dispõe de uma mulher cuja principal
característica é a dedicação a prole; a identidade se apresenta como de mãe,
fundamentalmente; o carinho e o cuidado como modo de reconhecimento de si
mesma, representação perante o mundo, sustentáculo quase único da existência
dos filhos. Torna-se impossível a esta mulher separar amor e culpa, portadora
quase exclusiva do afeto nas relações familiares, esta mulher faz do afeto o seu
modo de expressão. Obrigatoriamente o quadro se complementa com o de um
homem que está obrigado a desenvolver características quase sempre opostas.
A outra família que se desenvolve por dentro e em luta com a primeira, se
espanta com a mulher inserida no mercado de trabalho, responsável por um setor
da produção, cohabitando com suas frustações e seu fascínio, dona dos projetos de
auto-desenvolvimento, obrigada a submeter-se à objetividade da mercadoria,
abandonando os ditames do coração em troca da quantificação medida pelo salário
mensal. Paradoxalmente forçada a redistribuir seu afeto pelo mundo, horizontes
ampliados para o exercício da sua identidade, disputando espaço com os homens,
190
aliando-se com eles enquanto trabalhadores iguais nas tarefas e na posição de
oprimidos.
Se o nosso objeto de estudo não fosse a família e sim cada mulher concreta,
veríamos os dois ideais de mulher em conflito dentro de sua subjetividade, guerra
civil interiorizada.Culpa nascendo da luta contra a culpa. Corpo e atenção na
fábrica, mas o coração na creche. Aliviada pelo que a creche representa de
possibilidades para o novo papel e morrendo de medo de perder o afeto para a
instituição creche, experenciada de modo paranóide, como mãe sem rosto,
madrasta dos velhos contos de terror.
Não há o que lastimar nesta situação. Todos nós a reinvidicamos. Todos
nós reprovamos um modelo familiar que transforma homens e mulheres em
estranhos, obrigados à prisão perpétua de uma convivência até que a morte os
possa separar. Um modelo que, sem queixumes politicamente expressos, fazia da
opressão feminina e da reificação masculina, o sustentáculo das relações
interpessoais.
Os parceiros no leito foram parceiros na enxada, hoje parceiros na fábrica.
E da fábrica o afeto foi exilado, energia coagulada na família, dentro dela na
mulher, de dentro dela sempre ameaçado de novos exílios. A entrada da mulher no
mercado de trabalho torna orfão o afeto, ameaça a reprodução material e espiritual
das novas gerações.
O modo de resolver este antagonismo entre a vida e a continuidade da vida,
a produção e a reprodução, foi a intervenção do estado, a reprodução pública da
força de trabalho: a creche.
O que fazer com o carinho e o cuidado, a atenção e a culpa, depositados na
família por estes dois últimos dois mil anos? Onipresente e sem vias de expressão,
resta deslocá-los para onde os nossos filhos estejam: objetos, talvez vítimas de
toda esta herança.
191
Agora é o momento de perguntar: Com quais problemas a creche convive?
Que relações eles estabelecem com o quadro esboçado acima?
Considerando os péssimos equipamentos e a péssima assistência que as
creches públicas oferecem aos trabalhadores brasileiros, não há qualquer análise
possível das queixas e reclamações. São evidentes, óbvias, e justas. Mas supondo
estes problemas superados, instalar-se-ia o paraíso? Reclamações desapareceriam?
Vemos que não. E aqui há o que questionar.
A Nutrição conta hoje com um acúmulo de conhecimentos que lhe permite
saber qual a dosagem de cada um dos componentes para uma alimentação infantil
balanceada e apetitosa. Mas atuando numa creche, o nutricionista se descobre
pasmo no centro de uma guerra campal entre o danonimho de cenoura e a cenoura
sem markenting ou corantes. A técnica da qual o nutricionista é portador sabe das
vantagens da cenoura in vivo. Mas o departamento de markenting da indústria de
alimentos sabe da culpa que as mães carregam. Sabe também que a relação
nutridor-nutrido é excelente sustentáculo para inúmeras formas de reparação.
Entre culpa e reparação, quanta ansiedade, quanta dramatização de cuidado por
parte do nutridor, quantas demandas numa só demanda por parte do nutrido.
No ato de alimentar, outra eclosão da mesma guerra entre novos e velhos
papéis da mulher. Por isto, o que em princípio seria uma decisão técnica banal -
suco natural de cenoura x markenting da cenoura em potinho - se transforma em
guerra aberta entre mães e creche, na qual entre mortos e feridos sucumbem todos:
os técnicos da creche deslocando o tempo reservado às crianças para uma paciente
explicação às mães do caráter nutricional da dieta; as mães perdendo sono e
simpatia pela creche, que insiste em proibí-la de depositar suas culpas na sacola. A
questão fica pendente, pois não é de nutrição que os dois lados da contenda estão
falando, embora apenas nutrição apareça no discurso.
A Psicopedagogia já sabe que não se pode tratar criança como parafuso em
linha de montagem: alguém perfilando fraldas, alguém perfilando crianças sobre
192
as fraldas, alguém cravando fita crepe nas fraldas, um último alguém inserindo
mamadeiras na boca de uma estridente e voraz esteira de carnes rosadas e
lágrimas.
Mas fujamos da caricatura. Nada sequer semelhante é possível aceitar. E
esta é uma recusa consensual, questão sobre a qual não paira polêmica. Na relação
com a criança é necessário atenção individualizada, muito carinho, tempo de
contato, olho no olho. No entanto, na hora do fim do expediente, mães ávidas
querem resgatar rapidinho suas crias, recuperá-las e fazer de conta que o tempo da
creche não existiu para os filhos. Rápido, rápido, o tempo urge. Aí se impõe a
linha de montagem.
Um psicopedagogo na creche está posto diante de um problema
aparentemente insolúvel: ao treinar os funcionários para que estabeleçam relações
afetivas com as crianças recupera neles a figura de mãe da nossa história,
estabelece não raro uma disputa afetiva entre mãe e pajem. A primeira com o seu
posto balizado pela história; a segunda, pela vida. Aqui, se houver carinho e
cuidado adequados pelo funcionário, este aparece ante a família como um
usurpador do seu afeto maior. No geral a mãe começa a implicar com detalhes do
tipo - a criança não deveria dormir das 13 às 14 horas, mas sim das 13:10 às 14:10.
Se não houver carinho, real ou suspeitado, os funcionários se transformam perante
os pais em autênticos lobos-maus, permanentemente à espreita para devorar
criança indefesa.
Simultâneo com a desconfiança, há também um profundo sentimento de
gratidão da parte de quem sabe que sem estes cuidados ao filho, a vida dos pais
seria impossível. Para a mulher operária há o alimento que seu salário não
permitiria. Para a mulher de classe média, há a liberdade e a autonomia que ela
aprendeu a amar tanto quanto aos filhos.
Tomemos um exemplo cotidiano em creche: Determinada mãe vivia
reclamando da funcionária responsável pelos cuidados de seu filho, e a recíproca
193
era tão ou mais insistente. Após as férias, mãe e funcionária retornam cada uma
delas com uma lembracinha para a outra, devidamente acompanhada de troca de
elogios. Passadas três semanas, retorna o mesmo quadro, reclamações mútuas,cada
vez mais irritadas.
Como decifrar esta descontínua querela? Mãe apaziguada pelas férias,
quando viveu integralmente o dia-a-dia do filho? Mas estaríamos polarizando a
questão, depositando a gestação do conflito somente a partir da mãe. As coisas
ficam mais concretas e complexas, simultaneamente mais claras, quando
descobrimos que a funcionária era também mãe e que deixava dois filhos em
creche pública de periferia para ganhar dinheiro cuidando, em outra creche, dos
filhos de outras mães.
A creche se apresenta como o locus de toda uma série de confrontos:
sociais, políticos, morais. A velha repressão sexual, a idéia da sexualidade,
principalmente da sexualidade infantil, como um demônio a ser estirpado da
consciência dos homens, os prazeres do corpo como portadores da desgraça;
versus uma nova cultura, amante do corpo, reinvidicadora do prazer, agora
entendido como um direito e/ou uma necessidade, portadora de uma concepção
que não esquizofreniza o corpo, que sabe que a criança deve explorar a si com a
mesma curiosidade benvinda am quem tem o mundo por conhecer. E eis de novo a
creche pasma, ao se encontrar no papel de juiz e réu de toda a nossa história. O
corpo é visto através dos medos do adulto que reprimiu sua sexualidade e não a
tolera explícita, naturalizada, no filho entregue à creche. A creche não pode ser um
outro que se distinga e critique os pais. A creche precisaria ser um eu-mesmo,
portadora integral da família na ausência da família. E quantas ambiguidades
surgem da expressão deste novo e radical confronto.
A creche aparece hoje, e não poderia ser de outra forma,como uma síntese
mágica entre o amor e o ódio. O depositário dos conflitos não ditos, que sempre
povoou o universo familiar. O palco privilegiado do combate moral com o qual
194
convivemos desde a proibição do incesto.Se ela é a herdeira da nova família, a
viabilizadora da nova mulher, a possibilidade de garantia da sobrevivência, da
reprodução material e espiritual, fatalmente se transformará no desaguadouro
institucional de todos os conflitos que sublinhavam até ontem a estrutura familiar.
Aquela família, onde o pai era a força e a mãe o afeto, onde o pai era a
brutalidade da vida e a mãe a doce fantasia, onde o pai era a autoridade da
produção e a mãe o encanto da ternura, aquela família desapareceu.
A família de hoje, orfã da ternura, busca reinventá-la e luta unânime contra
a força de produção.Ama e odeia a instituição portadora dos novos conflitos entre
a objetividade e a subjetividade.
A creche é herdeira dos nossos velhos/novos conflitos, realizando as
ambiguidades dos pais em relação aos filhos. Se antes os filhos representavam as
ambiguidades da família, eleitos pela culpa para encarnar o conflito familiar, agora
são os pais que o encarnam, e há que procurar modo de expressão.
Impossível resolver os problemas da creche com estas reflexões? Sem
dúvida, mas, será possível resolvê-los sem elas?
195
Capítulo 11.
HISTERIA EM CRECHES
WANDERLEY CODO
Este estudo foi realizado a pedido dos funcionários e com a cooperação do
corpo diretor de uma creche pública localizada dentro de uma universidade
paulista, como parte de suas atividades de treinamento, além da coleta de dados,
foi realizada uma palestra e algumas reuniões com a psicóloga da creche visando a
elaboração de estratégias de treinamento futuro que pudessem levar em conta as
relações subjetivas do trabalhador com o seu trabalho.
Apesar do seu cárater preliminar, decidimos publicá-lo por duas razões
distintas; primeiramente porque os dados se mostram bastante coerentes, dando às
hipóteses levantadas um poder heurístico digno de ser levado em conta.
Teóricamente este é um caso interessante na medida em que os problemas
encontrados não decorrem da tarefa propriamente dita, ou das relações de trabalho
estrito senso, mas do confronto entre o papel social que a instituição ocupa e o
modo como está organizada a sociedade em questão, o que leva os pesquisadores a
prestar atenção, além das variáveis clássicas que tem mostrado comprometer a
saúde mental do trabalhador, a investigar a inserção histórica da empresa, o modo
como a empresa se insere nas relações sociais.
42 Sujeitos divididos em 2 grupos, o primeiro chamado de TC
(trabalhadores em creche), composto por 19 trabalhadoras de uma creche pública
universitária, em contato direto com as crianças( recreacionitas), com idade
variando de 23 a 44 anos (média = 29.4 ), o segundo (utilizado como comparação),
composto de 23 trabalhadoras administrativas da mesma instituição
(universidade), submetido portanto às mesmas variáveis institucionais, chamado
196
de TNC (trabalhadoras "não creche"), com idade variando de 22 a 43 anos (média
= 30.3) tendo as mesmas garantias institucionais e salários similares àqueles do
grupo TC.
1. Variáveis Demográficas: idade, sexo tempo de trabalho e função foram
coletados por um questionário aplicado em todos os sujeitos da creche (TC) e em
uma amostra de trabalhadoras administrativas de uma Universidade pública
2- As condições de trabalho foram investigadas pela observação direta do
processo de trabalho e uma entrevista aberta com as trabalhadoras, onde
descreviam seu trabalho e aspectos subjetivos relacionados a ele.
3. Os dados epidemiológicos foram coletados pela aplicação do MMPI
(Inventário Multifásico Minestota de Personalidade), validado no Brasil. Os perfis
psicológicos obtidos foram classificados pelos seguintes critérios: Perfil
NORMAL (com T score menor que 60 para todas as escalas clínicas ou apenas
uma escala com T score entre 60 e 69), Perfil de RISCO (perfil que apresenta 2 ou
mais escalas no intervalo de 60 a 69) e Perfil PROBLEMATICO (com uma ou
mais escalas com T score maior ou igual a 70). Optou-se por esta classificação por
que o critério canônico, usado em outros estudos, facilita uma virtual rotulação, já
que apresenta critérios de classificação em intervalos de T score menores além de
nomear estes mesmos intervalos como "borderline" e" patológico". Além disso,
anamneses pilotos realizadas revelaram uma tendência do inventário em
apresentar falsos positivos em algumas escalas.
As recreacionistas
1. Condições Sócio ecônomicas
Em ambos os grupos nós não encontramos problemas sócio-econômicos
classicamente ligados a problemas de saúde Mental no trabalho: Os salários estão
acima da média dos trabalhadores brasileiros na mesma função, todos gozam de
197
estabilidade no emprêgo, o que é incomum no Brasil. Em certo sentido tratam-se
de trabalhadores privilegiados, levando-se em conta a realidade brasileira.
2. Local e Condições de trabalho.
Nenhum problema em relação a ruídos, rotina, rítmo, relacionamento com
chefia, segurança no trabalho, turnos ou outros que possam estar vinculados aos
problemas já estudados em Saúde Mental e Trabalho.
As recreacionistas (TC) se dividem em três grupos conforme a idade das
crianças que atendem: o primeiro de 0 a 1 ano de idade, o segundo de 1 a 3 anos e
o terceiro de 3 a 7 anos de idade. Para efeitos deste artigo os dados foram
reunidos.
3. Função
A função das recreacionistas, em síntese, é a de fazer ou ajudar a fazer tudo
o que a criança necessitar em uma creche, de maneira que sua estadia seja
confortável e de acordo com o projeto educacional da organização: Receber mães
e crianças. organizar suas roupas, ajuda-la a vestir-se, organizar jogos e
brinquedos, colocar as crianças para dormir, banha-la e alimenta-la. Mais ou
menos como uma clássica dona de casa, sem as tarefas de cozinha e com a
inclusão do programa educacional da creche, que, no geral consiste na orientação
das atividades de jogo e as relações criança/criança e criança recreacionista, em
termos de aprendizagem, cooperação e etc.
As orientações em geral incluem treinamentos frequentes com o objetivo de
"nunca perder a paciência", "nunca institucionalizar as crianças" "nunca dizer:- É
assim!, é fundamental persuadir a criança" "dar atenção particular, individual, cada
criança é uma criança".
As recreacionistas se queixam muito das mães, parecem competir com o
cuidado que as mesmas dispensam aos filhos, ao mesmo tempo se queixam que as
198
mães deveriam fazer alguns dos cuidados que elas realizam (sobre esta
ambiguidade, vide artigo anterior)
Os sujeitos de TNC estão expostos a condições extremanente similares de
trabalho, no geral suas funções podem ser classificadas como administrativas e
burocráticas.
A tabela 1 mostra porcentagens obtidas em função da classificação dos
perfis psicológicos construidods a partir do MMPI nos critérios NORMAL,
RISCO e PROBLEMATICO nos dois grupos. Nota-se que o perfil problemático
foi encontrado para 15.8% dos sujeitos em TC e 21.8% para TNC. Comparações
realizadas pelo X2 não revelaram diferenças significativas nos critérios; Normal
Risco e Problemático ; entre os grupos. Há poucos dados sobre a prevalência de
doenças mentais no Brasil. As poucas pesquisas disponíveis relatam dados que
variam de 15 a 20 % (AQUI CITAR ESSAS PESQUISAS). Assim pode-se
concluir que a possibilidade dos dois grupos estudados apresentarem riscos de
psicopatologia é pouco evidente, mais notadamente em TC.**
TABELA 1- Classificação dos perfis psicológicos obtidos, a partir do
MMPI nos critérios NORMAL, RISCO e PROBLEMÁTICO para os
grupos TC e TNC.
NORMAL RISCO PROBLEMATICO
TC 63.1% 21.0% 15.8%
TNC 65.2% 13.0% 21.7%A ausência de patologia a níveis expressivos e a necessidade de analisar os
resultados do MMPI em termos de tendência bem como os resultados expressos
199
pelas escalas clínicas, nos levaram a apresentar os percentuais de sujeitos que
mostraram T score maior ou igual a 60 em cada escala clínica (vide tabela 2).
Assim Chama a atenção a alta prevalência de Histeria no grupo TC quando
confrontado com TNC (31.7% para TC e 8.7% para TNC), outro dado que chama
a tenção é o percentual obtido para HS em TC (21.0%) quando comparado a TNC
(8.7%). As maiores porcentagens obtidas para NTC encontram-se em torno de
21.0% (Escalas "MF" e "MA"). Comparações pelo X2 revelaram diferença
significativa apenas para a escala "HY" em TC ( p=0.05).
TABELA 2- Prevalência das escalas clínicas no MMPI (T score maior ou
igual a 60) nos dois grupos de trabalhadores.
PREVALÊNCIA (%)
TNC TC
HS 8.7 21.0
D 4.3 5.3
HY 8.7 31.6
PD 8.7 10.5
MF 21.7 10.5
PA 17.4 5.3
PT 4.3 0
SC 8.71 5.8
MA 21.7 5.3
SI 13.0 10.5
Devido ao fato de trabalharmos com grupos pequenos e, mesmo assim, os
resultados a nível da Escala HY (Histeria) serem significativos, é possível
considerar o grupo TC como sendo o de um perfil histérico a nível border line. As
200
diferenças em HS (Hipocondria), poderiam ser atribuídas à contaminação já
detectada entre as escalas HS e HY (Graham, J.R. 1987).
A histeria é considerada de prevalência maior entre as mulheres, no entanto
as trabalhadoras do grupo NTC, da mesma instituição, aproximadamente com a
mesma faixa etária não mostram o mesmo quadro, o que fortalece a hipótese de
que são as condições de trabalho que se tornam responsáveis pelas diferenças
encontradas nesta escala.
TRABALHO E SAÙDE MENTAL NAS
RECREACIONISTAS
A histeria, ou melhor a conversão histérica é um sintoma ligado ao afeto: se
alguém investe sua energia afetiva em um objeto impossível, a tendência
predominante será redirecionar esta "catexia" para sí mesmo. Historicamente, as
mulheres se formaram para investir seu afeto no cuidado dos filhos.
Freud relata um caso de cura de histeria utilizando o método hipnótico,
tratava-se de uma "primípara...que alimentava a ilusão de ser boa nutriz, que não
consegue amamentar seu filho" Passou a desenvolver a sintomatologia histérica.
Freud intervem, e em "sugestão hipnótica lhe afirma "não tenha medo você será
uma excelente nutriz e a criança se criará divinamente...".
É possível dizer que o objeto afetivo desta mãe era portador de uma
contradição: amava muito seu filho, seu filho precisava dela para alimentar-se, no
entanto não podia alimentar seu filho.
Kolb aponta o cárater utilitário da conversão "A reação histérica de
conversão permite ao paciente com uma defesa contra a ansiedade, ser capaz de
manter o seu auto-respeito e, ao mesmo tempo, cumpre algum propósito, cuja
201
aquisição seria, de outro modo, proibida. Ela pode tornar possível um 'escape' de
uma situação intolerável; pode fornecer os recursos para uma exoneração de si
mesma, uma desculpa para as próprias fraquezas, serve como expediente para
obter a atenção ou possibilita à pessoa fugir de algum dever, evitar uma
responsabilidade, expressar algum despeito ou rancor ou realizar algum propósito
que não seria suportado num exame de consciência." (p. 396)
Para Ey (...), na Histeria "O indivíduo luta consigo mesmo em uma
situação contínua de conflito interior. Ele não consegue assumir o papel de seu
personagem, identificar-se com ele e dar autenticidade a sua pessoa; e é nessa
espécie de jogo artificial, com um aspecto de falsidade, que o neurótico vive sua
angústia. Esta é, apesar de certas aparências, uma angústia que não depende das
situações, mas cujo ponto de partida é interno e inconsciente...a angústia se
transfere para o plano somático (conversão psicossomática, distúrbios funcionais
diversos), e o indivíduo, incapaz de assumir a verdade de seu personagem, utiliza
todos os meios de expressão somática para representar para si e para os outros a
comédia de uma formação artificial de sintomas, constituindo a histeria." (p. 126)
O estudo de caso com as recreacionistas demonstra que estas trabalhadoras
estão inseridas neste tipo de conflito que a psicopatologia clássica encontra na
etiologia da histeria.
Enquanto profissionais, as mulheres que se dedicam cotidianamente ao
cuidado de crianças, necessitam comportar-se formalmente como mães:
propiciando carinho, atenção e cuidados, particularizando a atenção à cada
criança. Ao mesmo tempo não podem ser uma mãe, devem entregar os filhos para
suas mães no final do expediente. Devem se envolver afetivamente e não podem
fazê-lo no mesmo espaço de trabalho e com as mesmas pessoas.
Metaforicamente, quando as crianças chamam as recreacionistas de "tias",
traduzem esta ambiguidade com uma espécie de consciência ingênua. A "tia" é um
parente como a mãe e mais distante do que aquela.
202
As recreacionistas precisam parecer com as mães e não podem. Precisam
também e em igual proporção, ter uma relação "fria", profissional e também não
podem. Sem outras formas de expressão deste conflito, sua única alternativa é a de
desenvolver uma "quase-histeria", lido pelo MMPI como uma manifestação
"borderline" ou uma "tendência histérica".
Se outra forma de expressão estivesse disponível, o sintoma não ocorreria.
Mas as recreacionistas não podem expor este conflito para as crianças, tampouco
para as mães, ou ainda para as condições de trabalho na instituição, pelo menos na
creche que estudamos. Esta é a razão para o desenvolvimento da "histeria" a níveis
"borderline".
Dados secundários corroboram as observações acima. Na palestra onde
devolvemos os resultados, depois de tranquilizar as trabalhadoras, mostrando que
aquele trabalho não era uma função de risco em termos de saúde mental, estando
inclusive abaixo do que se poderia esperar em termos de patologia, e mostrando a
tendência border line em Histeria, foi geral a concordância de que a ambiguidade
afetiva em relação às crianças e mães era o ponto mais sensível da jornada de
trabalho, inclusive para o único homem (retirado desta análise), o qual também
apresentava os mesmos sintomas.
A psicóloga da creche me procurou pós apresentação para discutir melhor
os resultados e solicitando assessoria; Haveria alguma forma de tornar o trabalho
mais agradável e reduzir aqueles sintomas?
Sugeri que se promovessem o que chamamos de 'reunião sem pauta', onde
as pessoas pudessem falar o que lhes viesse à cabeça, inclusive reclamar dos pais,
das crianças, dos outros colegas, em clima o mais aberto possível e sem nenhuma
interferência da psicóloga, exceto como facilitadora da expressão afetiva. Tinha
em mente encontrar uma forma de expressão afetiva interna ao próprio grupo que
pudesse operar como uma via afetiva substituta , para a qual se operasse o
203
deslocamento das frustações afetivas que tinham lugar a cada vez que as mães
viessem retirar as crianças no final do dia.
Uma semana depois a psicóloga solicitou uma outra entrevista, me dizendo
que uma observação mais acurada revelara um detalhe até então desapercebido, o
grupo da manhã era obrigado a esperar o ônibus por mais ou menos uma hora
depois do fim do expediente, ficaram pois reunidos sem ter o que fazer, em
condições, portanto, muito parecidas a que eu tinha proposto a psicóloga observou
aquelas reuniões informais e notou o que qualificou de "clima histérico" das
mesmas, -"As pessoas ficam falando besteiras, o assunto várias vezes é a
sexualidade...".
Naquele caso, devido ao reduzido númerode trabalhadores, e também por
não haver alternações ou turno noturno, os dois casos apontados na literatura como
responsáveis por stress no trabalho, decidimos não levar em conta o turno de
trabalho embora contássemos com os dados em nossos computadores. Retornando
aos dados, o resultado foi significativo: Nenhuma das pessoas daquele turno
apresentavam sintomas histéricos.
Classicamente, estes resultados demandam uma ampliação da amostra.
Infelizmente esta estratégia é impossível. Hoje sabemos que váriaveis como:
salário, cultura organizacional, rotina, processo de trabalho, relacionamento com
as chefias e etc. impactam significamente os dados sobre Saúde Mental e
Trabalho. A tentativa de ampliar o número de sujeitos buscando uma
"generalização" dos dados teria como resultado o seu oposto, tão diferentes seriam
as condições de trabalho que já não poderíamos afirmar mais nada sobre os
resultados, qualquer que fossem eles. Em outras palavras, é preciso ceder à
tentação de iludir as diferenças concretas do trabalho através do apagamento
artificial das mesmas, por exemplo através do sofisticado tratamento quantitativo
que corra o risco de eliminar, ao invés de compreender as diferenças qualitativas.
204
Isto não significa que devamos abrir mão da necessidade de generalização,
apenas buscar outras maneiras de atingi-la, neste caso comparando este estudo de
caso com todas as suas particularidades com outros desenvolvidos alhures. Até o
momento não os encontramos, resta esperar que este estudo permita que outros
semelhantes, em outros países e instituições possam ocorrer.
Nas últimas décadas pudemos observar uma mudança radical no papel da
mulher: Antes exclusivamente esposa, como uma "especialista" na reprodução da
vida. Psicologicamente falando, pode-se dizer que esta divisão de trabalho
transformava a mulher em senhora das relações afetivas. Nos últimos anos esta
situação mudou radicalmente com a entrada das mulheres no mercado formal de
trabalho, uma área onde não há espaço para a subjetividade, o território do
dinheiro é o território da objetividade.
Nenhuma mudança social pode se realizar sem custos: neste caso,
entregando a outras mulheres a função de substituir a mãe.
Na época de Freud as donas de casa comumente se tornavam histéricas,
agora este parece ser o legado das recreacionistas: Novos tempos, novas
manifestações de doença mental.
205
PARTE III
O sofrimento psíquico nas organizações
206
Esta terceira e última parte do livro reune pesquisas sobre Saúde Mental &
Trabalho, realizadas pelo projeto SM&T, direta ou indiretamente sobre minha
coordenação, evidentemente cada um dos estudos e/ou categorias profissionais
abordadas tem razão por si só de comparecem neste trabalho. No entanto há
também outras razões que talvez valesse a pena apontar:
O estudo assinado por Jackson e Lucia aparecem como o primeiro capítulo
desta parte, por que foi exposto de maneira a destacar todas as fases de
investigação que consideramos importantes para o estudo de Saúde Mental e
Trabalho, é quase que uma aplicação estrito-senso do modelo apresentado no
capítulo 5, parte I . Também assinado por Jackson, agora em conjunto com Cleide,
o estudo sobre o trabalho textil, é uma das poucas aplicações dos conhecimentos
advindos de saúde mental e trabalho na clínica psicológica/psiquiátrica, vale a
pena observar que as teses de que o trabalho conforma a identidade, portanto tem
o seu papel na composição da doença mental, não só podem ser aplicados na
clínica ortodoxa, par e passo com outras descobertas, como ainda é capaz de
revelar ao clínico, olhares que d'outra forma seriam incessíveis, ou quiçá
demorariam muito tempo para serem revelados.
Luis e Leila trazem uma discussão, basada em fortes evidências empíricas,
do uso das novas tecnologias e suas consequências para a saúde mental no
trabalho, mas talvez o mais importtante do seu trabalho seja exatamente o alerta
que se faz para os segmentos sociais que se propõe a defender os trabalhadores,
particularmente os sindicatos, sobre a necessidade de ficar atentos e sem
preconceitos às novas tecnologias (just in time, por exemplo).
Estive prestando uma assessoria ao trabalho da dupla, quando trabalhavam
em um sindicato de Rio Grande do Sul, pude testemunhar o espanto de alguns
dirigentes sindicais, ao serem chamados por uma das empresas da região para
contribuir com as reformulações de trabalho que a gerência de recursos humanos,
na prática, o sindicato não soube como encaminhar a discussão. É claro que haverá
207
quem já tenha estudado o assunto no meio sindical, mas não faltam dirigentes dos
trabalhadores que ainda se baseiam na velha equação salário/risco de acidentes no
trabalho, e que naturalmente se encontram desarmados exatamente quando as
condições de trabalho melhoram um pouco.
Ainda sobre a nova organização do trabalho que versam os artigos sobre
Paranoia em digitadores e a "síndrome do trabalho vazio, em bancários". O
primeiro estudo se constitue em um alerta para as novas formas de côntrole
automatizadas (informatizadas), fornecendo ao trabalhador o que pode parecer
como uma maior autonomia, e na verdade transformando-o em um vigilante de sí
mesmo. Se uma definição aceitável da paranóia é a de quando a vigilância é
introjetada, ou seja, o indivíduo se torna inimigo de sí mesmo, o tipo de côntrole
do trabalho pelo computador precisa ser repensado em termos de saúde mental.
Uma última palavra sobre a "síndrome do trabalho vazio", dos trabalhos
deste livro foi o que mais sofreu divulgação anterior., vale a pena registrar a
dúvida que alguns colegas e o nosso próprio grupo de pesquisa (onde me incluo)
tivemos sobre estes resultados. No entanto, nenhum sde nós tem dúvida de que o
trabalho joga um papel importante na conformação da udentidade, e no trabalho,
evidentemente, a relação com o produto.
A "síndrome" é claro, merece e merecerá sempre melhores estudos, mas me
parece um bom fechamento do livro, a constatação, que deveria ser óbvia, de que
o relacionamento do trabalhador com o produto do seu trabalho não pode ser
esquecido por quem queira entender melhor o universo do trabalho, em particular
suas relações com a saúde/doença mental.
Ainda há outra razão para que estes estudos venham a compor um livro, e
redigidos desta forma, com um rigor que por vezes parecerá cansativo ao leitor: É
que de médico, louco e analista de saúde mental no trabalho cada um tem um
pouco.
208
Nestes vários anos em que me didico ao tema, sempre que vou ministrar
uma aula, conferência ou asssemelhados, cada debate que se trava, nos congressos
ou nas esquinas, sempre alguém tem hipóteses, quiçá convicções de porque este ou
quele trabalho ocasiona sofrimento. No entanto, quão diferente é o quadro, quando
alguém tenta estudar o assunto com o rigor que ele merece.
Durante os anos em que coordeno o projeto Saúde mental & Trabalho,
investigamos quase tres mil sujeitos, uma abordagem socio-economica,
organizacional e epidemiológico-psiquiatrica cruzadas. Algumas descobertas,
como a paranóia em digitadores e o mal-estar do trabalho vazio em bancários
estão sendo publicadas a seguir
Por ora. o que quero destacar neste esforço, na minha opinião bem
sucedido, é que as relações entre SM&T são muito mais difíceis de detectar do
que se poderia imaginar. Não podemos ainda ter certeza de que nossos resultados
se relacionam, e como se relacionam com o trabalho propriamente dito.
Não poderia ser diferente, o trabalho é o modo de ser do Homem, como tal
invade e se permeia com todos os níveis de sua atividade, seus afetos, suaconsciência, torna o problema díficil de pesquisar, porque permite que os sintomas
se escondam por todos os lugares: Quem garante que os desafetos familiares, o
chute no cachorro ao retornar à casa, não se deve a razões de ordem profissional?
Por ser onipresente, o trabalho e seus efeitos são díficeis de detectar.
Por outro lado, o modo como o trabalho se organiza em nossa sociedade,
por definição esconde suas determinações fundamentais, muitas vezes o patrão
não paga pelo que está comprando e o trabalhador não vende o que parece estar
vendendo: Quantos (as) recepcionistas sabem ou confessam que estão vendendo
sedução?
Em terceiro lugar, as relações entre SM&T se manifestam em um plano
individual estrito senso, embora determinadas pela estrutura social, em seu sentido
209
mais abrangente; é muito difícil reconstruir os nexos indivíduo- sociedade,
particularmente quando falamos de sofrimento psíquico, que por definição se
esconde, do portador e do outro.
A complexidade desanimadora que emerge a quem resolve estudar a sério o
trabalho humano, contrasta com a ingenuidade pueril com que alguns "estudos"
são publicados. Alguns questionários enviados pelo correio, como é hábito nos
EUA, ou algumas entrevistas com este ou aquele dirigente sindical, como em
alguns estudos no Brasil, basta para alardear que "os bancários", os "white-collars"
sofrem deste ou daquele distúrbio. Ora, Quem já estudou um Banco sabe dos
vários Bancos que se escondem dentro dele, nossos dados revelam perfil
epidemiológico claramente distinto entre os trabalhadores de vários setores. Com a
atual complexidade do setor de serviços é possível tomar a sério uma afirmação
genérica sobre white-collars?
Entre a simpatia fácil e o rigor científico, ficamos com o segundo, mesmo
correndo o risco de exigir um pouco além do hábito, apaciência do leitor.
Wanderley Codo
210
Capítulo 12.
SAÚDE MENTAL E TRABALHO:
TRABALHADORES INDUSTRIAIS DE
USINA DE AÇÚCAR E ALCOOL
JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO
LÚCIA HELENA SORATTO
A CATEGORIA PROFISSIONAL E A EMPRESA:
- Importância econômica da produção sucroalcooleira na economia
nacional e importância estratégica na produção de energia.
- A região é a maior produtora do país: 26 usinas açucareiras com
destilarias de álcool e 21 destilarias autônomas. A produção de açúcar representa
38.6% da paulista ou 17.7% da brasileira. A produção de álcool representa 39.0%
da paulista ou 22.9% da brasileira. A cultura de cana na região ocupa 35.0% da
área plantada do estado.
- Localização da empresa entre as vinte primeiras em produtividade, no
ranking nacional do ramo, no ano de 1989.
- Produção conjunta de açúcar e álcool.
- A empresa realizou o processo de substituição de um modelo familiar pela
administração profissional.
211
- A empresa realizou processo de substituição de tecnologia tradicional por
tecnologia moderna, considerada de ponta, apresentando dois nítidos momentos de
mudança: Anos 50 (Plano de Metas) e Anos 70 (Proalcool)
- Abertura do campo facilitada por interesse da CIPA da empresa e
concordância da Superintendência.
- A pesquisa bibliográfica encontrou literatura específica em Economia,
Política e Tecnologia, mas as questões sanitárias do trabalho não são tocadas.
Periódicos como "Usineiro", "Revista do Alcool", "Alcool & Açúcar", "Sugar Y
Azucar" e "Zucker Industrie", tematizam problemas e avanços do cultivo da cana
e da produção de açúcar e álcool. Na literatura médica e psicológica (revisão do
Index Medicus e do Psychological Abstract, 1985/90) são encontradas pesquisas
sobre ruído, temperatura, corpo estranho e tóxicos, porém abordados de modo
genérico ou concretizados em outro ramo de produção. Pesquisas sobre as
condições específicas do trabalho, principalmente relacionando saúde mental e
trabalho, estão ausentes na literatura levantada.
A POPULAÇÃO
Total de 1252 trabalhadores, distribuidos por uma diretoria, duas
assessorias diretas (Jurídica e Planejamento e Controle de Produção/PCP), seis
divisões (Financeira, de Projetos Especiais, Comercial, de Recursos Humanos, de
Suprimentos, Agrícola e Industrial) e uma Sociedade Agrícola.
A Sociedade Agrícola e as divisões Agrícola e Industrial concentram 954
trabalhadores, o que oferece, em macroanálise do organograma, relação de 1
trabalhador administrativo para 3 na produção.
A Divisão Industrial (DI) foi escolhida porque: a) O pessoal dos setores
agrícolas apresenta escolaridade rudimentar, no limiar do analfabetismo, o que
212
seria impeditivo do uso do inventário psicológico. b) Nos setores agrícolas o
processo de trabalho obrigaria a intervenções fora da jornada de trabalho e a uma
equipe de pesquisadores muito grande. c) O setor industrial apresenta rotatividade
baixa e inclui parte de operação e parte de manutenção, permitindo constituição de
grupos-comparação.
A DI dispõe de 214 trabalhadores, dos quais 15 foram excluidos de
imediato: 8 por hierarquia (1 gerente, 5 chefes, 1 assistente de chefe, 1 secretária),
7 por processo de trabalho (3 registradores de produtividade para o PCP; e 4 do
Departamento de Engenharia Industrial/DEI, com nível superior, entre
engenheiros e desenhistas).
A população epidemiológica ficou em 199 trabalhadores, distribuidos por 4
dos 5 departamentos que compõem a DI: Manutenção Mecânica (DMM),
Manutenção Elétrica (DME), Controle de Qualidade (DCQ) e Operação Industrial
(DOI).
Todos estes trabalhadores são homens. A idade média geral é de 32.5 anos.
As modas de idade diferem: para DOI e DMM = 33 anos, para DME e DCQ = 21
anos. Também quanto à amplitude de variação há nítida diferença: para DOI e
DMM = 41 anos, para DME e DCQ = 19 anos. Estas medidas de idade
acompanham linearmente, em relação diretamente proporcional, as medidas de
tempo de profissão e tempo de empresa.
Quanto à escolaridade, 54.4% possue grau de escolaridade entre primeira a
quinta série do 1o grau e 45.6% acima de sexta série, sem nenhum sujeito de nível
superior. Discriminando os departamentos percebe-se distribuição bastante
desigual dos níveis de escolaridade: se em DCQ temos mais de 4/5 dos
trabalhadores ultrapassando a 6a série do 1o grau, no DOI esta proporção é de 1/3.
O estudo de procedência aponta migração circunscrita a um raio de 200 km
de Ribeirão Preto. Realidade totalmente distinta dos setores agrícolas da usina,
213
onde há variação sazonal e o investimento tecnológico ainda não permite mínimo
estável de trabalhadores, seja safra ou não.
DCQ e DOI polarizam os indicadores. DOI concentra mais velhos, com
mais tempo de empresa e de profissão, mais migrantes e menos escolarizados;
DCQ concentra o oposto.
PERFIL DE PRODUÇÃO:
Histórico.
A usina "X" foi fundada em 1938, produzindo álcool para uso
doméstico/farmacêutico e aguardente. É de núcleo familiar e a 1ª geração comprou
terras, optou pela cultura canavieira e iniciou produção de álcool. Nos anos 40/50
a 2ª geração consolidou a empresa. Nos anos 70, aproveitando alta do açúcar no
mercado internacional e financiamentos do Instituto do Açúcar e do Alcool
(IAA), a 3ª geração triplicou a produção. Em 1978, com o Proalcool, a usina
passou a produzir álcool carburante para consumo nacional.
A usina funcionava com o trabalho de famílias inteiras, morando e
trabalhando na propriedade. O desenvolvimento ocorria pelo aproveitamento de
prática.
Há um processo de modernização em curso que provoca alterações na
organização do trabalho, fazendo variar o nº de trabalhadores por setor,
aumentando o nº de especializações eprovocando mudanças nas funções
necessárias à produção.
As árvores tecnológicas do açúcar e do álcool são enormes, porém maior
abrangência não deve mudar a mentalidade de operação a curto prazo. As
modificações ocorrem mais a nível de máquina. O operador só vê de diferente em
214
sua rotina uma redução no nº de manutenções, por exemplo. Sua principal
preocupação produtiva parece centrar-se nos subprodutos (energia elétrica,
bagaço, acetato etc), pois os produtos básicos, com valor agregado muito grande,
não podem deixar de ser produzidos.
A fim de superarem o gap tecnológico-gerencial, foi preciso mudar a
política dita paternalista de RH, implantando sistema administrativo baseado em
critérios técnicos. Com esta perspectiva, em 1985, foi criado o primeiro plano de
cargos e salários da empresa.
Competição e Relação com o Estado.
A usina atua num mercado de poucos produtores e praticamente um único
comprador, a Petrobrás, quando o produto é alcool carburante. Por este produto a
empresa entra na lógica da competição oligopolista contida por comprador
monopsônico. O governo federal, que faz uso geopolítico do alcool carburante,
diretamente ligado a política industrial (preservar a indústria automobilística das
crises do petróleo) e social (garantir continuidade do acesso das classes médias ao
carro), dá o preço dos insumos, da matéria prima e do produto.
A empresa teria quatro saídas para ampliar sua margem de lucro:
exportação (barrada por política federal, para não faltar álcool carburante no
mercado interno), desvio da produção para açúcar (barrada por política federal,
através do controle de preços também do açúcar, com o objetivo de preservar a
indústria nordestina que, por incorporar tecnologia mais atrasada, apresenta
maiores custos, donde precisar do mercado externo, propiciador de melhores
preços, para manter lucratividade idêntica à indústria do sudeste), exploração de
novos subprodutos e incremento tecnológico para redução de custos.
Quanto ao açúcar, a usina atua em mercado de muitos produtores, muitos
intermediários e até venda direta a consumidores.
215
Em qualquer dos casos, as especificidades dos produtos são dadas
independentemente do produtor, portanto são commodities.
As duas empresas: safra e entre-safra.
A empresa, durante a safra de cana, é uma: produção por 24 horas, de
segunda a segunda feira, de maio a novembro. Na entre-safra, a empresa é outra:
grande galpão de manutenção, em horário administrativo, de dezembro a abril.
Início e fim de safra são dados por decisão que alia considerações
meteorológicas (regime de chuvas), organizacionais (estado da manutenção),
econômicas (otimização da sacarose na cana, recursos financeiros disponíveis,
pressão dos compradores) e políticos (política federal de abastecimento). A
margem de decisão é pequena, dado o ritmo de crescimento da cana e o regime de
chuvas.
Entre a produção do sudeste e a do nordeste há, em regra,
complementariedade temporal: o que é período de safra em uma região, é
entresafra na outra. Esta complementariedade permite a troca de trabalhadores do
setor agrícola, em migração sazonal.
Produtos: açúcar e álcool
A usina moe 1 milhão de toneladas de cana, anualmente, para a produção
de açúcar e álcool. Metade própria e metade comprada de fornecedores. A
produtividade brasileira é de 60 ton./hectare, a paulista é de 65 a 70 ton./ hectare e
a da usina é de 85 a 90 ton./hectare.
O setor tende a trabalhar com a própria produção, desaparecendo os
fornecedores sem estrutura econômica para negociar preços. O preço da cana é
determinado pelo teor de sacarose. Este teor pode variar de 4% a 5% em situações
216
normais, podendo chegar a variação de 20%. O sistema de pagamento ocasiona
dificuldades na negociação, pois o teor é relativo, mas a contagem é absoluta. No
início da safra o teor é sempre mais baixo, então o fornecedor tende a retardar a
entrega da cana, prejudicando a moagem.
Entre o teor de sacarose da cana e a produção, há 10 anos havia perda de
20%, hoje a perda é de 15%. Segundo o IAA a usina é o 16º lugar no Brasil, em
eficiência. Na hora do ensaque para apresentação comercial há perda de 0.5% de
açúcar que fica em suspensão.
A proporção de açúcar e álcool produzidos está em torno de 1/3 e 2/3,
respectivamente, do total de cana moída, mas esta proporção varia de acordo com
política federal. Na safra de 1989 houve quatro grandes mudanças: No início da
safra o governo pediu mais álcool, pelo risco de desabastecimento do combustível;
em seguida mais açúcar; voltou atrás e pediu mais álcool; depois mais açúcar, pelo
risco de desabastecimento de açúcar, e isto faltando 48 dias para o fim da safra. As
constantes mudanças na demanda afetam administradores e proprietários,
dificultando o planejamento interno, mas parece não afetar os trabalhadores. O
cotidiano de todos os trabalhadores é mais afetado quando a moagem é que é
modificada.
A produção de açúcar está caindo e a de alcool crescendo. A capacidade da
usina é de 1.000.000 de sacas de açúcar por safra, mas está produzindo 650.000. O
álcool passou de 20.000.000 hectolitros por safra, para 60.000.000. Não está
havendo investimento em novas tecnologias para o açúcar, mas é possível, apenas
alterando a organização do trabalho, um aumento de 75% na produção. A usina
tem condições de produzir também álcool para perfumaria, cosméticos, farmácia e
bebidas.
Custos e Lucro
217
O custo da cana é de 8 a 12 dólares por tonelada, 20 a 30 toneladas de
faturamento e 2.0 a 2.5 de agregação de valor. O capital fixo é de 40 a 50 milhões
de dólares. Cerca de 40% do faturamento vai para impostos, no caso do açúcar. O
item Pessoal consome de 20 a 25% do faturamento, a compra de cana consome 25
a 30 % e os impostos consomem 20 a 30 %.
O lucro, teoricamente, gira em torno de 10% sobre o faturamento, mas na
prática gira em torno de 5%. O problema todo é como fazer funcionar uma
economia em escala, se os preços são fixos. Não havendo quebra de máquina o
lucro salta na medida em que não se aumentam os custos. A moenda é o gargalo
do processo de produção e o ideal seria a moagem ocorrer no mínimo por oito
meses consecutivos.
Salários
Não foi possível saber os valores salariais praticados pela empresa. O
momento parece ser de grande competitividade na região: existem novas empresas
entrando no setor e tomando trabalhadores treinados.
Para obtenção de lógica interna (relação entre cargos e salários dentro da
empresa) e lógica externa (relação de cada extrato salarial com seus equivalentes
em outras empresas) de alocação de pessoal, foi realizada uma pesquisa no
mercado, com duração de seis meses, para a elaboração do plano de cargos e
salários vigente.
Conflitos básicos: os salários não podem inflacionar a folha da empresa;
não podem inflacionar o mercado de trabalho; a empresa não pode perder
trabalhadores treinados; é preciso atender à política salarial do governo e é
preciso atender às negociações coletivas realizadas nas datas-base pelos Sindicatos
patronais com os Sindicatos dos trabalhadores. Em 1989 foi aplicado a correção
oficial da inflação, integralmente, contrariando a política do governo (correção de
218
70%) e oferecendo condições mais favoráveis que as obtidas pelos trabalhadores
na data-base anterior.
Pela análise dos salários declarados por amostra de trabalhadores
entrevistado, pode-se constatar que a razão entre o maior e o menor salário
praticado na empresa é de 12 vezes e que o menor salário praticado equivalia a
dois salários mínimos.