Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E A CONSTITUIÇÃO DE 1988 Marcelo Barroso Mendes Procurador Federal Pós-graduado pela UERJ Mestrando em Direito UNESA SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE; 3 O TEMPO; 4 O CONTEXTO; 4.1 O Contexto de Ontem em Portugal; 4.2 O Contexto de Hoje em Portugal; 5 O NOVO DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE; 6 O CONTEXTO BRASILEIRO; 6. 1 O Contexto de ontem no Brasil; 6. 2 O Contexto de hoje no Brasil; 7 O TEXTO – AS CONSTITUIÇÕES PORTUGUESA E BRASILEIRA; 8 CONCLUSÃO. 1 INTRODUÇÃO É notoriamente sabido que a Constituição Portuguesa de 1976 funcionou como pedra angular da Constituição Brasileira de 1988. O texto normativo não foi o único a beber em fontes constitucionais portuguesas. Como não poderia deixar de ser, o nosso constituinte de 1988 também utilizou da fonte doutrinária lusa na construção das bases teóricas da Constituição brasileira. Neste contexto, dentre muitos doutrinadores, pelo menos dois se destacaram neste papel norteador constituinte, Jorge Miranda e Joaquim José Gomes Canotilho. O professor Canotilho adquiriu notoriedade por aqui com sua Teoria da Constituição Dirigente, ao qual foi amplamente adotada na Carta de 1988, adquirindo assim um ideal transformador na dura realidade brasileira. No entanto, depois da virada do século, em Portugal, para perplexidade geral dos doutrinadores brasileiros, Canotilho anunciou a “morte da constituição dirigente”. Diante de tal profecia, no Brasil, era absolutamente necessário explicar uma colocação tão categórica, a qual atingiria em certo o ideal constituinte de 1988. Por isso, em 21 e 22 de fevereiro de 2002 foi promovido pelo Programa de Pós- graduação em Direito da UFPR, um encontro entre os juristas brasileiros e o professor Canotilho para aclarar tão perplexa constatação, que foi chamado de as “Jornadas sobre a Constituição dirigente em Canotilho”. Este encontro, realizado através de uma videoconferência de notáveis juristas brasileiros com Canotilho, tinha como intuito, de fato, esclarecer o Prefácio da 2ª. edição de sua obra Constituição Dirigente e Vinculação ao Legislador, participando também do encontro o seu colega lusitano Antonio José Avelães Nunes. Como escrito linhas acima, a preocupação dos brasileiros era esclarecer, além da perplexidade acerca de outros temas expostos no prefácio, principalmente, o trecho, a seguir enunciado: Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias. (p.XXXIX) A morte e a vida da Constituição Dirigente serão a seguir debatidas, sendo necessário realizar diferenciações entre a realidade brasileira e portuguesa. 2 A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE Antes de adentrar no tema central deste trabalho, ou seja, dos debates e análises acerca da morte da Constituição Dirigente ou não, importante deitar olhos sobre o conceito de Constituição dirigente, ainda que de modo breve, tal como formulado por José Joaquim Gomes Canotilho na festejada obra e mesmo em artigos publicados posteriormente. O próprio autor de maneira muito simples explica que: O tema a abordar na presente investigação é, fundamentalmente, o problema das relações entre a constituição e a lei. O título – Constituição dirigente e vinculação do legislador – aponta já para o núcleo essencial do debate a empreender: o que deve (e pode) uma constituição ordenar aos órgãos legiferantes e o que deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular, adequada e oportuna, as imposições constitucionais.1 Mais adiante o mestre de Coimbra complementa: [...] a constituição [...] tem a função de propor um programa racional e um plano de realização da sociedade; a lei fundamental [...] tem a função de garantir os princípios jurídicos ou regras de jogo da sociedade estabelecida. O Professor Canotilho resume o raciocínio asseverendo que a idéia de Constituição dirigente ganha relevo prático no modelo da constituição-programa, mas é considerada uma “introversão” do pensamento constitucional no modelo de constituição-garantia.2 Muito embora exista toda essa influência das normas programáticas na Constituição, de nada adiantaria sua existência se não fosse reconhecido um valor jurídico constitucionalmente idêntico àquele dado aos demais preceitos da Constituição. Neste sentido, afirma o mestre que a positividade jurídico- constitucional das assim denominadas normas programáticas significa, fundamentalmente, o seguinte: 1. Vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição); 2. Vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração como diretivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da atividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); 3. Vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos atos que as contrariam.3 De todo modo, a Constituição dirigente e vinculação ao legislador são institutos jurídicos diferentes. Então, em breves palavras, a teoria da Constituição dirigente procura associar às normas constitucionais as tarefas do Estado, cujo 1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 11. 2 Ibid., p. 14. 3 CANOTILHO. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 184. fundamento é a Constituição que pretende decidir vinculativamente sobre as tarefas de todos os órgãos e titulares dos poderes públicos4. Completando o exposto, vale trazer as palavras do próprio autor: [...] a teoria da constituição assume-se como teoria da constituição dirigente enquanto problematiza a tendência das leis fundamentais para: (1) se transformarem em estatutos jurídicos do Estado e da sociedade; (2) se assumirem como norma (garantia) e tarefa (direcção) do processo político-social.5 Estas são, basicamente, e muito resumidamente, algumas linhas da idéia original trazida na tese de doutoramento de Canotilho produzida na década de oitenta quando Portugal, ainda um país pobre, recém saíra de uma revolução, em 1974, a chamada Revolução dos Cravos, ou do 25 de abril. 3 O TEMPO Como diria o poeta, o tempo não pára, e as realidades também não param de mudar. Esta transformação das coisas operada na linha do tempo é patente até mesmo em curiosa passagem de um trabalho escrito pelo então Professor Eros Grau. O atualmente Ministro do Supremo Tribunal Federal, em 2002 escreveu um artigo quando foi participante do já citado encontro e que deu origem a um livro intitulado Canotilho e a Constituição Dirigente, organizada pelo Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, e publicada pela Editora Renovar6. Segue a passagem do artigo escrito pelo Professor Grau: [...] Quem provocou este nosso encontro foi o Advogado Geral da União, que saiu por aí afirmando que o Canotilho diz que a Constituição dirigente morreu, a sustentar, nas entrelinhas – ele, o Advogado Geral- que a Constituição agora carece de força normativa[...]. O Advogado Geral da União, então citado, era Gilmar Ferreira Mendes, hoje Presidente do Supremo Tribunal Federal. Ainda na época, o Professor da USP, Eros Grau continuou afirmando, em tom de crítica, o que segue: [...] E agora parece que esse moço irá para o Supremo. Quanto a este ponto, paradoxalmente, estou e não estou preocupado. O AdvogadoGeral aparentemente nutre a aspiração ao cargo de Ministro do STF como uma idéia fixa. A mim parece indispensável a distinção entre Estado e Governo. O Estado é permanente, os Governos são passageiros. Temo que o atual Advogado Geral da União seja um dedicado servidor não do Estado, mas dos Governos. Quem o viu defendendo o Collor até os estertores do seu Governo[...] 4 Idem. Rever ou romper com a constituição dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo. São Paulo, Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 4, n. 15, abril/junho 1996. 5 Idem. Constituição Dirigente, p. 169-170. 6 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a constituição dirigente. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p 99-100. O texto foi escrito em início de 2002, hoje em 2008, Eros Roberto Grau e Gilmar Ferreira Mendes são Ministros do Supremo Tribunal Federal. O tempo não pára. O contexto e o Direito também não. Canotilho tem consciência do tempo, do contexto e do Direito, e parece não querer como o filósofo Tales de Mileto andar inadvertido a mirar estrelas, e ao descuidar da realidade que o cerca, ao não olhar para o chão, cair em um buraco. Por este motivo escreveu o Prefácio ao clássico Constituição Dirigente e Vinculação ao Legislador. 4 O CONTEXTO Antes de ser estudado, o Direito, como um conjunto de normas jurídicas mais ou menos ordenadas, merece ser entendido como um produto da história. Desde o começo o Direito é fruto das eleições que a história de uma determinada sociedade escolheu, ele vive na realidade assumindo determinados significados, porque os que o usam, desde os simples cidadãos até os juristas, o interpretam dentro de uma determinada cultura7, com uma base histórica ampla e profunda8. Daí importância de se estudar as raízes histórico-culturais dos momentos do Direito. O que não poderia ser diferente com a Teoria da Constituição Dirigente de Canotilho. 4.1 O CONTEXTO DE ONTEM EM PORTUGAL O contexto histórico não pára de mudar. O Professor Canotilho sabe disso, sabe que é preciso apanhar o bonde da história para não correr o risco de ficar preso ao passado e avesso ao futuro. Apesar disto, para melhor compreender a Constituição Dirigente, rapidamente, é preciso ter consciência da realidade histórico-cultural de Portugal no momento quando foi pensada e escrita a tese de doutorado do ilustre professor. Por altura das matrizes do livro, na década de setenta e oitenta, Portugal era um país eminentemente pobre e agrícola, com grande êxodo demográfico. Quando da revolução de 25 de abril de 1974, Portugal tinha acumulado cerca de 50 anos de atraso durante o período salazarista (Antonio de Oliveira Salazar foi o fundador e principal mentor do Estado Novo (ditadura portuguesa) que foi de 1933 até 1974) por falta de investimento em infra-estruturas e indústrias para o país, que dispunha de grandes reservas de ouro provenientes em parte da exploração das ex-colônias. As atividades tradicionais que predominavam eram a produção agrícola e vinícola, a extração de cortiça, de pedra e pesca. A Revolução ocorrida em 25 de abril de 1974, que ficou conhecida como a Revolução dos Cravos, transformou o rumo da história portuguesa. O movimento tomou este nome por ser um golpe de estado não violento no qual o povo e as Forças Armadas tomaram as ruas pacificamente com cravos, flores, às mãos e cravos às armas. No dia seguinte a 25 de abril, formou-se a Junta de Salvação Nacional, constituída por militares, e que procedeu a um governo de transição. O lema do Movimento das Forças Armadas foi resumido no programa dos três D: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver. 7 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição, Tradução Gilmar Ferreira Mendes, Reimpressão, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002. 8 FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las consticuciones. 5. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2007. p.21. Os dirigentes do movimento de 25 de abril (os "Capitães de Abril"), assumiram como prioridades: o fim da polícia política, o restabelecimento da liberdade de expressão e pensamento, o reconhecimento dos partidos políticos existentes ou a criar, e iniciaram a negociação com os movimentos de independência das colônias. Passado justamente um ano sobre a revolução, no dia 25 de Abril de 1975 realizaram-se as primeiras eleições democráticas, cujo objetivo era formar uma Assembléia Constituinte que elaborasse uma constituição para o país. Essa Constituição seria promulgada no dia 2 de Abril de 1976 e é a Constituição que rege Portugal até hoje, apesar de ter sido revista em várias ocasiões.9 4.2 O CONTEXTO DE HOJE EM PORTUGAL De lá para cá muita coisa mudou em Portugal. Segundo o Banco Mundial, a economia portuguesa é a 34ª maior do mundo10. Ao longo dos últimos 40 anos, Portugal foi o país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Economico, depois da Irlanda, com maior taxa de crescimento do PIB11. Tendo aderido à União Europeia em 1986, o país iniciou um período de fortes reformas e de elevados investimentos em infra-estruturas que se refletiram numa rápida aceleração do crescimento económico. A adesão foi de fato um passo decisivo no desenvolvimento do país, graças nomeadamente aos apoios comunitários. Entre 1970 e 2003 o PIB 'per capita' medido em PPP (Paridade do Poder de Compra) cresceu de pouco mais de 50% para cerca de 70% do mesmo indicador para a média da União Europeia (fonte: OCDE)12. A realidade social, econômica e política de Portugal hoje tem muito pouco em comum com àquela de há quase trinta anos atrás. Hoje em dia, as atividades tradicionais foram modernizadas e continuam desempenhando um papel importante, com 13% do emprego. Com uma taxa de desemprego das mais baixas da União Européia (4,1% em 2001) e sendo um dos primeiros países a ter cumprido os requisitos para integrar a zona do euro, Portugal tem sido considerado por alguns como um “pequeno dragão” da Europa13. Contextualizados historica e culturalmente, importa agora adentrar na questão da morte e vida da Constituição dirigente, a verificar se o sentido original da obra Constituição Dirigente de Canotilho ainda se aplica no contexto hodierno da sociedade portuguesa. De pronto se visualiza que há uma nova fonte normativa na realidade lusitana advinda de um outro plano, os Tratados da União Européia. Fazendo-se adiantar, na opinião de Canotilho todo o Título XI do Tratado da União Européia (Tratado de Amsterdã) referente à política social, à educação, à formação profissional e à juventude tem normas rasgadamente dirigentes. 5 O NOVO DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE Da mencionada Jornada acerca de mudança de entendimento do Professor Canotilho foi produzida uma obra na qual o mestre de Coimbra pôde expor melhor 9 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em: 03 jun. 2008. 10 Disponível em: <http://siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/GNI.pdf> Acesso em: 03 jun. 2008. 11 Disponível em: <http:///www.oecd.org>. Acesso em 03 jun. 2008. 12 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em 03 jun. 2008. 13 TENGARRINHA, José. (org.). História de Portugal. 2. ed. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2001. suas idéias acerca do prefácio da Constituição Dirigente. Seguem então as considerações do Professor Canotilho14 nela expostas: Em síntese, a minha resposta é esta: possoestar aberto a outros modos de concretização e de legalização do dirigismo constitucional, mas não estou aberto, de forma alguma, à liquidação destas dimensões existenciais que estão subjacentes à directividade constitucional. Concordo que devemos ver o que, histórica e culturalmente, originou este carácter dirigente. Penso que o desafio da Constituição dirigente não é o de torná-la rígida, devendo admitir-se que ela pode ser modulada de outra maneira, de acordo com as evoluções e as inovações. Mas os princípios básicos que estou a comentar não se discutem, porque eles são inerentes à nossa própria mundividência subjectiva ( a idéia de realização histórica da pessoa humana). De pronto já é possível notar que aquela idéia que foi espalhada aos quatro ventos da morte e enterro a sete palmos de terra da Constituição dirigente, segundo o próprio criador da teoria, de fato não ocorreu. Ao contrário, a teoria continua a existir enquanto for útil, enquanto for historicamente necessária15, e ela ainda deve se fazer presente, com alguns temperamentos evolutivos. Em decorrência deste racionalismo mutante do Professor Canotilho e ainda não bem compreendido, chegou-se a cogitar de um “Canotilho II”, segundo a citação de Salo de Carvalho, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos16: [...] Lenio Streck, com sua irreverência peculiar, forjou o termo Canotilho II, como forma de contrapor os posicionamentos do mestre de Coimbra: o original, do Prefácio à edição do Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, e o presente no nosso objeto de debate (Prefácio à 2ª edição). [...] Após a teleconferência com Canotilho ficou bem visível que não há um “Canotilho II”, não há um alfa ou ômega (existência de um ou o outro), mas um Canotilho diferente da realidade de vinte anos atrás. Não houve uma ruptura com o passado, apenas uma necessária atualização aos novos tempos. Não existe, pois, um “Canotilho II”, existe um Canotilho senhor de seu tempo (dentro de sua própria “mundividência subjectiva”). O posicionamento acima é corroborado pelos demais participantes do encontro, como é o caso do Professor da UFPR, Luiz Edson Fachin17: De certa maneira, ao escrever o novo prefácio à obra em discussão, percebeu-se, com clareza, que o Professor Canotilho não estava exatamente desdizendo o que disse, mas estava, de algum modo, colocando em questão as suas próprias idéias para avançar, e não necessariamente, abandoná-las. Antonio José Avelãs Nunes, também português, Professor da Universidade de Coimbra, resume a conclusão dos trabalhos: Havia aqui alguma preocupação resultante do receio de perder um aliado tão forte e tão prestigiado como tu nesta luta que os nossos Colegas vêm travando em terras brasileiras. Fui dizendo que não me parecia que este aliado estivesse perdido e penso que, como eu, eles também estão muito satisfeitos por terem concluído que, naquilo que é essencial, continuas junto deles. 14 CANOTILHO. Canotilho e a Constituição, p. 41. 15 Ibid., p. 39. 16 Ibid., p. 70. 17 Ibid., p. 59. Outro que segue a linha dos juristas já citados é o Professor Fernando Facury Scaff, da UFPA, segundo ele: Na realidade nós estamos vivenciando uma situação de contrafração de idéias. O que dizem que o Canotilho disse – a história do Canotilho 1, do Canotilho 2, do 3 -, não existe. Entendo que ele apenas retirou da sua dimensão de Constituição Dirigente o aspecto revolucionário. Acho que este é o grande ponto. Vencido pelos esclarecimentos do Professor Canotilho, Lenio Streck18conclui: Tenho que, ao final, confessar – e por isto corro o risco de ser chamado de jurássico – que continuo acreditando no papel dirigente da Constituição, naquele sentido como disse o Fachin, o sentido original.”, e nas palavras do mestre coimbrano19: “Então eu digo que a constituição dirigente não morreu. A Constituição dirigente não morreu em Portugal porque mesmo os Tratados da União Européia têm caráter dirigente, bem como também não morreu no Brasil, pois aqui como alhures a teoria ainda se faz necessária (ponto que será analisado logo após o estudo do contexto histórico brasileiro que norteou a Constituição de 1988). 6 O CONTEXTO BRASILEIRO Ainda no intuito de melhor compreender a assunção pela Constituição brasileira dos ensinamentos do mestre de Coimbra, cabe fazer uma análise do momento histórico-cultural brasileiro. 6. 1 O CONTEXTO DE ONTEM NO BRASIL Quando da elaboração da Constituição Cidadã (chamada assim por Ulysses Guimarães presidente da Assembléia Nacional Constituinte, o “Senhor Diretas”), o Brasil tal como Portugal saía de uma longa fase ditatorial, os conhecidos “anos de chumbo”. O Brasil tal como Portugal era um país pobre e eminentemente agrícola, com uma incipiente industrialização. Desde 1964 estava o Brasil sob o regime da ditadura militar, e desde 1967 particularmente subjugado às alterações decorrentes dos Atos Institucionais, em especial o mais feroz deles, o AI 5, que fechou o Congresso Nacional, recrudesceu a censura, proibiu as reuniões de cunho político, entre outras supressões de direitos civis e políticos20. Depois de mais de dez anos, impedida de realizar passeatas ou participar de comícios, boa parte da população urbana do Brasil saiu às ruas para promover, em abril de 1984 e em abril do ano seguinte, enormes manifestações populares que trouxeram a história de volta às praças e avenidas do país, eram as “Diretas Já”. Uma campanha que agitou o país naquele outono-verão da década de oitenta e que pretendia a realização de eleições diretas para presidente. Muito embora houvesse o clamor popular, o Congresso por 22 votos não aprovou a emenda que estabelecia a volta das eleições para presidente. A redemocratização coube ao Presidente José Sarney, vice do eleito pelo Colégio Eleitoral Tancredo Neves que falecera antes de tomar posse vítima de um tumor no intestino. Sarney acelerou a redemocratização do país, o sistema de exceção fez crescer, durante o processo de abertura política, o anseio por dotar o Brasil de uma 18 CANOTILHO. Canotilho e a Constituição, p. 85. 19 Ibid., p. 31. 20 Disponível e: <http://pt.wikipedia.org. Acesso em: 03 jun. 2008. nova Constituição, defensora dos valores democráticos, e em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição.21 6. 2 O CONTEXTO DE HOJE NO BRASIL Na atualidade, o Brasil se consolidou como um Estado Democrático de Direito. Por outro lado, a desigualdade social ainda continua a ser uma dura realidade, mas o país tem avançado em várias áreas. Se por um lado os números são frios, por outro, demonstram que realmente ocorreram melhoras no aspecto social. Dessa forma, tanto o BNDES22 quanto os indicadores das Nações Unidas acerca da população brasileira23 de 1950 até 2005 demonstram melhoras significativas no índice de desenvolvimento social. Entretanto, apesar dos perceptíveis avanços, o Brasil continua tendo uma grande parte da população com ainda elevados índices de pobreza. Ficou fácil perceber que o passado que antes unia a realidade brasileira e portuguesa não corresponde mais ao presente. Se antes existiam identidades na realidade dos dois países que saíam de lutas contra ditaduras, e tinham uma economia fraca, com baixo índice de desenvolvimento humano, estas simplesmente desapareceram no tempo, contexto e texto. No contexto histórico cultural e sócio econômico, como visto, Portugal e Brasil são países, hoje, totalmente distintos. No texto constitucional, as diferenças também são marcantes. 7 O TEXTO – AS CONSTITUIÇÕES PORTUGUESA E BRASILEIRA O texto revolucionário socialista da ConstituiçãoPortuguesa de 1976, com as várias reformas constitucionais e mudanças sociais, morreu; o projeto de modernidade cresceu e vive muito bem obrigado.24 Na dita pós-modernidade, a Constituição nacional lusa faz parte de uma rede que, com outras Constituições nacionais dos países comunitários, forma a “Constituição Européia”25. Entretanto, no Brasil, de acordo com o Professor Canotilho a situação é diferente: Bem, é óbvio que as constituições européias estão a resolver problemas sociais, econômicos e culturais de uma forma diferente daquela que temos hoje no nosso contexto. Quer queiramos quer não, os senhores têm milhões de fundos comunitários que foram auxiliar as vossas políticas sociais, mas o Brasil não tem milhões de fundos comunitários. No vosso país, os fundos comunitários foram sedimentando alguma coesão social, mas o Brasil não tem coesão econômica e social com fundos comunitários ou com outros fundos. No vosso país, foi-se radicando a idéia de acompanhamento da qualificação profissional e da promoção do emprego à medida que se fazem mudanças estruturais no tecido enonómico e no tecido industrial, mas o Brasil não tem, afinal de contas, essas possibilidades e não tem havido essas medidas de 21 BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. 2. ed. Revista, São Paulo: Ática, 2003. 22 FERREIRA, Francisco Marcelo da Rocha; Gisele Costa Norris; Lavinia Barros de Castro. A renda foi um fator de desenvolvimento em 2006. Rio de Janeiro, Revista Visão do Desenvolvimento BNDES, n. 42 6 dez 2007. Disponível em <http://www.bndes.gov.br/conhecimento/visao/visao_42.pdf>. Acessi em 05 jun. 2008. 23 Population Division of the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations Secretariat, World Population Prospects: The 2006 Revision and World Urbanization Prospects: The 2005 Revision. Disponível em: <http://esa.un.org/unpp>. Acesso em: 06 jun. 2008. 24 CANOTILHO. Canotilho e a Constituição p. 14. 25 Ibid., p.23. acompanhamento de uma política de formação profissional e de uma política de emprego. Quanto à manutenção dos ideais programáticos da Constituição dirigente, o mestre de Coimbra verificou que “o que consideramos programático está agora nos Tratados da União Européia. Vários aspectos da Constituição portuguesa aparecem hoje ‘copiados’ nas políticas da União Européia.”26 Analisando o caso brasileiro, em outro trecho, complementa, asseverando a importância do papel do Estado como realizador dos programas da Constituição dirigente: no Brasil a centralidade é ainda do estado de direito democrático e social, que a centralidade ainda é do texto constitucional, que é carta de identidade do próprio país, que são estes direitos, apesar de pouco realizados, que servem como uma espécie de palavra de ordem para a própria luta política.27 8 CONCLUSÃO Apesar da análise do contexto histórico que demonstra as iniciais semelhanças, e hodiernas diferenças entre Brasil e Portugal, o que se pode perceber é que as boas idéias possuem a natural tendência de se eternizar e se auto-adaptar, mesmo nas complexas sociedades pós-modernas com todas as transformações e particularidades. A Constituição dirigente é uma idéia que merece permanecer enquanto for útil ao ideal de uma determinada sociedade. Fazendo uma esdrúxula comparação, seria muito interessante se fosse possível fazer uma videoconferência com Montesquieu para saber se, na atual conjuntura, sua teoria da separação de poderes teria morrido. Talvez sua postura fosse à mesma do Professor Canotilho, ou seja, enquanto necessários ao seu momento histórico-cultural, os paradigmas continuarão existindo. Quando não puderem mais responder às novas perguntas, estarão em crise. 26 CANOTILHO. Canotilho e a Constituição p. 37. 27 Ibid., p. 35.
Compartilhar