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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA HISTÓRIA, CULTURAS E LÍNGUAS INDÍGENAS

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA HISTÓRIA, CULTURAS E LÍNGUAS INDÍGENAS
Ricardo Tupiniquim Ramos
1. O índio: identidade, quantidade, diversidade
“Sou pataxó, sou kaingang, kariri, yanomami , sou tupi, guarani, sou karajá.
Sou pankararu, carijó, tupinajé, potuguar, sou caeté, fulniô, tupinambá”.
(jingle de abertura do documentário “Índios do Brasil: quem são eles”. CARRELLI, 2000)
Índios, indígenas, ameríndios, brasilíndios, aborígenes, negros da terra, gentios, silvícolas, incivilizados, populações nativas americanas, povos originais da América, sociedades pré-colombianas, sociedades pré-cabralianas... Tantos são os nomes para designar o conjunto de povos que habitavam o continente americano (ou sua parcela hoje correspondente ao território brasileiro) antes da chegada dos primeiros europeus, na Era Moderna, que, muitas vezes, nos sentimos perdidos, sem saber qual deles usar, sobretudo nesses tempos em que o uso de uma nomenclatura “politicamente incorreta” pode causar problemas...
De todas as nomenclaturas acima, a mais simples – e talvez, por isso, mais popular – é índio. Contudo, não é por isso que ela é tão fácil de definir. 
Houaiss (2001, p.1606) entende índio como “aquele que é originário de um grupo indígena é por este reconhecido como membro”. Ora, portanto, sem conhecer o significado de indígena, não se pode compreender o de índio. É esse o sentido registrado pelo dicionarista para aquele outro termo: 
1. relativo a ou população autóctone de um país ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador[�].
1.1 relativo a ou indivíduo que habitava as Américas em período anterior à sua colonização por europeus. (HOUAISS, 2001, p.1605). 
Assim, pelo que se depreende dessas definições, o termo índio, conforme dicionarizado por Houaiss, teria o sentido de indivíduo originário de grupo humano habitante da América em período anterior à chegada dos europeus ao continente e ao estabelecimento do processo colonizador moderno.
Também o texto regulador das relações dessa parcela de brasileiros com seus demais compatriotas cita essa origem como um elemento determinante da identidade indígena; índio seria o “[...] indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional“ (Lei 6001/73 – Estatuto do Índio, cf. <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm> – grifos nossos). Além disso, como se vê, a referida lei aponta outros elementos essenciais para a caracterização do índio: a auto-identificação (critério levado em conta, inclusive, pelo IBGE na contagem da população indígena do país) e o reconhecimento de seu grupo étnico.
Não é muito diverso o sentido desse termo nas Ciências Sociais:
[…] parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato. (RIBEIRO, 1957)
De toda sorte, pelo que informa Nascentes (apud HOUAISS, 2001, p.1606), a denominação índio “[...] provem de um equivoco� de [Cristóvão] Colombo que, ao tocar a ilha de Guana(h)ani, pensou ter chegado às Índias... apesar de se ter desfeito de seu engano, o nome ficou e foi preservado até hoje para designar os nativos do Novo Mundo”. Assim, tanto índio quanto indígena (Cf. nota 1) são termos empregados pelos conquistadores europeus para designar genericamente a população nativa do continente americano à época de sua “descoberta” pelo Velho Mundo.
Atualmente, nos Estados Unidos e no Canadá, rejeita-se o uso das palavras índio e indígena, preferindo-se, em seu lugar, expressões como “povos originalmente americanos”, “populações americanas originais” ou “nativas culturas americanas”. A mesma rejeição se dá na Bolívia, Venezuela e Argentina, só que se optando pelas denominações “povos originários” ou “nações originárias”. No Brasil, contudo,
[...] houve uma reapropriação ou ressignificação dos nomes genéricos que durante a história tiveram conotação pejorativa. Isso aconteceu porque o movimento indígena brasileiro acreditava que era importante utilizar essas definições genéricas para se constituírem enquanto identidade conjunta e de união para a busca de direitos a essas populações. (COLLET, PALADINO, RUSSO, 2014)
A partir dessa citação, podemos concluir que, hoje, no Brasil, os diversos povos indígenas estão organizados para lutarem juntos por questões consideradas legitimas por todos eles perante a sociedade brasileira do entorno. Adiantando uma discussão da qual trataremos daqui a algumas aulas, podemos dizer que, ao lado da principal questão (a demarcação de suas terras), há outras importantes – educação diferenciada (inclusive em língua própria, se ainda existente) e gerida pela própria comunidade; assistência à saúde; participação nas esferas de decisão política (com a existência, inclusive, de cotas nas casas legislativas; etc. –, para lhes garantir o principal direito de todos: o de continuarem a ser culturas diferenciadas, enquanto diferentes formas de existir no mundo.
Mas, afinal, quantos são esses seres brasileiros que têm o direito de o serem de forma diferenciada? Quantos povos indígenas ainda há no Brasil? Que línguas eles falam? Eles moram apenas nas florestas?
Bem, partindo da taxa de crescimento vegetativo dessa parcela da população brasileira, em 2012, o IBGE realizou a última projeção atualizadora dos dados demográficos coletados no Censo 2010, chegando ao seguinte resultado:
Quadro 1: Estimativa da população indígena brasileira em 2012 por zona de habitação: quantidade e percentual
	
	QUANTIDADE (%)
	ZONA RURAL
	551.604 (61,5%)
	ZONA URBANA
	345.313 (38,5%)
	TOTAL
	896.917 (100%)
	Fonte: IBGE (2012)
Ora, segundo aquelas mesmas projeções atualizadoras, em 2012, a população total do país contava 192.891.316 habitantes; assim, a parcela identificada como indígena (896.917 indivíduos) correspondia a apenas 0,42% desse total de brasileiros.
Considerando as grandes regiões do país, essa população indígena se distribui de acordo com o seguinte quadro:
Quadro 2: Estimativa da população indígena brasileira em 2012 por região: quantidade e percentual
	REGIÕES
	QUANTIDADE
	%
	Norte
	342.836
	38,25
	Nordeste
	232.739
	25,95
	Centro-Oeste
	142.42
	15,90
	Sudeste
	99.137
	11,10
	Sul
	78.773
	 8,80
	BRASIL
	896.917
	100
Levando em conta os Estados, segundo Franchetto (1999, p.6), “Atualmente, há apenas dois estados brasileiros nos quais não vivem populações indígenas: Piauí e Rio Grande do Norte”.
	Essa população se distribui em algo entre 215 e 315 etnias�, a maior parte das quais só falam o português, tendo perdido sua língua própria ao longo da história de seu contato com a sociedade envolvente (a nossa). Contudo, alguns povos conseguiram preservar suas línguas, de forma que, hoje, ainda são faladas no Brasil cerca de 180 línguas indígenas, todas em risco de extinção�, algumas praticamente extintas,
	Você sabia que...
boa parte dos índios brasileiros:
sofre ou já sofreu algum tipo de discriminação devido a sua etnia?
está nas camadas mais baixas da sociedade, não tendo acesso a serviços públicos básicos de qualidade mínima?
não consegue acesso a postos de trabalho elevados na sociedade devido à baixa escolaridade e à falta de preparo técnico-profissional?
devido a seu reduzidíssimo número de falantes:
algumas etnias possuem população numerosa. [...] No extremos oposto, há etnias muito pequenas, que sobrevivem com os poucos remanescentes de povos outrora numerosos. [...] Muitas vezes, pequenas etnias se juntam aoutras maiores, para conseguir sobreviver e crescer. [...] Em várias aldeias, vivem pessoas pertencentes a mais de uma etnia nas quais se fala, em consequência, mais de uma língua. (FRANCHETTO, 1999, p.6-7)
É claro que isso nem sempre foi assim. 
Segundo Rodrigues (1993), quando da chegada de Cabral, em 1500, os índios habitantes do atual território brasileiro eram 5 milhões, falantes de aproximadamente 1200 línguas. Por sua vez, o IBGE (apud Kouryh, 2008) sugere outros números: seriam 2.432.000 índios. Contudo, ambas as quantidades são projeções. Não há dados históricos sobre a demografia indígena anterior à colonização�. Todavia, essa escassez de dados não é exclusividade brasileira, pois 
Dificuldades metodológicas e a precariedade de dados históricos impossibilitam uma uniformidade de opiniões quanto ao montante da população aborígene na época da conquista da América. Avaliação mais baixa dos chamados estudos “clássicos” é de 8 milhões e 400 mil índios e , a mais alta, de 40 a 50 milhões, para toda a América. Se aceitarmos essa última estimativa, verificaremos que, em quatro séculos, a população nativa americana foi reduzida a um oitavo do montante original. Estudos recentes, porém, mostram que o descenso foi muito mais drástico, devido principalmente à incidência de doenças antes desconhecidas (varíola, gripe, sarampo, tuberculose, sífilis, etc.) e ao rigor da escravidão. (RIBEIRO, 2009, p.30)
	De qualquer forma, a partir das projeções acima (as históricas e as atuais), em pouco mais de 510 anos o descenso da população indígena brasileira teria sido de entre 63% e 82% das cifras originais; já o das línguas atingiria o percentual um pouco maior de 85%. Isto significa não apenas um dos maiores genocídios da história, como, certamente, o maior gloticídio (deliberada extinção de línguas): 
	Você sabia que... 
nossos ancestrais índios foram escravizados pelos invasores portugueses ao longo da colonização?
os índios da costa nordestina foram exterminados até o final do século XVI?
mesmo proibida por bula papal e leis portuguesas e, depois, brasileiras, os índios continuaram a ser escravizados e massacrados ao longo de toda nossa história?
[...] o vulto do genocídio praticado pela conquista e colonização europeia na América, pelo contrário, muitas vezes proposital, de doenças, da brutalidade da escravidão e das condições de vida impostas aos índios, não tem paralelo em toda história. Para justificar sua ferocidade, os europeus chegaram a negar a condição de criaturas humanas aos habitantes na América. Foi preciso que uma bula do papa Paulo III, de 9 de junho de 1537, proclamasse os índios ‘verdadeiros homens e livres”. (RIBEIRO, 2009, p.33)
Contudo, ao contrário do que diz a história escrita pela elite branca e ensinada na escola, nossos ancestrais índios resistiram à escravidão e massacres, lutando pela sua liberdade e sobrevivência. Não fosse essa luta, provavelmente não haveria índios no Brasil hoje, pois todos teriam sido exterminados ou culturalmente assimilados. Ao processo de luta e organização dos povos indígenas, existente desde a época da escravidão, em prol de sua liberdade e emancipação e da preservação de suas culturas, ainda hoje existente e vigoroso, chamamos resistência indígena.
Imaginamos que, ao acessar a esse tipo de informação pela primeira vez, o leitor se pergunte por que não se fala da resistência indígena à invasão do Brasil e à escravidão pelos colonizadores. Bem, são várias as causas: a existência do racismo em nossa sociedade; a crença na ausência de racismo no Brasil, país da democracia racial; falta de divulgação de pesquisas e livros sobre o tema; o desconhecimento dos processos de resistência indígena no Brasil, mesmo por intelectuais.
Para não haver dúvida sobre a existência dessa resistência indígena, no passado, vamos elencar algumas de suas manifestações. Havia formas mais difusas de resistência, como, por exemplo: a insubmissão às regras de trabalho nas roças ou plantações onde trabalhavam; as fugas dos aldeamentos e fazendas; o suicídio individual ou coletivo; ou, ainda, busca de apoio de aliados religiosos – fossem padres católicos ou missionários protestantes – ou militares (por exemplo, o marechal Cândido Rondon, já no século passado) ou civis (como, por exemplo, os irmãos Villas-Boas e Darcy Ribeiro, também já no século XX). Por outro lado, sempre houve luta armada. Na era colonial, destacamos os seguintes conflitos, alguns dos quais trataremos daqui a algumas aulas:
a) o movimento da Santidade Jaguaripe (Bahia, 1549); 
b) a Confederação dos Tamoios (Rio de Janeiro, 1554-1567); 
c) a Guerra dos Aimorés (Bahia e Espírito Santo, 1555-1673); 
d) a Guerra dos Potiguares (Paraíba e Rio Grande do Norte, 1583-1599); 
e) a Confederação dos Kariris ou Guerra dos Bárbaros (CE a PE, 1683-1713);
f) as “correrias” indígenas (MT, século XVIII);
g) a Guerrilha dos Muras (AM, PA, MT, todo o século XVIII);
h) a Revolta de Mandu Ladino (1712-1719);
i) a Guerra dos Manaus (1723-1728);
j) a Guerra Guaranítica (1753-1756).
Provavelmente, você deverá estar surpreso(a), pois não sabia da existência de todos esses conflitos, chamados guerras indígenas coloniais. Creio que, igualmente, você não imaginava que houve envolvimento indígena nos fatos históricos do período imperial (1822-1889) relacionados abaixo (do qual trataremos ainda nesta introdução), mesmo já tendo estudado alguns deles na Educação Básica:
a) a Guerra de Independência do Brasil (BA, 1822-1823);
b) a Cabanada (PE, AL, 1832-1835);
c) a Cabanagem (AM, PA, 1835-1839);
d) a resistência da aldeia da Escada (PE, todo o século XIX);
e) os movimentos rebeldes pernambucanos do período, como a Confederação do Equador (1824);
f) a colonização da região Sul (século XIX);
g) a Guerra do Paraguai (1864-1870).
O processo de resistência indígena no Brasil teve continuidade durante todo o período republicano (após 1889), resultando, ao longo do século XX, no surgimento e desenvolvimento de políticas indigenistas, ou seja, de ações do poder público em prol do atendimento das demandas sociais dessa parcela da população, cujas principais conquistas estão consolidadas na Constituição Federal de 1988: a gradual demarcação de suas terras; a garantia de uma educação escolar indígena com currículo diferenciado e gestão pela comunidade: a escolarização inicial em línguas nativas; e a criação de Distritos de Saúde Indígena. Contudo, boa parte desses e de outros direitos precisam de regulamentação e, quando esta já existe, de implementação. É justamente aí que estão as demandas da população indígena brasileira hoje, como vocês poderão ver no material de leitura complementar, a ser distribuído nos e-mails individuais e na Funpage do Colegiado de Letras no Facebook.
Finalmente, cabe-nos afirmar que, do processo de resistência indígena resultou a contribuição dessas etnias para a construção da sociedade brasileira. São inúmeras as manifestações culturais brasileiras que têm o pé na taba:
a língua majoritariamente falada no país, criada a partir de três bases (o português falado pelo colonizador europeu, as línguas indígenas e as diversas línguas africanas aqui introduzidas) e difundida em todo país pelos constantes deslocamentos das populações negras escravizadas
a onomástica brasileira (nomes próprios de pessoas, lugares e famílias)
a religiosidade popular, em toda sua diversidade, com a encantaria ou pajelança e os elementos indígenas presentes, por exemplo, no Catolicismo popular (e mesmo, segundo Prezzia (2007), em movimentos evangélicos contemporâneos), na Umbanda e no Candomblé (os caboclos e caboclas); 
a medicina popular, com o conhecimento da manipulação de ervas, raízes, plantas e animais;
diversas manifestações rítmicas e de expressão corporal, envolvendo música, dança e luta;
uma estética diferente, um modo diferente de ser belo(a).
Tratemos, agora, da origem e diversidade das populações ameríndias.2. Origem e diversidade das populações ameríndias
“O povoamento do Novo Mundo, desde o frio intenso do Ártico ao calor sufocante da Amazônia e até os ventos tempestuosos da Terra do Fogo, conitnua sendo uma das maiores conquistas da humanidade”. (PRINGLE, 2005, p.60)
Desde a descoberta do Novo Mundo, no final do século XV, a cultura ocidental se pergunta sobre a origem e a natureza das populações indígenas, não tendo chegado a dados definitivos, a despeito dos cinco séculos de contato. 
No início da era colonial, a simples existência dessas populações já era um enigma. A justificativa da presença humana na América era uma das preocupações da intelectualidade europeia de então. Quem seriam aqueles homens “pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas” (CAMINHA, 1990, p.8), que não eram negros, mouros, nem hindus? Descenderiam de qual tribo de Israel ou de qual filho de Noé? Teriam alma? Sim? Como poderiam viver tanto tempo à margem de Deus?
Segundo a versão bíblica para o início dos tempos – única aceitável para a Europa daquela época –, a humanidade teria surgido de um ato criador divino a partir do primeiro casal, Adão e Eva, ele moldado diretamente do barro, ela, de uma de suas costelas. Após desobedecerem ao criador, o casal foi expulsos do paraíso e passaram a viver de seu trabalho na terra. O mais velho de seus filhos (Caim) assassinou o segundo (Abel) e, amaldiçoado por Deus, saiu errante pelo mundo, passando, ele e sua descendência, a carregar na pele uma marca de seu crime. 
Segundo ainda o texto bíblico, Adão e Eva tiveram um terceiro filho, Set, e após ele, outro(a)s descendentes, não nomeados. A partir deles, o gênero humano passou a crescer, mas, com o crescimento, veio a corrupção e, por isso, Deus decidiu exterminar sua obra-prima por meio de um dilúvio, dela só salvando o único varão fiel à sua palavra – Noé – e sua família. Após a catástrofe diluviana, o mundo foi repovoado pelos filhos de Noé e suas respectivas famílias:
Sem seria antepassado direto dos europeus e asiáticos;
Cam – amaldiçoado pelo pai por ter-lhe visto a nudez – saiu errante pelo mundo, tornando-se ancestral dos atuais africanos;
Jafé e seus descendentes não têm claramente especificado no texto bíblico os rumos após partirem do Monte Ararat, onde a arca teria encalhado.
Curiosamente, um mito Tupinambá ajudou a intelectualidade europeia do início da colonização da América a resolver, naquele momento, a intrincada questão sobre a origem do homem americano, que contradizia ou não se explicava pela Bíblia, única fonte, então, para esse tipo de explicação. Segundo esse mito, um ancestral daqueles índios chamado Tamandaré e sua família se salvaram de um dilúvio universal subindo na copa de um altíssimo jenipapeiro; enquanto a inundação durou, não desceram de lá e se alimentaram, junto com outros animais, dos frutos da árvore. 
Esse mito está registrado nos autos de um complicadíssimo processo de Direito Internacional ocorrido em Madri no século XVII, arbitrado pela Igreja. A discussão era sobre o caráter humano das populações indígenas� americanas e africanas. Havia duas teses. Segundo o filósofo Sepúlveda, assim como os negros africanos, os ameríndios eram bestas-feras entre os seres humanos e os animais irracionais e, portanto, poderiam ser escravizados; contudo, com base no mito Tupinambá acima descrito, Las Casas defendeu a humanidade dos índios americanos, tomados por descendentes indiretos de Adão, via o terceiro filho de Noé, Jafé. Para esse teórico, o dilúvio do mito Tupinambá era o bíblico, alterado ao longo dos milênios, mas conservado em sua essência: a inundação e destruição do mundo, a salvação de uma única família humana refugiada em elemento de madeira. Assim, como seres humanos plenos, os ameríndios não poderiam ser escravizados, mas deveriam ser salvos do barbarismo pelo encontro com Cristo, a cujo chamado naturalmente atenderiam. Como esse discurso atendia aos interesses da Igreja pela conquista espiritual de novas almas, foi prontamente aceito pelo papa Urbano VIII que, por meio de uma bula datada de 1680, decretou que:
a) embora também devesse ser apresentado a Cristo, o negro africano não era um ser humano em sua completude, o que justificava ser escravizado�.
b) o índio americano era humano e não poderia ser escravizado, a não ser em situação de guerra justa, decidida essa justeza pela autoridade europeia local�;
c) como homem pleno, ele deveria ser apresentado a Cristo por missionários da cristandade, segundo as recomendações do Concílio de Trento.
Até aproximadamente o século XIX, a origem do homem americano não incomodou mais a intelectualidade europeia. Todavia, no início do século passado, a descoberta de artefatos de uma antiquíssima sociedade, identificada como Cultura de Clóvis�, a questão voltou à tona e, então, se elaborou uma hipótese (o chamado Consenso de Clóvis), segundo a qual os paleoíndios – ancestrais dos atuais povos ameríndios – entraram no continente durante a última glaciação, que permitiu a passagem para o Novo Mundo através da Beríngia�, entre 14 mil e 13 mil anos antes do presente (doravante, AP), isso porque no fim da última era glacial, partes das duas grandes placas de gelo que cobriam o Canadá começaram a derreter, fazendo surgir um corredor livre de gelo de uns 25 km de largura. Aberto esse corredor, os humanos residentes em Beríngia poderiam avançar até o interior da América e ir para o sul.
	Mapa 1: Rota do Caminho Livre de Gelo
Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4163883
	Mapa 2: O atual Estreito de Bering
Fonte: http://aulasdegeo-1.blogspot.com.br/2007/02/formao-da-populao-brasileira.html
Em 1928, a presença de sítios de grande antiguidade na América do Sul e a escassa quantidade deles na do Norte, além das diferenças de genes e fenótipos entre os paleo-índios sul-americanos e norte-americanos (os do sul, traços mais australoides; os do norte, traços mais mongoloides), levou Correia a sugerir uma nova hipótese, pela qual o povoamento da porção austral do continente foi independente em relação à porção Norte e teria ocorrido apenas a partir da Antártida ou da Austrália.
Em 1943, Rivet aventou nova hipótese: o povoamento da América também teria ocorrido da Melanésia para a Polinésia e desta à América, por meio de balsas primitivas.
Também houve quem defendesse a origem europeia� do ameríndio. Assim, por exemplo, em trabalhos datados de 1928 a 1931, Cottevielle-Giraudet tentou provar que os índios algonquinos ou peles-vermelhas descenderiam do homem de Cro-Magnon; Greenman (1963, apud Renan 2012), que os beotucos de Terra Nova procederiam de mirantes europeus do período paletolítico superior.
Em 1950, Frau propôs a hipótese da imigração humana para a América a partir de quatro rotas migratórias: 
a pé pela Beríngia com fixação no Norte do continente;
da Beríngia, só que navegando em canoas pelas Ilhas Aleutas, atingindo o Noroeste da América do Norte;
do Sudeste Asiático, navegando através do Oceano Pacífico para a América Central e do Sul.
Mapa 3: As três possíveis rotas de imigração do homem para a América, segundo Frau
	
Fonte: www.historiamais.com/homemamericano.htm
Contudo, na década de 1990, pesquisas genéticas inter-relacionadas passaram a contestar a data proposta para o povoamento da América pelo consenso de Clóvis. Daí resultou uma tremenda controvérsia sobre essa data.
Inicialmente, em 1990, Douglas Wallace determinou que 96,9% dos ameríndios estavam agrupados em quatro haplogrupos mitocondriais (A, B, C, e D), o que significa uma notável homogeneidade genética. Quatro anos depois, junto com James Neel, ele estabeleceu um método para calcular a velocidade em que muda o DNA mitocondrial, chegando às seguintes marcas aproximadas: 
origem do Homo sapiens, na África: entre 100.000 e 200.000 anos AP; 
saída do Homo sapiens desse continente: entre 75.000 e 85.000 anos AP; 
chegada à América: entre 22.414 e 29.545 anos AP.Em 1999, Bianchi analisou a herança genética paterna de índios sul-americanos e concluiu que até 90% dessa população deriva de uma só linhagem paterna fundadora (DYS199T), que colonizou o continente desde a Ásia através da Beríngia há 22 mil anos.
Em 2005, pesquisa desenvolvida por Andrew Merriwether indicou a evidência genética de que a América foi povoada por uma só população proveniente da Mongólia. Dentro dos quatro haplógrupos do continente, foi possível localizar mutações genéticas diferentes, caso se tratasse de indígenas da América do Sul ou do Norte. A interpretação dada a esse fato é a de que, uma vez entrando na América, alguns grupos migraram rapidamente até a América do Sul, enquanto outros povoaram a América do Norte e a América Central. Por sua vez, as mutações genéticas mostram migrações entre a América do Sul e a América Central (Panamá e Costa Rica), mas não mais além.
Em 2007, pesquisa desenvolvida por um grupo de geneticistas indicou que a saída da Beríngia deve ter-se produzido seguindo a rota costeira do Pacífico, em um período entre 19-18 mil anos e 16-15 mil anos AP. 
Por outro lado, indícios achados em sítios arqueológicos em diversos pontos do continente trazem datações anteriores a esse período, como se vê abaixo: 
Quadro 3: Sítios arqueológicos, sua localização e a datação de seus artefatos
	SÍTIO ARQUEOLÓGICO
	LOCALIZAÇÃO
	DATAÇÃO DOS ARTEFATOS
	São Raiumundo Nonato
	Brasil
	48 mil anos AP
	Lapa Vermelha e Santa Elina
	Brasil
	25 mil anos AP
	Alice Boer, Abrigo Santana, Abrigo do Sol e Arroio dos Fósseis
	Brasil
	12 a 15 mil anos AP
	Monte Verde II
	Chile
	33 mil anos AP
	Pedra Furada
	Brasil
	60 mil anos AP
	Toca da Esperança
	Brasil
	entre 204 mil e 295 mil anos AP
Ora, a datação dos vestígios encontrados nesse último sítio (indústria lítica de bordas e lascas) indica a presença humana antes do surgimento do Homo sapiens, o que significa que o povoamento humano na América pode ter ocorrido há cerca de 300 mil anos AP, durante a glaciação illinoiense, por alguma variante do Homo erectus (cf. Renan, 2012).
Assim, graças a sítios arqueológicos descobertos no Brasil, no fim do século passado, o conhecimento atual sobre o tema tem pressupostos muito mais sólidos e, paradoxalmente, maiores enigmas: um crânio feminino datado de 11.500 anos e retirado de escavações na região de Lagoa Santa (MG) teve os tecidos musculares, pele e demais órgãos da face modelados. Feito na Inglaterra por um conjunto de especialistas brasileiros e britânicos, o trabalho revelou a face de uma mulher com traços muito mais parecidos com grupos humanos da África e Austrália que com aqueles típicos dos grupos asiáticos, o que parecia desmentir a tese anterior, de povoamento da América a partir da passagem pelo Estreito de Bering.
	Luzia – nome dado à dona da face reconstruída – traz a chance de ter havido pelo menos mais uma onda migratória para as Américas, e desta vez por grupos da Ásia central, descendentes diretos dos primeiros seres humanos modernos, vindos da África, o que certamente teria ocorrido dezenas de séculos antes de 12.000 anos AP, quando do derretimento da passagem do Estreito de Bering.
Hoje, não resta dúvida de que o homem alcançou as Américas (e o Brasil) muito antes do que se imaginava, ocupando o território ainda durante o chamado período Pleistocênico, caracterizado por uma grande instabilidade ambiental: clima mais seco e temperaturas sensivelmente mais baixas; poucas manchas de florestas e grande parte da paisagem formada por vegetação baixa (cerrados e caatingas).
	Figura 1: Luzia
Fonte:http://nossahistoria2012.blogspot.com.br/2012/04/luzia-o-fossil-mais-antigo-encontrado.html
Assim, hoje, pensa-se o povoamento da América a partir do sudeste da Ásia, região de onde o homem teria saído e, percorrendo a Micronésia e a Polinésia, alcançado a América Central e do Sul (ver mapa 4) entre 25 mil e 15 mil anos atrás. Essa primeira população teria sido posteriormente eliminada ou, em alguns casos, assimilada pelos ancestrais de nossos atuais índios, esses sim aqui chegados a partir de 3 rotas:
da Ásia central, pela Beríngia, há 13 mil anos – essas populações teriam originado os atuais esquimós; 
das ilhas asiáticas, pela costa da Beríngia no sentido sudeste-nordeste, para a costa oeste da América, há 16 mil anos – essas populações teriam se fixado no atual Canadá e no sudoeste dos EUA, sendo ancestral dos índios na-denos;
do sudoeste asiático para a Austrália e Nova Zelândia – teriam, lentamente, atingido a América Central e do Sul, originando os demais grupos indígenas atuais. 
	Essa atual hipótese da antropologia confirma polêmico estudo comparativo das línguas indígenas realizado em 1987 por Greenberg. Comparando o vocabulário de centenas dessas línguas, ele verificou que os itens menos modificados estavam em apenas três grupos, dotados, cada um, de mais semelhanças com grupos asiáticas do que entre si. Na obra Language in the Americas, ele classificou as línguas indígenas americanas em três grupos, cada um com sua própria língua ancestral: o esquimó-aleutiano (no círculo ártico), o na-deno (no Canadá e sudoeste 
	Mapa 4: As navegações pelo Pacífico e o povoamento da América
Fonte: http://aquisotemhistoria.blogspot.com.br/2014_08_24_archive.html
dos Estados Unidos) e o ameríndio (no resto do continente). A inovação dessa proposta é o agrupamento de línguas não pertencentes às famílias esquimó-aleuta e na-deno na ameríndia.
Essa atual hipótese da antropologia confirma polêmico estudo comparativo das línguas indígenas realizado em 1987 por Greenberg. Comparando o vocabulário de centenas dessas línguas, ele verificou que os itens menos modificados estavam em apenas três grupos, dotados, cada um, de mais semelhanças com grupos asiáticas do que entre si. Na obra Language in the Americas, ele classificou as línguas indígenas americanas em três grupos, cada um com sua própria língua ancestral: o esquimó-aleutiano (no círculo ártico), o na-deno (no Canadá e sudoeste dos Estados Unidos) e o ameríndio (no resto do continente). A inovação dessa proposta é o agrupamento de línguas não pertencentes às famílias esquimó-aleuta e na-deno na ameríndia.
Essa divisão tripartite implica que houve pelo menos três migrações distintas provenientes da Ásia, hipótese também já reforçada por pesquisa genética executada em 1988 pelo italiano Luigi Cavalli-Sforza, que justifica o sincronismo da história genética e da linguística: os genes não têm nenhum efeito direto sobre as línguas, mas, como a língua materna depende do local de nascimento e do meio familiar e social, os genes e as línguas se diferenciam ao mesmo tempo, após seu isolamento.
Além disso, a partir de dados sobre a dentição das populações indígenas americanas, o especialista em dentição humana Christ Turner mostrou que elas se distribuem nos três mesmos grupos definidos pelo linguista e, em 1991, o geneticista Douglas Wallace fortaleceu a controvertida hipótese linguística ao demonstrar que os falantes das línguas ameríndias formavam um mesmo grupo.
Assim, a despeito de todas as controvérsias teóricas, a julgar por essa série de confluências de dados de tantas ciências, parece ser essa a origem da diversidade étnica, biológica e linguística das populações ameríndias.
3. A ocupação pré-cabraliana do atual território brasileiro
Segundo Oberg (1995, apud Fausto 2000), quando chegaram à América no início da era moderna, os primeiros colonizadores europeus encontraram os povos ameríndios organizados a partir de cinco formações políticas:
tribos� – organizações associadas ao nomadismo que reúne pessoas a partir de um tipo de chefia temporária, mas com suficiente prestígio para mobilizar pessoas para a guerra ou outros fins específicos;
cacicados ou chiefdoms politicamente organizados – organizações com um centro de poder supralocal, mas não um Estado;
Estados de tipo feudal: sistemas multiétnicos e multilinguísticos, culturalmente homogêneose internamente pacíficos, articulados por rituais, por trocas de bens de valor e relações matrimoniais, compostos de pequenas comunidades locais relativamente móveis, com economia igualitária e descentralizada de subsistência e sistema político hierárquico distintivo entre juniores e sêniores e em linhas de chefia;
cidades-estados: sociedades com extenso território densamente povoado, separados de outras congêneres por área desabitada; dotadas de estruturas públicas com função político-cerimonial e articulação entre diferentes povoados; marcadas por ausência de guerra interna e por guerra externa, identidade linguística e cultural; 
impérios teocráticos: sociedades complexas, com centralização política e religiosa, aparelho estatal desenvolvido (órgãos de administração pública e tributação), estratificação social, sistemas intensivos de produção agrícola e pecuária extensiva, especialização profissional e desenvolvimento de técnicas e tecnologias.
Uma interpretação possível para a existência dessas formações sociais é que 
[...] a cada uma das formas organizacionais corresponde um limiar demográfico, pois se supõe que o desenvolvimento institucional é uma resposta adaptativa ao crescimento populacional. À medida que a população aumenta e se adensa, novos mecanismos de integração e organização tornam-se necessários para produzir e distribuir recursos, garantir a paz interna e a defesa externa. (FAUSTO, 2000, p.115-6)
Qual a origem dessas sociedades de configurações tão diferenciadas?
Evidências arqueológicas apontam que o atual território brasileiro foi ocupado no período pleistoceno, já entre 50 mil a 48 mil anos AP (PI). Há também indícios mais recentes, de entre 25 mil e 12 mil anos AP (MG e BA) e de 14.200 anos AP (São Paulo). São, sem dúvida, vestígios do Homem de Lagoa Santa (designação técnica para o povo de Luzia), povo de caçadores-coletores sedentários que, embora desconhecessem a cerâmica, dispunham de indústria lítica relativamente simples.
Também chamado de holoceno, o período arcaico de divide em três fases:
a) Período Arcaico Antigo (de 12 mil a 9 mil anos AP);
b) Período Arcaico Médio (de 9 mil a 4500 anos AP) – época de surgimento de tradições – padronização de práticas e técnicas para a indústria lítica e da pintura rupestre – culturais entre os paleoíndios brasileiros;
c) Período Arcaico Recente (a partir de 4 mil anos AP) – época de surgimento da agricultura (4 mil anos AP em Minas Gerais; 2090 anos AP no Piauí) e da cerâmica (anterior à agricultura na Amazônia – 3 mil anos AP –, mas não no resto do país), motivado pelo sedentarismo e pela própria agricultura;
Os quadros abaixo indicam as principais tradições registradas pela arqueologia no Brasil nos dois últimos períodos acima:
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Quadro 4: Tradições culturais referentes à indústria lítica dos períodos arcaicos médio e recente no Brasil
	REGIÃO
	TRADIÇÕES
	LOCALIZAÇÃO
	ÉPOCA: entre
	TECNOLOGIA E ARTEFATOS
	
Nordeste e Centro
	
	
várias localidades, em diferentes estados
	
12 mil e 4,2 mil anos AP
	surgimento e difusão da agricultura
fogueiras 
raspadores, lascas, furadores e grelhas de pedra lascada
	
Sul
	Ibicuí
	Bacia do Rio Uruguai
	13 mil e 8,5 mil anos AP
	artefatos simples
	
	Uruguai
	Bacia do Rio Uruguai
	11, 5 mil e 8.640 anos AP
	raspadores, facas bifaciais, pontas de projeteis
	
	Vinitu
	Santa Catarina e Rio Grande do Sul
	8,5 mil e 6,54 mil anos AP
	facas, raspadores, pontas de flechas
	
	Humaitá
	do Rio Grande do Sul a São Paulo
	6,5 mil e 2 mil anos AP
	raspadores, furadores, zoólitos
	
	Umbu
	–
	
	fogões e pontas de projeteis
	
Litoral
	
Itaipu
	do Rio Grande do Sul ao Recôncavo Baiano e do Maranhão ao Pará
	6,5 mil e 800 anos AP
	
sambaquis
Dos artefatos dessas diferentes tradições, destacamos os sambaquis�, montes de conchas de moluscos formados por pescadores de tribos seminômades, que constituem os principais sítios arqueológicos do Litoral, grande parte dos quais está coberta pelo mar, devido às
mudanças climáticas ocorridas no pleistoceno tardio e holoceno.
Esses monumentos arqueológicos são conhecidos e até explorados há bastante tempo: “Devido a seu uso comercial para a extração das conchas e posterior fabricação de cal, os sambaquis já eram conhecidos pelos exploradores portugueses desde o século XVI, sendo a referência mais antiga a esses sítios a de José de Anchieta, de 1549, que menciona as “ilhas de cascas” das quais se fazia uma cal tão boa quanto aquela obtida a partir de pedra calcária”. (OKUMURA, 2008, p.9)
 Entre os vestígios arqueológicos encontrados nesses monumentos, estão esqueletos humanos, peças líticas, restos de alimentos, etc. Os esqueletos encontrados refletem a presença de ritos funerários entre os indígenas brasileiros e, por consequência, o uso dos sambaquis para sepultamento. Além disso, a maior incidência de pontas de flecha indica comunidades constituídas por caçadores de animais silvestres e pescadores com arpão:
Nossos concheiros constituem uma prova de que os habitantes das regiões onde foram encontrados eram mais coletores do que caçadores e que, na falta de carne, os moluscos, muito abundantes naquela época em toda a orla marítima do Brasil, permitiam a existência de grupos numerosos que encontravam no berbigão (Anomalcardia brasiliana, o tipo de molusco mais comum nos sambaquis) seu alimento principal. (ABREU, 1987, p.20)
Quadro 5: Tradições culturais referentes à pintura rupestre dos períodos arcaicos médio e recente no Brasil
	TRADIÇÕES
	LOCALIZAÇÃO
	CARACTERÍSTICAS
	
NORDESTE
	
MG, BA, CE, RN, PE e PI
	apresentava subtradições e durou cerca de seis mil anos.
figuras humanas e animais, plantas e objetos, muitas vezes dispostas a representar ações de tema quase sempre reconhecível (o cotidiano e rituais), especificidade desta tradição
presença de grafismos puros, não identificáveis
algumas representações humanas revestidas de atributos culturais (enfeites, objetos cerimoniais)
temas principais: dança, práticas sexuais, caça e rituais em torno de uma árvore
	
AGRESTE
	
PI, CE, RN, PB e PE
	pinturas geométricas e antropoides, além de representações da fauna (muitas de lagartos e répteis)
na maioria das vezes representam seres estáticos, sem ou com pouco movimento, isolados ou em pequenos grupos dominados por uma ou duas grandes figuras antropomorfas (os “bonecões”)
registros rupestres mais toscos, rudes e maiores que os da Tradição Nordeste
	
ITACOATIARA
	
várias regiões do país
	étimo: Tp. itá ‘pedra’ + koatîara ‘pintada’; donde: ‘pedra pintada’.
gravuras representando figuras geralmente irreconhecíveis
petroglifos de tamanhos e feituras diferentes com profunda ligação com a água e, portanto, grafadas sobretudo em margens de rios.
	LITORÂNEA CATARINENSE
	ilhas a 15 Km da costa, orientadas para alto-mar
	inscrições em rocha, com quatorze temas estudados que vão de antropomorfos a geométricos.
gravações em granito, através da técnica do polimento.
	
GEOMÉTRICA
	
SC, PR, SP, GO, MT e Nordeste
	apresenta duas subtradições: a meridional e a setentrional
representações: grafismos puros (maioria), figuras humanas e algumas mãos, pés e répteis extremamente simples e esquematizados
	
MERIDIONAL
	
sul do Brasil e países da fronteira
	os sítios do Rio Grande do Sul se apresentam alinhados nas escarpas do planalto, sendo também encontrados em blocos isolados e em abrigos e grutas.
gravuras de arenito, através da técnica de incisão ou de polimento, algumas (geométricas lineares) com vestígios de pigmentos de diferentes cores (preto, branco, marrom e roxo)
	
PLANALTO
	
Planalto Central
(MG, PR e BA)
	destaque: o sítio arqueológico de Lagoa Santa (MG)
Grafismos zoomorfos (sobretudo cervídeos e peixes), monocrômicos (em vermelho, preto, amarelo, raramente em branco), acompanhados de outros zoomorfos (sobretudo quadrúpedes, menores que os cervídeos) e de antropomorfosmuito esquematizados
	
ARATU
	1ª grande ocupação do Planalto Central (PI, MA, BA, MG e SP)
	povo provavelmente expulso do litoral pelos tupis-guaranis 
bastante propensa a influências externas, fator determinante das diversas fases na cerâmica desta tradição
dotada de certa homogeneidade interna 
	SÃO FRANCISCO
	MG, BA e SE, (vale do Rio São Francisco)
	apresenta subtradições e representa figuras sem cena e em duas cores, com predomínio de motivos geométricos, mas o registro de formas humanas, animais (peixes, pássaros, cobras, sáurios e tartarugas) e de objetos
	AMAZÔNICA
	margens dos rios Cuminá, Puri e Negro
	tradição ainda pouco estudada, com painéis compostos por bastões e gravações curvilineares
antropomorfos simétricos e geometrizados com cabeças geralmente radiadas, mas pintadas
Na tradição amazonica, merece destaque o sítio arqueológico conhecido por Teso� dos Bichos, localizado na ilha de Marajó, com pinturas datadas de entre 400 e 1300 d.C., que sugerem o apogeu que de seus construtores, povo de alto desenvolvimento tecnológico (além de tesos, edificavam centros cerimoniais em plataformas de barro) e ordem social bem definida deve ter sido por volta do ano 1000. Nessa época, essa sociedade ocupava área em torno de 2,5 hectares, tinha população entre 500 e mil pessoas, habitantes de casas coletivas definidas em função do gênero. Isso e outros indícios sugerem a existência de divisão de trabalho por gênero (mulheres: agricultura e preparo de alimentos; homens: caça, guerra, práticas religiosas). 
Quadro 6: Tradições ceramistas do período arcaico recente no Brasil
	TRADIÇÕES
	LOCALIZAÇÃO
	CARACTERÍSTICAS
	
TUPIGUARANI�
	
Brasil Central (entre os séculos XIV e XV)
	Traços gerais: 
apresenta duas subtradições: tupinambá e guarani 
cerâmica policrômica
nem todos os falantes de tupi ou guarani a possuíam
a) tradição ceramista guarani
 recipientes de cerâmica com superfície externa corrugada, vasilhas (tigelas de beber, tigelas, pratos, panelas, talhas, copos) com fundo geralmente cônico, forma da cuia de mate, hábito típico da região
tigelas de beber com pintura externa, boca redonda e fundo cônico
funções principais das vasilhas: preparo ou serviço dos alimentos; urnas funerárias
b) tradição ceramista tupinambá
vasilhas com formato esférico ou em meia calota, (raras as de fundo cônico)
tigelas de beber com pintura interna, boca quadranguloide e fundo semiesférico
	
TAQUARA-ITARARÊ
	
do Rio Grande do Sul a São Paulo
	tradição ceramista mais estudada no país
vasos cerâmicos geralmente utilitários e pequenos, com paredes finas (4 a 8 mm)
vasilhas com corpo cônico, semielípticas, em meia-calota ou meia-esfera
peças com formas cônicas de abertura constrita ou levemente ampliada (kruku, no RS; korã, em SP)
tigelas de forma semielípticas, com contorno simples e abertura ampliada (pentky)
decoração ou tratamento de superfície: tipo liso com brunidura (processo mecânico de polimento por abrasão, empregado no acabamento de peças, típico de SP)
Ora, como já sabemos, a ocupação da Amazônia deu-se no período arcaico recente e está relacionada à existência de uma indústria ceramista forte, surgida antes mesmo da agricultura. Todavia, os vestígios humanos mais antigos datam de época um pouco anterior, por volta de 12,5 mil anos AP. São lascas feitas a partir de técnicas distintas: algumas com o lascamento por percursão, outras, por pressão, diferenças
�
essas que apontam para a mudança da caça de animais de grande porte (preguiças gigantes, tigres-dente-de-sabre, etc.) para os de pequeno porte (tatus, preguiças, etc.).
Sítios arqueológicos localizados na bacia do rio Ucayali, na ilha de Marajó, e nos rios Orenoco e Amazonas nos revelam a chegada de sociedades relativamente sedentárias, praticantes da horticultura de raízes (inclusive, talvez, a mandioca), da caça e pesca e de uma indústria ceramista incipiente (aliás, a primeira  elaborada da América), com objetivos de formatos ovais e circulares, temas geométricos e zoomórficos e pinturas em tinta branca e vermelha, aprentando dois estilos: o hachurado zonado – com artefatos encontrados em Tutoshcainyo (entre 2000 e 800 a.C.) e Ananatuba (entre 1500 e 500 a.C.) – e o saladoide-barrancoide, típico do baixo e médio Orinoco (entre 2800 e 800 a.C.).
Posteriormente, entre 1000 a.C. e 1500 d.C., a Amazônia assistiu à emergência e desenvolvimento de cacicados complexos – sociedades hierarquizadas, com chefia centralizada na figura do cacique que, além de dominar amplos territórios, organizava continuamente seus guerreiros visando a conquista de novos territórios –,nas várzeas dos rios Amazonas e Orenoco, nos contrafortes orientais dos Andes e nas costas do mar do Caribe. No Pará, há vestígios de duas dessas civilizações:
Quadro 7: Civilizações amazônicas pré-cabralianas
	DADOS
	MARAJOARA
	TAPAJÔNICA
	localização
	Ilha de Marajó
	região de Santarém
	duração
	quase mil anos
	– 
	apogeu
	+ ano 1000
	– 
	tradição ceramista
	grupo Horizonte Policrômico�
	grupo Horizonte Inciso Penteado
	cultura associada
	– 
	tradição Itacoatiara
	
vestígios
	
esculturas e muiraquitãs�
	vasos; peças com figurações de homens e animais; pratos com decorações incisas em forma de botões; trabalhos em madeira de lei
	prováveis descendentes
	povos tupis
	povos karibes
Além de revelarem áreas especializadas para enterro, culto, trabalho (monocultura intensiva de raízes, frutas e grãos�; caça e pesca intensiva; comércio e armazenamento de alimentos; indústria ceramista altamente elaborada, com técnicas complexas de produção) e guerra –, os sítios arqueológicos dessas sociedades desmentem uma tese muito antiga, pela qual a selva amazônica não comportaria grandes núcleos populacionais, como Kuhikugu, ruínas de assentamento humano permanente, cercado por fosso profundo e largo (o que sugere preocupações defensivas), descobertas pelo arqueólogo norte-americano Michael Heckenberger, sua equipe e índios da região do Xingu. 
As características naturais da floresta Amazônica explicariam porque os antigos europeus não travaram contato com essas civilizações:
“Os europeus nunca encontraram Kuhikugu e centros semelhantes porque eles estavam procurando pela coisa errada. Queriam achar cidades perdidas – e essas eram estruturas multicêntricas, com redes de pequenos assentamentos, o que eu gosto de chamar de cidades-jardim”, diz Heckenberger. [...] A população de uma cidade-jardim poderia chegar a 50 mil pessoas, o que equivale às cidades-Estado gregas. (URBIM, 2014, p.32)
De Kuhikugu saíam estradas de vários metros de largura e margeadas por imensas hortas e pomares em direção a mega-aldeias semelhantes, o que caracterizaria a estrutura política das cidades-Estado. 
Nessas vias, a presença de plantações leva os pesquisadores a aventar a possibilidade de ser boa parte da floresta amazônica resultante de obra humana: “A distribuição de frutas e de um solo específico – a terra preta – sugere a ação do homem. ‘Muitas áreas do Xingu são 100% antropogênicas, gigantescos pomares. E os povos do local ainda dominam sofisticados sistemas de uso do solo’, diz Heckenberger” (URBIM, 2014, p.32)
Tribos, cacicados complexos, cidades-Estado... diferentes formas de organização política de civilizações pré-cabralianas, ligadas não apenas por essa condição, mas também pela causa de sua extinção: epidemias trazidas do Velho Mundo – para as quais sua população não tinha anticorpos –, que mataram muito mais do que armas.
4. As línguas indígenas brasileiras: patrimônio e diversidade
Apesar da enorme bibliografia sobre as línguas brasilíndias desde o início da colonização, constata-se, paradoxalmente, um relativo desprestígio acadêmico do seu papel para a constituição da variedade brasileira de português. De forma alguma esta afirmativa pretende olvidar os esforços de abnegados indianistas da primeira metadedo século XX, como Theodoro Sampaio, Plínio Salgado, Frederico Edelweiss, Carlos Drumond, e de estudiosos posteriores, como Aryon Rodrigues, Charlotte Emerich, Yonne Leite, Maria Vicentina Dick, Adair Pimentel e Eduardo Navarro, entre outros. Contudo, quando falamos em escassez de estudos das línguas ameríndias, queremos dizer que, do total delas, pouquíssimas foram cabalmente descritas ou por falta de um método adequado, antigamente, ou por ausência de interesse governamental em integrar o índio à nossa sociedade, diminuindo o efeito da aculturação e sem dizimá-lo.
Entre nós, tornou-se comum dizer que no Brasil – além da língua portuguesa e de outras línguas europeias e asiáticas aqui introduzidas a partir do século XIX – são faladas cerca de 180 línguas indígenas, algumas isoladas (Aikaná, Arikapu, Awakê, Irantxe, Jabuti, Kanoê ou Kaixaná, Koaiá ou Arara, Máku, Mky, Tikuna, Trumai e Zo’é) e as demais, distribuídas em três troncos linguísticos (tupi, macro-jê, aruaque), algumas famílias isoladas (Karib ou Caribe, Maku, Mura, Nambiquara, Pano, Tucano, Txapakura, Yanomami). Mas o que significam essas categorias? 
Dizer que o aikaná é uma língua isolada� significa que ela não tem semelhança estrutural com nenhuma outra língua que indique elas procedência de uma língua anterior, comum. 
	Por sua vez, línguas com semelhanças estruturais indicativas de procedência de uma mesma língua anterior são agrupáveis em diferentes famílias linguísticas. Assim, dadas as semelhanças estruturais entre as línguas abaixo indicadas, foi possível aos linguistas agrupá-las na família denominada Karib ou Caribe�. Elas são, portanto, línguas aparentadas, termo usado hoje como metáfora, mas de sentido bem mais denotativo na época de seu surgimento (século XIX), quando a Linguística sofria forte influência da Biologia.
	Mapa 5: Dispersão das línguas caribes
Fonte: http://direitasja.com.br/2012/07/03/a-conquista-do-brasil-parte-iv/
Quadro 8: Correspondências lexicais entre línguas da família caribe�
	significado
	galibí
	apalaí
	wayâna
	hixarayana
	taulipáng
	‘lua’
	nuno
	nuno
	nunuy
	nuno
	kapyi
	‘sol’
	wéiu
	xixi
	xixi
	kamymy
	wéi
	‘água’
	tuna
	tuna
	tuna
	tuna
	tuna, paru
	‘chuva’
	konopo
	konopo
	kopo
	tuna
	kono’
	‘céu’
	kapu
	kapu
	kapu
	kahe
	ka’
	‘pedra’
	topu
	topu
	tepu
	tohu
	ty’
A Linguística Comparativa entende por família linguística isolada aquela cujas línguas integrantes só se relacionam entre si, ou seja, com nenhuma outra língua oriunda de família distinta, como a família caribe e as indicadas abaixo�:
Quadro 9: Famílias linguísticas isoladas brasileiras e suas línguas, exceto a caribe
	FAMÍLIA
	LÍNGUAS
	
	FAMÍLIA
	LÍNGUAS
	
MAKU
	bará, guariba, húpda, kamã, nadeb, yahúp
	
	
TUCANO
	barasána, carapanã, desana, juriti, kubéwa (kubao), pirá-tapuya (waikana), siriána, tukano, tuyúka, wanano, yebá-masã
	MURA
	mura, pirahã
	
	
	
	
NAMBIQUARA
	nambiquara do Norte 
nambiquara do Sul� 
sabanê
	
	
TXAPAKURA
	Torá
urupá
wari (pakaanówa)
	
PANO
	amawaka, caripuna, katikina do Acre (xanenawá), kaxarari, kaxinawá, marúbo, matis (matsés), mayá, mayoruna, nukuíni, poyanáwa, yamimáwa, yawanáwa
	
	
YANOMAMI
	
nihan
sanumá
yanomam
yanomami
Mapas 6 e 7: Dispersão das famílias Nambiquara e Pano
	Familia Nambiquara
Fonte: www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-81222013000200005&script=sci_arttext&tlng=en
	Familia Pano
Fonte: http://tucunaca.blogspot.com.br/2012/05/panoan.html
Mapas 8 e 9: Dispersão das famílias Tucano e Yanomami
	Família Tucano
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_tucanas
	Família Yanomami
Fonte: www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=htm&url=/pei.htm
Por sua vez, um tronco linguístico surge da comparação entre diversas famílias linguísticas com traços estruturais próximos e da conclusão, daí resultante, de que essas semelhanças se devem à existência de uma língua ancestral comum às línguas dessas famílias. Assim, dadas as semelhanças entre as línguas abaixo, de diferentes famílias, foi possível aos linguistas agrupá-las no tronco denominado Tupi:
Quadro 10: Correspondências lexicais entre línguas de diferentes famílias do tronco tupi
	
significado
	FAMÍLIA LINGUÍSTICA (língua)
	
	TUPI-GUARANI
(tupi-antigo)
	AWETI
(aweti)
	MUNDURUKU
(mundurucu)
	ARIKEM
(karitiana)
	TUPARI
(tupari)
	MONDÉ
(gavião)
	‘mão’
	pó
	po
	by
	py
	po
	pabe
	‘pé’
	py
	pi
	i
	pi
	tsto
	pi
	‘caminho’
	apé ~ pé
	me
	e
	pa
	apé
	be
	‘eu’
	xé ~ ixé
	atit, ito
	on
	yn
	on
	oõt
	‘você’
	ne ~ nde
	en
	em
	na
	en
	eet
	‘mãe’
	sy
	ty
	xy
	ti
	tsi
	ti
 Embora o tronco aruaque se componha de três famílias linguísticas, no Brasil somente duas estão representadas�:
a) aruaque (aruak, arwak) ou maipure – com cinco grupos, quatro no Brasil�:
setentrional – localização no Brasil: Alto Rio Negro (AM) e Roraima; línguas: apurinã (ou ipurinã), baniwa do Içana, baré, mandawáka, warekana e wapixana;
oriental – língua: palikur (Amapá);
central – localização: Parque do Xingu e outras áreas de MT; línguas: waurá, mehinaku, pareci (ariti ou haliti), enawené-nawé, tariana (dialeto yurupari-tapúya); yawalapiti;
meridional – localização no Brasil: Acre, Amazonas e Mato Grosso; línguas: axinika (ou kampa), piro (dialeto: manxineri), saruaha (ou zaruaha) e terena;
b) arauá (arawá) ou aruã – localizada no SW do Amazonas; línguas: banawá-yari, deni, jamamadi, jarawará, kanananti, kulina e paumari.
As línguas desse tronco exercem uma influência na toponímia das regiões ocupadas pelos aruaques no Brasil. O quadro abaixo traz alguns exemplos de topônimos brasileiros de origem aruaque (cf. PREZIA, 2000):
Quadro 11: Exemplos de topônimos brasileiros de origem aruaque
	TOPÔNIMO
	REFERÊNCIA
	ÉTIMO
	SIGNIFICADO
	Aruau
	afluente do rio Tacutu, no AM 
	wap. aru ‘veado’ + uau ‘rio’
	‘rio do veado’
	Badecure-uau
	afluente do rio Tacutu, no AM
	wap. badekure ‘onça’ + uau 
	‘rio da onça’
	Baé-uau
	afluente do rio Tacutu, no AM
	wap. baé ‘pato’ + uau 
	‘rio do pato’
	Curau
	salto no rio Urarucaá (AM)
	arwak kurau 
	‘papagaio’
	Manoa
	lagoa próxima ao rio Maturá (AP)
	arwak manôa 
	‘lagoa’
	Otouô
	um dos formadores do rio Roosevelt (MT)
	pareci (par.) otohô 
	‘sauá’
	Sauerô-uiná
	antigo nome do rio Papagaio (MT)
	par. sauerô ‘papagaio’ + uiná ‘rio’
	‘rio do papagaio’
	Utiariti
	salto no rio Papagaio (MT)
	pareci utiariti 
	‘gavião sagrado’
	Iá
	rio amazônico 
	baré iá 
	‘chuva’
Passemos ao macro-jê, tronco com nove famílias, cinco com línguas isoladas 
	(krenák, guató, ofayé, rikbaktsá e yatê(-fulniô):
bororo – línguas: bororo, umutina;
jê: akwén, apinayé, caiapó (dialetos: gorotirê, kararaó, kokraimorô, kubenkrankegn, menkragnoti, mentuktyirê ou txukahamãe e Xikrin), kaingang (dialetos: kaingang do Paraná, kaingang central, kaingang do SW, kaingang do SE), panará, suyá (dialeto tapayúna), timbira (dialetos canela apaniekra, canela ramkokamekra, gavião do Pará ou parkateyé, gavião do Maranhão ou pukobiyé, krahó-krenjê ou krenyê, krikati ou krinkati), xokléng;
karajá: javaé, karajá, xambioá; 
macakali: maxakali, pataxó, pataxó-hã-hã-hãe.
Conforme se vê ao lado, os índios macro-jês atualmente estão entre as bacias dos rios São Francisco e Araguaia. Sua origem é
	Mapa 10: Dispersão das línguas macro-jê
Fonte: www.dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/macro-je
incerta, talvez andina, 2000 a.C. Evidências arqueológicas indicam sua diferenciação linguística há mais de 6 mil anos e sua expansão, na metade desse tempo:
Rodrigues (1985) avança indícios para a hipótese de ligação genética mais distante entre o Macro-Tupi e o Macro-Jê, mas Urban (1992, p.93) considera que ‘atribuir à conexão uma profundidade cronológica mínima (digamos, de 5 a 7 mil anos) acrescentapouco à nossa compreensão e apenas indica nossa incerteza’”. (MONTSERRAT, 2000, p.96)
Índios macro-jês cultivam milho e feijão, sendo este adorado pelos xavantes e bororós. Suas aldeias têm até mil indivíduos e são divididas em metades simétricas, que comandam em épocas alternadas, na seca e na época de chuvas. Têm o hábito de adornar o corpo com pinturas e com o botoque, objeto de madeira utilizado nas orelhas ou no lábio inferior, donde lhes vem o antigo nome de botocudos. 
	O último, maior e mais bem estudado agrupamento linguístico brasileiro é o tronco tupi, composto de 40 línguas faladas, 17 línguas extintas documentadas (destaque: tupi-antigo�, nosso objeto de estudo das próximas aulas), cinco línguas isoladas� e sete famílias:
Juruna – Línguas: juruna e xipaia;
Mondé – Línguas: aruá, cinta larga, gavião, ikãrã ou digût; mondé, suruí ou paitér e zoró; 
Mundurucu – Línguas: mundurucu e karuaya;
	Mapa 11: Dispersão das línguas tupis
Fonte: www.brasilbaleares.com/2011/09/linguas-indigenas-brasileiras.html
Tupari – Línguas: aruju ou wayoró; makuráp, mekém, sakirabiar, tupari;
Tupi-guarani – Línguas: akwáwa (dialetos asurini do Tocantins ou trocará e paranã), amanayé, anambé, apiaká, araweté, asurini do Xingu, avá ou canoeiro, guajá, guarani� (dialetos kaiowá, mbyá, nhandeva), (urubu-)kaapor, kamayurá, kayabi, kokáma (dialetos kokáma e omágua), língua geral amazônica (LGA) ou nheengatu; parintintin (dialetos diahói, juma, kagwahib, tenharin), surui do TO, tapirapé, tenetehara (gajajara, tembé), wayãpi, xetá.
	Segundo Pereira (2000, p.27), os diferentes grupos tupis-guaranis espalhados pela costa brasileira no início da colonização procediam de um mesmo grupo etnolinguístico originário das planícies bolivianas: “Tupis e Guaranis viviam ‘em uma só nação na alta planície boliviana, que das cabeceiras mais remotas do rio Madeira, se alongava para o noroeste até o lago Titicaca e nas cabeceiras do rio Beni”. De lá, entre 3 mil e 2 mil a.C., teriam sucessivamente migrado para o Caribe e diversas regiões da América do Sul, diferenciando-se étnica e linguisticamente. Causado pela expansão do império inca, o grande último desses movimentos foi há cerca de mil anos:
	Mapa 12: Área de origem dos índios tupis
Fonte: www.apolo11.com/paises.php?ban=bl
Consta na história dos Incas que, na passagem do século XIII para o XIV, o criador do Império Inca, Rocca, submetera nações indígenas que ocupavam o altiplano e as terras baixas do Peru e da Bolívia, eliminando as que não aceitavam o seu jugo, e não foram muitas.
Os antigos habitantes andinos Tupis e Guaranis não concordaram com a sujeição dos Incas, preferindo abandonar sua pátria, escapando por vias fluviais suas conhecidas para regiões longínquas, onde recomeçariam suas vidas. O único curso d’água que dispunham os Tupis levou-os à Amazônia, seus rios e florestas tropicais. Da mesma maneira, a via próxima dos Guaranis transportou-os ao Paraguai Central do continente.
	Em começos do século XIV, descendo o rio Pilcomayo e o Chaco, parte dos ancestrais dos tupis-guaranis alcançou o médio Paraguai, ocupando as duas margens desse rio, em direção ao Norte e ao Sul, “até o rio Paraná, no qual se lança o Paraguai. Alguns [...] continuaram pelo Paraná em terras argentinas, atingindo sua foz no Rio da Prata” (PEREIRA, 2000, p. 45; 49). Assim, em 1500, quando da chegada de Cabral a Porto Seguro, esse grupo, origem dos guaranis, já ocupava o sudeste da América do Sul, conforme se vê no mapa ao lado:
	Mapa 13: Área da presença guarani
Fonte: http://pibmirim.socioambiental.org/terras-indigenas
	
	Aproximadamente na mesma época – primórdios do século XIV –, usando o rio Beni, afluente do Mamoré, formador do Madeira, outro grupo de ancestrais dos atuais tupis-guaranis percorreram esse último rio até atingir o Amazonas. Antes disso, alcançaram uma grande ilha, daí em diante chamada Tupinambarana ‘terra dos tupinambás’, transformada em núcleo original da dispersão desse grupo – daí por diante, conhecido por tupi – pelas vias fluviais amazônicas em direção às bacias do Sudeste e Nordeste até atingirem o litoral, conforme mostra o mapa ao lado:
	Mapa 14: Expansão dos grupos tupis
Fonte: http://pibmirim.socioambiental.org/antes-de-cabral/ocupacao-brasil
Ainda na primeira metade do século XIV, os Tupis haviam avistado o Atlântico na foz do Amazonas e algo ao norte do rio. Continuavam a sua expansão na Amazônia, penetrando nos afluentes da margem direita do rio-mar. Um grupo deles alcançou o médio Tocantins e lá encontrou, ao que presumimos, um povo numeroso à beira do rio, de baixa cultura e linguagem primitiva que, temeroso dos vizinhos recém-chegados mais cultos, em vez de atacá-los, procurara se adaptar a seus costumes e à língua que usavam. E, assim, viera a se tupinizar até certo ponto [a ponto de adotarem o nome de Tupinaé� ‘amigos dos tupis’]. Viveram em paz algum tempo os dois povos. Ocorreu, entretanto, o aumento populacional dos Tupis da vizinhança, e os antigos habitantes locais acharam mais conveniente o afastamento da sua nação em busca de uma região longínqua e mais segura. [...] Teriam vindo do rio Tocantins a oeste e desceram do sertão daquela região. (PEREIRA, 2000, p.78-9 – acréscimos nossos, entre colchetes)
O quadro abaixo resume esse movimento expansionista e indica a ocupação da América do Sul por povos tupis e de outras etnias pouco antes do “descobrimento”:
Quadro 12: Ocupação pré-colombiana da América do Sul pelos povos tupis
	REGIÕES OCUPADAS
	POVOS TUPIS
	OUTROS POVOS
	Bolívia
	– 
	xirinó
	Bacia Amazônica
	tupinambá
	kokama e omágua
	Nordeste do Brasil
	potiguara, tupinambá, tupinikim
	tapirapé e tenetehara
	
litoral do Brasil
	tabajara, caeté, tupinikim, karijó, tupinambá, tamoio
	tremembé, aimoré, goitacá, termiminó
	Paraguai
	guarani
	guaiaki
	extremo sul do Brasil
	guarani
	pauserna, kajabi e kamayurá
Esses movimentos migratórios levaram cerca de 150 a 200 anos para ocorrer. No entanto, tal lapso temporal não foi longo o suficiente para acentuar diferenças significativas entre as falas das diversas populações, constituintes do que aqui designamos como tupi-antigo:
Em seu avanço para as terras beirando o oceano, as áreas tomadas aos aborígines litorâneos pelos Tupinambás amazônicos eram em número de seis. Tornaram-se nações Tupis, com os nomes locais de Potiguaras, no Rio Grande do Norte e na Paraíba; Caetés em Pernambuco e Alagoas; Tupinambás, em Sergipe e o norte da orla marítima da Bahia; Tupiniquins, na costa sul da Bahia; Tamoios no Rio de Janeiro; e Tupis em São Paulo. Os seus índios faziam questão de serem chamados Tupinambás, exceto os de São Paulo das ‘bandeiras’, simplesmente Tupi. Todos, no entanto, aceitavam a simplificação do nome para Tupi. (PEREIRA, 2000, p. 84)
Entre os diversos grupos tupis, a distância variava em função das condições ecológicas e políticas de cada região, com algumas áreas de grande concentração, outras menos densas. Além disso, as fronteiras eram fluidas, fruto de processo histórico em andamento, de (re)definição de alianças.
Segundo os cronistas do século XVI, os povos tupis designavam por Pindorama ‘terra das palmeiras’ a área que habitavam. Suas aldeias eram extensas, divididas entre espaços dos vivos (cerimonial, público e residencial) e espaço dos mortos e, em geral localizadas em planaltos ou terraços; algumas delas eram fortificadas. Alguns estudiosos afirmam ter ocorrido macroblocos populacionais, algo controverso. Porém, não há dúvidas de que cada aldeia tinha população variável de 600 ou 700 até 3 mil habitantes, que residiam em 4 a 8 cabanas de até 60 m² de diâmetro, dispostas irregularmente em torno de um pátio central, algo ainda hoje presente em diversas etnias do tronco.
Do ponto de vista político, não havia autoridade absoluta ou muito forte: os postos hierárquicos em função do gênero (exclusivo dos homens), do mérito guerreiro (morubixabas) e dos poderes xamânicos(pajés). Atualmente, muitas etnias (não só tupis) têm lideranças femininas internas (caciques e pajés) quanto externas (líderes de associações, militantes partidárias, intelectuais).
Às vésperas do “descobrimento”, os índios tupis viviam da caça e da agricultura, plantando cará, feijão, pimenta, amendoim, batata-doce, tabaco e algodão pelo sistema de coivara (queima e preparo do terreno, plantio, seguido de colheita). Além desses produtos, plantavam e beneficiavam a mandioca, dela produzindo um conjunto de farinhas caseiras (a grossa, a refina, a torrada ou copioba) e gomas (a carimã ou puba, a tapioca) – o chamado complexo da mandioca –, posteriormente adotado pelos invasores portugueses e transmitido para a posteridade.
Embora utilitária, sua cerâmica, arte plumária e cestaria era (e ainda é) sofisticada e rica, situando-se entre o artesanato e a arte. 
Outras manifestações culturais de destaque eram (e são) as danças e canções, geralmente de caráter ritual, além de sua oratura�. 
Ao contrário da percepção de Pero Vaz de Caminha – para quem os índios tupis não tinham fé –, eles, de fato, tinham cultivavam uma religiosidade, com eventos de alcance amplo e congregantes de diferentes etnias. De fato, ao longo de suas numerosas migrações pré-cabralianas, a religião lhes garantiu a dispersão com homogeneidade cultural. Criam em espíritos (bons e maus), estes, afastados por maracás manejados pelos pajés que, não só aplacavam e agradavam os espíritos, como também, manipulando ervas, raízes, animais e mineras, administravam a cura de doenças. Também criam na existência da alma e da vida após a morte (muitos mitos tupis falavam de espíritos errantes). Eles sepultavam seus mortos em urnas (só as pessoas ilustres) ou diretamente terra; todos, contudo, com artefatos líticos.
Primeiro grupo a travar contato com os invasores europeus, os tupis foram os artífices da rede de dormir, criadores do complexo da mandioca, das bebidas de frutas e raízes, da carne e peixe moqueados, produtos essenciais para o avanço da conquista e colonização pelo sertão adentro. Além disso, uma vez apropriados pelos invasores portugueses, esses e outros elementos da cultura dos antigos índios tupis passaram a integrar nossa base civilizatória, sendo, hoje, pan-brasileiros. A contribuição de outras etnias é relativa e variável conforme a densidade populacional indígena em cada região.
Também em relação à língua majoritariamente falada no Brasil, comodamente chamada português brasileiro (doravante, PB), a base indígena significativa é a tupi, embora a tendência dos estudos atuais é considera-la apenas no léxico. De toda sorte, são escassos no país os estudos que tratem, por exemplo, da interferência (e, portanto, influência) de línguas indígenas ainda faladas por populações em início de aquisição do PB nesse mesmo português�. Urgem, portanto, esforços nesse sentido.
5. O índio e seu protagonismo na história
5.1 A era colonial
Entre os diversos marcos possíveis para o início da colonização do Brasil, optamos por dois: o ano do “descobrimento” por Pedro Álvares Cabral (1500) e o do envio da chamada expedição colonizadora, liderada por Martim Afonso de Souza (1532). O que ocorreu nesse lapso temporal de pouco mais de três décadas? Segundo Ribeiro (2009, p.26 – grifos nossos),
São escassas as informações a respeito dos trinta primeiros anos da descoberta do Brasil. As que existem indicam que os portugueses usaram do escambo sempre que quiseram obter o braço indígena, víveres, pau-brasil e outros artigos. Essas informações não mencionam que eles tenham escravizado os índios para alcançar esses objetivos.
O escambo não era uma prática estranha aos nossos índios, posto que há registros de um intensa troca de produtos entre os povos do litoral e os do sertão brasileiro e, mais ainda, de uma rede de caminhos que os levavam até os incas, cujo principal via era o Peabiru, estrada que cortava o território dos atuais estados de São Paulo e Paraná e, entrando no Paraguai, subia os Andes até o Império Inca:
Os índios do litoral tinham sal extraído do mar e conchas ornamentais e, volta e meia, sempre sobrava mandioca. Já o sertão tinha suas commodities, como feijão e milho, e também um artigo de luxo: penas de aves grandes, como a ema e o tucano, para todo o tipo de enfeite. Tudo isso era objeto de permuta com os incas, que em troca davam objetos de cobre, bronze, prata e ouro [...]. Esses contatos, que durante muito tempo tiveram ares de lenda, foram comprovados com vários achados: em Cananeia (SP), por exemplo, foi encontrado um machado pré-colombiano feito com cobre dos Andes. (URBIM, 2014, p.34)
Logo, pelo escambo, feito em pequenas feitorias instaladas em pontos isolados do litoral, os índios adquiriram aos europeus (não só portugueses, mas também franceses e até ingleses) as novidades trazidas por eles (espelhos, machados, facas, entre outros), definindo-lhes o valor e trocando-as por inúmeros produtos da terra (frutas e tubérculos, aves e animais de pequeno porte), sobretudo, pau-brasil, altamente valorizado pela indústria têxtil do Velho Continente:
A difusão destes bens culturais não afetava o equilíbrio do sistema de organização tribal, na medida em que a sua utilização não implicava a introdução das técnicas europeias de produção, circulação e consumo e porque os indígenas selecionavam os valores a serem incorporados em sua cultura”. (DAVIDOFF, 1994, p.54)
Registra a tradição historiográfica brasileira que, ao longo desse período, Portugal esteve desinteressado de sua colônia americana, por um lado porque colonizá-la, de fato, demandaria recursos indisponíveis para o Tesouro Real e, por outro lado, porque ainda conseguia obter altos lucros com o comércio das especiarias das chamadas Índias Orientais, cujo início do declínio fez a Coroa portuguesa voltar seus olhos para o lado de cá do Atlântico, enviando, de início, expedições preventivas contra a pirataria de outras nações europeias e, em seguida, a referida expedição colonizadora de Martim Afonso de Souza:
Com a vinda de Martim Afonso de Souza em 1531 e três anos mais tarde a divisão do Brasil em capitanias hereditárias, tem lugar a modificação das tranquilas relações entre portugueses e índios. Já então, o escambo de produtos se torna inadequado, assumindo importância cada vez maior o uso do mesmo sistema para conseguir trabalho. (RIBEIRO, 2009, p. 36)
Nessa citação, Ribeiro menciona o terceiro marco que destacamos no período: a implantação do sistema de Capitanias Hereditárias, em 1534, pelo qual a Coroa portuguesa dividiu o território de sua colônia americana em faixas de terra doadas a fidalgos portugueses – os capitães ou donatários –, que passavam a ter a obrigação de investir nessas terras, povoá-las, distribuir lotes para colonos, administrá-las em nome do rei, instituir, cobrar e pagar impostos, entre outras. 
Grosso modo, podemos dizer que as capitanias se instalaram dentro dos limites territoriais dos diferentes povos tupis, como se pode ver nos mapas 15 e 16. Como, inicialmente, os portugueses não tinham ideia da imensa diversidade étnica existente no Brasil, imaginando a existência de apenas duas “raças” (tupi X tapuia�), talvez o critério subjacente a essa divisão fosse colocar as diferentes nações tupis da costa – seu primeiro contato direto na nova terra e, por isso mesmo, erroneamente consideradas majoritárias no país – sob a jurisdição de autoridades reinóis distintas com o intuito de, assim, promover o desenvolvimento dessas unidades administrativas. 
	Mapa 15: Divisão do Brasil em Capitanias Hereditárias
Fonte: www.estudopratico.com.br/historia-da-capitania-de-itamaraca/
	Mapa 16: Presença indigena na costa brasileira no século XVI
Fonte: http://noamazonaseassim.com.br/as-tribos-indigenas-do-estado-do-amazonas/
Contudo, a Coroa portuguesa não contava com vários fatores que, conjugados, acabaram levando ao colapso do sistema de capitanias, como, por exemplo, a dificuldade deencontrar pessoas interessadas em vir para cá como colonos�, já que, naquele momento, o Brasil não oferecia muitas oportunidades.
Da mesma forma, não esperava o relativo abandono desses territórios por seus capitães, pois a maioria sequer chegou a tomar posse deles pessoalmente, enviando, para isso e para a própria gerência, procuradores ou administradores�.
Além disso, como destaca Ribeiro (2009), acima, donatários ou seus administradores modificaram as relações dos colonos com os indígenas. Ao índio interessava a manutenção do escambo, tipo de comércio que não lhe alterava a vida e pela qual ele se sentia recompensado por seu trabalho; ao colonizador, a escravidão� como forma de diminuir os custos de produção e, consequentemente, maiores lucros: 
A recusa dos índios de trabalhar, se não em troca de valiosos objetos, determinou uma alta no custo de vida e no desperdício dos portugueses, porque os índios se consideravam livres de fornecer mantimentos e braços, segundo o valor das mercadorias que recebiam em troca. Dessa forma, o escambo ia se tornando insatisfatório como meio de os portugueses obterem o que queriam. Apresenta-se então a alternativa da escravidão. (RIBEIRO, 2009, p. 37)
Essa diferença de interesses gerou conflitos não só entre índios e colonos envolvidos nas atividades econômicas dos diversos “(sub)ciclos” de nossa era colonial (pau-brasil, cana-de-açúcar, gado, fumo, mineração, etc.), como entre esses e os religiosos católicas (sobretudo os jesuítas) que combatiam a escravidão indígena, pois, como para a Igreja, os ameríndios teriam a mesma origem dos europeus (descenderiam de Noé, através da civilização atlante), seriam naturalmente inclinados ao chamado de Cristo, bastando, para isso, a interferência dos missionários da fé. 
Os agentes de evangelização católica estiveram presentes no Brasil desde o “descobrimento”. Não podemos esquecer que a primeira missa no país foi celebrada pelo franciscano Henrique Soares de Coimbra em 1º de abril de 1500, nas praias de Porto Seguro. Ora, no Novo Mundo, a Igreja tinha basicamente dois objetivos: converter a população nativa à fé católica, equilibrando, assim, seu contingente de fieis, abalado pela Reforma Protestante; e estabelecer e manter relações estáveis com os nativos, pacificá-los e torná-los aliados à empresa colonial. Para tanto, contou com a ação missionária dos integrantes de suas ordens, paulatinamente introduzidas no país, cujo trabalho era a assistência espiritual por meio de missões volantes centralizadas nas cidades e, no caso específico dos jesuítas, além disso, a oferta de ensino elementar a índios e colonos nos colégios da Bahia e Rio de Janeiro. 
Conforme o ponto de vista da Santa Sé, a missão do sistema colonial seria retirar o ameríndio, descendente indireto de Adão, do estado de selvageria em que se encontrava. Tanto assim que, em 1537, o papa Paulo III proibiu, através da bula Veritas ipsa, sua escravidão. Entretanto, como declara Jobim (1998, p. 80; 87): 
a curiosidade dos colonizadores sobre estes seres do novo mundo implicou também envia-los para a Europa. [...] A apropriação dos indígenas como objeto ‘exótico’ não busca entendê-los na condição própria deles, mas usa-los como divertimento ou como justificação de teorias européias, seja sobre a natureza humana, [...] o primitivismo, a superioridade de uma raça sobre a outra etc.
Assim, apesar da determinação papal, somente em 1570, o rei português, D. Sebastião, veio proibir a importação de índios escravizados do Brasil, ainda assim com amplas exceções: os prisioneiros de guerra “justa” (a autorizada por ele mesmo ou por seus ordenanças), os antropófagos, os assaltantes matutinos e os assassinos.
De toda sorte, a resistência dos índios à ocupação de suas terras pelos administradores e colonos, que levou, algumas vezes, a ataques a povoações portuguesas e a consequente fuga de seus moradores para outras donatarias, eu regresso para o Reino e o consequente abandono das capitanias�.
Assim, a rigor, apenas duas donatarias prosperaram: Pernambuco, ao norte – graças ao sucesso da agroindústria da cana-de-açúcar –, e São Vicente, ao sul – muito mais em função da atividade sertanista de caça ao índio para envio aos engenhos canavieiros do norte que de qualquer outra atividade econômica: “A captura de planteis indígenas para escravização nas lavouras da costa nordeste e das próprias vilas paulistas revelou-se, desde muito cedo, a alternativa econômica mais interessante para São Vicente”. (SANTOS, 2015, p.52)
Diante do fracasso do sistema de capitanias, o governo de Portugal não teve alternativa senão ser assumir a linha de frente da colonização, centralizando a administração da colônia numa das antigas donatarias, reestatizada. A escolha da Bahia para sede do Governo Geral foi motivada pela sua centralidade no território colonial. Assim, em 1549, desembarca, no porto da antiga Vila do Pereira (posterior Vila Velha, atual Porto da Barra), na Bahia de Todos os Santos, Tomé de Souza (1503-1579), primeiro Governador-Geral do Brasil (até 1553), cuja primeira missão foi instalar a capital da colônia, a cidade de Salvador:
Um dos grandes objetivos da vinda de Tomé de Souza para o Brasil era sufocar a resistência indígena, submeter os nativos à força, destruindo aldeias, matando e escravizando o quanto fosse necessário para castigar os revoltosos e, por meio do exemplo, atemorizar os outros. (MESGRAVIS e PINSKY, 2000, p.83)
Apesar disso, a partir da realidade encontrada na colônia – uma capital recém-implantada com necessidade de sobreviver, a pressão dos jesuítas pela liberdade dos índios, o relativo sucesso de Diogo Álvares Correia (o Caramuru), no trato com eles, a demanda de apoio local no combate à pirataria de outras potências europeias (sobretudo, francesa) – levou o governador-geral a tentar equilibrar os interesses dos diversos segmentos daquele rascunho de sociedade luso-brasileira: 
Assim se processavam as relações entre índios e portugueses na Bahia, entre 1549 e 1553. Através do escambo, o governo e os jesuítas conseguiam alimentos e trabalho para os colonos. Isso era muito importante na cidade, onde se concentrava maior número de europeus. Nas fazendas, os mantimentos eram obtidos pelo trabalho escravo, que cultivava roças e lavouras de cana. Mas esses suprimentos eram insuficientes e Tomé de Souza mandou navios buscarem farinha em outros pontos da costa, sobretudo em Pernambuco, pagando colonos em dinheiro e aos índios em em espécie. Instituiu-se, também, um mercado parapara a obtenção de viveres. O escambo continuou também no tráfico do pau-brasil, embora estivesse agora sujeito à supervisão do governador. [...] Em outros pontos do Brasil, houve também uma volta ao escambo como modo de transacionar com os índios, embora tomasse feição diversa [...] não só na obtenção de viveres, mas, também, de escravos. [...] O trabalho nos campos e nos engenhos era obtido pela escravidão de cativos feitos em “guerra justa”. Tomé de Souza, portanto, reimplantou o escambo, para certos efeitos, mas não impediu de todo a escravidão. (RIBEIRO, 2009, p. 39)
Com o retorno de Tomé de Souza a Portugal, o rei enviou para cá o segundo governador-geral, Duarte da Costa (c. inicio do século XVI-1560), cuja politica em relação aos índios foi absolutamente desastrada, pois querendo o apoio dos colonos, concordou com incursões indiscriminadas pelo sertão para a caça de escravos índios, entrando, assim, em choque não só com os nativos, mas também com os jesuítas, que, se opondo à escravidão indígena, propunham a utilização de mão-de-obra apenas dos índios já convertidos ou dos catecúmenos, a partir do escambo. Assim, com a peremptória troca do escambo pelo trabalho escravo na agricultura,
[...] as relações entre os colonos e os índios sofreram uma alteração profunda, e o sistema tribal não substituiria mais na sua forma tradicional. O índio passou a ser, desde então, encarado como um empecilho para a apropriação das terras [...] como ameaça

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