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1 I.A CONSTITUIÇÃO 1.Constitucionalismo O termo constitucionalismo designa o movimento político, jurídico e social que identifica a necessidade de norma constitucional como instrumento de limitação do poder. O constitucionalismo alia-se ao liberalismo que surgiu como resposta ao abuso do poder e caracterizou-se pela conquista das normas constitucionais. Para André Ramos Tavares “fica absolutamente nítida, pois, a apresentação do constitucionalismo como movimento que, embora de grande alcance jurídico, apresenta feições sociológicas inegáveis. O aspecto jurídico revela-se pela pregação de um sistema dotado de um corpo normativo máximo, que se encontra acima dos próprios governantes – a Constituição. O aspecto sociológico está na movimentação social que confere a base de sustentação dessa limitação do poder, impedindo que os governantes passem a fazer valer seus interesses e regras na condução do Estado”.1 Constitucionalismo é limitação do poder pelo direito, tendo como base principal a Constituição Federal. Constitucionalismo é a antítese da arbitrariedade que teve seu apogeu na Idade Média. O termo constitucionalismo designa justamente a ruptura do absolutismo. Na Idade Moderna os Estados conheceram a limitação do poder por intermédio das Constituições. O constitucionalismo representou o advento do Estado Liberal, resultado direto da luta contra o absolutismo.2 “A partir do final do século XVIII, os Estados passaram a se organizar por constituições formais. Esses documentos teriam, então, a incumbência de estruturar juridicamente o poder político do Estado, definindo sua forma, a forma e o sistema de governo, a divisão e o funcionamento dos órgãos que prestam atividades do poder, o modelo econômico, bem como limitações ao poder político por meio de 1 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 2. 2 PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas. 4ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 52-53: “Com as lutas contra o absolutismo, ao se implantarem os governos liberais, surgiu o estado de direito, em que o poder se tornou função do consentimento popular, regulado pela Constituição, também originada da vontade do povo. O incremento do direito legislado, aumentando o prestígio do Legislativo, deu ao Estado condição de formulador e aplicador de todo o direito, a que, ele próprio se submete. Desse modo, apesar de modelar e garantir o direito, é dominado e limitado por ele com a Constituição delimitadora da tripartição dos poderes e das atribuições de cada um, assim como definidora dos direitos dos cidadãos e do homem, com as respectivas garantias, e restritiva do poder estatal e dos governantes”. 2 direitos e garantias individuais. A esse movimento foi dado nome de constitucionalismo”.3 “A passagem do Estado Absolutista para o Estado Liberal de Direito deu-se em razão do movimento iluminista surgido na Europa, tendo como principal centro a França. Locke, Montesquieu, Rosseau, dentro outros, sustentando os ideais iluministas no sentido da proteção dos indivíduos contra a insegurança e interferência dos Estados Unidos, ocorrida em 1776, que se consagrou com o nascimento, em 1787, da Constituição dos Estados Unidos, elaborada com a consagração da garantia da liberdade individual, da proteção dos direitos do cidadão e da propriedade privada. Esses ideais também inspiraram a Revolução Francesa de 1789 e a mudança de regime político na França, com a elaboração da Constituição de 1791. Tais movimentos iluministas espalharam-se por todo o mundo civilizado”.4 Os Estados Unidos, em 1787, e a França, em 1791, se organizaram com a influência do constitucionalismo em Estados Liberais de Direito. Surge o Estado de Direito. O ponto primordial era a limitação do poder, constituindo-se como verdadeiras Constituições-garantia. Nesse sentido, Alexandre de Moraes afirma que “a origem formal do constitucionalismo está ligada às Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em 1787, após a Independência das 13 Colônias, e da França, em 1791, a partir da Revolução Francesa, apresentando dois traços marcantes: organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais”.5 “O constitucionalismo ganhou impulso a partir de então, difundindo-se por todo o mundo ocidental. A Constituição, norma formal e materialmente superior a todas as demais, limitadora do poder político e regulamentadora da atuação estatal, passou a ser base dos ordenamentos jurídicos nacionais. Numa etapa evolutiva subseqüente, o constitucionalismo incorporou também os Direitos Fundamentais, como garantias civis, ou seja, o respeito à dignidade humana como limite da autuação do estado, garantindo-se a privacidade, liberdade, democracia, acesso à jurisdição, dentre outros direitos fundamentais”.6 3 MANDELLI JUNIOR, Roberto Mendes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 23. 4 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 48-49. 5 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 37. 6 JAYME, Fernando Gonzaga. Tribunal constitucional: exigência democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, pp. 34-35. 3 Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma que o constitucionalismo “visa estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer, governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas”.7 André Ramos Tavares ressalta a idéia de constitucionalismo globalizado, que traduz-se na ampliação dos valores democráticos e tendo como conseqüência a universalidade desses ideais, ao afirmar que “nessa conhecida busca por maior integração insere-se uma tentativa de ampliação dos ideais e princípios jurídicos adotados pelo ocidente, de maneira que todos os povos reconheçam sua universalidade. Assim, a exigência de democracias, no modelo norte- americano, de Estados que garantam e respeitem eles próprios os direitos humanos já consagrados, incluindo a liberdade de religião, bem como outros tantos princípios, foi disseminada como verdadeiro dogma, valor absoluto do qual não se pode desviar qualquer país. Ora, em síntese, tem-se uma fase final do constitucionalismo, que é justamente a de propagar-se e alcançar todas as nações, unificando os ideais humanos a serem consagrados juridicamente”.8 2.Conceito e Natureza da Constituição O termo Constituição vem do latim constituone, que significa firmar, formar. A Constituição é a organização de alguma coisa. O sentido jurídico não é diferente, na medida em que o termo designa formação e organização fundamental do Estado. A Constituição Federal constitui e estabelece as atribuições dos órgãos do Estado.9 Manoel Gonçalves Ferreira Filho define a Constituição como o “conjunto de regras concernentes à forma do Estado, à forma do governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos, aos limites de sua ação”.10 Para Michel Temer, em sentido mais restrito, 7 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22ª ed.atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 7. 8 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 15. 9 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 1: “A palavra constituição apresenta equívoco. Sua origem remonta o verbo constituir, que tem o significado de ser a base de; a parte essencial de; formar, compor, empregado em expressões triviais, como a constituição de uma cadeira ou a constituição de uma mesa. Logo, intuitivo que a palavra constituição traz em si uma idéia de estrutura, de como se organiza”. 10 FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. Curso de direito constitucional. 22ª ed. atual., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 10. 4 “Constituição significa o “corpo”, a “estrutura” de um ser que se convencionou denominar Estado”.11 Konrad Hesse demonstra o conceito de Constituição afirmando que “a Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade política e tarefas estatais ser exercidas. Ela regula procedimentos de vencimento de conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal. Ela cria bases e normaliza traços fundamentais da ordem total jurídica. Em tudo, ela é o plano estrutural fundamental, orientado por determinados princípios de sentido, para a configuração jurídica de uma coletividade”.12 O conceito de Constituição apresentado pela doutrina constitucional revela o seu sentido de norma fundamental e organizacional do Estado: “O conjunto de normas fundamentais, constante de documentos escrito, solene e inalterável por lei ordinária, reguladoras da própria existência do Estado, sua estrutura, órgãos e funções, do modo de exercício e limites de soberania, dos seus fins e interesses fundamentais, das liberdades públicas, direitos e deveres dos cidadãos”.13 “A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado”.14 11 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 14ª ed. rev. ampl., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 15. 12 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da alemanha (Grundzüge des verfassungsrechts der bundesrepublik Deutschland). Trad. Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 37. 13 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de direito constitucional. São Paulo: Forense Universitária, 1991, p. 44. 14 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 40. 5 “É uma ordem ou ordenação que determinam a posição, considerada em si mesma, e nas recíprocas relações que delas derivam, de vários elementos do Estado e, portanto, o seu funcionamento, a atividade, a linha de conduta desse mesmo Estado e dos que dele fazem parte ou dele dependem”.15 A Constituição Federal é a regra fundamental do Estado; estrutura o poder e assegura os direitos fundamentais do cidadão em face do Estado. A Constituição, como o próprio nome designa, constitui o Estado, trazendo em seu bojo os fatores, os anseios e os valores da sociedade. A natureza da norma constitucional é normativa qualificada. A consequência dessa assertiva é que a Constituição é norma obrigatória, estando presente o binômio exigibilidade-obrigatoriedade. Mas, essa imperatividade é qualificada, pois a Constituição é norma fundamental e suprema. Em suma, a Constituição é norma jurídica (imperativa) fundamental (suprema). A Constituição Federal é uma norma jurídica e sua essência é organizacional, fundamental e fundante. Em suma, a Constituição traz em seu conteúdo: 1.a organização da competência dos órgãos do Estado, disciplinando o Poder (norma organizacional do Estado); 2.a instituição e organização do sistema jurídico (norma fundante); 3.o fundamento de validade e unidade do sistema jurídico, se configurando assim como suprema (norma fundamental). A finalidade precípua da Constituição é regular a estrutura básica do Estado. Essa armação básica do Estado pode ser dividida, em sentido amplo, em três capítulos: 1.a forma do Estado; 2.a competência dos órgãos que compõem o Estado; 3.os direitos fundamentais dos cidadãos do Estado. 15 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 4. 6 A organização do Estado como limite de sua atuação e consequentemente importando em direitos que o cidadão possui em face do poder, é a própria concepção tradicional de Constituição. A Carta de 1988, além desse perfil traz em seu bojo prestações e ações positivas dirigidas ao Estado.16 No aspecto jurídico a Constituição tem por finalidade organizar o Estado, se configurando como sua norma fundamental, pois o alicerce do sistema jurídico é a Constituição. O próprio termo fundar, traz a idéia de criar, dar início e assentar, erguer, alicerçar. A Constituição cria o Estado e ao mesmo tempo organiza. No prisma político-jurídico, podemos afirmar que a Constituição cumpre três funções essenciais no Estado Democrático de Direito:17 1.consagrar e garantir os Direitos Fundamentais; 2.organizar e limitar o Poder; e 3.preservar a unidade política da nação. Nesse plano, a Constituição é a manifestação política plena do povo, tendo por finalidade implementar o processo democrático propugnado pela nação. Representa o pacto nacional, ou seja, as regras organizacionais fundamentais eleitas pelo povo. 2.1.Desdobramentos da Natureza e Essência da Constituição A Constituição é norma jurídica qualificada. Dessa natureza, podemos afirmar que se trata de norma fundamental dotada de superioridade e centralidade no sistema jurídico que tem por finalidade precípua a organização do Estado. A normatividade, a centralidade da Constituição e o perfil do 16 CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra, Portugal: Coimbra, 2007, p. 55: “A típica concepção tradicional da constituição era caracterizada por três traços fundamentais: (a) a constituição era considerada apenas, ou fundamentalmente, como estatuto organizatório do Estado; (b) limite da actividade do Estado; (c) a constituição só interessava directamente aos cidadãos enquanto defesa da sua esfera de liberdade perante o Estado”. 17 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 64: “Pode-se indicar que as Constituições se desincumbem de, ao menos, dez funções diferentes: a função de garantia, a função organizativa ou estruturante, a função limitativa, a função procedimental, a função instrumental, a função conformadora da ordem sociopolítica, a função legitimadora (às vezes, legitimante), a função legalizadora, a função simbólica e, enfim, a função prospectiva”. 7 Estado nela adotado influenciam o sistema jurídico, em especial, no que se refere à Hermenêutica Jurídica. A Constituição informa a norma jurídica tanto na sua elaboração como aplicação, pois o comando constitucional regula a criação legislativa pelas suas diretrizes e princípios e se configura em verdadeiro limite de preceitos futuros e ainda, e por meio dos critérios constitucionais que se interpreta e se aplica o direito. 2.1.1.Normatividade Para Lassalle, a verdadeira essência da Constituição é a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação.18 Konrad Hesse acrescenta que a Constituição assume, no constitucionalismo contemporâneo, a função de conjunto de valores fundamentais da sociedade e fronteira entre antagonismos jurídicos-políticos. O Direito Constitucional deve compreender a normatividade de uma Constituição vigente, concreta e historicamente situada. “A Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel, tal como caracterizada por Lassalle. Ela não se afigura ‘impotente para dominar, efetivamente, a distribuição de poder’, tal como ensinado por Georg Jellinek e como, hodiernamente, divulgado por um naturalismo e sociologismo que se pretende cético. A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca”.19 18 A obra “O que é uma Constitução?” de Ferdinand Lassale é um clássico no pensamento político constitucional, sendo publicada no Brasil com o título “A essência da Constituição”. A tese central da referida obra é que questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas. É que a Constituição de uma nação espelha os fatores reais do poder que regem uma determinada sociedade. Os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são. Dessa forma, a Constituição de um país expressa os fatores e forças do poder dominantes: o poder militar, social, econômico e até mesmo o poder intelectual, que se exterioriza pela consciência cultural. As correlações desses fatores constituem a força ativa da Constituição. Esses fatores formam a Constituição real de uma nação, sendo que a Constituição Jurídica segundo o autor não passa de um pedaço de papel. Para Lassale a Constituição de um país só tem por base os poderes reais e efetivos de poder que vigem naquele país, e as constituições escritas não tem valor a não ser que exprimam fielmente os fatores reais que imperam na realidade social. Nesse sentido conclui o autor: “Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos lembrar” (LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. Prefácio Aurélio Wander Bastos, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998). 19 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição (die normative kraft der verfassung). Trad. De Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 25. 8 A Constituição é uma norma jurídica e como toda norma jurídica não se encontra dissociada de seu tempo.20 “A Constituição não deve ser entendida tão-somente no sentido jurídico, como um corpo codificado de leis fundamentais, porém ainda no sentido político-social, como o conjunto de costumes e usos sobre o exercício e a transmissão da autoridade, ou o valor das liberdades públicas, dentro de um determinado ambiente histórico”.21 Gomes Canotilho, ao comentar a Constituição da República Portuguesa (CRP), confirma a nossa tese da natureza normativa qualificada da Constituição afirmando que: “A CRP é, desde logo, um lei, revestindo a forma típica de qualquer lei. Sendo uma lei, ela compartilha com as leis em geral um certo conjunto de características (forma escrita, redacção articulada, publicação oficial, etc.). Mas a CRP é uma lei diferente das outras, é uma lei específica. Essa especificidade está logo na forma especial da sua elaboração – através de uma Assembléia Constituinte especialmente eleita para o efeito – e nas regras particularmente exigentes que presidem à sua alteração, estabelecidas por ela mesma (regras da revisão constitucional); depois, a CRP é uma lei necessária, no sentido de que não pode ser dispensada ou revogada, mas apenas modificada; finalmente, é uma lei hierarquicamente superior – a lei fundamental, a lei básica -, que se encontra no vértice da ordem jurídica à qual todas as leis e normas jurídicas em geral, têm de submeter-se”.22 Samuel Meira Brasil Jr. destaca a normatividade constitucional e seu impacto da tutela de direitos afirmando que “Um dado, todavia, não pode passar despercebido nesse contexto: a força normativa da Constituição, 20 DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. 5ª ed., atual., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 72: “O direito deve ser visto em sua dinâmica como uma realidade que está em perpétuo movimento, acompanhando as relações humanas, modificando-se, adaptando-se às novas exigências e necessidades da vida, inserindo-se na história, brotando do contexto cultural. A evolução da vida social traz em si novos fatos e conflitos, de maneira que os legisladores, diariamente, passam a elaborar novas leis; juízes e tribunais constantemente estabelecem novos precedentes e os próprios valores sofrem mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida. Estamos envolvidos por um mundo circundante que, além de nós, contém inúmeros objetos, sendo o direito um deles. O direito é um dado que abrange diferentes experiências que se completam, sejam elas históricas, antropológicas, sociológicas, psicológicas, axiológicas etc. Grande é a sua complexidade constitutiva. A experiência jurídica contém uma imensidão de dados heterogêneos”. OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 76-77: “O sistema jurídico é dinâmico e o ordenamento jurídico, incompleto, mutável e prospectivo. Constituído por normas, fatos e valores, o ordenamento jurídico mostra-se lacunoso e em constante tentativa de adaptação às vicissitudes pelas quais a sociedade, diariamente, passa. (...) Está, de há muito tempo, superada a concepção de que o Direito seria constituído apenas por normas. Sua constituição é muito mais complexa do que simples redução a um conjunto normativo. Abrange diversas experiências (histórias, antropológicas, sociológicas, axiológicas) que se completam”. 21 FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 4. 22 CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra, Portugal: Coimbra, 2007, p. 57. 9 embora seja manifesta, constitui fenômeno ainda recente. A história relata que, após determinados eventos que ficaram marcados no imaginário coletivo, sobreveio um fértil período de normatização constitucional, no qual se reconheceu às normas constitucionais, na esteira das demais normas jurídicas, o caráter de imperatividade, expandindo-se sobre todos os setores sociais. A imagem da Constituição como mero documento político, desprovido de mecanismos de coerção, cuja concretização era conferida exclusivamente aos Poderes Legislativo e Executivo, cede lugar, paulatinamente, a uma concepção normativa: os direitos constitucionais assumiram a condição de verdadeiros direitos subjetivos, judicializáveis direta e imediatamente pelos Tribunais”.23 A normatividade da Constituição é qualificada, pois se trata de uma norma central e fundamental no sistema jurídico. Assim, do ponto de vista ontológico verifica-se três aspectos da Constituição: normatividade, fundamentalidade e centralidade. 2.1.2.Fundamentalidade e Centralidade A Constituição é a lei fundamental do Estado.24 A fundamentalidade da norma constitucional é o ponto nuclear da sua definição. “Na verdade a constituição precede o constitucionalismo. Em qualquer Estado, qualquer época, em qualquer lugar, houve e haverá sempre um conjunto de regras fundamentais que respeitem a sua estrutura, atividade e organização. A constituição poderá ser escrita ou não, simples ou complexa, mas será sempre uma ordem jurídica soberana”.25 A normatividade da Constituição possui reflexos no sistema jurídico, dotando a norma excelsa de centralidade. “Com isso, o delineamento de uma caracterização que configurou o ordenamento jurídico assentado em uma nova dimensão do princípio da legalidade, mediatizado, agora, desde a 23 BRASIL JR., Samuel Meira. O cumprimento coercitivo das decisões judiciais no tocante às políticas públicas. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (coords.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 468-469. 24 MARQUES, José Frederico. O processo penal na atualidade. In: PORTO, Hermínio Alberto Marques; SILVA, Marco Antonio Marques da. (orgs.). Processo Penal e Constituição. São Paulo: Acadêmica: APAMAGIS, 1993, p. 13: “A Constituição de um país, como dizia Pelegrino Rossi, é ‘tête de chapitre’ de todas as disciplinas do Direito, por trazer inscritas, em seus textos e cânones, normas reguladoras, de caráter geral, para os diversos setores da ordem jurídica. E o Direito Constitucional, sem invadir, propriamente, a zona particular de cada uma das ciências jurídica, representa, para elas, uma espécie de prefácio ou introdução, segundo disse Santi-Romano”. 25 FURQUIM, Maria Célia de Araújo. A constituição como sistema. Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. 20:130-139. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 1997, p. 132. 10 supremacia normativa da Constituição, exercerá um empuxo sobre todas as atividades do Estado, fazendo com que as mesmas fiquem submetidas à ‘força de atração’ da Constituição que regulará, inclusive, o caráter de validez da produção legislativa emanada de um parlamento democraticamente eleito, operacionalizado desde um eventual controle de constitucionalidade”.26 Para Luis Manuel Fonseca Pires “as normas constitucionais não são simples recomendações políticas, mas comandos imperativos que se impõem no ápice e no centro do sistema jurídico, e que não se reduzem a prescrever competências, mas externam os valores juridicamente definidos como um consenso mínimo do que deve ser cumprido pelo Estado, então há a necessidade de percebermos de que algo e em alguma medida mínima é exigível judicialmente contra o próprio Estado em caso de descumprimento de comandos constitucionais”.27 O impacto da Constituição causa reflexo em todo o sistema jurídico, alcançando inclusive as relações de Direito Privado. Trata-se de fenômeno indicado pela doutrina como a constitucionalização do Direito Privado. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a Constituição alcança as relações privadas: “EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados”.28 Konrad Hesse ressalta que a função da Constituição não se refere somente ao Estado. “A função que cumpre o ordenamento jurídico não se aplica só ao Estado. Em sentido amplo, necessita-se do ordenamento jurídico para toda a convivência em comunidade dentro do território do Estado, convivência essa que, sem ordenamento jurídico, não seria possível”.29 Sayeg e Balera ressaltam que “a sociedade civil e o homem livre são supletivamente responsáveis quanto à responsabilidade do Estado no que 26 DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da Constituição. São Paulo: Landy, 2006, p. 22. 27 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial das discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 294. 28 STF, RE 201.819-8-RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.05, DJ 27.10.06. 29 HESSE, Konrad. Temas fundamentais de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6. 11 tange à concretização multidimensional dos direitos humanos, porque o Artigo 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos insufla o espírito de fraternidade sobre todos”.30 2.1.3.Organização do Estado Historicamente, o termo Constituição é empregado para designar o conjunto de normas que organizam o Estado, ou leis supremas que organizam o poder. Na realidade são normas que organizam o Poder Social.31 O próprio corpo social organiza o Poder. Um dos Pilares da Democracia é a criação, estabelecimento e organização do Governo pelos Governados. “Na concepção que inspirou as primeiras cartas constitucionais, estas eram consideradas como solenes contratos estipulados entre os componentes da sociedade política ou entre o príncipe de um lado e o povo do outro, quase que como uma renovação do original e mítico contrato social, do qual se teria dessumido um caráter sagrado e de intangibilidade”.32 A Constituição é o pacto entre o soberano e o povo, que estabelece os princípios e alicerces do Estado. Nesse sentido, a Constituição é o limite do poder estatal. “Qualquer Estado, seja qual for o tipo histórico a que se reconduza, tem Constituição, na medida em que necessariamente se acompanha de uma institucionalização jurídica do poder; em qualquer Estado podem recortar-se normas fundamentais em que assenta todo o seu ordenamento”.33 O conceito de Constituição ganha força com o liberalismo. O art. 16 da Declaração de 1789 dita: “Toda a sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determina a separação dos poderes, não tem 30 SAYEG, Ricardo; BALERA, Wagner. O capitalismo humanista. Petrópolis: KBR, 2011, p. 117. 31 FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. Curso de direito constitucional. 22ª ed., atual., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 3: “Data da Antiguidade a percepção de que, entre as leis, algumas há que organizam o próprio poder. São leis que fixam os órgãos, estabelecem as suas atribuições, numa palavra, definem a sua Constituição. Na célebre obra de Aristóteles, A política, está clara essa distinção entre leis constitucionais e leis outras, comuns ou ordinárias. Tal distinção, porém, somente veio a ser valorizada no século XVIII, na Europa ocidental. E isto ocorreu com o propósito de limitar o poder, afirmando a existência de leis que seriam a ele anteriores e superiores. É daí em diante que o ‘termo constituição’ passou a ser empregado para designar o corpo de regras que definem a organização fundamental do Estado”. 32 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 44. 33 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: Introdução à teoria da Constituição. tomo II, 2ª ed. rev., Coimbra, Portugal: Coimbra ed., 1988, p. 7. 12 Constituição”. Manoel Gonçalves Ferreira Filho anota que “para o liberalismo, Constituição é um documento escrito e solene que organiza o Estado, adotando necessariamente a separação dos poderes e visando garantir os direitos do homem”.34 O desdobramento da organização do Estado ganha relação direta com a interpretação constitucional, na medida em que o perfil de Estado adotado pelo texto constitucional influenciará em todo sistema jurídico. A feição política vai delinear a hermenêutica das normas constitucionais e infraconstitucionais. Ora, se o Estado é autoritário, a interpretação é autoritária. Se o Estado é liberal, a leitura é liberal. Com o advento da Constituição Federal de 1988 surge o Estado Democrático e Social de Direito, que procurou conciliar os preceitos do liberalismo, da democracia e do Socialismo. A evolução histórica do Estado Liberal fez surgir o Estado Democrático e Social de Direito. Esse novo modelo é o plexo do Estado Liberal burguês e do Estado Social que surgiu com a Revolução Industrial. O Estado Democrático e Social de Direito procura conciliar os direitos individuais, que perdem o cunho burguês e egocêntrico de sua origem, com o bem-estar social. Esse modelo de Estado adota um sistema que se pauta pelo equilíbrio entre os interesses do Estado e a garantia da liberdade individual do cidadão. Nesse sentido, o Estado encontra- se a serviço do Estado e da sociedade.35 No século XXI percebe-se a tentativa de conciliação entre liberalismo, democracia e socialismo, surgindo inclusive a frase “nem com Marx, nem contra Marx”. Noberto Bobbio procurou estabelecer este contraponto na obra liberalismo e democracia, ensinando que “Enquanto a relação entre liberalismo e socialismo foi de clara antítese, tanto se o socioalismo fosse julgado à base de seu projeto de sociedade futura como se fosse considerado como a ideologia de uma classe destinada a suceder a classe burguesa no desenvolvimento progressivo da história, a relação entre socialismo e democracia foi bem mais, desde a origem, uma relação de complementariedade, assim como houvera sido até então a relação entre democracia e liberalismo (...) A ambigüidade do conceito de democracia surge em toda a sua evidência na assim chamada ‘democracia social’, que deu origem ao Estado de serviços (expressão mais apropriada do que aquelas, 34 FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. Curso de direito constitucional. 22ª ed. atual., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 7. 35 SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos humanos e cidadania. 3ª ed. rev. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 107. 13 respectivamente falsas por excesso e por defeito, de ‘Estado-bem-estar’ e ‘Estado assistencial’ (...) Para quem examina essa constante dialética de liberalismo e democracia de um ponto de vista de teoria política geral, fica claro que o contraste contínuo e jamais definitivamente resolvido (ao contrário, sempre destinado a se colocar em níveis mais altos) entre a exigência dos liberais de um Estado que governe o menos possível e a dos democratas de um Estado no qual o governo esteja o mais possível nas mãos dos cidadãos, reflete o contraste entre dois modos de entender a liberdade, costumeiramente chamados de liberdade negativa e de liberdade positiva, e em relação aos quais se dão, conforme as condições históricas, mas sobretudo conforme o posto que cada um ocupa na sociedade, juízos de valor opostos: os que estão no alto preferem habitualmente a primeira, os que estão embaixo preferem habitualmente a segunda. Como em toda sociedade sempre existiram até agora uns e outros, o contraste benéfico entre as duas liberdades não é do tipo das que podem ser resolvidas de uma vez para sempre, com as soluções por ele recebidas sendo muitas vezes soluções de compromisso. Infelizmente tal contraste nem sempre é possível: não é possível nos regimes em que, no posto da primeira, há um poder sem limites; no posto da segunda, um poder acima de qualquer controle. Mas contra um e contra outro, liberalismo e democracia se transformam necessariamente de irmãos inimigos em aliados”.36 O Estado Liberal se preocupou com os direitos individuais, se sedimentando a idéia de direito subjetivo e titularidade de direito. O Estado Democrático e Social de Direito ampliou a tutela dos direitos alcançando os direitos coletivos. “A Constituição de 1988 estabeleceu deveres fundamentais ligados às políticas públicas (v.g., saúde, educação, segurança pública e meio ambiente). Essa especial categoria de direitos subjetivos caracteriza-se por se exercida no interesse e benefício de terceiros especialmente determinados pela norma e/ou da própria coletividade, rompendo o círculo individualista dos direitos subjetivos clássicos, voltados unicamente para o interesse do titular”.37 A leitura da Constituição que tem por fundamento, o Estado Democrático e Social de Direito, que procura conciliar a democracia liberal como os anseios da sociedade, sempre calcados no Direito, na lei. Pois, indubitavelmente, não há liberdade fora da lei. Esse é o verdadeiro sentido do 36 BOBBIO, Noberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2000, pp. 80-81, 84 e 97. 37 ZANETI JR., Hermes. A teoria da separação de poderes e o estado democrático constitucional: funções de governo e funções de garantia. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (coords.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 36. 14 Estado de Direito. No Estado Democrático e Social de Direito a relação comunidade-indivíduo não é nem do absolutismo nem do liberalismo, procura-se buscar o equilíbrio. Nessa construção pode-se verificar aparente conflito, que deverá ser solucionado na análise do caso concreto. Robert Alexy exemplifica este fato ao afirmar que “a ponderação como parte de um exame de proporcionalidade, porém, é o problema nuclear da dogmática dos direitos fundamentais e o fundamento principal para a abertura dos catálogos de direitos fundamentais. Em alguns casos, esse problema salta aos olhos abertamente, por exemplo, quando o art. 5º, XXII, garante a propriedade e então, de imediato, no inciso XXIII, é acrescentado que a propriedade deve servir à sua função social. Em outros casos, a necessidade de um exame de proporcionalidade primeiro em olhar circunstanciado fica claro, por exemplo, quando o artigo 5, XI, admite o entrar na habitação de dia em virtude de ordenação judicial. Isso não quer dizer que tribunais, por qualquer fundamento, devem admitir um adentrar na habitação”.38 O texto constitucional consagrou direitos aparentemente contraditórios, como por exemplo, direito ao trabalho e direito a greve, direito à intimidade e direito à informação, direito a livre concorrência e direito do consumidor, direito à propriedade e função social da propriedade. A ponderação destes direitos exige leitura axiológica da Constituição com o fito de consagrar o perfil político consagrado. De outra feita, as Constituições contemporâneas não se limitam a organizar o Estado, elegendo outras matérias de interesse para a coletividade e trazendo prestações e ações positivas dirigidas ao Estado. “Não é apenas um estatuto organizatório do Estado-instituição ou do Estado-pessoa-colectiva; é também é também lei fundamental da sociedade, da colectividade política, incluindo regras de organização econômica e social. Não é apenas um limite negativo à actividade do Estado; é também um caderno de encargos do Estado, das suas tarefas e obrigações no sentido de satisfazer as necessidades económicas, sociais e culturais dos cidadãos e dos grupos sociais. Não é apenas, para os cidadãos, uma barreira de defesa perante as intromissões do Estado; é também, em primeiro lugar, um catálogo de direitos à acção ou a prestações do Estado; em segundo lugar, uma imposição de deveres perante o 38 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 50-51. 15 Estado e a sociedade; e, finalmente, uma fonte directa de disciplina das relações entre os próprios cidadãos”.39 A Constituição Federal de 1988 declarou os direitos fundamentais e trouxe instrumentos para sua efetivação. Entretanto, o exercício dos direitos exige a atuação do Estado. “Do ponto de vista dos direitos, a Constituição de 1988 consagra duas mudanças fundamentais: de um lado, reconhece, além dos direitos individuais, os denominados direitos sociais, como o direito ao trabalho, à moradia, à educação, à saúde, à Previdência Social; de outro, fortalece os mecanismos de tutela de direitos. Essas inovações podem ser consideradas um ponto de inflexão na história nacional, uma vez que tanto os novos direitos como os mecanismos para a sua tutela evocam a exigência de atuação estatal”.40 A problemática do contexto da Constituição dirigente é a sua efetividade. Eduardo Cambi indica que “os direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal de 1988, reclamam maior efetividade. Aliás, é importante, desde já, distinguir a eficácia da efetividade das normas. A eficácia diz respeito à concretização do ‘programa condicional’, isto é, do vínculo ‘se-então, abstrata e hipoteticamente previsto na norma legal. Já a efetividade concerne à implementação do ‘programa finalístico’ que orientou a atividade legislativa ou a concretização do vínculo ‘meio-fim’ que decorre, abstratamente, do texto legal”.41 Assim, o desiderato do sistema jurídico é a implementação do perfil e programa de Estado previsto na Constituição Federal. 3.Direito Constitucional O direito constitucional é ramo do direito público que regula a organização do Estado. Pontes de Miranda o denomina como “a parte do direito público que fixa os fundamentos estruturais do Estado”.42 José Afonso da Silva o define “como o ramo do direito público que expõe, interpreta e 39 CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra, Portugal: Coimbra, 2007, p. 56. 40 SADEK, Maria Tereza. Judiciário e arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (coords.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 15. 41 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. 2ª ed. rev. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 20. 42 MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1967 com a emenda nº 1 de 1969. 2ª ed. rev., São Paulo: Revista dos tribunais, 1970, p. 169. 16 sistematiza os princípios fundamentais do Estado”.43 “Trata-se do ramo do Direito Público que estuda as normas que estruturam, basicamente, o Estado”.44 O Direito Constitucional tem como base de estudo a Constituição Federal, a Constituição Política do Estado. “O Direito Constitucional é um ramo do Direito Público, destacado por ser fundamental à organização e funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases da estrutura política”.45 É um ramo do Direito Público, na medida em que estuda a própria estrutura do Estado. José Afonso da Silva, ao tratar do objeto e conteúdo das Constituições, anota que têm elas por objeto “estabelecer a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos, o modo de aquisição do poder e a forma de seu exercício, limites de sua atuação, assegurar os direitos e garantias dos indivíduos, fixar o regime político e disciplinar os fins socioeconômicos, sociais e culturais. Nem sempre tiveram as constituições objeto tão amplo. Este vem estendendo-se com o correr da história”.46 Do prisma científico, conceito que entendemos primordial, o Direito Constitucional é uma disciplina jurídico-científica que tem por objeto de estudo a Constituição. O conhecimento científico é sistematizado. Assim, desse ponto de vista, o Direito Constitucional é o conhecimento sistematizado das regras constitucionais, ou seja, aquelas relativas à organização fundamental do Estado. No entender de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o Direito Constitucional é o “conhecimento sistematizado das regras jurídicas relativas à forma do Estado, à forma do governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos e aos limites de sua ação”.47 43 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 36. 44 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Notas introdutórias ao estudo do direito. 2ª ed., São Paulo: Ícone, 1990, p. 68. 45 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ª ed., São Paulo : Atlas, 2004, p. 37. 46 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1999, p.45. 47 FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. Curso de direito constitucional. 22ª atual., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 14. 17 A investigação científica do Direito Constitucional é feita em três planos ou disciplinas: 1.Direito Constitucional Positivo ou Particular; 2.Direito Constitucional Comparado; e 3.Teoria do Direito Constitucional. O Direito Constitucional Positivo estuda o texto da Constituição de determinado Estado, investigando a sua vigência e eficácia. O Direito Constitucional Comparado investiga os pontos de contato entre os Direitos Positivos de Estados diversos. Como o próprio nome designa, essa disciplina compara vários aspectos dos textos constitucionais. A Teoria do Direito Constitucional estuda a teoria ou sistematização dos preceitos constitucionais, servindo de roteiro básico ao intérprete. Estuda conceitos, princípios e instituições presentes em várias Constituições, trazendo uma visão unitária ao estudo científico do Direito Constitucional. Como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “da comparação entre os direitos positivos extrai-se o que há de comum a todos eles, reunindo-se assim os princípios universalmente respeitados em matéria constitucional. A sistematização desses princípios constitui o Direito Constitucional Geral ou Teoria Geral do Direito Constitucional, que serve ao mesmo tempo de roteiro para o constituinte e para o intérprete”.48 Nesse sentido, a investigação do Direito Constitucional tem uma vertente dogmática, a qual estuda uma ordem jurídica concreta, ou seja, as leis constitucionais positivas de determinado Estado; e teórica, quando estuda os conceitos do Direito Constitucional construídos pela ciência e experiências constitucionais de diversas leis positivas. No contexto dogmático e teórico, o Direito Constitucional busca compreender os fundamentos básicos da organização política do Estado. A evolução do seu estudo e conteúdo seguiu a evolução do próprio Estado. A grande maioria dos textos constitucionais contemporâneos encontra-se calcada e procura organizar o Estado Democrático e Social de Direito. “As funções do Estado moderno viram-se reformuladas no decorrer do processo histórico, 48 FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. Curso de direito constitucional. 22ª atual., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 15. 18 devido à mudança dos paradigmas do Estado liberal para o Estado social, evoluindo para o Estado democrático de direito”.49 4.Classificação das Constituições São inúmeras as classificações apontadas pela doutrina. Dessa forma, trazemos as principais, utilizando os seguintes critérios: 4.1.Quanto à forma No que se refere à forma as Constituições são: escritas e não- escritas. A Constituição escrita é aquela codificada e sistematizada em um único documento proclamado de forma solene. Na Constituição não-escrita não inexiste um texto único proclamado de forma solene, pois as normas constitucionais encontram-se em leis esparsas, costume, jurisprudência e convenções. O exemplo típico é a Constituição Inglesa, em que uma parte das normas de organização política é consuetudinária. “A Inglaterra, embora Cromwell dela tivesse tido a ideia, nunca teve uma constituição escrita, salvo alguns textos fragmentários nos quais estão consagrados princípios basilares; entretanto, quando a ordenação inglesa foi transplantada para outros lugares, no sentido e nos limites que serão mencionados, prevaleceu, por exemplo, na América do Norte e na França, o sistema de redigir o direito constitucional, resumindo-o em cartas ou estatutos”.50 Nesse sentido, o documento escrito onde se inserem ou se depositam normas constitucionais é a Constituição em sentido instrumental. Assim, “Constituição instrumental é o texto denominado Constituição ou elaborado como Constituição, seja ou não o único texto do documento donde constem normas constitucionais”.51 49 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado : o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte : Del Rey, 2001, p. 15. 50 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 45. 51 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: Introdução à teoria da Constituição. tomo II, 2ª ed. rev., Coimbra, Portugal: Coimbra ed., 1988, p. 12. 19 A Constituição escrita apresenta vantagens e desvantagens. “O caráter consuetudinário do direito público inglês e a multiplicidade de seus documentos escritos beneficia a sua estabilidade, opondo aos inovadores e aos revolucionários uma resistência longa e continuada de trincheiras; o direito constitucional escrito, pelo contrário, apresenta-se como um fácil e próximo alvo aos seus adversários, quase que um convite e um concurso perpétuo a quem souber escrever uma melhor”.52 “A reivindicação de que haja uma Constituição escrita equivale, antes de mais, à reivindicação de que as normas constitucionais se contenham num texto ou documento visível, com as inerentes vantagens de certeza e de prevenção de violações”.53 4.2.Quanto ao modo de elaboração Como base no modo de elaboração as Constituições são: dogmáticas e históricas. A Constituição dogmática emana do poder constituinte, sendo sistematizada em dogmas fundamentais escritos, ao passo que a Constituição histórica surge da tradição de determinado povo através de um longo e contínuo processo histórico, como, por exemplo, a Inglaterra. Ao tratar das instituições constitucionais da Inglaterra, Santi Romano anota que “trata-se de instituições que tiveram uma evolução histórica muito lenta e progressiva, ou melhor, espontânea e natural, que não se encontra, em medida análoga, em nenhum outro ordenamento jurídico, senão no direito romano e no direito canônico. Elas constituem um edifício que não surgiu subitamente, mas que resultou de uma série de ampliações, adaptações, modificações de um primeiro edifício de proporções menores, que todavia não mudou de estilo e que tem conservado, constantemente, seus traços essenciais. A constituição inglesa, que Jorge III dizia ser a mais perfeita das criações humanas e que outros consideravam um mistério sagrado da ciência governamental”.54 52 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 45. 53 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional : Introdução à teoria da Constituição. tomo II, 2ª ed. rev., Coimbra, Portugal: Coimbra ed., 1988, p. 12. 54 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 43. 20 “O conceito de constituição dogmática é conexo com o de constituição escrita, como o de constituição histórica o é com constituição não escrita. Constituição dogmática, sempre escrita, é a elaborada por um órgão constituinte, e sistematiza os dogmas ou idéias fundamentais da teoria política e do Direito dominantes no momento. Constituição histórica ou costumeira, não escrita, é, ao contrário, a resultante de lenta formação histórica, do lento evoluir das tradições, dos fatos sócio-políticos, que se cristalizam como normas fundamentais da organização de determinado Estado, e o exemplo ainda vivo é a da Constituição inglesa”.55 4.3.Quanto à Origem De acordo com a origem as Constituições são: promulgadas e outorgadas. As Constituições promulgadas, também denominadas de democráticas e populares), são elaboradas pela Assembleia Nacional Constituinte (órgão constituinte) composta por representantes eleitos pelo povo com a finalidade de elaborar o texto constitucional. As Constituições Outorgadas são elaboradas por um poder sem a participação popular, sendo consequentemente impostas pelo Poder Ditatorial, seja um imperador, rei ou ditador. Quanto à origem, a doutrina aponta ainda, as denominadas constituições cesaristas, que são aquelas outorgadas, mas submetidas ao povo por intermédio do referendo popular. No Brasil as Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988 foram promulgadas e as Constituições de 1824, 1937, 1967 e EC nº 01/1969 foram outorgadas. 4.4.Quanto à Estabilidade ou Mutabilidade No que se refere à estabilidade ou mutabilidade as Constituições são: imutáveis, rígidas, flexíveis e semiflexíveis ou semirrígidas. 55 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 43. 21 Nas Constituições imutáveis não se permite qualquer alteração no texto constitucional. Na maioria dos casos a imutabilidade é relativa, na medida em que estabelecem um prazo fixado onde não se admitirá reforma. São as chamadas limitações temporais dirigidas ao legislador constituinte reformador. As Constituições rígidas são aquelas que apresentam um processo legislativo especial para a reforma constitucional, em regra mais solene e dificultoso do que o estabelecido para as normas legais ordinárias. As Constituições flexíveis são aquelas que podem ser alteradas mediante processo legislativo ordinário. Nas Constituições semirrígidas ou semiflexíveis algumas normas constitucionais são alteradas mediante procedimento legislativo ordinário e outras mediante procedimento legislativo especial (mais dificultoso), como ocorria na nossa Constituição de 1824, que em seu art. 178 dispunha que “É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é Constitucional pode ser alterado sem as formalidades referidas pelas Legislaturas ordinárias”. “A denominação flexível, por sua vez, parece indicar instabilidade, no sentido de que as constituições flexíveis seriam instáveis. Não possuindo garantia de solidez e permanência, pois promulgadas pela autoridade legislativa ordinária e capazes de por ela serem alteradas, são de fato objeto de mudanças extensas e frequentes. Se for feito um breve retrospecto histórico, porém, ver-se-á que, embora com toda carga de instabilidade própria de sua natureza, tal não sucedeu, já que – só a título de ilustração, considerando a Inglaterra um exemplo típico ora tratado – constatamos que as principais características do governo inglês continuam sendo as mesmas desde 1689 e 1701. Tal raciocínio, então, nem sempre corresponde totalmente a uma representação da realidade concreta, e a estabilidade de uma Constituição não depende tanto da forma, mas do equilíbrio das forças sociais e econômicas que a apoiam e sustentam. Sua característica, portanto, é sua elasticidade, e não sua instabilidade, já que pode adaptar-se sem haver ruptura em sua estrutura”.56 A Constituição Federal de 1988 é rígida na medida em que só pode ser emendada mediante processo legislativo especial (art. 60). Ainda, entendemos que é imutável em parte, haja vista as cláusulas pétreas (art. 60, § 4º). 56 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 4ª ed. rev., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 47-48. 22 4.5.Quanto à Extensão ou Finalidade Tomando-se como critério à extensão ou finalidade as Constituições são: garantia e dirigente. As Constituições garantia, também chamadas de sintéticas ou negativas, contém as regras e princípios básicos referentes a organização e limites do Estado. A limitação do poder do Estado verifica-se por intermédio dos direitos e garantias individuais. Essa espécie de Constituição tem a preocupação básica de contemplar os princípios norteadores do Estado e do sistema jurídico. A principal preocupação da Constituição garantia é o impedimento oposto à autoridade. As Constituições dirigentes, também chamadas de analíticas, são compostas de várias espécies normativas, eleitas de acordo com os anseios do povo do Estado. Essa espécie de Constituição disciplina todos assuntos que entendem relevantes ao Estado, mas que poderiam ser inseridos na legislação ordinária. A Constituição dirigente se preocupa com programas futuros. José Afonso da Silva, no prefácio de seu curso, escreve que “o constituinte fez uma opção muita clara por uma Constituição abrangente. Rejeitou a chamada constituição sintética, que é constituição negativa, porque construtora apenas de liberdade-negativa ou liberdade-impedimento, oposta à autoridade, modelo de constituição que, às vezes, se chama de constituição- garantia (ou constituição-quadro). A função garantia não só foi preservada como até ampliada na Constituição, não como mera garantia do existente ou como simples garantia das liberdades negativas ou liberdades-limite. Assumiu ela a característica de constituição-dirigente, enquanto define fins e programa de ação futura, menos no sentido socialista do que no de uma orientação social democrática, imperfeita, reconheça-se. Por isso, não raro, foi minuciosa e, no seu compromisso com a garantia das conquistas liberais e com um plano de evolução política de conteúdo social, nem sempre mantém uma linha de coerência doutrinária firme. Abre-se, porém, para transformações futuras, tanto seja cumprida. E aí está o drama de toda constituição dinâmica: ser cumprida”.57 A Constituição garantia que tem por finalidade limitar o poder, garantindo a liberdade e a Constituição dirigente indica a direção a ser seguida pelo Governo, ou seja, se constrói um projeto de Estado. Ao lado da 57 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 6. 23 Constituição garantia e dirigente Manoel Gonçalves Ferreira Filho cita a Constituição balanço que indicaria um projeto socialista: “Modernamente , é frequente designar a Constituição de tipo clássico de Constituição-garantia, pois esta visa a garantir a liberdade, limitando o poder. Tal referência se desenvolveu pela necessidade de contrapô-la à Constituição-balanço. Esta, conforme a doutrina soviética que se inspira em Lassalle é a Constituição que descreve e registra a organização política estabelecida. Na verdade, segundo essa doutrina, a Constituição registraria um estágio das relações de poder. Por isso é que a URSS, quando alcançado novo estágio na marcha para o socialismo, adotaria nova Constituição, como o fez em 1924, 1936 e 1977. Cada uma de tais Constituições fatia o balanço do novo estágio”.58 4.6.Quanto ao Conteúdo No que tange ao conteúdo as Constituições são classificadas em: material e formal. A Constituição material é composta de regras materialmente constitucionais, ou seja, referentes a organização do poder, podendo ou não constar de um único texto constitucional. A Constituição formal é oriunda de um único texto escrito estabelecido de forma solene pelo Poder Constituinte Originário. Assim, são materiais quando a matéria contida na Constituição for constitucional; e formais quando a Constituição não tiver conteúdo constitucional, mas for considerada como tal por estar contida no texto constitucional. “Há duas perspectivas por que pode ser considerada a Constituição: uma perspectiva material – em que se atende ao seu objeto, ao seu conteúdo ou à sua função; e uma perspectiva formal – em que se atende à posição das normas constitucionais em face das demais normas jurídicas e ao modo como se articulam e se recortam no plano sistemático do ordenamento jurídico”.59 “Os países com Constituição material são também países com Constituição em sentido formal. A quase única e, aliás, decisiva excepção é a Inglaterra, que possui Constituição em sentido material e não tem Constituição 58 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 12-13. 59 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: Introdução à teoria da Constituição. tomo II, 2ª ed. rev., Coimbra, Portugal: Coimbra ed., 1988, pp. 9-10. 24 em sentido formal. No continente encontram-se no interior da ordem jurídica de cada país normas qualificadas como constitucionais, inscritas em leis com esse nome; em Inglaterra, nada disso, nenhumas normas se diferenciam uma das outras por serem constitucionais e nenhuma lei se chama Constituição”.60 A ampliação do conteúdo da Constituição gerou a distinção entre Constituição material e formal. 4.7.Classificação da Constituição Federal de 1988 Com fulcro na Classificação apresentada podemos classificar a Constituição de 1988 como: escrita, dogmática, promulgada, rígida, dirigente e formal. 5.Efetivação da Constituição No plano fático verifica-se uma descrença na efetividade das normas constitucionais, que se substancia na impossibilidade de concretização imediata de determinados preceitos, em especial, os direitos que exigem uma atuação positiva do Estado, como é a realização das políticas públicas. A primeira indagação que se verifica é se os direitos sociais, culturais e econômicos elencados na Constituição configuram-se como direitos subjetivos públicos do cidadão do Estado? A Constituição tem uma força normativa? Estatui verdadeiros direitos ou alguns de seus preceitos, em especial, os direitos sociais trazem apenas diretrizes dirigidas ao próprio Estado ou sugestões ao legislador para construção normativa? O princípio constitucional pode ser aplicado ao caso concreto ou apenas a norma elaborada com fundamento no princípio constitucional pode ser aplicado ao caso concreto? A norma constitucional ganha força normativa apenas quando se exterioriza no direito infraconstitucional? A resposta a esta e outras indagações são claras: A Constituição é uma norma jurídica. O texto constitucional não é apenas um documento político, mas sobretudo jurídico, ou seja, a Constituição possui a natureza de norma jurídica. Logo, todo o seu conteúdo possui força normativa, obrigando 60 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional : Introdução à teoria da Constituição. tomo II, 2ª ed. rev., Coimbra, Portugal: Coimbra ed., 1988, p. 27. 25 o Estado e seus cidadãos. Não são meras recomendações desprovidas de vinculação. Os preceitos constitucionais constituem direitos subjetivos públicos, podendo sua concretização ser exigida por intermédio dos institutos de direito processual constitucional. Direito Fundamental consagrado na Constituição configura-se como direito subjetivo público. Essa assertiva vale também, em certo sentido, para as denominadas normas programáticas, que regrou os anseios políticos e sociais do povo. O administrador público na realização de seu mister deve observar as normas constitucionais, leia-se, regras e princípios. Direitos de segunda geração ao contrário dos direitos individuais exigem apenas uma atividade negativa do Estado, são dotados de inúmeras variáveis para sua realização. A efetividade dos direitos sociais não é tão simples, e tem como obstáculo a falta de recursos para implementação das políticas públicas, denominada de reserva do possível. Indubitavelmente, em alguns casos, falta mesmo é a vontade política. A dificuldade da realização das normas programáticas leva ao questionamento da própria natureza jurídica dessas normas, sendo afirmado que a falta de imperatividade conduz a uma natureza meramente ética ou política. “Até meados do século XX, um largo setor da doutrina negava a natureza jurídica das normas programáticas, reduzindo-as a um mero programa de normas jurídicas futuras, com valor puramente político ou ético”.61 Nesse sentido José Carlos Vasconcellos dos Reis conclui que “o problema central do constitucionalismo contemporâneo consiste na determinação do caráter jurídico das normas programáticas e da eficácia e aplicabilidade de todas as normas constitucionais”.62 Constituição não é apenas um pedaço de papel como afirmou Lassalle ao refletir sobre os fatores reais do poder. O pacto constitucional traz em seu bojo os objetivos que devem ser alcançados pela nação. Esse objetivo é obrigatório, pois foi construído por intermédio de um documento normativo. Preceito constitucional é força normativa. Todo o texto constitucional apresenta a característica da normatividade. Konrad Hesse defende a força normativa da Constituição. Rui Barbosa afirma que “não há, numa Constituição, clausulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral 61 REIS, José Carlos Vasconcellos dos. As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado. Rio de Janeiro : Renovar, 2003, p. 23. 62 REIS, José Carlos Vasconcellos dos. As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado. Rio de Janeiro : Renovar, 2003, p. 24. 26 de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos. Muitas porém, não revestem dos meios de acção assenciaes ao seu exercício dos direitos, que outorgam, ou os encargos, que impõem: estabelecem competências, attribuições, poderes, cujo uso tem de aguardar que a Legislatura, segundo o seu critério, os habilite a se exercerem”.63 A Constituição não é um programa, um documento retórico, um manifesto. É um conjunto de normas jurídicas de hierarquia superior. Qualquer norma inserida na Constituição é jurídica dotada de imperatividade superior em relação aos demais preceitos do sistema jurídico, inclusive as normas programáticas. “Uma das características das normas programáticas, é o fato de que participam da mesma natureza de todas as outras que integram um diploma constitucional rígido, isto é, são dotadas de imperatividade suprema frente ao ordenamento jurídico por ele fundado; são normas jurídicas que compartilham da mesma hierarquia, pois que todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo plano, de tal modo que as normas infraconstitucionais que com ela conflitem, quando posteriores, padecem de invalidade ou inconstitucionalidade, quando anteriores, são automaticamente revogadas, e isso em virtude da necessária harmonia que deve reger um sistema jurídico. Isso impede que as normas consideradas como programáticas, mas tidas por incômodas para a realização de políticas públicas, venham a não ser observadas, sob a alegação de que pela densidade de seu conteúdo possam a vir a ser descartadas”.64 Assim, há um caráter vinculativo também das normas ditas programáticas. Para José Afonso da Silva, as normas programáticas possuem força normativa e “sua juridicidade, contudo, deve ser afirmada só pelo fato de constarem de um texto de lei, sendo de repelir a pretensa injuricidade de regras pertencentes a uma constituição, e especialmente a uma constituição rígida”.65 A Constituição é um documento jurídico, dotado de força e efetividade própria. A norma constitucional apresenta um atributo próprio que é a fundamentalidade. A Constituição é norma fundamental. O valor constitucional centra-se na personalidade e dignidade da pessoa humana. Esse é o seu fim, reafirmar a condição do homem. 63 BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira. v. II, São Paulo: Saraiva, 1932, p. 489. 64 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 182. 65 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 153. 27 O direito é um instrumento de transformação da realidade social. “No Direito Constitucional, o papel do jurista é o de interpretar as normas constitucionais e investigar os meios capazes de torná-las efetivas, como verdadeiros preceitos jurídicos”.66 A tese de que a norma programática exclui direito subjetivo não é verdadeira. Meirelles Teixeira analisa a problemática das normas programáticas afirmando que “durante muito tempo, conforme assinalamos, ligou-se a idéia de norma programática à da impossibilidade de produzir direitos subjetivos, ou, dito por outras palavras, procurou-se criar uma relação necessária entre direito subjetivo e aplicabilidade das normas constitucionais, no sentido de que a noção mesma de norma programática excluía, desde logo, a existência de direitos subjetivos. (...) Mas daí a negar-se, de modo absoluto, possam elas, em determinadas circunstâncias, produzir verdadeiros direitos subjetivos, a distância é muito grande”.67 Toda norma jurídica tem força independente da necessidade de regulamentação normativa. Não há no texto constitucional simples declarações ou exortações morais. Dessa feita, as normas programáticas são vinculadas, sendo possível seu controle pelo Poder Judiciário. Norma programática possui eficácia imediata em face da atuação estatal, ou seja, o poder discricionário do Estado alia-se ao conteúdo da norma constitucional. A norma programática é um direito subjetivo público e não apenas um objetivo do Estado. Regina Maria Macedo Nery Ferrari ao tratar da aplicabilidade imediata das normas programáticas, cita, como exemplo, o AC 106.872-1, da 7ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Mesmo as normas constitucionais de eficácia limitada, instituidoras de princípios programáticos, podem ser aplicadas imediatamente, ainda que inexistente norma posterior. Isto porque são elas dotadas de um mínimo de eficácia, podendo por exemplo criar situações jurídicas subjetivas de vantagem ou desvantagem, isto é, direitos subjetivos originados de atos que pretendem contrariá-los”.68 As normas programáticas caracterizam-se pela possibilidade financeira do Estado, pela relativa discricionariedade do legislador e do 66 REIS, José Carlos Vasconcellos dos. As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 29. 67 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Texto revisto e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 355. 68 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 195. 28 administrador público. A possibilidade de controle judicial surge da contradição entre o preceito constitucional e as normas infraconstitucionais emanadas do Poder Legislativo e das políticas públicas executadas pelo Poder Executivo. Dessa feita, essas normas podem indicar um objetivo a ser atingido pelo Estado ou estabelecer verdadeiro direito subjetivo. No primeiro caso verifica-se um maior poder discricionário do poder público e na segunda hipótese vislumbra-se uma obrigação de promoção da política pública. O direito subjetivo é a faculdade, a prerrogativa, o poder que o indivíduo possui de invocar a norma jurídica. É a autorização para que o sujeito possa agir. É o reconhecimento de um direito. A ação do sujeito de direito ou uma pretensão efetiva, prevista no modelo abstrato da norma, faz surgir às situações subjetivas, de várias espécies, sendo certo que não podemos reduzir ou classificar todas as ações dos sujeitos de direito em um único instituto ou a uma mesma natureza jurídica.69 Miguel Reale, refere-se, genericamente, a situação subjetiva, que abrange várias categorias: o direito subjetivo, o interesse legítimo e o poder. O mesmo autor define a situação subjetiva como “a possibilidade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos das regras de direito”.70 “Quando os meios jurídicos postos à disposição do indivíduo para a realização de um interesse permitem uma exigência direta, plena e específica, surge a figura do direito subjetivo, diretamente relacionada com a intensidade do interesse protegido, pois, a grosso modo, o direito subjetivo nada mais é do que o reflexo material do dever jurídico de outro. Várias são as formas de conceituar o direito subjetivo, bem como a operacionalidade de tais conceitos, porém, aqui, por direito subjetivo deve-se entender o poder de ação que, como base no direito objetivo, destina-se à satisfação de um interesse”.71 O direito subjetivo é espécie de situação subjetiva. “Poderíamos conceituar situação jurídica subjetiva como a especial situação da vontade individual, determinada pela norma ou por atos e fatos jurídicos, relativamente à maior ou menor possibilidade de realizar certo interesse, seja por ato próprio, seja exigindo ação ou omissão de terceiros. Este conceito, evidentemente, é o de situação subjetiva, isto é, de vantagem, à qual corresponde sempre uma situação subjetiva passiva, de dever, ou vínculo, 69 SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Lições de introdução ao direito. 5ª ed., rev, aum. e atual., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, pp. 275-277; SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Teoria do direito. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 174-177. 70 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 259. 71 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 227. 29 consistente na obrigação, para com terceiro, de certa prestação, ou de uma abstenção. Se os meios jurídicos (coação) postos à disposição da vontade individual para a realização de um certo interesse permitem uma exigência direta, plena, específica, teremos a figura do direito subjetivo; se tais meios forem apenas indiretos, limitados, genéricos, teremos outras figuras de situações subjetivas, como o interesse simples, o interesse legítimo, a expectativa de direito, etc.”.72 A Constituição Federal como toda norma jurídica traz verdadeiros direitos subjetivos públicos. O texto constitucional, por exemplo, quando estatui o direito a saúde e a educação, criou verdadeiro direito subjetivo público, podendo o particular dentro dos critérios de razoabilidade exigir a atuação positiva do Estado para fazer valer o direito a prestações existenciais mínimas. Regina Maria Macedo Nery Ferrari ao tratar do assunto afirma que “tal entendimento não foge à reserva do possível, da efetiva disponibilidade de recursos na hora da prestação, entretanto, mesmo dentro dela, é necessário evitar que a autoridade se furte ao dever que lhe é imposto pelo comando constitucional. O que não é aceitável é que, em nome da reserva do possível, isto é, sob o argumento da impossibilidade de realizá-lo por questões financeiras, materiais ou políticas, o comando constitucional acabe destituído, completamente, de eficácia. É o princípio do razoável, da proporcionalidade que deve reger a sua observância e efetividade”73. As normas programáticas previstas na Constituição têm uma função jurídica, na medida em que indicam conduta a ser observada pelo Estado na construção das políticas públicas. Trata-se de um preceito jurídico, sendo que a partir dessa natureza que deve ser interpretada. José Carlos Vasconcellos dos Reis traz as características das normas programáticas no sistema jurídico afirmando que: “(a) apresentam uma dimensão prospectiva, oriunda de sua função positiva de orientar toda a atividade do Estado para a consecução de certos objetivos; (b) desempenham uma função negativa ao tornar inconstitucionais as normas jurídicas de menor hierarquia que lhes sejam contrárias; (c) possuem uma importante eficácia interpretativa do Direito vigente; (d) constituem, como os princípios, 72 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Texto revisto e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 347. 73 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 235. 30 comandos de otimização, ao ordenar que um fim seja alcançado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes; (e) podem entrar em colisão entre si, que será resolvida de maneira casuística, tomando-se em conta as suas condições concretas de aplicação e o projeto que o Estado pretenda realizar; (f) servem, como normas jurídicas, de fundamento e base para quaisquer decisões tomadas pelo Estado, inclusive as formalmente jurisdicionais”.74 Para Gomes Canotilho, os direitos sociais previstos na Constituição vinculam o administrador público, argumentando que “A função de prestação dos direitos fundamentais anda associada a três núcleos problemáticos dos direitos sociais, económicos e culturais; (1) ao problema dos direitos sociais originários, ou seja, se os particulares podem derivar directamente das normas constitucionais pretensões
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