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CAPÍTULO I PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO NO BRASIL: ENTRE A DEMOCRACIA MAJORITÁRIA E A DEMOCRACIA CONSENSUAL 1. INTRODUÇÃO As sociedade democráticas contemporâneas podem se organizar politicamente segundo dois modelos institucionais ideais: o majoritário e o consensual. Convém descrever, sucintamente, as características peculiares a cada modelo, segundo o seu maior estudioso, Arend Lijphart (2003). Segundo o autor, o governo “pelo povo e para o povo”, na acepção de Abraham Lincoln, coloca a questão de saber quem governa e a quais interesses o governo deve atender quando houver desacordo entre o povo por divergências de preferências. A resposta majoritária ao dilema colocado é a opção pela prevalência da vontade da maioria. A resposta consensual ao problema levantado é a prevalência da vontade do maior número de pessoas possível. Nesse sentido, não há uma diferença profunda entre os dois modelos de democracia quanto à legitimidade do governo da maioria em contraposição ao governo da minoria. Mas considera a exigência de uma maioria como um requisito mínimo: em vez de se satisfazer com mínimas maiorias, ele busca ampliar o tamanho das mesmas. Suas regras e instituições visam a uma ampla participação no governo e a um amplo acordo sobre as políticas que esta deve adotar. O modelo majoritário concentra o poder político nas mãos de uma pequena maioria, e muitas vezes, mesmo, de uma maioria simples (plurality), em vez de uma maioria absoluta, […] ao passo que o modelo consensual tenta compartilhar, dispersar e limitar o poder de várias maneiras (LIJPHART, 2003, P. 18). Uma outra diferença marcante é que enquanto o modelo majoritário de democracia é, marcantemente, exclusivo, competitivo e combativo, ou seja, estabelece um jogo político de soma zero no qual o partido ou a coalizão que exerce o governo dispõe de toda a estrutura governamental, ao passo que a oposição tem como tarefa lutar para ser governo, não participando da estrutura de incentivos e patronagem da máquina estatal (MAIWARING & SHUGART, 1993), a democracia consensual tem como característica a abrangência, a negociação e a concessão. Nesse sentido, “[…] a democracia consensual poderia também ser chamada de ‘democracia de negociação ((LIJPHART, 2003, P. 18)”. Tomando dez variáveis institucionais importantes nas democracias contemporâneas e agregando- as em duas dimensões multivariáveis, Lijphart estabelece contrastes dicotômicos entre os dois modelos de democracia, contrastes estes que marcam distinções fundamentais quanto à ampliação ou redução do poder da maioria em implementar políticas (ver Quadro 1). Quadro 1- Contrates entre modelos de democracia majoritária e consensual. Modelo majoritário Modelo consociativo Dimensão Executivo-Partidos Dimensão Executivo-Partidos Concentração do Poder Executivo em gabinetes monopartidários de maioria. Distribuição do Poder Executivo em amplas coalizões multipartidárias. Relações entre Executivo e Legislativo em que o executivo é dominante. Relações equilibradas entre ambos os poderes. Sistemas bipartidários. Sistemas multipartidários. Sistemas eleitorais majoritários e desproporcionais. Sistemas de representação proporcional. Sistemas de grupos de interesses pluralistas, com livre concorrência entre grupos. Sistemas coordenados e “corporativos” visando ao compromisso e à concertação. Dimensão Federal-Unitária Dimensão Federal-Unitária Governo unitário e centralizado. Governo federal e descentralizado. Concentração do Poder Legislativo numa legislatura unicameral. Divisão do Poder Legislativo entre duas casas igualmente fortes, porém diferentemente constituídas. Constituições flexíveis, que podem receber emendas por simples maioria. Constituições rígidas, que só podem ser modificadas por maiorias extraordinárias. Sistemas em que as legislaturas têm a palavra final sobre a constitucionalidade da Legislação. Sistemas nos quais as leis estão sujeitas à revisão judicial de sua constitucionalidade, por uma corte suprema ou constitucional. Bancos centrais dependentes do Executivo. Bancos centrais independentes do Executivo. Fonte: Adaptado de Lijphart (2003, p. 27-65). A primeira dimensão compõe-se das características do poder executivo, dos sistemas partidários e eleitorais e dos grupos de interesses, denominada de dimensão executivos-partidos. A segunda dimensão estabelece os contrastes entre a estrutura do estado federativo e do estado unitário, denominada de dimensão federal-unitária. Portanto, em cada uma dessas dimensões, há cinco características que distinguem as duas formas de organização e operação das democracias constitucionais. Seguindo essa plano de interpretação, o objetivo deste capítulo é analisar duas vertentes da ciência política brasileira quanto à aproximação desses dois modelos ideais de democracia. Na primeira parte, discutiremos a tese da democracia consensual tomando como eixos de análise um dos autores mais importantes das décadas de 80 e 90, Bolívar Lamounier. Na segunda parte, discutiremos a literatura mais recente, meados da década de 90, que defende a tese da democracia majoritária a partir de uma nova abordagem que enfoca o interior do processo decisório, identificando um alto grau de disciplina partidária e a preponderância do executivo. Trata-se da obra de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi. 2 A DEMOCRACIA CONSENSUAL NO BRASIL Tendo seu ápice, enquanto consenso acadêmico e proposta programática, no princípio dos anos 90, em meio à crise institucional que representou a chegada de Collor ao poder por fora do sistema de partidos, a tese segundo a qual a democracia brasileira é consensual funda-se não nos elementos que visam a assegurar representação às minorias religiosas, étnicas e linguísticas, dotando-as de importantes poderes de veto sobre a vontade majoritária, como é o caso de países europeus como a Suécia, Bélgica e Holanda, as, sim em algumas variantes do sistema político, como o subsistema representativo, o regime federativo e a organização do poder judiciário. Tomando as duas dimensões propostas por Lijphart, passemos a uma análise das acepções de um dos principais analistas das instituições brasileiras e defensor da tese do consensualismo, Bolívar Lamounier (1992). Segundo Lamounier, as experiências autoritárias e a hipertrofia do poder executivo no Brasil são as causas das dificuldades de analistas e políticos reconhecerem a orientação para o bloqueio representado pelo subsistema representativo. Em situação democrática, essa variante do sistema político está orientada não para tomar e implementar decisões, mas para bloquear decisões que emanam da vontade majoritária. Há, portanto, um contraste entre a noção de um poder vertical e concentrado, como o executivo, quando comparado com os partidos, com o funcionamento do parlamento, o regime federativo, a organização do poder judiciário e até mesmo certos conselhos governamentais. Segundo o autor, as clivagens básicas da sociedade brasileira são de caráter socioeconômico, em menor grau, regionais e ideológicas. Mas, apesar disso, e apesar da enorme distância econômica e cultural entre o Brasil e os países europeus a que se fez referência, (Suécia, Bélgica e Holanda) o nosso subsistema partidário-parlamentar evoluiu, desde a década de 1930, muito mais no sentido de institucionalizar bloqueios do que no de facilitar a agregação de interesses e a implementação de uma vontade majoritária (LAMOUNIER, 1992, p. 27). Portanto, essa evolução foi aos poucos consolidando uma engrenagem consensual que chegaria ao extremo na década de 90. A representação proporcional implantada nadécada de 30 aliou-se ao pluripartidarismo, que, em razão da facilidade do acesso de minorias aos recursos de poder, possibilita a exacerbação do princípio consensual. À opção proporcional agregou-se o voto preferencial (individual) pelo qual o eleitor escolhe entre indivíduos e não entre listas partidárias, como é prática nas democracias de sistema proporcional, arraigando ainda mais o individualismo intrapartidário. Essas características do subsistema representativo tiveram origem no código eleitoral de 1932, cuja intenção foi claramente acomodar microinteresses no conjunto da elite política e assim poder viabilizar a “contestação pacífica”. Dessa forma, na dimensão executivo-partidos, nosso pluripartidarismo, por exemplo, combina uma extrema facilidade para a formação de partidos com a concessão quase automática aos mesmos de poderosos instrumentos de poder, como o acesso a uma cadeia nacional de rádio e televisão e, a partir da constituição de 1988, a legitimidade dos que tenham representação parlamentar para propor ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal ((LAMOUNIER, 1992, p. 31). No âmbito da dimensão federal-unitária, os elementos consensuais, além da revisão judicial mencionada, são representados pelo regime federativo, pelo bicameralismo com ambas as casas fortes e pela rigidez e detalhismo constitucional. A necessidade de maiorias qualificadas, aliada à votação em duas casas, evidencia as dificuldades das maiorias em implementar decisões e a clara possibilidade de veto das minorias. Além do mais, a super-representação dos Estados pequenos na câmara é parte dessa engrenagem consensual que evolui desde os anos 30. Como uma reação à predominância política de São Paulo e Minas Gerais na Primeira República, a super-representação, que se consolidou do ponto de vista jurídico na década de 1930, visou a atenuar essa predominância. Destaca o autor que independente das manipulações casuísticas a que certamente serviu no passado recente e do alegado arcaísmo ideológico das bancadas hoje super-representada, o fato é que, na origem, essa ponderação favorável aos pequenos Estados era uma maneira de atenuar o poder econômico e a força eleitoral dos grandes Estados: um esforço inequívoco, portanto, ao sentido consociativo já implícito em qualquer organização federativa ((LAMOUNIER, 1992, p. 31). No período de transição democrática, ressalta Lamounier, a memória dos períodos autoritários e as limitações impostas aos direitos políticos, tanto das minorias quanto das maiorias, e também a ampliação do eleitorado (de 16 para cerca de 85 milhões, de 1960 a 1985), assim como a evolução na participação e no pluralismo verificado na base da sociedade brasileira, fruto da própria resistência ao regime e ao contexto internacional, tiveram como consequência o fato de os princípios doutrinários que norteariam a classe política e a opinião pública serem exacerbados no consensualismo. Ao chegar a Constituinte de 1987-88, o que estimulasse o pluralismo e diluísse o poder era necessariamente um bem; o que contrariasse essa tendência em algum ponto era “entulho autoritário”. Pertenciam a esta categoria toda e qualquer reflexão acauteladora sobre a volatilidade partidária, a necessidade de estimular uma agregação mais ampla dos interesses políticos e o imperativo de tornar mais nítidas as escolhas, reduzindo os custos da informação para o eleitor individual. Ou seja, o clima de opinião dominante, antes e durante a constituinte, era abstratamente doutrinário (Idem, p. 37). Em relação ao sistema partidário, a percepção era de que o artificialismo dos partidos em termos de identidade aconselhava a permissão de regras eleitorais frouxas para que este viesse afirmar-se a partir do potencial latente das diferenciações sociais e ideológicas reprimidas. A limitação à representação por meio de barreiras e percentuais, como é comum em democracias com sistemas de representação proporcional, seria, ao contrário, substituída pela facilitação ao acesso à representação e à formação de novos partidos. Segundo Lamounier, ao lado da evolução dessa engrenagem consensual, no âmbito do subsistema representativo e do regime federativo, deu-se a transformação da Presidência da República. De extensão das oligarquias, na primeira república, ela vai se desvencilhando dessas a partir de 1930, tornando-se uma instituição de caráter universalista. O grau de liberdade da presidência em relação às bases tradicionais do poder oligárquico foi substancialmente elevado, se comparado com o legislativo e o poder judiciário. Para Lamounier, houve uma radicalização plebiscitária do presidencialismo brasileiro a partir de 1930, sobretudo em meados desta década, quando a repressão aos movimentos comunista e integralista possibilitou a expansão do poder de Getúlio Vargas. É nessas condições, portanto, que constitui-se, assim, progressivamente, o que se poderia chamar de utopia do presidencialismo plebicitário: a crença no poder unificador de um carisma institucional, a presidência da República. Escolhido mediante eleições diretas, representando a grande constituency nacional, com acesso privilegiado aos meios de comunicação e alta centralidade simbólica, a presidência imprimiria ao conjunto do sistema político a coerência que este de outra forma não poderia engendrar ((Ibidem, p. 39). O alfa e o ômega do sistema político nacional, esse componente plebicitário imprimiu a imagem do presidente como grande força estabilizadora que se sobrepõe ao particularismo, dando o ritmo e a direção das grandes mudanças na sociedade, inclusive rompendo as resistências com seu potencial mobilizador. No entanto, malgrado esse simbolismo, segundo Lamounier, é nessa acepção da autoridade presidencial que reside o dilema institucional brasileiro, qual seja o respeito às regras do jogo, o equilíbrio entre os demais poderes e a necessidade de eficácia decisória ao lado de uma alta propensão de os presidentes não contarem com maiorias necessárias no parlamento. Nesse sentido, a probabilidade de franco-atiradores chegarem ao poder, tendo em vista a fragilidade do sistema partidário, é potencial. Assim, “o potencial unificador da presidência plebiscitário” (Ibidem, p. 41) tem como primeiro indicador que nega essa capacidade sua própria instabilidade. Esse “capital plebicitário”, material ou simbólico, esvai-se quando se olha a pouca influência que os presidentes têm na sua sucessão. Ou seja, de fato, se os presidentes tiveram pouca ou nenhuma influência no processo sucessório, mesmo no recente período militar, não parece razoável supor que, ao longo do mandato, hajam exercido um influxo contínuo e abrangente sobre o sistema político, como supõe a teoria do presidencialismo plebiscitário (Ibidem, p. 41). Para o autor, um outro ângulo que pode medir a eficácia desse “capital plebicitário” é o das pesquisas de opinião pública, de massas ou de elite. Por elas, pode-se verificar a materialidade desses recursos de poder e a “envergadura simbólica” (idem, 41) com as quais os presidentes estão investidos segundo a teoria do presidencialismo plebicitário. Entretanto, não obstante os cuidados com esse tipo de avaliação, em virtude da dependência de desempenho socioeconômico, os índices de afeição ou de aprovação popular do desempenho dos presidentes na história brasileira indicam que não é “a imagem de um magistrado incólume e exemplar” (Ibidem, p. 42) factível a luz de tais pesquisas. Se elas dependem de flutuações econômicas e sociais é exatamente nessas condições que o presidencialismo plebicitário mostra-sevulnerável. Como afirma Lamounier (Ibidem, p. 42), se os indicadores da impopularidade presidencial se acham ‘sobredeterminados’ por uma situação de adversidade econômica, com mais forte razão devemos frisar o risco de instabilidade institucional a que o sistema democrático pode ser levado por esse tipo de erosão da autoridade. Embora comum em qualquer sistema de governo, a popularidade do executivo no presidencialismo é um dos pilares de sua sustentação, já que é por ela que se mede o apoio ou a recusa do legislativo, tendo em vista os custos e benefícios para os parlamentares que podem incorrer ao apoiarem a agenda do executivo. As conclusões de Lamounier (Ibidem, p. 45) são muito comuns entre os autores que defendem o parlamentarismo, sobretudo naquele momento do debate institucional, para quem inexistem no presidencialismo incentivos “para a formação de uma base parlamentar viável”, pois ela depende de vários fatores, tais como o grau, maior ou menor, de fragmentação do sistema partidário e a dimensão e duração dos possíveis desgastes do presidente junto à opinião pública. Também a fusão entre a chefia do Estado e do governo, própria do presidencialismo, em eventuais ocorrências de tais fatores, põe em risco não só a efetividade decisória, mas também, “[…] a própria estabilidade do sistema democrático” (Ibidem, p. 45). A chegada de Fernando Collor ao poder, em 1989, sem lastro partidário mostra que a fragmentação do sistema partidário não constitui em um problema apenas no âmbito parlamentar. Em tais condições, segundo o autor, as qualidades pessoais do presidente devem, necessariamente, ser extraordinárias para que tenham condições de romper os impasses num legislativo fragmentado e exercer a governabilidade. Do contrário, é eminente a crise institucional em virtude da independência dos mandatos do executivo e do legislativo. 3 A DEMOCRACIA MAJORITÁRIA NO BRASIL Os estudos que enfatizam características majoritaristas no desempenho das instituições políticas brasileiras datam de meados da década de 1990, após um intenso debate institucional que marcou o período dos primórdios da transição ao plebiscito de 1993. Convém notarmos, no entanto, que os estudos até este período eram, em sua maioria, propensos à defesa de mudanças radicais no sistema político. A derrota do parlamentarismo, em 1993, teve impacto consideravelmente na capacidade programática dessas propostas e, nesse sentido, a emergência de estudos que salientam positivamente a combinação presidencialismo e multipartidarismo pode estar na razão direta da derrota da “opção parlamentarista”, em 1993. Assim, o presidencialismo de coalizão brasileiro opera segundo bases muito próximas do parlamentarismo e os partidos políticos, ao contrário do que prega grande parte da literatura relevante, apresentam grau de disciplina tão elevado quanto as democracias majoritárias (parlamentaristas). Além do mais, os políticos atuam sob bases partidárias, tanto quanto as coalizões governamentais. Analisaremos, nesta seção, a tese da democracia majoritária a partir da obra de seus pioneiros, em meados dos anos 1990, Argelina Figueiredo e Fernando Limongi. Em “Executivo e Legislativo na nova ordem Constitucional” - livro que reúne estudos publicados em periódicos especializados desde de 1994 -, Figueiredo e Limongi (1999) principiam por destacar os diagnósticos de grande parte da literatura nacional que rejeitam a estrutura institucional que vigorou na malograda experiência democrática de 1946. Dessa forma, “no decorrer deste debate, a forma presidencialista de governo e as leis eleitorais se constituíram no alvo privilegiado das propostas de reforma institucional” (Idem, p. 19). A sorte da democracia brasileira, nesse sentido, dependia de uma engenharia institucional em que o presidencialismo deveria ser substituído porque era altamente propenso a gerar conflitos insolúveis. Também a legislação eleitoral e partidária haveria de ser alterada objetivando a diminuição do número de partidos e a obtenção do “mínimo de disciplina” possível. Emerge dessa análise “[…] um sistema político em que um presidente impotente e fraco se contraporia a um Legislativo povoado por uma miríade de partidos carentes de disciplina (Ibidem, p. 19”. Conquanto, para Figueiredo e Limongi, o quadro institucional que emergiu da constituinte de 1988 é radicalmente distinta da situação de 1946. As bases do sistema político brasileiro foram bastante alteradas. As alterações mais marcantes foram a ampliação dos poderes legislativos do presidente. Segundo os autores, os poderes legislativos presidenciais - antes de representar influência na disposição do presidente, como quer a literatura, em optar ou não pela busca da cooperação do legislativo -, representam sua capacidade de determinar a agenda legislativa. Para Figueiredo e Limongi, não é verdadeiro, empiricamente, o argumento – quase sempre oriundo de analistas que vêem na independência da origem dos dois poderes no presidencialismo um dado de eventuais conflitos – de que a disposição de presidentes com escassos poderes legislativos é maior na busca de cooperação do legislativo. Ao contrário, os presidentes com amplos poderes legislativos têm pouca disposição para negociar sua agenda com o legislativo, tentando forçar o legislativo a ceder. Neste caso, as relações entre executivo e legislativo são mais propensas a conflitos. Assim, afirmam os autores que […] os efeitos dos poderes legislativos presidenciais são de outra natureza. Eles determinam o poder de agenda do chefe do executivo, entendendo-se por agenda a capacidade de determinar não só que propostas serão consideradas pelo Congresso, mas também quando o serão. Maior poder de agenda implica, portanto, a capacidade do executivo de influir diretamente nos trabalhos legislativos e assim minorar os efeitos da separação dos poderes, o que pode induzir os parlamentares à cooperação (Ibidem, p. 32). Nessa percepção, as distinções clássicas entre regimes parlamentaristas e presidencialistas são mitigadas a partir do momento em que se percebem “aproximações e similaridades”. Nesse caso, o controle da agenda legislativa é um dado peculiar aos regimes parlamentaristas, entretanto, presidentes também podem controlar a agenda. Assim, essa prerrogativa reconhecida como sendo própria dos primeiros-ministros não condiz com a maioria das constituições presidencialistas, nas quais os presidentes não só contam com amplos poderes legislativos como também têm o direito exclusivo de iniciar legislação em diversas áreas. A essa prerrogativa exclusiva para propor legislação acresce, como evidência da posição estratégica do executivo, o direito de solicitar, unilateralmente, urgência pelo presidente, o qual obriga as duas casas legislativas a manifestarem-se no prazo máximo de 45 dias. O executivo pode contar, ainda, com a prerrogativa prevista pelo artigo 62 da Constituição que garante ao presidente editar medidas provisórias, em casos de relevância e urgência, o que implica alteração imediata do status quo. Em relação às MPs, a posição do legislativo é quase sempre pela aceitação, já que, ao negar-se a aceitar uma MP, deve regular a situação produzida pela mesma ou incorrer nos custos que porventura tragam a não regulação. Figueiredo e Limongi ressaltam, como já mencionamos, que o executivo detám o poder de agenda em virtude dos amplos poderes legislativos a ele conferidos e dos recursos não legislativos provenientes do controle do acesso aos postos governamentais. Diantedisso, segundo eles, duas perguntas merecem respostas, a saber: se existe disciplina partidária e se os presidentes são sustentados por coalizões partidárias, como no parlamentarismo. Em relação à primeira pergunta, Figueiredo e Limongi pretendem responder três questões: 1) as coalizões partidárias são consistentes ideologicamente? 2) os partidos possuem coesão e disciplina no ato de votar no interior das casas legislativas? 3) os pequenos partidos constituem motivo de imprevisibilidade no plenário e possuem coesão e disciplina no ato de votar? Sobre a primeira questão, os autores “descobrem” que há um continuum ideológico que vai da direita à esquerda e “a probabilidade de dois partidos adjacentes votarem de maneira análoga é sempre maior que a de partidos não adjacentes. A probabilidade de dois partidos se coligarem cai monotonicamente com a distância ideológica a separá-los (Ibidem, p. 77)”. Assim, a probabilidade de voto análogo chega a 68,8% entre PDS e PFL, 71,5% entre PT e PDT e 11,8% entre PT e PFL, para ficar nesses exemplos. Considerando um universo de 221 votações nominais (entre 1989-1994), as alianças dentro dos blocos ideológicos chegaram a 163 casos na direita, 138 no centro e 156 na esquerda. Nos demais casos, ficaram divididos, indefinidos ou não havia informações disponíveis. Quanto à segunda questão, os autores contestam a visão tradicional de que os partidos brasileiros não possuem coesão e disciplina. Considerando o mesmo universo de pesquisa – no qual há a indicação dos líderes partidários para a bancada –, os partidos à direita, como PDS, PFL e PTB, ficaram na casa dos 70,00% a 78,00% de coesão. Partidos que vão do centro à esquerda, como PMDB, PSDB, PDT e PT, chegaram à casa de 73,00% a 95,00% de coesão. Os autores enunciam ainda que “a unidade dos partidos de esquerda independe de como votam os demais partidos. Já a disciplina dos partidos de centro e de direita varia amplamente de acordo com a posição assumida pelos outros partidos (Ibidem, p. 83)”. No que se refere à terceira questão, os autores afirmam ser fundamental saber se os pequenos partidos possuem comportamentos diferentes dos grandes e se isso gera influência no plenário. Para efeito analítico, criaram duas siglas imaginárias, o PPE (Partidos Pequenos de Esquerda) e o PPD (Partidos Pequenos de Direita). Constatam, então, que o PPE teve tendência constante em votar similarmente ao PT e ao PDT e o índice de coesão alcança a marca de 83,7%, chegando mesmo a atingir 100 em 50% dos casos. Quanto ao PPD, o índice de coesão atinge cerca de 72,9% e segue à risca o comportamento dos grandes partidos de direita. A unidade desses produz uma elevação da coesão do PPD. Por fim, desfazendo a imagem caótica do sistema partidário, no que tange ao processo decisório legislativo, os autores afirmam que a imagem de um plenário imprevisível é desmentida pelos dados e que os grandes partidos sempre controlaram o processo legislativo. A disciplina partidária, alta por sinal, deve-se, segundo os autores, à distribuição dos direitos parlamentares no legislativo. Os regimentos internos, tanto do Senado quanto da Câmara dos Deputados, atribuem aos líderes partidários o direito de representar suas bancadas a partir da institucionalização do colégio de líderes. O colégio de líderes, por sua vez, exerce forte controle sobre a pauta dos trabalhos legislativos, a partir do auxílio que presta à mesas diretoras. A atuação dos líderes, para Figueiredo e Limongi, torna o plenário o principal lócus decisório, neutralizando a força descentralizante em que se constituem as comissões. Essa preponderância ocorre em virtude da intervenção dos líderes, a partir do instituto do requerimento de urgência. Assim, eles intervêm retirando as matérias das comissões e levando-as direto ao plenário. Portanto, além de alterar o ritmo da tramitação da matéria, retirando-a da comissão e forçando a pronta manifestação do plenário, a aprovação de requerimento de urgência limita a capacidade dos próprios parlamentares de apresentar emendas ao projeto. Para ser considerada, a emenda tem que atender a um dos seguintes requisitos: ser apresentada por uma das comissões permanentes, ser subscrita por 20% dos membros da Casa, ou ser subscrita por líder que representa essa percentagem de deputados. A limitação à apresentação de emendas e seu controle pelos líderes partidários tolhem a ação dos deputados, retirando-lhes a possibilidade de defender com sucesso os interesses específicos a seu eleitorado a partir de uma estratégia individual (Ibidem, p.29). Para terem os seus pleitos atendidos, os parlamentares necessitam estruturá-los em bases partidárias, ou seja, precisam fazer parte de um grupo e agir como tal e, nesse sentido, o papel das lideranças tem um duplo significado, qual seja o de representar os interesses parlamentares junto ao poder executivo e do poder executivo junto aos partidos. Assim, as barganhas que compõem as relações entre executivo e legislativo estruturam-se em torno dos partidos. No que concerne à resposta da segunda pergunta, se a coalizão que dá apoio ao executivo estrutura-se em bases partidárias, a resposta é positiva. O poder de agenda do executivo, aliado aos recursos não legislativos como ministérios, pastas e cargos, a centralização dos direitos parlamentares no legislativo e o controle da pauta pelo colégio de líderes, coloca o poder executivo numa posição estratégica para negociar o apoio que necessita a partir de bases partidárias e não com parlamentares individualmente. Por isso, segundo os autores, o presidencialismo estrutura sua agenda e negocia o apoio a ela via coalizão de partidos. Tanto no presidencialismo quanto no parlamentarismo, a possibilidade de que partidos, em um sistema multipartidário, prefiram o futuro ao presente é verdadeira, pois “ser parte do governo traz ganhos e perdas. Para alguns partidos os ganhos sobrepujam as perdas, e para outros o inverso é verdadeiro (Ibidem, p. 37)”. Entrementes, para concluir, essa estratégia pode ser de alguns partidos nas duas formas de governo, mas não é de todos num sistema multipartidário, porque, se fosse, não haveria qualquer sentido na luta pelo controle do executivo. Assim, então, a disposição de ser ou não ser governo é medida pelos custos e ganhos que incorram sobre o partido. Mas, apostar no fracasso do governo pode incorrer em custos maiores do que apoiá-lo. Neste sentido, o preço do apoio leva em consideração, pela liderança partidária, o peso de sua representação e, a quem deva interessar, o fracasso do governo. Como exemplo da possibilidade de estruturar coalizão de governo no presidencialismo brasileiro, afirmam Figueiredo e Limongi (Ibidem, p.36): suponhamos que o presidente possa compor maioria se incorporar um dos três outros partidos com representação no Legislativo que não o seu. Está claro que nenhum desses três partidos pode reivindicar uma parcela muito alta do orçamento, já que corre o risco de ser ‘passado para trás’ por seu competidor, que pode exigir menos do presidente para apoiá-lo. Temos assim um leilão ao inverso: temendo perder acesso a qualquer benefício do governo, os partidos são levados a moderar suas demandas para vir a fazer parte da coalizão majoritária. O presidente tem a vantagem da proposição: como ele monopoliza o acesso aos recursos públicos, pode tirar vantagens estratégicas desse controle. 4. CONCLUSÃO A atual conjuntura política nacional é sugestiva para uma conclusão acerca das assertivas e equívocos das duas linhas de interpretaçãodo sistema político brasileiro. O descompasso entre o legislativo e o executivo nos remete ao questionamento da interpretação segundo a qual o sistema político possui um cunho majoritário, com preponderância do executivo que, a partir do seu poder de agenda (que de fato existe), traduz-se em coesão e disciplina partidária. Nesse sentido, portanto, há três principais pontos a serem evidenciados. O primeiro diz respeito ao grau de seletividade dessa agenda do executivo aprovada no legislativo, que aparece, a posteriori, como indício de disciplina e coesão partidária, em virtude do alto índice de concordância no interior dos partidos, deixa de lado uma consideração fundamental para a compreensão da fragilidade dos partidos e do grau de consensualismo do sistema político, qual seja a interação dos atores e os trâmites institucionais capazes de evidenciar os altos custos em termos de recursos políticos, as múltiplas recusas, o minimalismo e a substancialidade da agenda do executivo referendada pelo legislativo (AMES, 2003). Assim, como afirmou Giusti Tavares (2002, p. 19): […] a votação nominal na Câmara dos Deputados constitui apenas o momento final, que formaliza a decisão resultante de um demorado e complexo processo de negociações entre o chefe do poder executivo, os líderes partidários e suas respectivas bancadas […] Portanto, sem a análise das variantes que apontamos, qualquer conclusão que aponte para um viés majoritarista ou algo parecido constitui um equívoco. O segundo ponto refere-se à análise de Limongi e Figueiredo que toma apenas uma variante institucional do sistema político, que é, adotando o esquema de Lijphart, a dimensão executivo-partido. Caberia saber - e de fato sabemos - se na dimensão institucional federal-unitário, os governadores ainda são um peso formidável a ser consensuado para o sucesso de qualquer agenda de mudanças do governo central, o que nos parece afirmativo. Também, na dimensão considerada, a nova configuração da revisão judicial, aliada ao alto grau de constitucionalização da política ordinária na Constituição de 1988, forma um outro traço de democracia de consenso (COUTO, 2004). No terceiro ponto, uma questão a ser indagada diz respeito ao fato de saber qual o poder de explicação razoável que possui uma instituição ou um conjunto de instituições tomadas isoladamente. Isso porque os resultados de um sistema político particular articulam-se com a variedade de suas instituições, isto é, seus efeitos são compósitos (TAVARES, 1994). Nesse sentido, cabe mencionar que as duas interpretações não são incompatíveis. O’Donnell tem razão quando afirma que a nova frente de pesquisa aberta por Limongi e Figueiredo constitui “terra incógnita”, mas imprescindível para preencher uma lacuna nos estudos políticos brasileiros. Grande parte da literatura em ciência política até meados da década de 90 privilegiaram o “aspecto externo” do sistema político. A visão externalista dissecou com acuidade os aspectos institucionais, notadamente a legislação eleitoral, incentivadores do individualismo dos políticos em detrimento da institucionalização dos partidos (LAMOUNIER, 1989). Os altos custos políticos para formação de maiorias governativas eram, sem muita reserva, imputados diretamente a este aspecto das instituições. A nova frente de estudos, a “terra incógnita”, evidencia a necessidade de um enfoque institucional multivariante para compreender os efeitos compósitos do sistema. Se, por um lado, o equívoco de uma pretensão de explicação global parece colocar em campos opostos as duas interpretações, por outro, notou que o sistema político não se constitui em um caos. Embora custoso, é possível a construção de coalizões minimamente eficiente. Mas, o mais importante na combinação da interpretação externalista com a internalista é que ela permite, por ser mais cumulativa, dissipar de vez a ilusão de panaceia em que estiveram imbuídas as intenções de reformas institucionais no Brasil, que, muitas vezes, desconhecia o funcionamento das instituições existentes. Desfez-se, sobretudo, a proposta majoritarista que poderia constituir em fator de injustiça política e comprometer o consenso sobreposto que, na acepção de Rawls (2000), é o objeto primeiro de uma democracia justa e, ao nosso ver, consolidada. CAPÍTULO II CRISE DE ESTADO E REFORMA DAS INSTITUIÇÕES JUDICIAIS NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO É conhecido o protagonismo do judiciário em momentos fundamentais da história contemporânea. Em momentos como o da vigência da República de Weimar quando os tribunais se destacaram na punição da violência e dos crimes do extremismo de esquerda e de direita. Também, um caso paradigmático, para ficarmos nesses dois, a suprema corte tentou anular a implantação do Estado de bem-estar social nos EUA, o programa do New Deal. Entretanto, o que distingue esses momentos do novo protagonismo do poder judiciário nas sociedades contemporâneas é que, no passado, a intervenção deste deu-se sob a égide do conservadorismo, impedindo a implantação de agendas políticas progressistas calcadas no positivismo jurídico. Acresce, ainda, que essa intervenção não constituiu uma constante, mas apenas posicionamentos esporádicos em momentos de transformações profundas e de dissolução do tecido social. A nova configuração da intervenção do poder judiciário advém das transformações que esse sofreu no Estado-Providência. Convém destacar, sucintamente, dois pontos que são relevantes na transformação do judiciário do período liberal para o providencial. Primeiro, no Estado liberal, o judiciário está limitado a agir de acordo com o princípio da subsunção-formal na qual a aplicação do direito deve obedecer à subsunção lógica da facticidade à normatividade, não podendo, portanto, agir contra legem, ou seja, limitando-se à função de cumprimento da lei a partir do princípio da legalidade. Segundo, a disponibilidade dos direitos está submetida ao individualismo que caracterizou o Estado liberal no sentido de que a litigiosidade ocorre entre indivíduos e não entre coletividades e sua tutela, exceto para o direito penal, que não é requerida pelo Estado. Entrementes, esses princípios são rompidos no Estado-Providência. Em relação ao primeiro ponto, cabe destacar que, a partir de então, a rígida divisão dos poderes do Estado dá lugar a uma dilatação com clara predominância do poder executivo, traduzindo-se numa explosão legislativa que rompe os limites clássicos da produção da lei e entra em confronto com o âmbito judicial clássico. O Estado-Providência caracteriza-se pela sua face promocional do bem-estar consagrado na afirmação constitucional dos direitos sociais e econômicos e, com esses, como afirmam Souza Santos (1996, p. 34) “a liberdade a proteger juridicamente deixa de ser um mero vínculo negativo para passar a ser um vínculo positivo, que só se concretiza mediante prestações do Estado”. Assim, o Estado assume a dianteira dos conflitos entre a igualdade de fato e a igualdade formal. Em relação ao segundo ponto, ainda recorrendo a Santos (Idem, p.34) “a distinção entre litígios individuais e litígios coletivos torna-se problemática na medida em que os interesses individuais aparecem, de uma ou de outra forma, articulados com interesses coletivos”. A emergência dos direitos coletivos traz consigo uma nova titularidade, qual seja a indisponibilidade ou a possibilidade de esses representarem ameaça política séria, levando o Estado a requerer a tutela e, nesse sentido, romper o individualismodo direito liberal, mas burocratizando os direitos coletivos. É importante notarmos que é nesse esteio que o judiciário toma uma forte conotação política e a política, por seu turno, torna-se fortemente judicializada. A nova configuração do judiciário funda-se numa ampla e profunda compreensão da necessidade de controle da legalidade e, dentro dessa afirmação, não só do Estado do direito (liberalismo clássico) como do Estado de direito (novo constitucionalismo), cuja constitucionalização do direito ordinário figura como garantia da cidadania e claro limite à vontade das maiorias governativas (GARAPON, 1996). Outra distinção importante, na atualidade, ainda de acordo com o autor, é o domínio dessa intervenção judiciária, que migra das esferas civil, administrativa e trabalhista para a criminal. Isso não quer dizer que os demais domínios foram abandonados, mas, pelo contrário, foram, em grande medida, juntamente com a política, criminalizados sob a forma da responsabilização dos agentes do poder público. Nesse sentido, o combate ao abuso de poder dos agentes políticos e o garantismo da política ordinária fundada sob a normatividade constitucional traduzem-se em um duplo conflito de judicialização da política e politização das instituições de justiça, que tem no seu bojo a possibilidade de transformações ensejadas pelas maiorias eleitas e a defesa de direitos sociais ou corporativos conquistados. O fenômeno da judicialização da política e politização da justiça caracteriza-se pela utilização de métodos típicos da decisão judicial na resolução de conflitos e demandas na esfera política, mas também como um fenômeno disseminado nas relações sociais (TATE & VALLINDEDE, 1995). Portanto, há duas variáveis desse processo: primeiramente, a expansão do papel dos tribunais na revisão judicial de normas oriundas dos poderes legislativos e executivos, no esteio da constitucionalização de direitos individuais e sociais, como já notamos, e dos mecanismos de checks and balances; e, segundo, a incorporação de procedimentos próprios da decisão judicial na prática dos demais poderes. Os exemplos mais evidentes são os tribunais e juízes administrativos ligados ao poder executivo e à comissões parlamentares de inquérito incorporadas ao poder legislativo. Segundo Garapon 91996, P. 23), a expansão da justiça não constitui um fenômeno conjuntural, mas está relacionado com a própria dinâmica das sociedades democráticas, cuja promoção do juiz, antes de ser uma escolha deliberada, representa uma reação contra a decadência “[…] política, simbólica, psíquica e normativa” depois da embriaguez de liberdade representada pelo ideal revolucionário. Assim, consequentemente, quanto mais aprofundar-se a emancipação da democracia, “mais ela procurará na justiça uma espécie de proteção: eis a unidade profunda do fenômeno da vigorosa ascensão da justiça” (Idem, p. 23). Nesse sentido, cabe ressaltar que o fenômeno da judicialização possui duas faces de colonização da política. Uma delas como um processo difuso nas relações sociais, no qual o método da justiça fornece à democracia seu novo vocabulário: imparcialidade, processo, transparência, contraditório, neutralidade, argumentação etc. O juiz – e a constelação de representações que gravitam à sua volta – confere à democracia as imagens capazes de dar forma nova à ética da deliberação coletiva (Ibidem, p. 42). Dessa forma, ainda segundo Garapon, operou-se uma evolução do centro de gravidade da esfera democrática para a da justiça, uma exterioridade na qual os métodos da justiça são reconhecidos como mais apropriados para realizar “uma ação coletiva justa”. Para o autor, a perda da confiança no político enaltece o ideal de imparcialidade que pertence ao vocabulário da justiça que, por sua vez, “[…] encarna, hoje em dia, o espaço público neutro, o direito, a referência da ação política, e o juiz o espírito público desinteressado (Ibidem, p. 42)”. Portanto, o fenômeno da judicialização, como já mencionamos, apresenta dois modos de colonização do político, já que a expansão do poder judiciário nas competências dos demais poderes e a utilização de métodos próprios da decisão judicial na esfera política engendram uma relação de reciprocidade. Ou seja, a politização do pensamento judicial só encontra o seu equivalente na judicialização do discurso político. As reivindicações políticas exprimem-se mais facilmente em termos jurídicos do que em termos ideológicos. Os direitos individuas e formais suplantando, assim, os direitos coletivos e substanciais (Ibidem, p. 42). A outra face de colonização da política refere-se ao surgimento do ativismo judicial e a intervenção da justiça na esfera política que, colonizando o poder político soberano, emerge da crise da lei na acepção do positivismo jurídico. Como expressão da soberania popular, a lei já não compreende uma simetria entre a sua forma e a realidade. Essa crise advém de dois fatores convergentes: a inflação de leis, cujo conteúdo é abstrato e rígido, e a desnacionalização do direito, a partir das fontes supranacionais. A lei não se confunde mais com o direito. Não obstante manter com ele relação, “[…] já não pode pretender fundar sozinha o sistema jurídico” (Ibidem, p. 42). Torna-se necessário recuperar sua destreza e isso só é possível se ela for concebida não só como norma, mas enquanto princípio. Ou seja, ao juiz incumbe a tarefa de encontrar esses princípios em fontes externas ao direito e atualizar a obra do constituinte. No Brasil, o poder judiciário só alcança a autonomia funcional e administrativa na transição democrática, sobretudo o seu órgão de controle constitucional, o Supremo Tribunal Federal, e seu órgão de provocação, o Ministério Público. No entanto, a transição brasileira, como todas as transições na América Latina, teve um caráter duplo, ou seja, ao mesmo tempo em que a sociedade reconquista os direitos políticos e sociais, e com isso as classes populares passam a disputar uma melhor inserção na economia nacional, está em curso a crise do modelo de Estado que emerge nos anos trinta (SALLUM JR., 1994). Os anos 80 e 90 são marcados pela crise mundial do Welfare State nos países desenvolvidos e, pela mesma crise, embora distinta, nos países de economia e sociedades reguladas, como é o caso do Brasil, com o modelo Nacional-Desenvolvimentista (SANTOS, 1985). Essa crise expressa-se pelo baixo crescimento econômico e pelo colapso fiscal do Estado frente a uma equação insolúvel, qual seja fazer frente a uma despesa crescente das prestações estatais, as mais diversas, com uma receita decrescente pela incapacidade de extração de recursos em razão da crise cíclica do capitalismo. No esteio do processo de globalização econômica e financeira, o ocidente passa a praticar uma política de liberalização comercial, com liberalização de preços e privatização de empresas estatais como forma de modernizar a economia a partir da competição comercial e, com isso, sanar o déficit público crescente. Portanto, a crise do Estado, nas décadas referidas, manifesta-se, também, na forma de intervenção do Estado na economia e na sociedade, ou seja, na forma burocrática da administração estatal. De acordo com Bresser Pereira: manifestações mais evidentes do imobilismo do Estado foram a crise fiscal, o esgotamento das suas formas de intervenção e a obsolescência da forma burocrática de administrá-lo. A crise fiscal definia-se pela perda em maior grau de crédito público e pela incapacidade crescente do Estado de realizar uma poupança pública que lhe permitisse financiar políticas públicas.A crise do modo de intervenção manifestou-se de três formas principais: a crise do welfare state no primeiro mundo, o esgotamento da industrialização por substituição de importações na maioria dos países em desenvolvimento, e o colapso do estatismo nos países comunistas. O caráter superado da forma burocrática de administrar o Estado manifestou-se, de um lado, nos custos crescentes da máquina estatal, e, de outro, na baixa qualidade dos serviços prestados ao cidadão (1997, p. 20). Nesse sentido é que a agenda de reformas proposta ou implantada comporta uma diversidade de conflito com o poder judiciário, por diversas razões que descreveremos, brevemente, a partir de agora. Em primeiro lugar, o poder judiciário realizou na constituição de 1988 o projeto de autonomia funcional e administrativa como reza o modelo burocrático liberal. Dessa forma, o judiciário tem autonomia para compor seus órgãos dirigentes, tem iniciativa na elaboração de sua proposta orçamentária e dos projetos de lei que alteram sua estrutura, assim como as garantias clássicas da magistratura, tais como a inamovibilidade e a irredutibilidade dos vencimentos dos seus membros (KOERNER, 2002). A autonomia institucional do judiciário no novo contexto democrático brasileiro dotou este poder de um ativismo judicial jamais visto na história republicana. Em segundo lugar, para além dos empecilhos materiais do poder de reforma e as cláusulas pétreas de organização do Estado, como a forma Republicana, o Federalismo, a organização tripartite e os direitos fundamentais, próprios do constitucionalismo liberal, a constituição brasileira é muito detalhista e possui um alto teor de constitucionalização de instrumentos de política ordinária (COUTO; ARANTES, 2004). Essa constitucionalização expressou a dificuldade de implementar políticas universalistas e o caráter corporativo que tomou o Estado brasileiro na transição democrática (FARIA, 1993; MELLO, 2002). Assim, é consenso entre os estudiosos do assunto que a nossa democracia é mais constitucional que democrática, mais propensa a preservar as garantias, mesmo que corporativas, que as mudanças requeridas pelas maiorias eletivas (COUTO; ARANTES, 2004; MELLO, 2002). Portanto, os governos da Nova República não lograram governar sob a égide da política ordinária, mas tiveram sempre diante de uma agenda constituinte, que requer supermaiorias para exercer a governança (COUTO, 1997), e, por isso, o poder judiciário é levado a incorrer no domínio político como guardião das promessas constitucionais. Um terceiro ponto é que o poder judiciário constitui um órgão burocrático do Estado responsável por distribuir justiça. Nesse sentido, toda e qualquer proposta de reforma do Estado (e do poder judiciário em particular) que vise a conter a expansão dos gastos do Estado afeta o poder judiciário não só em suas defesas corporativas, como aquelas relacionadas a sua autonomia funcional e administrativa, como também o mobiliza enquanto guardião da nova cidadania. Nesse plano, o objetivo deste artigo é discutir a reforma do judiciário no quadro geral da reforma do Estado brasileiro. Na primeira parte do texto, discutiremos a nova configuração do poder judiciário, na sua dimensão política, na Nova República, assim como as críticas e propostas de reformas. Na segunda parte do texto, discutiremos o judiciário na sua dimensão burocrática, cujo foco é dado ao problema do acesso à justiça e da eficiência na prestação jurisdicional. Também destacaremos as críticas e propostas de reformas nessa dimensão. Na terceira parte do texto, concluiremos apontando as mudanças na balança do poder nacional e a aprovação da reforma do judiciário no governo do Partido dos Trabalhadores. Analisaremos os principais pontos da Emenda Constitucional nº 45, que, depois de 13 anos de tramitação no Congresso, foi aprovada em 17 de novembro de 2004. 2 O PODER JUDICIÁRIO E A CRISE DO ESTADO BRASILEIRO: CONFLITOS DE RACIONALIDADES O poder judiciário tornou-se a garantia dos novos direitos diante de um Estado pouco eficiente em virtude da crise fiscal e de regulação socioeconômica. Surge, assim, um conflito de racionalidade no qual, de um lado, as forças políticas no interior da estrutura estatal tentam conter a insolvência do Estado e, do outro, o poder judiciário, enquanto órgão estatal, lança-se à tarefa de defesa das novas franquias políticas e sociais. Uma das variáveis do processo de interferência política do judiciário é representada pelo controle abstrato da constitucionalidade das leis e atos normativos dos agentes do poder público atribuído ao Supremo Tribunal Federal. A reorganização do judiciário na redemocratização levou a cabo a combinação do modelo difuso-incidental, próprio da estrutura da Primeira República, com o modelo concentrado, própria de países europeus, de controle da constitucionalidade das normas emanadas do poder político.1 Assim, na constituição de 1988, a solução para o controle constitucional foi a concentração da forma direta no órgão de cúpula do judiciário, o STF. Nesse órgão, o controle é feito a partir de ação direta impetrada por uma comunidade com prerrogativa para tal. O controle direto é feito em tese com efeito erga omnes da norma. Uma das mais relevantes inovações, nessa forma de controle, foi a ampliação dessa comunidade de intérpretes da constituição, que antes era restrita ao Procurador Geral da República. Na sua forma difuso-incidental, o controle pode ser feito por qualquer agente, seja coletivo ou individualmente, nas instâncias inferiores do poder judiciário. No entanto, esse é o controle das normas cujo efeito só vale para o caso concreto, mas, como veremos, tem constituído em um dos elementos que aumentam sobremaneira o grau de conflitos entre o judiciário e as instâncias políticas diante da implementação de agendas de reformas que não levam em consideração direitos sociais e individuais. É importante notarmos que o acesso ao STF na proposição de ação direta de inconstitucionalidade está ao alcance de atores políticos que vão desde instituições do próprio aparelho estatal à sociedade civil. Isso torna o STF cada vez mais relevante na mediação de conflitos individuais ou coletivos envolvendo Estado e Sociedade, ou do Estado com seus entes interburocráticos (VIEIRA, 1994).2 Embora o STF, na história institucional brasileira, tenha se constituído em árbitro da federação em virtude do seu modelo centrípeto, o processo de conflito entre o judiciário e as instâncias políticas, algo como uma judicialização da política nos moldes descritos pela literatura mencionada na introdução, em tempos recentes, tem sido marcantemente protagonizado pelas minorias contra as coalizões governamentais e sua explicação está no processo de transição e crise do Estado, como já apontamos acima (VIANNA, 1999; ARANTES, 1997). No entanto, cabe frisar alguns pontos desse conflito. Primeiro, no quadro de uma intensa constitucionalização de franquias sociais e instrumentos de política ordinária que marcou a transição e o processo social de feitura da constituição de 1988 é que o judiciário vai se tornando um dos principais atores na cena política nacional. Na verdade, é o dilema entre eficiência governamental e segurança jurídica, por um lado, e a garantia dos direitos sociais e individuais que o trouxeram para os marcos de uma reflexão, negando-o como uma simples instituição formal, mas antes vendo nele um ator político (ARANTES, 1997). Isso ocorre, sobretudo, porque a redemocratização brasileira deu-se nos marcos do modelo econômico que vinha dos anos 1930,razão da crise fiscal, e, nesse sentido, foi nas tentativas de reformas liberalizantes a partir dos anos 1990, aliadas à busca do executivo federal em conter a insolvência econômica pelo desmoronamento do padrão monetário e o déficit público gigante, que se deu a reação de atores políticos e sociais que redescobriram o poder judiciário, notadamente o seu órgão de controle constitucional. De acordo com Luís Werneck Vianna, os governos de transição abusaram de instrumentos legislativos pouco convencionais de produção da lei e o poder judiciário funcionou como mecanismo contra a tirania da maioria, traduzindo-se num agente racionalizador de medidas cuja racionalidade material suplantou a racionalidade do direito. Assim, afirma Vianna: o cenário pós-constituinte, à exceção do governo Collor, tem sido o da expressão concentrada da vontade da maioria, particularmente nesses dois governos de Fernando Henrique Cardoso, quando, pelo uso continuado e abusivo das medidas provisórias, provoca-se a erosão das formas clássicas de controle parlamentar da produção da lei. Foi esse o contexto que veio a favorecer a concretização dos partidos e dos sindicatos no exercício de intérpretes da constituição, provocando o poder judiciário ao desempenho do papel de um tertius capaz de exercer funções de checks and balances no interior do sistema político, a fim de compensar a tirania da maioria, sempre latente na fórmula brasileira de presidencialismo de coalizão (Idem, p. 95). Essa recorrência ao judiciário foi constante para as entidades classistas, sindicatos e confederações e os partidos políticos. Também ocorreram nas instâncias de poder estaduais. No caso dos partidos políticos, que constituem o indicador clássico da judicialização da política, sobretudo os de esquerda, o recurso ao judiciário constitui uma defesa de si enquanto minorias e a racionalização das ações governamentais, assim como a deflagração de um processo de criação jurisprudencial do direito com possibilidades de mudança na cultura política. Dessa forma, ainda recorrendo a Vianna: Tal mudança é evidente, por exemplo, ao reconhecerem novas possibilidades de incremento da agenda da liberdade e da igualdade em um cenário institucional extraparlamentar, abandonando a perspectiva tradicional de reconhecer no poder judiciário apenas a dimensão do controle social (Ibidem, p. 95). Para tanto, embora a Ação Direta de Inconstitucionalidade, quando aceita, implique em efeito erga omnes (contra todos), não constitui em store decisis (em precedente limitante) em todos os casos análogos para os juízes inferiores (ARANTES, 1997; STEPAN, 2002). Assim, quando o STF declara (in)constitucional uma dada lei ou ato normativo emanado do legislativo, a declaração não tem efeito vinculante e esse tem sido o ponto mais debatido e polêmico das propostas de reforma do poder judiciário. Deste modo, mesmo declarando inconstitucional uma dada lei, o ato normativo advindo do poder político, no dia seguinte, centenas de queixosos, em circunstâncias praticamente idênticas, podem iniciar questionamentos constitucionais para impedir que a mesma lei de taxação ou a mesma lei de desapropriação para reforma agrária que acabou de ser declarada constitucional os afete. Muitas vezes dentro de uma semana numerosos juízes de primeira instância terão emitido liminares impedindo que a lei entre em vigor contra os queixosos de seus tribunais enquanto o processo estiver em andamento (Stepan, 2002, p. 282). Isso é o que se convencionou a chamar nos meios jurídicos e da imprensa em geral de “indústria de liminares”, bastante exorbitada pelo forte apego dos juízes de primeira instância aos aspectos formais da lei.3 Esse fator tem sido criticado não só porque torna limitantes as possibilidades de implementação de agendas reformistas como também pela razão direta do agravamento dos problemas da própria eficiência do poder judiciário na prestação jurisdicional, em virtude do acúmulo processual que percorre todas as instâncias do judiciário até chegar ao STF. Outra instância de conflito do judiciário com o poder político que aproxima o Brasil do processo global de judicialização da política e politização da justiça é representada pelo ativismo do Ministério Público. A reconstrução institucional e de atribuições do Ministério Público brasileiro, de meados dos anos 70 à atualidade, caminhou paralelamente com a ampliação do leque dos chamados direitos difusos e coletivos, a quem competiu a tutela. É nos campos da autonomia administrativa e funcional e da ampliação da gama dos direitos difusos e coletivos e a indisponibilidade destes que o MP trilhou o caminho de uma reconstrução vitoriosa (ARANTES, 2002). De mero apêndice do poder executivo o MP tornou-se um dos principais atores institucionais da cena política nacional. Essa autonomia e ampliada competência na titularização dos novos direitos indisponíveis fizeram o MP mudar da condição de defensor do Estado a defensor da sociedade, enfim, agente político da lei (ARANTES, 2002). Destacaremos, na análise referente ao MP, dois pontos que constituem o fulcro da investida dessa instituição na sua afirmação como agente político da lei e, consequentemente, entrando em conflito com o poder político.4 O primeiro ponto, de acordo com Rogério Arantes, é uma visão negativa da sociedade civil, considerada hipossuficiente e incapaz de defender a si própria. Essa condição decorre do alargamento do leque dos direitos difusos e coletivos e a tutelarização destes pelo MP; o segundo é uma visão negativa da classe política e do poder político, imputados de corruptos e de desrespeitar os direitos fundamentais de cidadania, chamando para si a responsabilidade pela garantia e defesa desses direitos fundamentais frente à constituição. Combatendo, dessa forma, pela moralidade pública e criminalizando os atos de corrupção e improbidade administrativa. Como é sabido, o Ministério Público tem origem nos Estados modernos como órgão provocador do poder judiciário decorrente do conceito weberiano de monopólio legítimo da violência física pelo Estado. Portanto, ao MP compete duas atribuições fundamentais, qual seja, provocar o poder judiciário nos casos de Ação Criminal Pública e a tutela da Ação Civil dos chamados Direitos Individuais Indisponíveis e os casos de indivíduos incapazes, sendo na primeira atuação como custos legis da aplicação das leis e no segundo a tutela destes direitos em virtude da incapacidade. No entanto, no Estado de direito liberal, os casos de tutela constituem exceções, isso porque os ordenamentos jurídicos modernos têm ressaltado não só a autonomia individual quanto à disponibilidade desses direitos. Dessa forma, o que distingue a Ação Criminal Pública e a Ação Civil é a excepcionalidade da segunda. No fundo, são semelhantes. No campo civil, a incursão do MP só se justifica nos termos da incapacidade do titular ou da indisponibilidade do mesmo. A partir dos anos 70 e 80, amplia substancialmente o leque legal dos direitos difusos e coletivos. Ao mesmo tempo, esses direitos foram reconhecidos como frágeis e a sociedade tida como incapaz de tomar a dianteira como titular. Como bem salientou Rogério Arantes (2002, p. 29): eis, portanto, os termos do grande paradoxo que caracteriza a evolução recente do direito brasileiro: o mesmo processo, nos anos de 1970 e 1980, levou a maior de todas as rupturas no princípio individualista do ordenamento jurídico tradicional, com o reconhecimento da dimensão coletiva e social de certos conflitos, qualificou a sociedade civil como hipossuficientee incapaz de agir em defesa de seus próprios direitos. Desta maneira, a reconstrução institucional do MP pode ser vista a partir da paulatina ampliação da atuação no processo civil, na esteira do surgimento de novos direitos cujos titulares foram considerados juridicamente indisponíveis e incapazes. Nos anos 70, esses direitos eram basicamente referentes a questões de família, herança e sucessão. A partir da década de 80 e 90, passaram a ser direitos difusos e coletivos, tais como meio ambiente, patrimônio histórico e cultural, direito do consumidor, patrimônio público e probidade administrativa. Além desses, figuram ainda os serviços públicos como saúde, educação, transporte, segurança e lazer. É, portanto, da ampliação desses direitos e das hipóteses de atuação no processo civil, sob a égide do binômio incapacidade do titular e/ou indisponibilidade, que o MP vai se tornando agente político da lei. Essa percepção da hipossuficiência da sociedade é um dos pontos invocados pelos integrantes do MP como justificativa para a instituição tornar-se portadora legítima da tutela desses novos direitos. Dessa forma, o MP deve atuar como canal de acesso à justiça, no qual cumpre processar demandas e solucionar conflitos coletivos, já que as instâncias políticas são viciadas e a sociedade incapaz.5 Essa percepção permeia o imaginário e, em grande medida, impulsionou o voluntarismo político dos integrantes do MP. Portanto, além da incapacidade da sociedade civil na defesa dos direitos fundamentais, o poder político, além de não ser isento, constitui-se em um dos violadores desses direitos. Assim, o MP não só clama por um lugar privilegiado como agente político da lei, supostamente neutro e apolítico, como se denomina a única instituição capaz de defender a sociedade. Ou seja, em última análise, a solução para o dilema dos conflitos coletivos não se encerra no campo político, na soberania constituída e eletiva, mas, antes, nesse agente político da lei independente de controles políticos. Como notamos, a arena judiciária seria muito mais propícia à resolução de conflitos da sociedade civil hipossuficiente do que a arena político-representativa. Como já mencionamos, por estar fora de controles políticos, esta arena afirma-se como uma instância imune aos vícios que imperam nas instituições políticas. Ao contrário, nas instituições políticas, impera tanto a omissão quanto a má fé no trato com os direitos fundamentais do cidadão. Dessa forma, como notou apropriadamente Arantes (Idem, p. 132), “como muitas vezes o agente agressor dos direitos coletivos é o próprio governo, não há entre promotores e procuradores muita esperança de que as instituições políticas sejam capazes de deslanchar qualquer processo consistente de efetivação de direitos formais. Mas, entretanto, além dessa descrença no poder político, incluindo aí executivos e legislativos, contra esse pesa ainda a contestação da discricionariedade administrativa e o não cumprimento de preceitos constitucionais nas situações de escassez de recursos públicos, no quadro da crise fiscal do Estado que notamos. Assim, recorrendo ainda ao autor, […] a alegação de restrição orçamentária, ou outros motivos normalmente invocados para sustentar decisões sobre políticas públicas em situação de escassez, não podem afastar da apreciação judicial a conduta política do administrador público, segundo a opinião dos integrantes do Ministério Público (Ibidem, p. 134). É nesse âmbito propício que emergem as promotorias de justiça da cidadania cujas atribuições básicas são obrigar os governos a efetivar os direitos constitucionais dos cidadãos, guiá-los pela moralidade pública e probidade administrativa, respeitando o patrimônio público e social. A atuação dessas promotorias tem revelado uma das mais substanciais faces de conflitos do poder judiciário com o poder político-representativo diante da sua atuação fundamentada estritamente na constituição e das agendas de reformas dos governos pós-transição. Muitas de suas ações contra os governos, além de restringi-los em suas discricionariedades administrativas, possuem um forte apelo de justiça social, ou seja, o justo prima sobre o legal, demonstrando uma face marcantemente política no trato com o direito. Cabe ressaltarmos que a atuação do MP no campo da moralização pública operou um deslocamento da esfera civil para a criminal no tratamento da responsabilização de políticos e funcionários públicos envolvidos com corrupção e improbidade administrativa (processo de âmbito mundial, conforme vimos na introdução). É a partir da década de 1990 que vai se verificando esse deslocamento no Brasil. A opção por essa via foi deliberadamente ensejada pelos membros da instituição. Em parte, porque na esfera cível os processos contra políticos e funcionários públicos envolvidos com irregularidades no trato com a coisa pública passam a sofrer com a não efetivação das ações ensejadas via ação civil pública, seja pela morosidade do poder judiciário ou pela derrota das fundamentações dos promotores diante dos tribunais. Uma outra explicação, de ordem mais geral, diz respeito à criminalização da política, a partir da substituição do princípio da responsabilidade administrativa, que recai sobre autoridades públicas, pela processualística criminal, reduzida a sua lógica binária de vítima e agressor (GARAPON, 1996). O tratamento da corrupção no âmbito do poder político depende, para implicar em condenação de administradores públicos, da tipificação do ato como crime de responsabilidade, mas, entretanto, apesar de os textos legais se preocuparem em revestir o processo de impeachment de procedimentos e garantias tipicamente judiciais, o desenrolar dos casos concretos depende essencialmente da correlação de forças existentes (ARANTES, 2002, p. 150). Um outro tratamento advém da tipificação das irregularidades cometidas por ocupantes de cargos eletivos como crime comum. Entrementes, as dificuldades aí residem no foro especial de que gozam os possíveis réus. No caso brasileiro, há uma terceira tipificação, não comum em outros países, que é a improbidade administrativa, cujo efeito é semelhante ao crime de responsabilidade ou crime comum. Mas, ao contrário das demais, sua grande inovação […] é permitir que os ocupantes de cargos executivos (também outros cargos eletivos) sejam processados sem o privilégio de foro especial, embora uma eventual condenação possa ter efeitos graves tais como a perda do mandato e a suspensão dos direitos políticos, por oito a dez anos (Ibidem, p. 150). Isso implica dizer que é na justiça de primeiro grau (Federal ou Estadual) que se dá a instância de julgamento, tendo como órgão de acusação o Ministério Público correspondente às instâncias mencionadas. Acresce-se como mais um elemento que fortaleceu institucionalmente o MP e dotou-o de recurso para intervir no campo político para reivindicar as garantias constitucionais diante de um Estado em crise a criação dos grupos de atuação especial.6 Com base na sua autonomia funcional e administrativa, o MP tem a prerrogativa de estabelecer uma política institucional. Nesse sentido, os grupos de atuação especial visam a combinar a autonomia individual dos promotores, bastante significativa, com uma política institucional que vincule as ações dos promotores que atuam em primeira instância. Ou seja, a política institucional definida para esses grupos não obriga todosos membros da instituição, no entanto, ela contribui para amenizar os efeitos do individualismo sem acarretar prejuízos à independência funcional. Mas, esse fator tem sido alvo de críticas em virtude dos danos que acarretam ao princípio, clássico para a magistratura, do promotor natural. Assim, […] a criação de grupos especiais altera o procedimento normal de provocação do judiciário, introduzindo um grupo com poder de iniciativa, sem vinculação a um lugar específico da jurisdição e com a possibilidade de atuação sobre todo território estadual (Ibidem, p. 150). Isso não só permite uma atuação desvinculada, frontalmente contrária ao princípio do promotor natural, como permite uma atuação seletiva, isto é, o sistema judicial é alterado no seu funcionamento normal já que os promotores detêm autonomia para definir linhas de investigação. Além do mais, os resultados podem acarretar ações judiciais ou não, dependendo dos promotores. 3 PROPOSTAS DE REFORMA NA DIMENSÃO POLÍTICO/ CONSTITUCIONAL DO JUDICIÁRIO A propalada reforma do judiciário entrou de fato no rol do conjunto de reformas gerenciais destinadas a fazer frente à crise do Estado Nacional-desenvolvimentista, saído da transição, na revisão constitucional de 1993. Nessa revisão, prevista pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o número de emendas com vistas a alterar o poder judiciário e torná-lo mais eficiente foi elevadíssimo, cerca de 3.917, o maior de todas as áreas específicas. A falta de consenso que marcou a revisão deve-se ao clima político instalado no país a partir da cassação de Fernando Collor e o caráter transitório que configurou o governo Itamar Franco. Daí ter-se mudado muita pouca coisa na carta de 1988 (MELO, 2002). Entretanto, a nova hegemonia instaurada em 1994 com a coalizão de centro-direita do PSDB com o PFL, agregando posteriormente parte do PMDB e o PTB, leva a cabo uma agenda de reformas profundas no Estado brasileiro. No entanto, nas instituições judiciárias, não encontra consenso para reformá-las. Mas, a partir daí, intensifica-se o debate que, de certa forma, polariza-se entre as propostas gerenciais, calcadas em recomendações do Banco Mundial, defendidas pelo governo, e as propostas das organizações da magistratura e, até certo ponto, aliadas aos partidos de esquerda, como o PT. Armando Castelar (1999, P. 387) descreve sucintamente os objetivos maiores das reformas judiciais sugeridas pelo Banco Mundial a muitos países em desenvolvimento: […] o Banco Mundial lista as três características que se deveriam buscar com a reforma do judiciário: independência; força, isto é, instrumentos para implementar suas decisões; e eficiência gerencial. O Banco defende a independência do resto do governo como a mais importante das três, por ser esta essencial para garantir que o executivo respeite a lei e responda por seus atos. A efetividade do judiciário também depende, porém, da capacidade de implementar suas decisões. Na pratica, isso significa dispor de suficiente por de coerção não apenas em termos legais, mas também em termos de recursos humanos e financeiros. Essas propostas compõem uma agenda de mudanças que visam à eficiência econômica em tempos de política econômica ortodoxa, como no Brasil pós-1994. Discutiremos, a partir de agora, as principais propostas que fizeram parte do debate da reforma do judiciário nos anos 90, nomeando, quando for possível, os principais interessados em aprová-las. Cabe, antes de tudo, dizer que as propostas de reformas estão dispostas nesse texto em dois eixos, o político e o burocrático. Dentre as propostas que visavam mudar o judiciário na sua dimensão propriamente política destacam-se as que reordenam as atribuições do Supremo Tribunal Federal quanto ao controle abstrato da constitucionalidade das leis, a criação do incidente de inconstitucionalidade, a criação da súmula de efeito vinculante, assim como a criação do controle externo do judiciário. A primeira proposta constitui em uma das mais radicais mudanças institucionais que o judiciário poderia passar. Por ela o STF não só deixaria de ter as atribuições de tribunal de última instância como também seria reduzido o seu papel na revisão judicial. Ao deixar de ser tribunal de última instância, o STF desafogaria, segundo os propositores, e, por sua vez, deveria ser reformulado o papel dos tribunais de justiça que se tornariam os destinatários dos recursos ora atribuídos ao STF. Quanto ao controle abstrato da constitucionalidade afirma Sadek (1997, p. 313): neste arranjo institucional não caberia ao judiciário pronunciar-se sobre toda e qualquer questão, possuindo, portanto, as decisões majoritárias (a provadas no congresso ou resolvidas pelo executivo) prevalência sobre o judiciais. Ou seja, seria reduzida a possibilidade de ativismo do judiciário e, ao mesmo tempo, flexibilizados os preceitos constitucionais. Essa tentativa de reduzir o papel do judiciário na esfera política compõe parte da agenda de reforma gerenciais de inspiração do Banco Mundial. Um dos maiores defensores dessa proposta foi o Advogado-Geral da União no governo FHC, Gilmar Ferreira Mendes, que seria indicado Ministro do STF no mesmo período. Na magistratura – também entre juristas e no Ministério Público – e entre os partidos de esquerda, essas propostas soaram como golpe e foram duramente criticadas, assim como foram outros itens da reforma. A segunda proposta é referente ao incidente de inconstitucionalidade pelo qual o STF determinaria a suspensão de processo diante de qualquer juiz ou tribunal que sucite arguição constitucional, voltando a ser aplicada após manifestação deste. Essa suspensão é determinada mediante a provocação do Procurador-Geral da República, da Advocacia-Geral da União, ou ainda pelo Procurador-Geral ou Advocacia-Geral dos Estados. A crítica mais contundente a essa proposta, proferida tanto por associações ligadas à magistratura quanto pelos partidos de esquerda, foi aquela que vinculava essa mudança ao instituto da avocatória no regime militar, pelo qual somente o Procurador- Geral da República estava autorizado a propor ação de inconstitucionalidade. Esta foi uma das propostas mais discutidas durante a revisão da constituição de 1993. Originalmente, ela foi apresentada pelo deputado Nelson Jobim (PMDB-RS), que se tornaria Ministro da Justiça do governo FHC e, posteriormente, seria indicado Ministro do STF, passando a militar pela proposta no decorrer dos últimos 11 anos. A terceira proposta refere-se à súmula de efeito vinculante que tem como objetivo garantir a segurança jurídica, por um lado, e aumentar a eficiência do poder judiciário quanto à prestação de justiça. Segundo os seus defensores, como a outra já mencionada foi uma proposta defendida pelo governo FHC. Por este mecanismo, o STF deixaria de julgar repetidas vezes os mesmos tipos de litígios criando súmulas de efeito vinculante, ou seja, que devem ser seguidos pelas instâncias inferiores do judiciário. Pela proposta - que é de autoria do deputado Hélio Bicudo (PT/SP), prevê-se o seguinte: súmulas vinculantes terão por objeto, a interpretação e a eficácia de norma determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica e só poderão ser editadas mediante decisão tomada pelo voto de três quintos dos membros do Supremo Tribunal Federal ou dos Tribunais Superiores, após reiteradas decisões no
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