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nota de atualizacao rogerio sanches 2015

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Nota de Atualização 
 
 
 
LEI DO FEMINICÍDIO: BREVES COMENTÁRIOS 
 
 
Rogério Sanches Cunha 
Promotor de Justiça/SP 
Professor de Penal do CERS (cursos online) 
Autor de obras jurídicas, destacando-se: Violência Doméstica e Familiar Contra 
a Mulher (Ed. Revista dos Tribunais) 
 
 
“Homicídio simples 
Art. 121. (...) 
 
Homicídio qualificado 
§ 2o (...) 
 
Feminicídio 
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: 
(...) 
 
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o 
crime envolve: 
I - violência doméstica e familiar; 
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. 
(...) 
 
Aumento de pena 
§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o 
crime for praticado: 
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; 
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos 
ou com deficiência; 
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR) 
 
 
Art. 2o O art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar 
com a seguinte alteração: 
“Art. 1o (...) 
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de 
extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado 
(art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V e VI); 
(...) ” (NR) 
 
 
Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. 
 
COMENTÁRIOS: 
 
A Lei 13.104/15 alterou o art. 121 do CP para nele incluir o “feminicídio”, 
entendido como a morte de mulher em razão da condição do sexo feminino 
(leia-se, baseada no gênero). A incidência da qualificadora reclama situação de 
violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de 
poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação 
de vulnerabilidade1. 
 
Com a novel Lei, o feminicídio passa a configurar a sexta forma qualificada do 
crime de homicídio, punido com pena de reclusão de 12 a 30 anos, etiquetado 
como delito hediondo, sofrendo os consectários da Lei 8.072/902. 
 
O § 2o-A foi acrescentado para esclarecer quando a morte da mulher deve ser 
considerada em razão da condição do sexo feminino: I - violência doméstica e 
familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. 
 
O esclarecimento, no entanto, além de inútil, causa confusão. Explico. 
 
Feminicídio, comportamento objeto da Lei em comento, pressupõe violência 
baseada no gênero, agressões que tenham como motivação a opressão à 
mulher. É imprescindível que a conduta do agente esteja motivada pelo 
menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima. A previsão deste 
(infeliz) parágrafo, além de repisar pressuposto inerente ao delito, fomenta a 
confusão entre feminicídio e femicídio. Matar mulher, na unidade doméstica e 
 
1. Recentemente, o STJ admitiu a aplicação da Lei Maria da Penha (11.340/06) numa agressão contra 
mulher praticada por outra mulher (relação entre mãe e filha). Isso porque, de acordo com o art. 5º da Lei 
11.340/2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada 
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial 
em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, 
independentemente de coabitação. Da análise do dispositivo citado, infere-se que o objeto de tutela da Lei 
é a mulher em situação de vulnerabilidade, não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também 
qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor. 
Nessa mesma linha, entende a jurisprudência do STJ que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem 
como a mulher, desde que esteja presente o estado de vulnerabilidade caracterizado por uma relação de 
poder e submissão. HC 277.561-AL, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 6/11/2014. 
 
2 . Antes da Lei 13.104/15 essa forma do crime já qualificava o homicídio, mas pela torpeza, sendo 
igualmente rotulada como hedionda. A mudança, portanto, foi meramente topográfica, migrando o 
comportamento delituoso do art. 121, § 2o., I, para o mesmo parágrafo, mas inc. VI. A virtude dessa 
alteração está na simbologia, isto é, no alerta que se faz da existência e necessidade de se coibir com mais 
rigor a violência contra a mulher em razão da condição do sexo feminino. 
 
 
familiar (ou em qualquer ambiente ou relação), sem menosprezo ou 
discriminação à condição de mulher é FEMICÍDIO. Se a conduta do agente é 
movida pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, aí sim temos 
FEMINICÍDIO. 
 
Lamento não ter o Congresso seguido as sugestões dos operadores do Direito 
que lidam diariamente com a violência de gênero contra a mulher. Destaco, 
entre outros, o incansável trabalho da Promotora de Justiça de São Paulo, Silvia 
Chakian de Toledo, integrante do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento 
à Violência Doméstica. Procurou ela, de todas as formas, convencer os 
parlamentares a redigirem o tipo com mais clareza, simplicidade e coerência 
com o próprio objeto do projeto, conectando seus termos com aqueles 
estampados na Lei Maria da Penha, berço, no nosso país, do conceito violência 
de gênero contra a mulher. 
 
Feito esse registro de descontentamento, dou sequência ao estudo da Lei posta, 
alertando ter ela acrescentado ao art. 121 mais um parágrafo (§ 7o), 
aumentando a pena do feminicídio em 1/3 até 1/2 se o crime for praticado: 
 
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto. 
 
Quando se inicia o parto (termo inicial do prazo de 3 meses configurador da 
causa de aumento)? 
 
A doutrina é divergente. FERNANDO CAPEZ, ao tratar do tema, cita alguns 
posicionamentos: 
 
“Alfredo Molinario entende que o nascimento é o completo e total 
desprendimento do feto das entranhas maternas. Para Soler, inicia-se desde as 
dores do parto. Para E. Magalhães Noronha, mesmo não tendo havido 
desprendimento das entranhas maternas, já se pode falar em início do 
nascimento, com a dilatação do colo do útero.”3. 
 
Diante da indisfarçável controvérsia, seguimos a lição de Luiz Regis Prado: 
 
“Infere-se daí que o crime de homicídio tem como limite mínimo o começo do 
nascimento, marcado pelo início das contrações expulsivas. Nas hipóteses em 
que o nascimento não se produz espontaneamente, pelas contrações uterinas, 
como ocorre em se tratando de cesariana, por exemplo, o começo do 
nascimento é determinado pelo início da operação, ou seja, pela incisão 
abdominal. De semelhante, nas hipóteses em que as contrações expulsivas são 
induzidas por alguma técnica médica, o início do nascimento é sinalizado pela 
 
3. Direito Penal – Parte Especial, v. 2, p. 11-12. 
 
execução efetiva da referida técnica ou pela intervenção cirúrgica (cesárea)”. 4 
 
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos 
ou com deficiência. 
 
Esta causa de aumento, nas duas primeiras figuras (ofendida menor de 14 anos 
ou maior de 60 anos) repete o § 4o. do art. 121. Alerto, porém, que o § 7o., 
diferentemente do § 4o., permite um aumento variável de 1/3 até 1/2. 
 
A terceira figura contempla a vítima com deficiência (física ou mental). O 
conceito de pessoa portadora de deficiência é trazido pelos arts. 3º e 4º do 
Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamentou a Lei 7.853, de 
24 de outubro de 1989, in verbis: 
 
Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se: 
I – deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, 
fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro 
do padrão considerado normal para o ser humano; 
II – deficiência permanente – aquela queocorreu ou se estabilizou durante um período 
de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, 
apesar de novos tratamentos; e 
III – incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração 
social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais 
para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações 
necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser 
exercida. 
Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes 
categorias: 
I – deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo 
humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma 
de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, 
triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, 
paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto 
as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de 
funções; 
II – deficiência auditiva – perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) 
ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 
3.000Hz; 
III – deficiência visual – cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no 
melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual 
entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a 
somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º; ou 
a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores; 
IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, 
com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas 
de habilidades adaptativas, tais como: 
a) comunicação; 
b) cuidado pessoal; 
c) habilidades sociais; 
 
4. Tratado de Direito Penal Brasileiro, v. 4, p. 62. 
 
d) utilização dos recursos da comunidade; 
e) saúde e segurança; 
f) habilidades acadêmicas; 
g) lazer; e 
h) trabalho; 
V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências. 
 
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima. 
 
Ao exigir que o comportamento criminoso ocorra na “presença”, parece 
dispensável que o descendente ou o ascendente da vítima esteja no local da 
agressão, bastando que esse familiar esteja vendo (ex: por skype) ou ouvindo 
(ex: por telefone) a ação criminosa do agente. 
 
Parece óbvio que, para a incidência das circunstâncias majorantes enunciadas 
nos incs. I, II e III, o agressor (ou agressora) delas tenha conhecimento, 
evitando-se responsabilidade penal objetiva. 
 
Encerro estas primeiras impressões da Lei fazendo algumas perguntas: 
 
Pode figurar como vítima do feminicídio pessoa transexual? 
 
Inicialmente, como bem ressaltam Cristiano Chaves de Farias e Nelson 
Rosenvald, “o transexual não se confunde com o homossexual, bissexual, 
intersexual ou mesmo com o travesti. O transexual é aquele que sofre uma 
dicotomia físico-psíquica, possuindo um sexo físico, distinto de sua conformação 
sexual psicológica. Nesse quadro, a cirurgia de mudança de sexo pode se 
apresentar como um modo necessário para a conformação do seu estado físico 
e psíquico”.5 
 
Em eventual resposta à indagação inicial podem ser observadas duas posições: 
uma primeira, conservadora, entendendo que o transexual, geneticamente, não 
é mulher (apenas passa a ter órgão genital de conformidade feminina), e que, 
portanto, descarta, para a hipótese, a proteção especial; já para uma corrente 
mais moderna, desde que a pessoa portadora de transexualismo transmute suas 
características sexuais (por cirurgia e modo irreversível), deve ser encarada de 
acordo com sua nova realidade morfológica, eis que a jurisprudência admite, 
inclusive, retificação de registro civil. 
 
Rogério Greco, não sem razão, explica: “Se existe alguma dúvida sobre a 
possibilidade de o legislador transformar um homem em uma mulher, isso não 
acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o 
Poder Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a 
modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os 
 
5 . Direito civil – Teoria geral, p. 115. 
 
âmbitos de sua vida, inclusive o penal”.6 
 
Nesse sentido, aliás, decidiu o TJ/MG, aplicando as Lei Maria da Penha não 
apenas para a mulher, mas também transexuais e travestis: 
 
“Para a configuração da violência doméstica não é necessário que as partes 
sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados, já que a 
união estável também se encontra sob o manto protetivo da lei. Admite-se que o 
sujeito ativo seja tanto homem quanto mulher, bastando a existência de relação 
familiar ou de afetividade, não importando o gênero do agressor, já que a norma 
visa tão somente à repressão e prevenção da violência doméstica contra a 
mulher. Quanto ao sujeito passivo abarcado pela lei, exige-se uma qualidade 
especial: ser mulher, compreendidas como tal as lésbicas, os transgêneros, as 
transexuais e as travestis, que tenham identidade com o sexo feminino. 
Ademais, não só as esposas, companheiras, namoradas ou amantes estão no 
âmbito de abrangência do delito de violência doméstica como sujeitos passivos. 
Também as filhas e netas do agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer 
outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o polo 
passivo da ação delituosa” (TJMG, HC 1.0000.09.513119-9/000, j. 24.02.2010, 
rel. Júlio Cezar Gutierrez). 
 
Reconhecido o privilégio pelos senhores jurados (ex: domínio de violenta 
emoção), pode o juiz quesitar (perguntar) o feminicídio? 
 
É sabido que, apesar da sua posição topográfica, mostra-se perfeitamente 
possível a coexistência das circunstâncias privilegiadoras (§ 1º do art. 121), 
todas de natureza subjetiva, com qualificadoras de natureza objetiva (§ 2º, III e 
IV). 
 
Nesse sentido, aliás, é firme a jurisprudência, inclusive dos Tribunais Superiores. 
 
O STF, a propósito, já decidiu: 
 
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da 
possibilidade de homicídio privilegiado-qualificado, desde que não haja 
incompatibilidade entre as circunstâncias do caso. Noutro dizer, tratando-se de 
qualificadora de caráter objetivo (meios e modos de execução do crime), é 
possível o reconhecimento do privilégio (sempre de natureza subjetiva)”7. 
 
O STJ, da mesma forma: 
 
“Admite-se a figura do homicídio privilegiado-qualificado, sendo fundamental, no 
 
6 . Curso de direito penal, vol. III, p. 530. 
7. HC 97.034/MG, DJe 07/05/2010 
particular, a natureza das circunstâncias. Não há incompatibilidade entre 
circunstâncias subjetivas e objetivas, pelo que o motivo de relevante valor moral 
não constitui empeço a que incida a qualificadora da surpresa” (RT 680/406). 
 
Diante desse quadro preliminar, a qualificadora do feminicídio é subjetiva, 
incompatível com o privilégio, ou objetiva, coexistindo com a forma 
privilegiada do crime? 
 
É claramente subjetiva, pressupondo motivação especial, qual seja, o 
menosprezo ou a discriminação à condição de mulher. 
 
Em resumo: reconhecendo o Conselho de Sentença a forma privilegiada do 
crime, fica afastada, automaticamente, a tese do feminicídio.

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