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Capitalismo e esquizofrenia aula 10

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Capitalismo e esquizofrenia
Aula 10
Na aula de hoje, daremos sequência a discussão sobre o capítulo III de O anti-Édipo, a saber, este cujo título é “Selvagens, bárbaros, civilizados”. Vimos, na aula passada, como Deleuze e Guattari mobilizavam uma verdadeira filosofia da história, organizada a partir da reflexão sobre três modos de produção, para dar conta da configuração atual do capitalismo e de seus modos de socialização e individuação. Cada um destes modos de produção traria no seu bojo uma figura da corporeidade do social. Teríamos pois o corpo pleno da Terra, o corpo despótico e o corpo do Capital. 
Sobre o primeiro modo de produção, Deleuze e Guattari o descrevem como uma máquina territorial no interior da qual a Terra aparece na posição de fundamento. Vale para os dois o que Marx falou nos Grundrisse: “A terra é o grande laboratório, o arsenal, que fornece tanto o meio de trabalho quanto o material de trabalho, bem como a sede, a base da comunidade. Eles se relacionam com a terra, ingenuamente, como propriedade da comunidade, e da comunidade que se produz e reproduz pelo trabalho vivo”�. Isto demonstra como a relação à Terra é o plano imanente de sentido. Como dissera anteriormente, tal conceito de Terra não é exatamente a descrição realista da posse do espaço, a territorialidade primitiva não é um princípio de residência ou de repartição geográfica. Ela é a caracterização fundadora de um horizonte de significação imediatamente acessível: 
A Terra é a grande extase não engendrada, o elemento superior à produção que condiciona a apropriação e a utilização comum do solo. Ela é a superfície na qual se inscreve todo o processo de produção, na qual se registra os objetos, os meios e as forças de trabalho, na qual se distribuem os agentes e os produtos�.
 
Ao falar deste corpo pleno da Terra, Deleuze e Guattari insistem que só podemos realmente compreender sua lógica própria se abandonarmos a concepção estruturalista de sociedades como sistemas de trocas, ou seja, sociedades como estruturas compostas a partir de exigências própria à circulação (como, por exemplo, o postulado de circulação de mulheres em Lévi-Strauss). No estágio do corpo pleno da Terra, as sociedades são sistemas de marcas através do : “investimento coletivo de órgãos”�. Ou seja, a significação social não é dada pela relação dos sujeitos a um sistema estrutural de posições que os distribuem e determina as relações possíveis. Ela é dada pela marcas corporais que definem os órgãos como se reportando imediatamente ao espaço coletivo da Terra através das séries constituídas pelas relações de filiação e aliança. Não há órgãos privados neste corpo pleno, a privatizações dos órgãos é o resultado das individuações em nossas sociedades modernas. Por isto que: “as unidades nunca estão nas pessoas”�. Há apenas órgãos cujos usos, cujas conexões, disjunções e conjunções expressam de forma imanente o vínculo imediato à coletividade da Terra: “o homem que goza plenamente de seus direitos e de seus deveres tem todo o corpo marcado sob um regime que reporta seus órgãos e seu exercício à coletividade”�. 
Já a segunda formação, como vimos na aula passada, estaria caracterizada pela produção de um corpo social que se incarna no corpo místico do déspota. Nesta formação, que segue de perto o que Marx entende por “modo de produção asiático”, aparece pela primeira vez o Estado. O conceito aparece em Marx, mas será paulatinamente abandonado pela tradição marxista. Na verdade, Marx procurava dar conta da especificidade do modo de produção em países orientais, em especial a Índia e a China. Isto implicava, por um lado, romper com uma leitura etapista do processo histórico, o que será revisto quando boa parte da historiografia marxista procurar eliminar a noção de modo de produção asiático em prol de um uso extensivo do esquema utilizado na passagem do feudalismo ao capitalismo. Mas, por outro, implicava, claramente no caso de Marx, em até certo ponto justificar o imperialismo como condição para a ruptura de um certo sistema metaestável que tiraria tais sociedades da história. Para Marx, sociedades submetidas ao modo de produção asiático não conheceriam o desenvolvimento histórico das sociedade europeias, com suas contradições internas e superação. Isto talvez explique a maneira com que Marx compreende a necessidade do imperialismo britânico na Índia: 
Por mais lamentável que seja do ponto de vista humano ver como se desorganizam e se dissolvem essas dezenas de milhares de organizações sociais laboriosas, patriarcais e inofensivas; por triste que seja vê-las desaparecidas num mar de dor, contemplar como cada um dos seus membros vai perdendo ao mesmo tempo as suas velhas formas de civilização e os seus meios tradicionais de subsistência, não deveremos esquecer simultaneamente que essas idílicas comunidades rurais, por inofensivas que parecessem, constituíram sempre a base do despotismo asiático, restringindo o intelecto humano aos limites mais estreitos, convertendo-o num instrumento submisso da superstição, submetendo-o à escravidão de regras tradicionais e privando-o de toda grandeza e iniciativa histórica (...). Não devemos esquecer que essa vida sem dignidade, estática e vegetativa, que essa forma passiva de existência provocava, por outro lado e por antítese, forças destrutivas selvagens, cegas e desenfreadas que transformaram o assassinato em rito religioso no Hindustão. Não devemos esquecer que essas pequenas comunidades estavam contaminadas por diferenças de casta e pela escravidão, que elas submeteram o homem às circunstâncias exteriores em lugar de fazê-lo soberano das mesmas circunstâncias, que converteram um estado social que se desenvolvia por si só num destino natural imutável (...) (MARX & ENGELS, 1969, p.84-85).
Mas como Marx descreve o modo de produção asiático? Primeiro, ele lembra como as sociedades orientais, confrontadas a situações climáticas e geográficas desfavoráveis, precisaram criar um poder centralizado e unificado na figura do déspota responsável por grandes trabalhos públicos, como irrigação, drenagem, entre outros. Marx chega a dizer que os governos asiáticos só conheceram três departamento: de finanças, da guerra e da construção de obras públicas. Neste sentido, o déspota não é exatamente um tirano, mas aquele responsável por coordenar o trabalho comum entre várias comunidades independentes entre si, viabilizando um corpo social pensado como peculiar “sistema de aldeias”. Por ter tal função de coordenação, para o déspota vai o excedente da produção. 
O fundamento do funcionamento do modo de produção asiático, ao menos segundo Marx, encontra-se em uma afirmação como: “Na forma asiática (ao menos, na predominante) não há propriedade, mas só posse do indivíduo singular; a comunidade é o proprietário efetivo propriamente dito – portanto, propriedade só como propriedade comunitária do solo”�. Ou seja, a propriedade da Terra é monopólio do Estado, mesmo que a posse, seu uso, seja individual. 
Este esquema é importante para Deleuze e Guattari compreenderem o processo de advento do Estado. Eles tendem a afirmar que a eliminação do modo de produção asiático da historiografia marxista viria do fato do Estado despótico ser, em larga medida, a essência imóvel e imemorial de toda formação estatal. Isto a ponto de Deleuze e Guattari afirmarem que o Estado não tem história. Ele é um Urstaat, termo derivado do conceito psicanalítico de Urphantasie, ou seja, fantasia originária. Ele indica uma espécie de cena primitiva que produz a matriz da produção fantasmática do sujeito, que gera a história de seu desejo. Neste sentido, o Estado é a fantasia originária do laço social. Neste sentido, a apropriação da temática do modo de produção asiático não funciona, como em Marx, enquanto chave explanatória para a pretensa estaticidade ahistórica do Oriente, mas como enquanto conceito crítico para explorar a matriz arcaizante das estruturas institucionais de nossas próprias sociedades ocidentais. Se nossos Estadossão figuras que sempre remetem a um Urstaat então isto significa que nossa história é assombrada pela ressurgência de uma fantasmagoria social que é, na verdade, o fundamento fantasmático de nossa vida social. Vejamos este ponto com mais calma. 
 As sociedades cujo corpo social organiza-se sob a forma do corpo pleno da Terra são sociedades desprovidas de Estado. No entanto, Deleuze e Guattari utilizam a chave compreensiva fornecida por Pierre Clastres a respeito das sociedades sem Estado. Chave que procura nos mostrar como tais sociedades não são marcadas por alguma forma de déficit ligado à ausência de uma institucionalidade como o Estado, mas por uma decisão deliberada de procurar evitar o aparecimento do Estado, de evitar a centralização do poder e as duas operações que definem a existência do Estado, a saber: “comparação direta, apropriação monopolista”, ou seja, estabelecimento de princípios gerais de comparação entre atividades e produções distintas a fim uma apropriação do valor produzido. 
Mas, se assim for, o que faz o Estado aparecer? Admitamos a ideia fundamental segundo a qual não há formação social que não pressinta a forma real sob a qual seu limite aparecerá. Ela chega mesmo a organizar-se a partir da esconjuração contínua de seu limite. No caso das sociedades do corpo pleno da Terra, seu limite é o advento de fluxos descodificados e desterritorializados. A possibilidade de tal advento devido ao próprio funcionamento do circuito do desejo no interior da máquina territorial levará à produção do Estado. Ou seja, há uma instabilidade interna a cada forma social, o que fica claro em uma afirmação como:
É neste ponto que aparece a identidade da máquina social com a máquina desejante: ela não tem por limite a usura, mas a disfunção (raté), ela só funciona arrastando, desmontando-se, deixando brilhar pequenas explosões. As disfunções fazem parte de seu próprio funcionamento e este não é o menor aspecto do sistema da crueldade�.
Esta instabilidade se estabilizará através da transposição do corpo da Terra no corpo do Déspota. Por isto, o Estado se incarna inicialmente no corpo místico do Déspota. Daí uma afirmação como:
A unidade imanente da Terra como motor imóvel dá lugar a uma unidade transcendente de natureza completamente diferente, a unidade do Estado. O corpo pleno não é mais este da terra, mas este do Déspota, o não engendrado, que se encarrega agora tanto da fertilidade do solo e da chuva do céu como da apropriação geral das forças produtivas�.
No corpo despótico, a Terra será submetida a um princípio transcendente que permite julgar a vida e sobrevoar a terra. É a produção de uma ordem transcendente que permite à sociedade escapar do “horror dos fluxos descodificados”. Este princípio transcendente constitui uma unidade superior que: “integra sub-conjuntos relativamente isolados, funcionando separadamente, aos quais ele atribui um desenvolvimento em pedaços e um trabalho de construção por fragmentos”�. Como vimos, segundo a fórmula de Marx, o Estado, no modo de produção asiático, tem como função assegurar os grandes trabalhos públicos, deixando subsistir comunidades semi-agrícolas, semi-artesanais de caráter familiar, dando a cada uma dessas comunidades uma organização independente e uma vida distinta. Mas é por preservar organizações comunitárias independentes que Deleuze e Guattari poderão dizer que o Estado despótico opera uma sobrecodificação. Sobrecodificação significa que os códigos territorializados serão mantidos, mas agora submetidos e reordenados no interior de um código metaestrutural.
Isto pode nos explicar porque Deleuze e Guattari comparam o désposta a um significa-mestre. Admitindo que o significante é: “o signo ele mesmo desterritorializado”�, trata-se de lembrar que um corpo político cujo fundamento é um significante-mestre significa indicar que o fundamento produzirá um sentido sempre transcendente: “estoque transcedente que distribui a falta a todos os elementos da cadeia, algo de comum para uma ausência comum, instaurador de todos os cortes-fluxos em um só e mesmo lugar de um só e mesmo corte”�. Daí porque Deleuze e Guattari poderão dizer que o déspota é uma unidade formidável: “mas formal e vazia, eminente, destributiva e não coletiva”�. Ou seja, eles aproximam o caráter vazio do fundamento da cadeia significante no interior do estruturalismo à característica do déspota de elevar sua vontade a fundamento da lei, uma vontade que não se configura em sistema de leis, mas cuja soberania é uma transcendência que, de certa forma, acrescenta-se a leis locais, significando sem nada designar. 
Uma teoria do capitalismo 
Ao falar sobre o advento do capitalismo, Deleuze e Guattari colocarão a seguinte pergunta:
Por que a Europa? Por que não a China? A respeito da navegação marítima, Braudel se pergunta: por que não os navios chineses e japoneses, ou mesmo muçulmanos? Por que não Simbad, o marujo? Não é a técnica que falta, a máquina técnica. Não seria, na verdade, o desejo que continua preso às vias do Estado despótico, totalmente investido na máquina do déspota?�
	A pergunta é fundamental. Não foi alguma forma de defasagem tecnológica que impediu o aparecimento do capitalismo na China ou mesmo no mundo árabe. Sob vários aspectos, o atraso tecnológico e social dos europeus era maior. Mas, para o aparecimento do capitalismo, faz-se necessário uma experiência de desterritorialização, um desejo de movimento sem telos, a transformação da ausência de telos em sistema. Faz-se necessário “a predominância do ponto de vista da circulação sobre o ponto de vista da produção”�. Como lembra Deleuze e Guattari, quando as minas na China pré-capitalista produziam excedente, elas eram fechadas. Ou seja, a necessidade social atual definia os limites da produção. Não é, como no capitalismo contemporâneo, a dinâmica autônoma da produção, seu ritmo e seus movimentos que engendram os ritmos e movimentos do desejo. 
Lembremos a este respeito como, ao menos segundo Deleuze e Guattari, o capitalismo não se caracteriza apenas pela descodificação geral dos fluxos, mas pela conjunção de todos os fluxos descodificados, ou seja, ele transforma tais fluxos em um processo ordenado de auto-valorização do Capital. Deleuze e Guattari pensam aqui no que significa o aparecimento do capital como dinheiro que engendra dinheiro, como valor que se auto-valoriza. Com isto, não só um equivalente geral é posto, mas instaura-se um processo ilimitado de desterritorialização de todo objeto em relação a si mesmo (valor de uso). Nenhum objeto é idêntico a si mesmo, já que ele é apenas a ocasião para a passagem do fluxo ilimitado do capital que perverte todos os códigos e identidades, anula todo conteúdo privilegiado a fim de instaurar a repetição modular da pura forma. No capitalismo, todo objeto está “separado de si mesmo”. Assim, a desterritorialização é elevada a princípio de funcionamento do sistema. 
Para tanto, basta que o capitalismo se sirva da natureza funcional da abstração real, deste processo de desencarnação entre forma e conteúdo que faz da circulação da forma-equivalente o fundamento efetivo da vida social:
A máquina capitalista começa quando o capital deixa de ser um capital de aliança para ser um capital filiativo. O capital se transforma em um capital filiativo quando o dinheiro engendra dinheiro, ou quando o valor engendra mais-valor�. 
Tudo se passa pois como se Deleuze e Guattari derivassem sua análise do capitalismo da maneira com que a submissão do trabalho humano à condição de produção do valor, com que a natureza auto-referencial da produção do valor, acabasse por expor a estrutura libidinal do capitalismo. Valor cuja função é apenas engendrar mais-valor significa operar sobre fluxos descodificados, ou seja, sobre processos de produção que não são codificados pelo sistema atual de necessidade sociais. Ao falar dos limites do corpo despótico, Deleuze e Guattari lembram do: “horror dos fluxos descodificados, fluxos de produção, mas também fluxosmercantis de troca e de comércio que escapariam ao monopólio do Estado, ao seu esquadrinhamento e seu tampão”�. Esta é uma maneira de lembrar que a intensificação da produção, assim como a intensificação do comércio e seu sistema alargado de trocas produz uma experiência social de desterritorialização que é, ao mesmo tempo, objeto de horror de sociedades pré-capitalistas e o fundamento mesmo das sociedades capitalistas. Por esta razão, Jean-François Lyotard dirá, a respeito de O anti-Édipo: “na figura do Kapital proposta por Deleuze e Guattari, reconhece-se bem o que fascina Marx: a perversão capitalista, a subversão dos códigos, religiões, pudores, ofícios, educação, cozinha, palavra, o nivelamento de todas diferenças ‘fundamentadas’ em prol da única real diferença: valer por - , ser trocável por -. Diferença indiferente”�. 
	Por isto, Deleuze e Guattari devem dizer que a conjunção produzida pelo capitalismo entre uma multiplicidade de fluxos descodificados não é a invenção de um novo código, mas a produção de um axioma. Neste contexto, “axioma” é aquele princípio intocável que permite os desdobramentos dos processos de fluxo e produção. Ou seja, o “valor de troca”: “axioma, e não código: a energia e seus objetos não são mais marcas de um signo, não há mais, em sentido estrito, signos pois não há mais códigos, não há mais reenvio à origem, a uma ‘prática’, a uma referência, a uma suposta natureza ou surrealidade ou realidade, extra-dispositivo ou grande Outro – só há uma pequena etiqueta de preço, index da intercambialidade: não é nada, é enorme, é outra coisa”�. 
O problema do Estado
Dentro da teoria do capitalismo de Deleuze e Guattari, um ponto fundamental é a compreensão da natureza central da relação entre capitalismo e Estado. Nós já vimos como os textos de Guattari anteriores a seu encontro com Deleuze insistiam que a contemporaneidade seria marcada pelo advento de um capitalismo monopolista de Estado. Este diagnóstico fornece uma das ossaturas de O anti-Édipo. Neste sentido, notemos como os dois afirmam: “Tem-se às vezes a impressão de que os fluxos de capitais iriam facilmente até a Lua se o Estado capitalista não estivesse lá para traze-los novamente à Terra”�. Aqui, fica claro como a aposta consiste em dizer que o Estado é o operador de reterritorialização do capitalismo. Ele controla os fluxos, regula os conflitos, inscreve as demandas no interior das realidade nacionais. Por isto, Deleuze e Guattari podem dizer que nunca houve capitalismo liberal. Não há luta alguma contra o princípio de controle do Estado, desde que seja o Estado que convém. Não há oposição alguma entre o livre-mercado e a planificação, pois o liberalismo sempre precisou do Estado como garantidor das condições de possibilidade para a livre-concorrência, ou ao menos, para a livre-concorrência que convém.
	Neste sentido, o projeto Capitalismo e Esquizofrenia poderia parecer dependente de uma tentativa de liberar os fluxos do capital e seu potencial de desterritorialização da estrutura de regulação dos Estados nacionais. Lembremos, por exemplo, de afirmações a respeito da “via revolucionária” como:
Ir ainda mais longe no movimento do mercado, da descodificação e da desterritorialização? Pois talvez os fluxos não estejam suficientemente desterritorializados, isto do ponto de vista de uma teoria e de uma prática de fluxos de alto teor esquizofrênico. Não exatamente se retirar do processo, mais ir ainda mais longe, ‘acelerar o processo’; como dizia Nietzsche: na verdade, nesta matéria, nós ainda não vimos nada�. 
Tais perspectivas trouxeram riscos maiores. Primeiro, elas retiravam toda possibilidade de estabelecer um outro princípio para a crítica social, já que a crítica tende a ser apenas a afirmação de que as condições atuais do capitalismo pós-industrial são providas de forte potencial emancipador�. Como quem diz que, de uma certa forma, todas as condições de liberação já estão dadas no capitalismo avançado, sua racionalidade cínica já nos livrou das amarras de um pensamento da representação, bastando apenas uma espécie de afirmação de potencialidades que, no final das contas, são a própria mola de desenvolvimento sócio-econômico do capitalismo. Isto pode explicar afirmações como: “Nunca houve luta contra a sociedade de consumo, esta noção imbecil. Nós dizemos, ao contrário, que ainda não temos consumo o suficiente, o artifício, nós ainda não o temos o suficiente. Nunca os interesses passarão para o lado da revolução se as linhas do desejo não alcançarem o ponto em que desejo e máquina se fundem, desejo e artifício, isto a ponto dele se voltar contra os dados ditos naturais da sociedade capitalista”�. Pensemos ainda nesta colocação de Lyotard: “A dissolução das formas e dos indivíduos na sociedade dita ‘de consumo’ deve ser afirmada”�. Um pouco como se estivéssemos diante de uma versão da celebração marxista do revolucionário poder de desterritorialização do capitalismo. Assim, tudo se passa como se a crítica da economia política saísse de cena em prol de uma afirmação da economia libidinal do capitalismo avançado.
No entanto, e se desejo e artifício, desejo e máquina se fundirem sem que, com isto, os dados ditos naturais da sociedade capitalista sejam abalados? Não poderíamos dizer que Deleuze e Guattari acreditam neste potencial revolucionário da afirmação do desejo por serem dependentes de uma ontologização da diferença que pode ter potencial disruptivo em sociedades disciplinares marcadas por uma forma de ideologia ligada à entificação do princípio de identidade, mas que perdem toda a força quando confrontadas com sociedades cuja reprodução material depende da produção da diferença.
Isto foi compreendido posteriormente pelo próprio Deleuze ao reconhecer que a verdadeira dinâmica do capitalismo levava à dissolução de estruturas disciplinares (como o estado, a família, o Édipo, etc.). Por isto, ele deverá insistir que passamos, de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle: “os controles são uma modulação, como um molde auto-deformante que muda continuamente de um instante a outro, ou como uma peneira cujas malhas mudam de um ponto a outro”�. Ou seja, não mais instituições normativas próprias a uma sociedade disciplinar, mas dispositivos de controle que absorvem, no interior de sua própria dinâmica, a multiplicidade, a flexibilização e a diferença. 
� MARX, Karl; Grundrisse, p. 389 
� DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, p. 164
� Idem, p. 166
� Idem, p. 167
� Idem, p. 169
� MARX, Karl; Grundrisse, p. 396
� Idem, p. 178
� DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, p. 171
� Idem, p. 235
� Idem, p. 244
� Idem, p. 247
� Idem, p. 251
� Idem, p. 265	
�LYOTARD, Jean-François; Des dispositifs pulsionnels, p. 31
� Idem, p. 269
� Idem, p. 233
� LYOTARD, Jean-François; idem, p. 35
� Idem, p. 41
� DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, p. 307
� DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, p. 285
� Basta ser fiel a afirmações como: “O capitalismo tende em direção a um limiar de descodificação que desfaz o socius em prol de um corpo sem órgãos e que, sobre este corpo, libera o fluxo do desejo em um fluxo desterritorializado (...) A descodificação dos fluxos, a desterritorialização do socius formam assim a tendência mais essencial do capitalismo. Ele não cessa de apropriar-se de seu limite, que é um limite propriamente esquizofrênico. Ele tende com todas as suas forças a produzir o esquizo como o sujeito dos fluxos descodificados sobre o corpo sem órgãos (...) O capitalismo, no seu processo de produção, produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele deve impor todo o peso de sua repressão, mas ele não cessa de reproduzi-la como limite do processo” (DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 42)
� GUATTARI in DELEUZE, Pourparlers, p. 32
� idem, p. 315
� DELEUZE, Pourparlers, p. 242

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