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1 * Pós-Graduanda em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), tendo realizado intercâmbio acadêmico na Università Degli Studi di Trento, na Itália. **Trabalho de conclusão de curso, com orientação do Professor MSc. Guilherme Bez Marques, para obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais pela Univali. As Operações de Peacekeeping das Nações Unidas do Século XXI Pós o Relatório Brahimi** Hanna Lesniowski Brugnolli* Resumo As operações de “peacekeeping” das Nações Unidas é a principal atividade da organização no âmbito da segurança e paz mundial. A idéia evoluiu desde a sua primeira missão em 1948, adquirindo novos objetivo e complexidade. Nos anos 90, a ONU presenciou três grandes fracassos na sua tentativa de instaurar a paz nos conflitos na Somália, Bósnia e Ruanda. Para identificar tais falhas e evitar o reincidente das mesmas, é formado um painel com especialistas na aérea, presidido pelo ex-Ministro das Relações Exteriores da Argélia, Lakhdar Brahimi . Do painel nasce um documento conhecido como Relatório Brahimi, que é composto de 20 recomendações de reformas para o “peacekeeping”. Através da pesquisa bibliográfica e documental, esse trabalho tem como objetivo identificar as principais alterações na formação e no funcionamento das operações de paz das Nações Unidas nos últimos anos. Palavras-chave: Nações Unidas, peacekeeping, operações de paz, Relatório Brahimi. Abstract The United Nations peacekeeping operations is the organization's main activity concerning world's peace and security. The idea has evolved since its first mission in 1948, acquiring new objectives and complexity. In the 90s, the UN has experienced three major failures in its attempt to guarantee peace in the war conflicts of Somalia, Bosnia and Ruanda. In order to identify and avoid these failures, a panel is built by specialists in the subject, leaded by Algeria's former Foreign Affairs Ministry, Lakhdar 2 2 Brahimi. From this panel a document is born, known as the Brahimi Report - which is composed by twenty recommendations for peacekeeping makeovers. Through bibliographical and documental and research, the present article has the goal of identify the main modifications in the building and functioning of United Nations' peace operations in the last years Keywords: United Nations, peacekeeping, peace operations, Brahimi Report 1. Introdução Das primeiras missões de observação desarmadas das Nações Unidas, surgiram operações mais complexas e com diferentes objetivos, hoje um dos instrumentos principais para promover a paz, a segurança e o suporte necessários aos países fragilizados por um conflito. Desde a primeira missão em 1948, a ONU realizou 671 operações de peacekeeping, e atualmente existem 16 em curso. A Carta das Nações Unidas não prevê as operações de peacekeeping, mas estas são justificadas pelo artigo 40 da carta e ficam então caracterizadas como uma das “medidas provisórias” ao alcance do Conselho de Segurança para cumprir o principal objetivo da ONU: manter a paz e a segurança internacional. O fim do século XX para as operações de peacekeeping da ONU foi marcado pelo insucesso. Casos como o de Ruanda e Srebrenica levaram a uma queda da credibilidade das Nações Unidas na questão de resolução de conflitos. A fim de identificar as falhas, revisar conceitos e criar propostas eficazes para a projeção futura do peacekeeping, o então Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, pediu a um grupo de especialistas chefiado pelo seu conselheiro Lakhdar Brahimi para que analisassem as operações de peacekeeping das Nações Unidas até o momento. O relatório foi apresentado em 2000 e apresentou recomendações para fortalecer a eficácia das operações e evitar os erros cometidos no passado. As recomendações focam em mudanças políticas, estratégicas e organizacionais, também no lado financeiro das missões. Esse trabalho tem como objetivo mostrar o que foi ou não implementado desse importante relatório e as reformas que o peacekeeping decorreu no início desse século para melhorar o desempenho das operações a fim de evitar os erros fatais do passado. 1 Em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/statistics/factsheet.shtml>. Acesso em: 16 setembro 2012. 3 Nesse sentido, o problema não está somente no assentimento dos Estados-membros, mas também na efetiva implementação das principais propostas. A exigência de pessoal qualificado, recursos financeiros, tecnologias e infraestrutura é um grande desafio pós relatório. Apesar de se descartar a probabilidade de grandes guerras como no século XX, atualmente existem um grande número de conflitos armados pelo mundo principalmente em países onde os direitos humanos são usualmente violados. Estudar as características de uma operação de peacekeeping permite avaliar a funcionalidade e efetividade das missões que devido ao cenário atual podem ser cada vez mais requisitadas. Para o meio acadêmico, este trabalho servirá como base de consulta devido à escassez de publicações nacionais a respeito do tema, sendo uma leitura mais atualizada dos fatos. Percebe-se então a importância do tema em diferentes meios, lembrando também do atrativo pessoal, que vem de leituras e estudos sobre a história da Organização das Nações Unidas e particularmente o trabalho do brasileiro Sérgio Vieira de Mello dentro da organização que me despertou um grande interesse sobre as operações de peacekeeping. O desafio dos peacekeepers de se manterem neutros e a difícil missão de restabelecer a paz diante de um conflito são verdadeiramente intrigantes, por isso a escolha de estudar a história das operações e visualizar uma projeção no futuro. Este trabalho está estruturado em três partes principais elaboradas através do método dedutivo e a pesquisa bibliográfica. A primeira parte pretende descrever, de forma ampla, a definição, evolução e tipos de peacekeeping e as principais operações ao longo da história. O segundo capítulo trata dos antecedentes e do surgimento do Relatório Brahimi e suas recomendações, sendo uma análise documental. O último capítulo pretende identificar as principais alterações na formação e no funcionamento das operações de peacekeeping da ONU após o relatório e nos dias de hoje. 2. Noções introdutórias do peacekeeping: do conceito a um breve histórico A idéia de uma força multinacional agindo diante de um conflito soaria utópica algumas décadas atrás, contudo, hoje as operações de peacekeeping das Nações Unidas fazem parte do topo da agenda da organização. Em 1956, diante da crise no Canal de Suez, surgiu à primeira operação de uma força internacional comandada pelas Nações Unidas, o primeiro protótipo do peacekeeping moderno. Idealizada por Lester B. Pearson, representante do Canadá na ONU, e pelo Secretário-Geral Dag Hammarskjold, 4 4 é parte do conceito da diplomacia preventiva. Segundo Joseph Nye (2000, p. 202): “Na segurança coletiva, se um Estado atravessa uma linha, todos os outros Estados devem unir-se contra ele e fazê-lo recuar. Na diplomacia preventiva, se um Estado atravessa uma linha, as Nações Unidas intervêm e mantém as partes separadas sem declarar quem é que tem a razão”. A idéia das operações de paz está enraizada nas primeiras expressões do multilateralismo do Congresso de Viena (1815) e no princípio da “segurança coletiva” criado com a Liga das Nações (1919)2. Entretanto, foi com as primeirasmissões de observação da Organização das Nações Unidas3 (ONU), que tinham como objetivos principais monitorar o cessar-fogo e reportar a situação em áreas de conflito, sobretudo, compostas por militares desarmados, que as operações de paz foram consolidadas (ONU, 2011)4. A Carta das Nações Unidas não prevê ações usando uma força internacional imparcial e armada para estabilizar situações de conflitos, mas as operações de peacekeeping estão enraizadas no artigo 40 da carta e ficam então caracterizadas como uma das “medidas provisórias” descritas: Cap. VII, art. 40º: A fim de evitar que a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer as recomendações ou decidir a respeito das medidas previstas no Artigo 39, convidar as partes interessadas a que aceitem às medidas provisórias que lhe pareçam necessárias ou aconselháveis. Tais medidas provisórias não prejudicarão os direitos ou pretensões, nem a situação das partes interessadas. O Conselho de Segurança tomará devida nota do não cumprimento dessas medidas.5 A ONU não dispõe de força própria, e depende do aparato militar dos seus membros para desenvolver suas ações. A disponibilidade das forças está descrita no artigo 436, que prevê que “todos os membros das Nações Unidas se comprometem (...) a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e em conformidade com um 2 A Liga ou Sociedade das Nações surgiu no período pós I Guerra Mundial, em 1919, foi criada com o propósito de assegurar a paz, porém não obteve sucesso e sua última reunião aconteceu em abril de 1946. 3 A Organização das Nações Unidas surgiu no momento pós II Guerra Mundial, em 1945, com o objetivo de facilitar a cooperação internacional afim de evitar as tragédias do passado e manter a paz e a ordem mundial. 4 ONU (Org.). Disponível em: < http://www.un.org/en/peacekeeping/operations/early.shtml>. Acesso em: 15. ago. 2012 5 Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012. 6 Idem. 5 acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades (...)”. Os soldados participantes de operação são popularmente conhecidos como “capacetes azuis” devido ao elmo de cor azul que utilizam. As operações de peacekeeping são formalmente autorizadas e recomendadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (salvo exceções)7 através de uma resolução que deve conter seu mandato. Os mandatos determinam os objetivos e as tarefas de uma missão, sua duração e alguns detalhes que variam de acordo com o tipo de operação. Depois de várias mudanças, hoje os mandatos das missões são muito mais complexos. Não é apenas estar entre dois lados em conflito na tentativa de pacificação, hoje se trata de “fazer” e “construir” a paz no durante e no pós guerra (HAHIMÄKI, 2008, p. 73). As Nações Unidas não interferem em um conflito somente para possibilitar um acordo entre as partes, mas sim, possuir mecanismos para auxiliar os países no momento de reconstrução da sua estrutura. O conceito de peacekeeping vai além do âmbito das Nações Unidas, foi englobada por diferentes atores e hoje as acepções em torno dessa prática se diversificaram. Assim como não está presente na Carta das Nações, não existe um conceito claro em qualquer outro documento da instituição. Essa falta de definição oficial leva, muitas vezes, ao uso do termo por alguns Estados fora do âmbito das Nações Unidas para legitimar suas atividades militares. Os autores Bellamy e Williams (2011, p.29), importantes nomes no estudo das operações de paz, dividem as diferentes visões em dois períodos: Vestfaliano e pós- Vestfaliano. Inicialmente as operações de peacekeeping eram uma ferramenta para manter a ordem entre os Estados e facilitar um acordo de paz, baseada no princípio da soberania - introduzido em 1648 com o Tratado de Vestfália - e no consentimento das partes envolvidas. Esse ficou conhecido como peacekeeping tradicional ou de primeira geração e surgiu em um cenário internacional Vestfaliano. Aqueles que se amparam nessa corrente, como por exemplo, Cuba e China, são defensores dos princípios da não 7 “Diante da paralisação do Conselho de Segurança durante a Guerra Fria, a Assembléia Geral aprovou em 1950 a Resolução “Unidos para a paz”. Essa permite a Assembléia prover recomendações se o Conselho de Segurança falhar diante de questões que envolvem ameaças a paz, a segurança e atos de agressão, devido à falta de unanimidade entre os cinco membros permanentes.” (GRAY, 2008, p.259) 6 6 interferência e a não intervenção, principalmente amparados no temor da imposição das grandes potências aos países do “terceiro mundo”. No momento pós Guerra Fria e com o surgimento do fenômeno da globalização, o conceito Vestfaliano foi posto em questão. Surgiram novas guerras, com características distintas das já vistas ao longo da história o que exigia uma adaptação das operações de peacekeeping das Nações Unidas. Para tal reestruturação, era necessário um novo olhar sobre o conceito clássico, o que fez brotar a idéia que os Estados gozavam de completa soberania somente se eles cumprissem de forma plena as responsabilidades para com seus cidadãos, como protegê-los de atrocidades em massa e de um genocídio (BELLAMY E WILLIAMS, 2010, p.37). Seria essa idéia parte da corrente pós-Vestfaliana que sustenta a maioria das operações de peacekeeping contemporâneas. Os problemas internos de um Estado não ficam só limitados à sua fronteira e ganham proporções internacionais, como por exemplo, a questão dos refugiados, exigindo intervenções mais complexas que apresentem elementos necessários à consolidação da paz. Os conceitos de peacekeeping do meio acadêmico não englobam apenas as atividades das Nações Unidas, mas as operações de manutenção da paz no geral. William Durch (2006, p. 17), por exemplo, define de forma breve como um conjunto de esforços militares e civis, multilaterais e internacionalmente autorizados para promover e proteger a transição entre a guerra e a paz. Bellamy e Williams (2010, p.18) são um pouco mais detalhistas, e incluem a fato da existência de pessoal uniformizado que têm os objetivos de prevenir o início de um conflito armado, observar a implementação de um acordo de paz ou cessar-fogo e impor o desejo do Conselho de Segurança para o estabelecimento da paz. As Nações Unidas não desenvolveram um conceito de peacekeeping, entretanto, criaram recentemente um guia de conduta de uma operação de paz, o Capstone Douctrine (2008). Nele, o Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO) não define explicitamente peacekeeping, apenas aponta-a como uma das cinco atividades de paz e segurança da instituição, são elas: Conflict prevention, peacemaking, peacekeeping, peace enforcement e peacebuilding. Baseando-se na definição contida no Relatório Brahimi, o peacekeeping é descrito como uma técnica desenvolvida para 7 preservar a paz em situações frágeis durante a interrupção do conflito, e dar assistência a implementação do acordo negociado pelos peacemakers.8 Figura 1: Processo político e a implementação das operações. (ONU, 2008, p. 19) Assim, podemos concluir que as operações de peacekeeping da ONU são um conjunto de ações práticas não violentas que podem ser aplicadas antes, durante ou depois de um conflito inter ou intra Estados, desenvolvidas em campo por um pessoal militar-civil armado e qualificado. As intervenções devem ser devidamente autorizadas pelo Conselho de Segurança e possuir um mandato objetivo. Cada missãotem seus fins específicos, mas o restabelecimento e manutenção da paz, a proteção dos civis e dos direitos humanos é uma finalidade geral. Desde a primeira operação de peacekeeping, a UNEF I (UN Emergency Force – 1946), os princípios básicos que ditam uma intervenção são: o consentimento das partes, a imparcialidade e o não uso da força. Mesmo com a transformação das operações ao longo da história, esses princípios continuam vigorando e estão descritos no Capstone Douctrine (DPKO, 2008). 8 Tradução livre da acadêmica do: “Peacekeeping is a technique designed to preserve the peace, however fragile, where fighting hás been halted, and to assist in implementing agreements achieved by the peacemakers.” (DPKO, 2008, p. 18) 8 8 O conceito de imparcialidade pode ser confundido algumas vezes e não deve ser entendido como inatividade. Segundo Doyle e Sambanis (2006, p. 12), a imparcialidade quer dizer que as Nações Unidas vão agir sem tomar partido de um dos envolvidos no conflito, mas diante de um comportamento que agride o processo de restabelecimento da paz, os peacekeepers devem operar de forma adequada e penalizar os infratores. Outro fator prático do principio da imparcialidade é que os Estados partes de um conflito não podem fazer parte das missões, tal como os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança não costumam colaborar com o envio de suas tropas a campo, isso evita desconfianças de interesses. O consentimento das partes é um fator crucial para o sucesso das operações diante de conflitos, é esse principio que assegura o respeito à soberania dos Estados. Porém, segundo Paulo da Fontoura (2005, p.97): Nos conflitos interestatais, o consentimento é dado por partes claramente identificáveis, que controlam seus territórios, havendo, portanto, interlocutores para negociar e buscar soluções para questões específicas. Nos conflitos intraestatais, por outro lado, o consentimento é bastante menos estável, na medida em que é difícil identificar interlocutores com capacidade de expressá-lo [...]. Assim, o desafio de se aplicar o princípio diante de conflitos internos levou ao surgimento da idéia do peace enforcement, que é uma ação coerciva diante de uma situação emergencial não exigindo o consentimento de todas as partes envolvidas. Mas além das operações de imposição da paz, o peacekeeping, peacemaking ou peacebuilding exigem o assentimento dos membros. O princípio que dita o não uso da força em operações de paz da ONU, apresenta duas importantes exceções sustentando-se no capitulo VII9 da Carta: em casos de autodefesa ou para defender o mandato de uma operação. Inúmeros casos de violência envolvendo peacekeepers levaram a autorização do uso de armas leves para legítima defesa dos militares, assim como as situações em que podem ser encontradas dentro de um conflito, tornou necessária a exceção do uso da força para a defesa do mandado de uma missão. Nota-se aqui, as ações práticas que distinguem imparcialidade de neutralidade. O Conselho de Segurança concede aos peacekeepers a possibilidade do uso de todos os meios necessários para conter forças (milícias, gangs, etc.) que estejam 9 Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012. 9 interrompendo o progresso político das operações, assistindo as autoridades nacionais a manter a ordem, e protegendo os civis de ameaças físicas de violência e do desrespeito aos direitos humanos. 2.1 Evolução histórica do peacekeeping. Do Império Romano à Liga das Nações, “a idéia de que aqueles com maior poder detinham a responsabilidade de manter a paz e a segurança, pode ser traçada da antiguidade.” (BELLAMY E WILLIAMS, 2010, p.72)10. O Concerto Europeu (1815), por exemplo, desencadeou algumas intervenções militares comandas pelas potências da época – Áustria, Grã-Bretanha, Prússia e Rússia – com a finalidade de preservar a paz na Europa. Porém, visavam na verdade assegurar os seus próprios interesses. Assim como a união entre Rússia, França e Grã-Bretanha (Tratado de Londres, 1827) para defender os cidadãos cristãos diante da perseguição do Império Otomano, o que também visava manter suas esferas de influências. A idéia foi tomando forma para chegar ao conceito de peace operations que temos hoje. Após a criação das Nações Unidas em 1945, a idéia foi tomando forma. Após as missões de observação desarmadas nos últimos anos da década de 40, a UNTSO (UN Truce Supervision Organization) e a UNMOGIP (UM Military Observed Group in India and Pakistan), é considerada a primeira operação de peacekeeping armada das Nações Unidas a UNEF I (First UN Emergency Force). Desde então o conceito foi se adaptando as necessidades do cenário internacional, porém mantendo as bases legais e os princípios já trabalhados anteriormente. As operações de peacekeeping das Nações Unidas geralmente são classificadas de forma cronológica devido a sua evolução de propósitos e complexidade. A forma mais comum de se observar as operações são dividi-las três períodos históricos diferentes, missões clássicas, pós Guerra Fria e as do século XXI. Os estudiosos ainda dividem as operações em gerações diferentes, alguns apontam três gerações, mas podem-se encontrar trabalhos que apontam mais de seis. É interessante pontuar que essa divisão histórica, não impede que uma operação criada no século XXI possa ser classificada como “clássica”, já que isso se dá devido as suas características. 10 Tradução livre da acadêmica do: “The Idea that great powers have special responsibilities for maintaining the peace and security can be traced back to antiquity.” (BELLAMY & WILLIAMS. p. 71, 2011) 10 10 Durante a Guerra Fria surgiu o primeiro protótipo das operações de peacekeeping, a UNEF I (HANHIMÄKI, 2008 p. 75). Em julho de 1956 o presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, nacionalizou o Canal de Suez11 em resposta a decisão dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha em não financiar a construção da barragem de Assuão no sul do Egito. De imediato, os franceses e britânicos viram seus interesses ameaçados e se opuseram a ação de Abdel Nasser. Com a cooperação de Israel, um ataque implodiu em outubro de 1956 e a região de Gaza e Sinai foram ocupadas, instaurando uma crise na região. Com os vetos da França e da Grã-Bretanha, a Assembléia Geral viu-se na responsabilidade de agir - fundada na resolução “Unidos pela paz” – e instaurou a primeira força emergencial das Nações Unidas, a UNEF I, baseada na idéia desenvolvida pelo Secretário-Geral Dag Hammarskjöld12. Seu mandato consistia em: (...) assegurar e supervisar o cessar das hostilidades, incluindo a retiradas as tropas armadas da França, Israel e Reino Unido e, mais além, servir como uma barreira entre as forças egípcias e israelenses fornecendo uma supervisão imparcial do cessar fogo.” (Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unef1manda te.html>. Acesso em: 23 set. 2012.)13 A contribuição militar deixou de fora os cinco membros do Conselho de Segurança a fim de evitar suposições colonialistas. Os gastos com a missão vieram do orçamento geral das Nações Unidas, porém foi criado um fundo especial para a UNEF, aqui, as contribuições financeiras eram voluntárias e ficava livre a ajuda originária dos membros permanentes do Conselho. A intervenção foi estabelecida sem muitas bases, em pouco tempo e sem pessoal qualificado, porém suas características acabaram moldando as futuras operações depaz das Nações Unidas. Aqui marca a primeira geração de operações de paz das Nações Unidas, conhecidas como “tradicionais” ou “clássicas”. 11 O Canal de Suez foi inaugurado em 1869, sua construção foi financiada pela França. O canal liga o mar mediterrâneo ao mar vermelho, e é conhecido como o caminho da Europa à Ásia. Suez era mantido por uma companhia com sócios franceses e britânicos, porém era considerado um espaço de livre passagem. 12 Dag Hammarskjöld desenvolveu o conceito de diplomacia preventiva através da idéia das Nações Unidas como uma terceira parte imparcial em um conflito, que foi publicada no Annual Report de 1960. 13Tradução livre da acadêmica do: “The mandate of the Force was to secure and supervise the cessation of hostilities, including the withdrawal of the armed forces of France, Israel and the United Kingdom from Egyptian territory and, after the withdrawal, to serve as a buffer between the Egyptian and Israeli forces and to provide impartial supervision of the ceasefire.” (Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unef1mandate.html>. Acesso em: 23 set. 2012. 11 Ficaram constituídos os três princípios, já trabalhados anteriormente, recomendados pelo Secretário-Geral Hammarskjöld no seu relatório A/3302, que formam a base das operações de peacekeeping: consentimento, imparcialidade e o mínimo uso da força. Esses, juntos caracterizam essencialmente as intervenções tradicionais (BELLAMY e WILLIAMS, 2010, p. 174). O peacekeeping é um processo de resolução de conflitos direcionado a ambientes já em estado de guerra – normalmente no período entre o cessar-fogo e o tratado de paz - que cria um espaço entre as partes deliberantes para a resolução do conflito. A missão não trás soluções, ela “implementa ou monitora a execução dos arranjos relativos ao controle do conflito (cessar-fogo, separação de forças, etc.)” (FONTOURA, 2005, p.34) enquanto o corpo diplomático busca uma solução pacífica. Os peacekeepers exercem funções como observar, promover ajuda humanitária e sustentar a ordem. Podemos pensar como sendo o segundo momento de um processo de resolução de conflito estando entre a promoção (peacemaking) e a solidificação da paz (peacebuilding). Figura 2: A “divina trindade” do peacekeeping tradicional. (Bellamy e Williams, 2011, p. 174) Durante a Guerra Fria as Nações Unidas administraram 14 operações com resultados satisfatórios, a maioria delas estava conectada a onda de descolonização, uma das maiores mudanças estruturais do cenário internacional, e foram majoritariamente voltadas a litígios interestados. Porém missões com as mesmas características podem ser vistas nos dias atuais, como por exemplo, a recente UNMEE (UN Mission in Ethiopia and Etirea) que ocorreu de 2000 a 2008 na Etiópia e Eritreia. Peacekeeping Tradicional Consenso Imparcialidade Minimo uso da força 12 12 Nesse mesmo momento histórico, se fez surgir outro tipo de peacekeeping: o peace enforcement. Alguns autores podem caracterizá-lo como a quarta geração, já outros como segunda geração, o que causa uma enorme controvérsia, já que esse tipo de operação surgiu em 1960 com a ONUC (UN Operation in the Congo). Aqui, vamos adequá-la como a segunda geração das operações de paz das Nações Unidas. A ONUC representou um marco na história nas Nações Unidas, não só por ser a primeira missão de peace enforcement, mas também pelo seu nível de complexidade que exigia um enorme engajamento da organização. Com o movimento da globalização da soberania (BELLAMY E WILLIAMS, 2010, p. 85) a República do Congo declarou sua independência da Bélgica, porém um estado de caos e desordem se instaurou no novo país. A Bélgica, sem qualquer consentimento, enviou suas tropas ao Congo. A rápida disseminação do caos e o apelo do governo congolês exigiram das Nações Unidas uma quebra de seus princípios instaurados com a UNEF. A primeira operação de grande escala – 20.000 militares – tinha como mandato inicial o afastamento das tropas belgas e a manutenção da lei e da ordem (CS, resolução 143, 1960), porém se estendeu a promoção da assistência necessária ao governo do Congo para manter a sua integridade territorial, a prevenção do desencadeamento de uma guerra civil e a remoção de pessoal militar estrangeiro que não estivesse sob o comando da ONU (CS, resolução 161, 1961). A complexidade da situação no Congo levou o Conselho de Segurança a autorizar o uso da força quando necessário através da resolução 169 de 1961. A ONUC foi uma missão controversa, pois se viu a necessidade da interferência em assuntos internos de um Estado14 para seu sucesso. As Nações Unidas sustentou-se no Capítulo VII da Carta, mais precisamente no artigo 39º15, através da idéia que “os perigos da guerra civil constituem uma ameaça à paz e a segurança” mundial. (GRAY, 2008, p.263), fazendo surgir o peace enforcement. Apesar de cumprir seu mandato, a missão gerou uma crise política e financeira que levou a uma queda drástica no número 14 Cap. I, art. 2º, p. 7: “Nenhuma disposição da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado, ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do capítulo VII.” Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf>. Acesso em: 01 out. 2012. 15 Cap. VII, art. 39º: “O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os artigos 41º e 42º, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.” Idem. 13 de operações nos anos seguintes. O período foi marcado também pela trágica morte do Secretário-Geral Dag Hammarskjöld em um acidente aéreo enquanto sobrevoava a região do conflito em setembro de 1961. O peace enforcement seria o aparato militar das Nações Unidas, ele une a capacidade de usar a força e ainda sim mantém os princípios da organização. A dificuldade de definir as partes em um conflito interno torna a necessidade de agir com ou sem consentimento de todos os envolvidos muitas vezes necessário não só para conter uma guerra civil, mas também garantir a credibilidade das Nações Unidas no cenário mundial. A imposição da paz é conceituada por Paulo da Fontoura (2005, p. 35) como: (...) às ações adotadas ao abrigo do capítulo VII da Carta, incluindo o uso de força armada para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais em situações nas quais o CSNU (Conselho de Segurança das Nações Unidas) tenha determinado a existência de uma ameaça à paz. Após o fim da ONUC em 1964 até o término da Guerra Fria, as operações de peacekeeping sofreram um declínio, apenas cinco foram autorizadas e essa queda se deu pela falta de consenso entre os membros do Conselho, principalmente entre os Estados Unidos e a União Soviética. A crise na credibilidade das operações também refletiu no apoio financeiro dos Estados-membros, que decaiu nos últimos anos da Guerra Fria. Com o fim da guerra fria, mais uma vez o cenário mudava, surgiam novos problemas que demandavam novas respostas. O estouro das guerras civis e dos conflitos intraestado trouxe consequências além das fronteiras desses Estados. A propagação de doenças, problemas humanitários, fluxo de refugiados, aumento do tráfico de armas e o fortalecimento de gruposterroristas e criminosos, são alguns dos problemas que acompanham os conflitos internos (PARIS, 200 p. 405). As operações de paz das Nações Unidas se tornam uma ferramenta essencial para o cessar dos conflitos e um novo peacekeeping surge para consolidar a paz nos Estados falidos. A partir da necessidade de operações mais complexas e multidimensionais, nasce o peacebuilding. A demanda do novo e do tradicional mecanismo da ONU cresce e só entre 1988 e 1993, 20 novas missões são instauradas, permitidas pela volta do consenso no Conselho de Segurança. Dentre elas, a operação na Angola (UNAVEM I/II), Camboja (UNTAC), El Salvador (ONUSAL), Moçambique (ONUMOZ) e 14 14 Namíbia (UNTAG), que já desempenhavam funções mais complexas, como a organizações de eleições democráticas ou a administração temporária do país (UNTAC). As Nações Unidas passam a trabalhar na causa originária dos conflitos a fim de excluir a possibilidade de reincidir, criar um ambiente de paz duradoura e fortalecer a capacidade do Estado. Segundo Paulo Foradori (2007, p. 183), o peacebuilding trabalha em diferentes dimensões de uma sociedade que vão da zona política e econômica à assistência psicológica do individuo. Problemas como a corrupção e a imperfeição do sistema de Direito, são dois dos principais pontos a serem tratados em um Estado falido, assim como a reintegração dos ex-combatentes a sociedade civil e o fortalecimento dos direitos humanos. Essa terceira geração é marcada pelo desenvolvimento de diferentes projetos voltados a reestruturação da população. Para chegar ao seu objetivo, a ONU prevê a necessidade do envolvimento de outros atores internacionais, como organizações regionais, sub-regionais e não governamentais. A técnica do peacebuilding é o mecanismo mais avançado das Nações Unidas. O DPKO (2008, p. 18) descreve a prática como um processo complexo e a longo prazo que “tem medidas endereçadas a funções da sociedade e estatais, e procura reforçar a capacidade do Estado de eficácia e legitimidade das suas funções.”16 Sua complexidade exige maior comprometimento dos Estados-membros, tanto financeiro quanto na contribuição de pessoal. No inicio dos anos 90 já podemos notar missões bem sucedidas da ONU, com destaque para a atuação da organização no Camboja. Com a UNAMIC (UN Advanced Mission in Cambodia) e a complementar UNTAC (UM Transitional Authority in Cambodia), as Nações Unidas adentravam em um ambiente duramente hostil que vivia há mais de duas décadas em guerra civil. As missões tinham como objetivo a implementação do acordo de paz assinado em Paris (1991), a UNAMIC monitoraria o cessar-fogo enquanto a UNTAC era estabelecida. Uma autoridade transitória foi constituída com o consentimento das quatro facções envolvidas no conflito e além da administração do país e da manutenção da segurança, o mandado previa a organização de uma eleição democrática e o repatriamento dos refugiados. 16 Tradução livre da acadêmica do: “Peacebuilding measures address core issues that effect the functioning of society and the State, and seek to enhance the capacity of the State to effectively and legitimately carry out its core functions.” (DPKO, 2008, p.18) 15 Ao atingir um ponto multidimensional, as Nações Unidas se vê persuadida a adentrar diferentes e ousados cenários, porém, sem uma estrutura institucional bem construída, o peacekeeping viveu suas três grandes falhas históricas no mesmo período em que concluiu importantes missões de sucesso. No início do século XXI, a credibilidade das Nações Unidades começou a ser recuperada, principalmente com UNTAET (UN Transitional Administration in East Timor) que auxiliou o Timor Leste no seu processo de independência e é, umas das operações mais lembradas da organização. Os anos 90 foram um momento intenso para a comunidade internacional, entre acertos e erros, é chamado pelas próprias Nações Unidas como um “período de reavaliação”. 3. O Relatório Brahimi: a necessidade da reavaliação dos mecanismos das Nações Unidas A crise de competência do peacekeeping nos anos 90 clamava por mudanças na formação, condução e financiamento das operações de paz da ONU. Assim, o Secretário Geral das Nações Unidas na época, Kofi Annan, nomeou um painel com o objetivo de identificar os pontos fracos das Nações Unidas e avaliá-los, a fim de fornecer recomendações práticas para corrigir tais falhas (DURCH, 2003, p. 5). O painel, The Panel on United Nations Peace Operations, foi instaurado em março de 2000 presidido pelo ministro das relações exteriores da Argélia, Lakhdar Brahimi e mais nove membros, militares e não militares, especialistas em peacekeeping. A pesquisa foi gerida por William Durch, diretor de estudos sobre as operações de paz no Instituto Stimson de Washington. O objeto de estudos eram as três grandes falhas vividas pela organização na década que se passara. O que viria a ser a primeira grande falência das ações de peacekeeping iniciou-se em 1991 com o estopim de uma guerra civil na Somália. Em 1992, a UNOSOM I (UN Operation in Somalia I) foi criada para monitorar o cessar-fogo na região, a fim de proteger e fornecer recursos à população civil. A situação de caos não cessou com a presença das Nações Unidas, e em 1993 os Estados Unidos oferecem assistência a ONU e se instaura uma nova operação: a UNOSOM II (United Nations Operations in Somalia II). Ainda que com a presença dos peacekeepers intensificada, o estado continua a se agravar e o Conselho de Segurança então autoriza ações militares e a punição daqueles envolvidos em ataques armados. Inicia-se a partir desse momento, um conflito entre as Nações Unidas e as facções na Somália. Com o descontrole da situação, a organização 16 16 perde o apoio das grandes potências e acaba sendo incapaz de cumprir o mandato da UNOSOM II onde, no total, morreram 154 membros da operação. Também em 1991, iniciara um conflito étnico e religioso com a dissolução da Iugoslávia, que levaria ao segundo momento trágico das operações de paz das Nações Unidas. O mandato da UNPROFOR (UN Protection Force) tinha como objetivo principal a segurança da população através da delimitação de áreas (CS, resolução 743, 1992). As cidades que mais sofriam com as ações militares, a fome ou a falta de atendimento médico, ficaram estabelecidas como “áreas seguras” onde não era permitido o sobrevôo, a fim de evitar ataques aéreos que atingissem civis. Porém, o estabelecimento das zonas não evitou um ataque aéreo à cidade de Srebrenica que levou ao massacre de oito mil mulçumanos. Mais uma vez e em pouco tempo, as Nações Unidas se via incapaz de restabelecer a paz e a ordem. Talvez a pior situação enfrentada pela ONU, tenha sido em meio ao conflito étnico Hutu-Tutsi, em Ruanda e seu vizinho Uganda. A missão de paz instaurada em 1993 após o apelo dos dois governos, a UNAMIR (UN Assistance Mission for Rwanda), objetivava a implementação do acordo de paz já assinado pelas partes no mesmo ano. Porém, no ano seguinte quando o presidente de Ruanda Habyarimana sofre um acidente aéreo duvidoso, a situação se agrava e a operação de peacekeeping instaurada não foi capaz de barrar o genocídio perpetrado pelo domínio Hutu. O massacre resultou em mais de um milhão de mortos, entre eles Tutsis e Hutus que se opunham contra o domínio. Apresentado oficialmente em setembro de 2000 na Cúpula do Milênio, seu documento final ficou conhecido como “Relatório Brahimi”. Contém diferentes recomendações divididas em quatros áreas segundo Bellamy e Willians (2011, p.129): 1) Tomada de decisões na sede da ONU; 2) Mandatoe recursos; 3) Rapidez e efetividade de realização; 4) Eficácia de implementação das forças. Trabalhando desde o planejamento das missões até o recrutamento de pessoal e recursos, formando um total de 20 principais recomendações. Sua primeira recomendação foca na importância da prevenção de conflitos. A prevenção é preferível tanto àqueles que sofrerão com uma guerra, quanto para a comunidade internacional, por ser menos custoso que um operação de peacekeeping mais complexa (ONU, 2000, p. 5). Os estímulos ao desenvolvimento econômico e os direitos humanos, são vistos como uma forma de prevenção em longo prazo, fazendo apelo ao apoio de outras organizações e a atores não estatais. O relatório enfatiza a 17 importância de mais iniciativas do Secretário Geral como idealizador de missões de bons ofícios, conhecidas como fact-finding, destinadas as aéreas de tensões. A prática de extremo valor para a consolidação do trabalho dos peacekeepers, o peacebuilding, ganha importantes recomendações. O fortalecimento dos direitos humanos é considerado pelo Painel como essencial ao sucesso das operações, tal como o reforço do Estado de Direito. O desarmamento, a desmobilização e a reintegração social devem ser praticados mutuamente e logo no início do estabelecimento de uma missão, esses três elementos reduzem a possibilidade de retomada dos conflitos. O Painel também recomenda que o representante do Secretário-Geral que liderar uma operação de peacebuilding possa usufruir de parte do orçamento para estabelecer projetos de impacto imediato. Por último, recomenda que a capacidade de desenvolver missões seja fortalecida nas instituições permanentes das Nações Unidas, como por exemplo, O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e o DPA (Departamento de Assuntos Políticos). No âmbito da doutrina e estratégia do peacekeeping, o relatório recomenda que os capacetes azuis devam ser aptos de exercer o mandado das missões profissionalmente, sendo capazes de se autodefender e proteger outros componentes das operações (relatório, 2000, p. 9). O relatório enfatiza a importância dos três princípios do peacekeeping, consenso, imparcialidade e uso mínimo da força, porém existe a necessidade de serem adaptados para as situações vividas nos cenários atuais, que são consideradas mais complexas em relação às vividas no surgimento das atividades de peacekeeping. O painel deixa claro que imparcialidade não significa neutralidade ou tratamento igualitário das partes e o uso da força deve ser claramente autorizado nos mandatos das operações. A proteção dos civis passa a ser um ponto ativo de uma missão: “Peacekeepers – tropas ou policias – que testemunham a violência contras civis devem estar presumidamente autorizados a controlar tais situações, através dos meios que possuem, apoiados nos princípios básicos das Nações Unidas” (ONU, 2000, p. 11)17. Intensificar a relação da organização com a população local deve ser feita em parceria com organizações regionais ou sub-regionais, porém o painel não aprofunda tal recomendação. 17 Tradução livre da acadêmica do: “Peacekeepers — troops or police — who witness violence against civilians should be presumed to be authorized to stop it, within their means, in support of basic United Nations principles.” (ONU, 2000, p. 11) 18 18 Em relação aos mandatos, fica explícita a necessidade de clareza para que não haja ambiguidades na interpretação. A cadeia de comando e as unidades devem ser bem definidas, diminuindo falhas de comprometimento e assegurando uma melhor interpretação do mandato, principalmente ao que se refere ao uso da força. Uma missão, devidamente autorizada através de uma resolução, deve ser posta em prática somente quando o Secretário-Geral confirmar a disponibilização de recursos e pessoal necessários para exercer a mesma, sendo considerada um rascunho até então. A credibilidade e aplicabilidade de uma resolução ficam submetidas às informações que o Conselho de Segurança tem do conflito em vigor, em relação a isso o relatório deixa claro que “o Secretariado necessita expor ao Conselho de Segurança o que deve ser dito, e não aquilo que eles desejam ouvir” (ONU, 2000, p. 12)18. Para que o mandato de uma missão atenda as devidas necessidades da região em conflito, é indispensável que a organização esteja munida de informações a respeito da situação em um país. A brecha na rede de troca de informações entre os departamentos de paz e segurança das Nações Unidas é, muitas vezes, um empecilho ao sucesso de uma operação. Segundo Bellamy e Williams (2011, p. 129): “A incapacidade das Nações Unidas de evitar o genocídio em Ruanda, foi causada em parte pelo colapso na comunicação entra os peacekeepers em campo e aqueles que tomavam as decisões na sede em Nova Iorque.”19 O relatório recomenda a criação de um sistema de informação, o EISAS (ECPS Information and Strategic Analysis Secretariat) para integrar o Executive Committee on Peace and Security (ECPS) e informar devidamente o DPKO (Departament for Peacekeeping Operations) e o DPA (Departament of Political Affairs), revolucionando a maneira como a organização acumula informações e analisa situações (ONU, 2000, p. 13). A última recomendação de caráter doutrinário é dirigida as operações que progridem a uma administração transitória. Além dos objetivos tradicionais dessas missões, o Relatório Brahimi (ONU, 2000, p. 14) recomenda reconstruir a sociedade civil e seus elementos, promovendo os direitos humanos, e ainda avaliar a viabilidade de um código criminal provisório para estabelecer a ordem e as leis. 18 Tradução livre da acadêmica do: “The Secretariat must tell the Security Council what it needs to knows, not what it wants to hear.” (ONU, 2000, p. 12) 19 Tradução livre da acadêmica do: “ “The UM failure to stop the genocide in Rwanda was caused in part by a breakdown in communications between the peacekeepers in the Field and the decision-makers in New York.” (BELLAMY e WILLIAMS, 2011, p. 129) 19 Em um segundo momento, o relatório trabalha com capacidade das Nações Unidas em implantar rapidamente uma missão, porém, fica claro o fato que a rápida formação de uma operação de peacekeeping não determinará o seu sucesso se não dispor de pessoal e equipamentos qualificados. É importante ressaltar que a organização não dispõe de um exército próprio, preparado especificamente para executar suas tarefas seguindo os princípios da ONU o que se torna uma desvantagem diante de situações que necessitam uma resposta rápida ou imediata, principalmente no período crucial do cessar-fogo. A fim de garantir o sucesso de uma missão e o tempo necessário ao Secretário-Geral, o relatório (ONU, 2000, p. 16) sugere o estabelecimento de prazos: 30 dias após a adoção da resolução do Conselho para operações “tradicionais” e 90 dias para situações mais complexas. A capacidade de uma operação fica dependente de uma liderança efetiva e dinâmica, não só em relação ao representante do Secretário-Geral, mas a outros comandos, como o das forças ou da polícia. É importante que essas lideranças sejam estabelecidas o mais cedo possível e participem do processo de planejamento das missões, e que a nacionalidade dos mesmos reflita a sensibilidade política das partes conflitantes. Para agilizar a escolha das lideranças, o Secretário-Geral deve estabelecer uma lista de possíveis nomes a exercer tais postos em acordo com o país de demais Estados. Em relação ao pessoal militar e a policia civil, o relatório ressalta a necessidade de um pessoaldevidamente treinado para exercer sua função em uma operação das Nações Unidas, estando cientes dos princípios da organização. Em torno de 100 militares e 100 policiais qualificados ficariam catalogados em uma lista, facilitando a implementação rápida de uma operação. Tudo deve ser feito através da United Nations Stand-by Arrangements System, a UNSAS, um banco de dados da organização, que necessita ser aprimorado. O painel ainda recomenda que o Secretário-Geral deva poder enviar times especializados para averiguar possíveis tropas que farão parte de uma missão, comprovando se as mesma tem a capacidade de exercer suas funções em campo. As recomendações são estendidas a escolha de especialistas em outras aéreas, repetindo a necessidade de pré-seleção de candidatos qualificados a exercer suas funções em uma missão das Nações Unidas, através de uma base on-line de nomes podendo incluir voluntários da organização. O painel (ONU, 200, p. 24) enfatiza a importância da continuidade entre os níveis mais altos de gerenciamento, os médios e 20 20 seniors, oferecendo melhores condições de serviço atraindo a permanência dos mesmos. A continuidade de profissionais em campo gera maior especialização e experiência. Existe uma grande dificuldade em recrutar pessoal qualificado e as devidas ações devem ser tomadas a fim de solucionar esse déficit. As últimas recomendações voltadas à capacidade de implementação de uma operação, visão a eficácia da informação pública e a estrutura logística. Quanto ao suporte logístico, deve haver uma reformulação do procedimento necessário para promover equipamentos a uma operação, o mesmo é lento e burocrático. Um processo de requisição de material ou serviço pode levar em torno de vinte a trinta semanas para ser deferido, o que se torna inviável diante da urgência que as missões de campo acabam enfrentando. O relatório (ONU, 2000, p. 28) recomenda manter ao menos cinco kits para a iniciação de uma missão e estreitar as etapas de aquisição de equipamentos e serviços. O painel ressalta também as questões financeiras, recomendando aumentar a capacidade das lideranças em campo para adquirir os equipamentos e serviços necessários (de duzentos mil para um milhão de dólares) e dando o poder ao Secretário- Geral a utilizar cinquenta milhões do fundo reservado ao peacekeeping antes do estabelecimento de uma operação, assegurando peças chaves para a instauração da mesma. Os recursos e a estrutura de suporte ao peacekeeping na sede das Nações Unidas é a base para o seguinte conjunto de recomendações do relatório. As mudanças devem ser feitas principalmente dentro do DPKO, aumentando o nível dos funcionários, o número e os recursos destinados a eles. Para o relatório (ONU, 2000, p. 34) o suporte as operações em campo de peacekeeping deve ser a atividade principal da organização na sua sede. O painel vê a importância de um ponto central de consulta, onde questões de diferentes segmentos podem ser feitas. O que leva a próxima recomendação: a criação de um corpo integrado de funcionários, o IMTF (Integrated Mission Task Force). O IMTF seria um representação de diferentes especialistas que compõe uma missão complexa, militar, direitos humanos, assistência eleitoral, analise política, refugiado, entre outros, sendo um único ponto de consulta. Sua composição seria formada por funcionários de diferentes departamentos e agências, como o DPKO, DPA e OCHA (UN Office for the Coordinator of Humanitarian Affairs). O departamento criado em 1992, DPKO, foi um marco na história da estratégia de peacekeeping, porém mudanças estruturais no devem ser feitas para fortalecer a 21 capacidade da organização em sustentar operações de peacekeeping, assim como no DPA (Departament of Political Afairs) e no Alto Comissariado para os Direitos Humanos (Office of the UN Hight Commissioner for Human Rights). As divisões devem sofrer reformas, como o treinamento de pessoal e funcionários experientes em algumas áreas. É importante que a experiência daqueles que já trabalharam em uma operação de paz, contribua para a formulação de estratégias de uma futura. O painel também recomenda (ONU, 2000, 41) a criação de uma unidade de apoio ao peacebuilding dentro do DPA e um maior envolvimento do Alto Comissariado para os Direitos Humanos no planejamento das operações. O último leque de recomendações do Relatório Brahimi, gira em torno do uso da tecnologia de informação para garantir a maior efetividade de uma operação de peacekeeping das Nações Unidas. O painel (ONU, 2000, p. 44) enfatiza a importância que uma rede de informações aprimorada gera tanto a uma missão quanto a própria organização, sendo necessária uma melhor utilização dessa ferramenta em prol da paz. As Operações de peacekeeping mais complexas, são compostas por vários atores, como: agências, fundos, organizações regionais, organizações não governamentais, entre outros, sendo assim, a recomendação é um centro responsável pela estratégia voltada à tecnologia da informação em comum a esses diferentes atores de uma missão. Recomenda-se uma melhor utilização do serviço intranet da organização e uma transação com um serviço extranet, e um maior uso de sistemas de informação geográfica (GIS) que consiste na criação de mapas com informações operacionais e dados da aérea. E, finalmente, o relatório foca na promoção da imagem da organização através da informação pública por meio de um web site atualizado constantemente e cooperadamente com múltiplos departamentos. As falhas vividas pelas Nações Unidas não são responsabilidade de apenas um ator, mas sim do conjunto que integra todo o processo de uma operação de paz. O relatório deixa claro essas diferentes carências apresentando sólidas recomendações direcionadas aos Estados-membros e ao Secretariado da ONU que detém o poder de reforma. Sem mudanças institucionais significativas, o aumento do apoio financeiro e uma renovação do compromisso dos Estados- membros, as Nações Unidas não serão capazes de executar as tarefas delicadas do peacekeeping e peacebuilding que serão 22 22 delegadas aos Estados-membros nos próximos meses e anos (ONU, 2000, p. 1).20 O próprio painel sinaliza o desafio de perpetrar suas recomendações, assim como o Secretário-Geral da época, Kofi Annan. Em outubro após o lançamento do relatório, Annan apresenta uma proposta de implementação das recomendações, com a idéia de facilitar as ações da Assembléia General fornecendo mais detalhes a algumas ações que o mesmo considerava de suma importância. O Secretário exerceu um ativo papel na promoção da reforma das atividades de peacekeeping e sua projeção como principal atividade da instituição. O Relatório Brahimi marca um período importante de repensamento das ações de paz e segurança da Organização das Nações Unidas. As recomendações foram vistas positivamente pela maioria dos membros, porém criticadas por outros que argumentam principalmente em relação à falta de profundidade que algumas indicações atingem. Segundo Bellamy e Williams (2011, p. 136), o painel deveria trabalhar mais a fundo a relação entra a ONU, as organizações regionais e outros atores e organizações. Tais déficits foram trabalhados somente em 2009 com o documento chamado A News Partnership Agenda: Charting a New Horizon for UN Peacekeeping, que foca na renovação das parcerias internas (dentro da própria ONU) e externas (organizações regionais ou atores bilaterais) a fim de estreitar as relações e desenvolver as atividades de peacekeeping cada vez mais eficazes. 4. As mudanças nas operações após o relatório: Século XXI. O início do séculoXXI representou um período de renascimento das operações de peacekeeping das Nações Unidas, não só através do processo de repensamento sugerido pelo Relatório Brahimi, mas também pelo crescimento do interesse dos Estados em questões humanitárias e a parceria da ONU com outras organizações regionais ou internacionais. Porém, no ano de 2001 após o onze de setembro, algumas barreiras políticas causadas pelos Estados Unidos refletiram nas decisões voltadas ao peacekeeping, a criação do Tribunal Internacional Penal e a implementação das políticas chamadas de “Guerra ao Terror” do então presidente norte-americano George W. Bush 20 Tradução livre da academica do: “Without significant institutional change, increased financial support, and renewed commitment on the part of Member States, the United Nations will not be capable of executing the critical peacekeeping and peace-building tasks that the Member States assign it in coming months and years.” (ONU, 2000, p. 1) 23 (Bellamy e William, p. 137). Os EUA, o maior contribuinte financeiro às operações de paz, foi oposto à concepção do tribunal o que levou o mesmo a reduzir seu apoio às missões. Já a crise causada pela invasão do Iraque, além de distanciar ainda mais os EUA das ONU, levou a um questionamento da influência da organização perante as políticas das potências mundiais. Apesar dessa crise entre as Nações Unidas e os Estados Unidos, entre 2001 e 2004, cinco missões complexas de suma importância foram implantadas: a UNMISET (UN Mission of Support in East Timor), a UNMIL (UN Mission in Liberia), a UNUCI (UN Operation in Côte d’Ivoire), a MINUSTAH (UN Stabilization Mission in Haiti) e a ONUB (UN Operation in Burundi). Nessas missões existia uma lacuna entre as contribuições dos países desenvolvidos e os subdesenvolvidos, em dezembro de 2004 existiam mais de oito mil policiais e soldados de Bangladesh e apenas quatrocentos dos Estados Unidos (ONU, 2004). E mesmo com a conscientização das questões humanitárias, havia dúvidas quanto ao futuro das operações de peacekeeping, sua efetividade e atividades a serem desenvolvidas. Nesse contexto do início do século, a ONU começou seu processo gradual e delicado de reformulação, baseando-se nas recomendações do Relatório Brahimi e do Sercretário-Geral. Em relação à tomada de decisões não houve grandes mudanças, como já era de se esperar, porém outros pontos progrediram positivamente como a rapidez para implementar uma missão, a capacidade institucional da organização e a estrutura de suporte. Dentre as reformas doutrinarias e estratégicas das operações de paz das Nações Unidas, podemos destacar a criação do documento conhecido como Capstone Douctrine (ONU, 2008), um guia de princípios e diretrizes voltados aqueles que executam atividades de peacekeeping tanto em campo quanto nas sedes. É importante notar que o Capstone Douctrine, na verdade é intitulado United Nations Peacekeeping Operations Principles and Guidelines, em razão da relutância de alguns Estados-membros em estabelecer um documento conceituado como doutrina. O guia desenvolvido pelo DPKO e o DFS (Department of Field Support) ressalta, mais uma vez, os três princípios básicos das operações de paz e adiciona mais três fatores essenciais ao sucesso das missões: a legitimidade internacional, a credibilidade e a parceria nacional e local (ONU, 2008, p. 36). O estreitamento com instituições locais permite aos peceakeepers entender melhor o contexto da situação e os anseios dos nacionais. 24 24 Abordagens eficazes de parceria nacional e local, não só reforçam a legitimidade das operações e o apoio a implementação do seu mandato, como também ajuda a garantir a sustentabilidade de qualquer capacidade nacional assim que uma operação de paz tenha sido retirada. (ONU, 2008, p. 39)21 A regionalização do peacekeeping tem sido um tema muito debatido na aérea nos últimos anos. Tal fenômeno não abriga apenas a colaboração entre ONU e organizações, mas também parcerias bilaterais com Estados individuais e atores privados (BELLAMY e WILLIAMS, 2010, p. 301). Os atores que mais têm colaborado com operações de paz são a União Européia, a União Africana e a Organização do Tratado do Atlântico Norte. Atualmente a maior missão em atividade acontece em Darfur (UNAMID) em parceria com a União Africana. O processo de regionalização está diretamente ligado ao capítulo VIII22 da Carta de Nações Unidas, que estimula os acordos regionais, e a não existência de um exército armado diretamente subordinado a organização. Apesar de suprir algumas lacunas da ONU, a regionalização do peceakeeping delibera alguns pontos críticos. A parceria regional pode ser má utilizada para estabelecer intervenções com propósitos unilaterais, autoriza entes não pertencentes às Nações Unidas a usarem a força, as organizações nem sempre compartilham das mesmas doutrinas e princípios e o papel da ONU na segurança e manutenção da paz global pode ser levado a ser visto como secundário. As Nações Unidas exercem um papel primário no cenário internacional, sendo os outros atores envolvidos nas operações de peacekeeping submetidos aos seus princípios, para que haja uma consciência coletiva da idéia das missões de paz fortalecendo o apoio internacional a implementação das mesmas. Ainda em relação ao Capstone Douctrine, podemos notar que o documento é, sobretudo, voltado às operações de caráter multidimensional. Ele estabelece importantes pontos de fundação de uma missão, a fim de dinamizar seu processo. O documento trabalha com importantes atividades desenvolvidas no peacebuilding tal como 21 Tradução livre da acadêmica do: “Effective approaches to national and local ownership not only reinforce the perceived legitimacy of the operation and support mandate implementation, they also help to ensure the sustainability of any national capacity once the peacekeeping operation has been withdrawn.” (ONU, 2008, p. 39) 22 “Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou de entidades regionais, destinadas a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que forem suscetíveis de uma ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais e suas atividades, sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas.” (Carta das Nações Unidas, 1945) 25 recomendado no Relatório Brahimi (ONU, 2008, p. 26), o desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) de combatentes e proteção e promoção dos Direitos Humanos. Os elementos de DDR estabelecidos pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 2005 foram o desarmamento, através do recolhimento das armas e munições, a desmobilização de combatentes de grupos ou forças armadas, o processo de reinserção e a reintegração a sociedade. O conceito é readquirir o status de cidadão dos ex- combatentes inserindo-os novamente nas atividades sociais e econômicas da comunidade promovendo a educação, formação e o emprego (ONU, 2005). Projetos voltados à construção civil, por exemplo, são muito aplicados não só para fornecer um trabalho temporário aos ex-combatentes, mas também auxiliar na reconstrução das cidades atingidas por conflitos armados. O DDR já vem sendo aplicado através dos mandatos das missões desde 1999, ganhando força no século atual. Operações recentes no Sudão, Costa do Marfim, Haiti e Burundi aplicaram as atividades de DDR mais profundamente, obtendo um retorno positivo da comunidade no pós-conflito. O DPKO conta com um setor voltado a essas atividades, ele desenvolve treinamento de pessoal e instituições parceirasvisando o avanço dos trabalhos em campo. É essencial que as operações de peacekeeping devam ser implementadas com programas que visem o pós-guerra e a sustentação da paz em longo prazo, reintegrando a sociedade, as leis e o sistema de governo, só dentro desse ambiente uma operação será de fato efetiva. Em relação à recomendação do Relatório Brahimi em estabelecer prazos ao desenvolvimento de operações complexa e tradicionais, o Capstone Douctrine, apenas estabelece uma meta especulativa (ONU, 2008, p. 63). Entretanto, com esse documento as Nações Unidas melhora a agilidade de implementação do peacekeeping, introduzindo de forma mais clara suas propostas a prática, guiando tanto aqueles que já exercem funções e novos colaboradores das missões de paz. Em conjunto com treinamentos de pessoal, a carência de pessoal qualificado ganha um importante elemento para seu enfraquecimento. Dentre as outras recomendações do Relatório Brahimi voltadas a questões estratégicas, o uso de missões fact-finding para a prevenção de conflitos se intensificou nos anos que se seguiram e as operações de observação foram cada vez mais usadas, gerando um melhor acúmulo de informações. A organização também passou a ser mais cautelosa em suas ações, o diálogo entre o Secretariado, a Assembléia Geral e o 26 26 Conselho de Segurança passou a ser mais franco em relação a sua capacidade, como mostra sua opção em não se envolver nos conflitos no Afeganistão (DURCH et al, 2003, p. 130). O DPA é o departamento responsável pela diplomacia e a mediação, direcionados a prevenção de conflitos e a operações de peacemaking. As atividades voltadas à prevenção ganham força em 2001, como recomendado pelo relatório, através de uma resolução do Conselho de Segurança que estabelece as ações preventivas como prioridade. Às atividades diplomáticas para prevenção de conflitos inclui-se o combate à pobreza e a desigualdade social, desenvolvimento econômico, desarmamento, consolidação do Estado de direito e dos direitos humanos, entre outros fatores. As falhas enfrentadas no passado ligadas a mandatos ambíguos e vagos podem ser associadas principalmente a falta de consenso entre os membros permanentes do Conselho se Segurança. A adoção em 2000 de uma resolução (Resolução 1327) voltada a clareza dos mandatos e a maior troca de informações entre os departamentos tornaram as resoluções mais claras e específicas. Porém, na prática, as missões continuam a ser implementadas sem a garantia de que os recursos necessários estejam devidamente ao alcance da mesma e o problema da falta de consenso entre os membros do Conselho continua um impasse as ações da organização. O Departamento de Peacekeeping da Nações Unidas (DPKO) sofreu intensas reformas, para atender a necessidade de rápidas e efetivas missões, aprimorando suas estratégias e seus recursos humanos. A seção do departamento nomeada Peacekeeping Best Pratices Section, passa a “promover um ambiente em que o conhecimento adquirido a partir das experiências do peacekeeping é captado, compartilhado e adaptado a atividades futuras”23. A divisão possui mecanismos online de trocas de informações e desenvolve materiais informativos sobre diferentes aéreas e problemas sociais, como a AIDS e a proteção da criança. O DPKO também foi dividido em dois, dando vida ao DFS (Department of Field Support) a fim de aprimorar o suporte direto ao pessoal em campo. O novo departamento oferece um suporte logístico e administrativo mais especifico as operações em campo, fornecendo auxilio financeiro, de recursos humanos, de informação e tecnologia, na comunicação e logística (ONU, 2008, p. 75). 23 Tradução livre da acadêmica do: “Promoting an environment in which knowledge gained from peacekeeping experiences is captured, shared, and applied to future activities.” ONU. Disponível em: < http://peacekeepingresourcehub.unlb.org/PBPS/Pages/Public/AboutUsFirst.aspx>. Acesso em: 12 nov. 2012. 27 Foi criado, também em 2005, um comitê formado por alguns membros selecionados voltado as atividades no pós-conflito, a United Nations Peacebuilding Commision (PBC). O comitê é formado por trinta e um membros das Nações Unidas incluindo os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, reunindo os maiores contribuintes financeiros e de pessoal. A comissão não exerce funções dinâmicas apenas administra o fundo criado para o peacebuilding, desenvolvendo projetos voltados para o pós-conflito. Em 2010, o DFS desenvolveu um projeto estratégico voltado a melhorar a eficiência do serviço logístico da organização em campo. O Global Field Support Strategy (GFSS) renova as recomendações do Relatório Brahimi voltadas a capacidade da ONU em implementar uma missão rapidamente com os equipamentos necessários, pessoal qualificado e recursos financeiros suficientes. Algumas missões mais recentes já apresentam algumas atividades do projeto, como a MINUSTAH e a ONUCI que possuem um grupo de suporte logístico especial. O financiamento das operações de pecaekeeping é divido entre os Estados- membros baseando em um sistema de cotas estabelecido em 2000. Através da resolução 55/235 da Assembléia Geral, ficaram estabelecidos grupos de acordo com o PIB de cada país. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, enquanto países mais desenvolvidos economicamente são responsáveis por mais da metade dos recursos financeiros voltados as operações. Outros grandes contribuintes são o Japão (12,53%), a Alemanha (8,02%) e a Itália (5%) (ASSEMBLEIA GERAL, resolução 64/220, 2009). A resolução 55/235 reafirma o papel da Assembléia Geral como responsável pela a aprovação do orçamento, de acordo com o artigo 17 da Carta das Nações Unidas. Também deixa claro que as contribuições voluntárias dos membros são apreciadas. No período anterior ao Relatório Brahimi, as despesas com o peacekeeping eram em torno de um bilhão de dólares, quatro bilhões após o relatório, e hoje o orçamento chega a mais de sete bilhões de dólares. Os gastos da ONU com as operações de peacekeeping se equivalem a menos de 1% dos gastos militares mundiais (DPKO, 2012). 28 28 Figura 3: Maiores contribuintes financeiros das operações de peacekeeping da ONU (AG, resolução 64/220, 2009). Em contraste com as contribuições financeiras, tradicionalmente as maiores contribuições de tropas pertencem aos países emergentes, principalmente aqueles que almejam uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. Hoje o maior contribuinte de pessoal militar e policial continua sendo Bangladesh, seguido pelo Paquistão e a Índia. Entre os membros permanentes, a China é o que mais colabora ocupando a 16º posição. Podemos ressaltar uma maior contribuição dos países membros após o período de reformas instaurado pelo Relatório Brahimi. Entre 2000 e 2012 o número de pessoal passou de entorno de vinte mil para cem mil militares, policiais e observadores (DPKO, 2012). As grandes potências tendem a contribuir mais com pessoal voltado as funções das missões pós-conflito. Tal como recomendado pelo Relatório Brahimi, o estabelecimento das lideranças de uma operação, antes do início das operações tem sido seguido, assim como a apuração de tropas pelo Secretário-Geral. Já em relação às listas de pessoal militar, policial e civil a prática tem sido parcial. Nos últimos anos, a organização tem se dedicado mais ao treinamento qualificativo dos peacekeepers voltados a missões multidimensionais. Os “capacetes azuis” têm obtido treinamentos voltados ao reconhecimento de cenário, a proteção civil e ao enfrentamento da violênciasexual. Existem também os treinamentos aos auxiliares em assuntos judiciais e de direitos humanos. Mesmo com as lideranças mais definidas, a ONU ainda tem dificuldade na coordenação das operações, principalmente com a presença de diferentes atores em campo. Outros membros 27% EUA 27% Reino Unido 8% França 8% China 4% Russia 1% Japão 12% Alemanha 8% Italia 5% 29 Dentre as novas responsabilidades de uma operação de paz contemporânea destaca-se a proteção dos civis. Situações de conflito étnico, colapso estatal e guerra civil tendem a ser mais ameaçadora a população civil, levando a tragédias humanitárias de longa escala. O Relatório Brahimi impulsiona a questão da proteção dos civis, conhecida como POC (protection of civilians), que ganha repercussão com reforço a proteção dos direitos humanos e o desenvolvimento do principio da “responsabilidade de proteger” (R2P)24. A POC vai além da proteção física, incluindo o suporte ao retorno dos refugiados e a proteção contra a violência sexual (ONU, 2009, p. 20). Depois de enfrentar acusas de peacekeepers envolvidos em casos de abuso e exploração sexual, a organização passou a observar mais detalhadamente os efeitos dos conflitos armados na vida de cada individuo. Ainda não se observa um consenso sobre a aplicação da idéia na prática, porém já nota-se a importância e o espaço que POC vem ganhando. Existem inúmeras maneiras de aproximar os mandatos de uma missão da proteção aos civis. Ela pode ser militar, que é a mais vistas nas operações de peacekeeping englobando ações como a delimitação de áreas de passagem e protegendo a população contra ataques. Também pode ser humanitária, visando às necessidades básicas dos civis e através da proteção dos direitos humanos. (BELLAMY e WILLIAMS, 2010, p. 144). As Nações Unidas também tem desenvolvido módulos de treinamento e guias aos peacekeepers sobre a POC, além de encontros periódicos para discutir o tema e a inclusão da atividade nos mandatos das operações. A primeira missão a receber em seu mandato a função de proteger os civis, foi a UMANSIL (UN Assistance Mission in Sierra Leone) em 1999, mas a idéia contemporânea é principalmente marcada pela MONUC. A missão na República Democrática já dura mais de 10 anos, enfrentou complexas crises no país e foi falha na sua função de proteger a população civil inúmeras vezes. Os massacres que ocorrem no leste do país, os inúmeros casos de abuso sexual e a violência continuam, são fatores que marcam a incapacidade da ONU, porém também mostrar a necessidade da POC em ambientes pós-conflito, acompanhada de pessoal qualificado e os recursos financeiros necessários a devida promoção de um mandato. Outro importante ponto muito trabalhado na última década e diretamente ligado a proteção dos civis, é a questão do gênero. A presença de peacekeepers do sexo feminino nas operações das Nações Unidas vem aumentando bruscamente de 2005 pra cá. As 24 A idéia tomou forma na cúpula da Assembléia Geral de 2005. 30 30 mulheres hoje somam em torno de 30% do pessoal civil, 10% dos policiais, 3% dos militares presentes em uma missão e duas exercem a liderança da operação na Libéria e no Timor-Leste (ONU, 2012). A presença feminina “mostra que as mulheres são mais capazes que os homens de auxiliar outras mulheres vitimas das zonas de conflito e ainda atuando como modelos positivos a essas pessoas” (HAGLUND, 2010, p. 35)25, além de exercerem um importante papel no combate aos crimes sexuais e a violência contra as mulheres. As Nações Unidas se faz presente em sociedades onde as mulheres ainda são tratadas desigualmente, não possuem espaço no mercado de trabalho e algumas vezes não são permitidas a conversar com homens, assim as peacekeepers desenvolvem um papel de interlocutoras para as mulheres dessas comunidades. As missões do século atual, também desenvolvem um papel crucial para a restauração das leis e da ordem através do SSR (Security Sector Reform). Tal reforma envolve fatores tradicionais da estrutura legal de um país, como as instituições judiciais e os serviços policiais, e não está limitada a nenhum período especifico do conflito. Em 2008 o Secretário Geral, Ban Ki-moon, definiu as ações de SSR como: É geralmente aceito que o setor de segurança inclui defesa, aplicação da lei, correções, serviços de inteligência e instituições responsáveis pela gestão das fronteiras, aduanas e emergências civis. Elementos do setor judicial responsável pelo julgamento de casos de conduta criminosa e abuso de força, são muitas vezes incluídos. (AG, 2008, p. 5)26 As reformas nas instituições do setor de segurança demonstram que um Estado nacional seguro, vai além dos elementos militares e policiais. A SSR serve como base para a restauração e o fortalecimento da autoridade do Estado, fundamentado pela democracia e os direitos humanos. As ações de peacebuilding podem estabelecer administrações transitórias ou a organização de eleições democráticas, com o objetivo de reconstruir o papel do governo em ambientes atingidos por conflitos. Um exemplo bem sucedido foram as ações da ONU com a UNAMSIL (UN Mission in Sierra Leone), estabelecida em 1999 e retirada do país em 2005. Em 25 Tradução livre da acadêmica do: “UN missions have shown that women are better abble than men to assist female victims in conflit zones and also act as positive role models for the women with whom they come in contact.” (HAGLUND, 2010, p. 35) 26 Tradução livre da acadêmica do: “It is generally accepted that the security sector includes defence, law enforcement, corrections, intelligence services and institutions responsible for border management, customs and civil emergencies. Elements of the judicial sector responsible for the adjudication of cases of alleged criminal conduct and misuse of force are, in many instances, also included.” (AG, 2008, p. 5)26 31 novembro de 2012 o país teve sua primeira eleição organizada pelo governo local após a brutal guerra civil que viveu no passado. As eleições ocorrem de forma pacifica e marcaram a consolidação do sucesso da operação de paz das Nações Unidas e da vontade nacional. O cenário internacional atual e seus problemas tornam a UNEF I antiquada e ineficaz as crises contemporâneas. Hoje a grande maioria dos ambientes enfrentados pelos peacekeepers, são atingidos por conflitos internos. Existem dezesseis operações com funções variadas em andamento, sendo sete na África, uma na América, três na Ásia, duas na Europa e três no Oriente Médio. A mais antiga é a missão de observação UNTSO, no Oriente Médio, voltada a supervisão do conflito entre árabes e judeus. A UNSMIS (UN Supervision Misison in Syria) é a mais recente, estabelecida em abril de 2012 foi destinada a controlar a situação de conflito na Síria e terminou em agosto de 2012. As operações de peacekeeping das Nações Unidas vão além do conceito de Nye (2000, p. 202) que coloca a organização como aquela que aparta uma situação de conflito, manter a paz está mais longe dessa idéia. O Relatório Brahimi representa o ressoar desse novo pensamento, sustentado pelas grandes falhas vividas em Ruanda, Somália e Bósnia anteriormente. Acredita-se que cumprir os objetivos da organização de manter a paz e a segurança exige ações duradouras e esse é o papel das operações multidimensionais observadas no século XXI. 5. Considerações finais As Nações Unidas basearam-se no capítulo VII da sua carta constitutiva para implementar a primeira missão de peacekeeping armada em 1956. Desde então,
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