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O CULTIVO DA IMAGINAÇÃO E A ATENÇÃO À DIVERSIDADE CHRISTINA MENNA BARRETO CUPERTINO Universidade Paulista Inicio esse texto retomando brevemente, para os que passam a participar das discussões do nosso grupo de pesquisa, o que foi previamente apresentado e discutido com relação a essa investigação em particular, que trata da consolidação de uma prática – a Oficina de Criatividade – seja como recurso para atendimento psicológico, seja para a formação de psicólogos. Implantada em 1990, estudada formalmente como atividade de sensibilização para psicólogos em formação desde 1995 (Cupertino, 2001), a Oficina é hoje oferecida em uma variedade de situações e contextos por alunos de Psicologia, após terem passado eles mesmos pela experiência. Nas oficinas, sempre conduzidas em grupo, são utilizados recursos expressivos variados como colagem, desenho, pintura, argila, massa, expressão corporal, musical. São usados também textos literários, poesias, filmes, música, exposições de arte, dança, selecionadas segundo os eventos culturais importantes da cidade. Tais recursos visam criar o terreno para a ressignificação das experiências vividas pelos participantes, no sentido da transformação pessoal, social e das relações. Além de comentar brevemente as diferentes situações onde vem sendo realizada essa prática, dessa vez meu olhar também pretende conduzir o leitor a uma distância respeitável para, atendendo à sugestão do titulo específico desse simpósio, falar de fronteiras, dos limites de onde ela emerge no horizonte da contemporaneidade. O pano de fundo, as questões básicas que orientam esse momento atual da investigação, diante das quais desvela-se o surgimento de novas formas de oferecer serviços de Psicologia à população, são as impactantes mudanças características da época contemporânea e suas conseqüências sobre as relações do homem consigo mesmo, com seus semelhantes e com o mundo, que apenas começarei a esboçar. E a conseqüente necessidade de promover revisões da Psicologia frente às suas tradicionais práticas normativas e naturalizantes. A proposta desse trabalho, iniciado há quase vinte anos atrás, vem sendo trazer à luz e submeter à constante interrogação não só de que maneira se caracteriza o aprendizado do fazer da Psicologia através da vivência e da implantação de Oficinas de Criatividade por alunos de graduação, mas, mais que isso, delimitar as especificidades do que hoje podemos talvez nos atrever a nomear como modalidade de atendimento psicológico. 2 Em um breve histórico, podemos delinear seu percurso nas seguintes etapas: 1. Implantação como formação de profissionais para o trabalho com portadores de altas habilidades: A Oficina de Criatividade foi criada em 1988 para atender a necessidade de formar profissionais aptos a lidar com crianças portadoras de altas habilidades, freqüentadoras de um programa especial recém criado na mesma instituição. Nessas condições, de treino de criatividade, passou a ser oferecida como disciplina optativa de estágio no curso de graduação em Psicologia e em cursos de pós-graduação lato sensu nas áreas de Psicologia e Educação. 2. Estabelecimento como grupo de sensibilização na formação de psicólogos: Alguns semestres depois de implantada como estágio, a Oficina começou a mostrar que, mais que para treino da criatividade, ela poderia ser valiosa para a sensibilização dos alunos, para a promoção do conhecimento de si e do outro, tão necessários para o exercício profissional, e muitas vezes relevados tanto pelos alunos, que vão até o fim do curso sem passarem por psicoterapia, quanto pelos próprios cursos de Psicologia, que não promovem situações propícias para esse desenvolvimento. Encarada dessa forma, foi alvo de estudo, transformando-se na minha tese de doutorado (Cupertino, 2001), na qual apontei e discuti os processos nela gerados, baseada na fenomenologia heideggeriana e em aproximações da Psicologia com disciplinas adjacentes, como a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia. 3. Extensão como modalidade de atendimento na formação de educadores de periferia: A partir dos resultados obtidos na formação de psicólogos, passei a considerar a expansão da oferta de um trabalho nos mesmos moldes para outras populações e atividades de formação, escolhendo como foco inicial um grupo de educadores de uma comunidade de periferia adjacente a um Centro de Psicologia Aplicada no qual eu dava supervisão. Esse trabalho foi alvo de uma pesquisa desenvolvida entre 1997 e 1999, que discutiu basicamente as condições de implantação de um serviço como esse e da própria realização da investigação a ele relacionada, considerando principalmente as diferenças entre os todos os participantes, pesquisadores e pesquisados (Cupertino, 2000). Nessa situação começou a se desvelar a necessidade de colocar à disposição de um segmento da população normalmente desconsiderado pela Psicologia tradicional modalidades de atendimento que respondessem às suas necessidades específicas, fossem elas de tempo, de problemática, ou mesmo de vida cotidiana. Foi tornando-se cada vez mais claro, uma vez vivenciado diretamente, o distanciamento que a Psicologia, em sua vertente naturalizante e higienista, estabelece com relação à compreensão de boa parte das experiências humanas, que 3 não cabem nos referenciais tradicionais ou que são por eles consideradas como “desvios” do padrão e/ou patologia. É importante assinalar que o trabalho com população de baixa renda já era feito por mim, dentro desses mesmos padrões naturalizantes, e foi preciso a experiência de uma forma de atendimento menos estruturada, com menos espaço para o sistemático, para que a inquietação de buscar outros caminhos se fizesse presente, incitando-me à pesquisa mais profunda do potencial da Oficina de Criatividade. 4. Levantamento de onde e como se fazia trabalho semelhante: Paralelamente a essas considerações, e em virtude dessa falta de uma estrutura pré- definida para o atendimento, passou a delinear-se em contornos mais nítidos um questionamento paralelo: o uso de recursos expressivos de natureza artística como forma privilegiada de expressão, aspecto característico da Oficina de Criatividade. Em algumas das outras investigações já mencionadas, eu já havia enfatizado bastante a importância do lugar ocupado por tais recursos, responsáveis pelo estabelecimento de uma outra fala, gestual e não representacional, que favorece outras formas de apreensão do mundo, contato e relação entre as pessoas. O interesse por essa questão mostrou-me alguns lugares e pessoas que trabalhavam com esses mesmos recursos, em arte-terapia ou práticas ainda não tão claramente nomeadas, levando-me a conduzir um outro estudo, dessa vez dirigido para o levantamento sistemático de atividades semelhantes que tivessem sido alvo de teses ou dissertações, em um período definido entre 1996 e 2001. De acordo com os resultados, mostrava-se, ainda de forma embrionária, o potencial de intervenções baseadas em recursos expressivos como maneira de ter acesso à experiência humana de forma a compreendê-la e, se necessário, dar continência e alivio ao sofrimento. Principalmente, no entanto, evidenciava-se o caráter prospectivo de trabalhos como esses, projetando os indivíduos para vivências, tempos e espaços diversos, promovendo o estabelecimento de redes de entendimento e solidariedade (Cupertino, 2005). Parecia estar surgindo a possibilidade de trabalhar a partir de uma Psicologia mais voltada para o devir, mais competente em colocar a vida em movimento do que em cristalizá-la em diagnósticos e prognósticos voltados ao ajustamento a padrões preestabelecidos e à “cura” dos desvios. 5. Implantação da Oficina de Criatividade como prática de atendimento dentro da área de estágio: A experiênciavivida e os resultados observados por mim ao levar as oficinas a outras situações e instituições, somada à ampliação mostrada no levantamento mencionado, sugeria 4 insistentemente a tentadora possibilidade de propor aos alunos inscritos no estágio que conduzissem, eles mesmos, atividade semelhante, não só fora do ambiente de supervisão, mas do próprio Centro de Psicologia Aplicada da universidade, estendendo-o à comunidade. Dessa forma, o estágio passou a ser dividido em duas etapas. Num primeiro momento, os alunos passam pela vivência em Oficina de Criatividade, para em seguida implantar oficinas em comunidades e instituições escolhidas por eles. Os atendimentos, feitos em duplas ou trios, duram em média dez encontros, e o resultado do processo é retratado em trabalhos escritos que vêm sendo apresentados e publicados, ampliando o conhecimento e o âmbito do debate sobre essa forma de atendimento (Piza e Cupertino, 2004; Gianetti e Cupertino, 2006). Essa “aplicabilidade” de mão dupla da Oficina passou a constituir dois mundos diversos em muitos aspectos. Num deles acontece sensibilização dos alunos. Nele estão definidos um público e um setting, ainda mantidos dentro de um universo contido de familiaridade: um espaço conhecido (o Centro de Psicologia Aplicada), com características de funcionamento também. As condições são próximas das “ideais”: salas apropriadas, um tempo destinado às oficinas, material adequado e, acima de tudo, a disponibilidade dos participantes, criados numa cultura psi na qual boa parte das pessoas está inclinada a tomar parte em atividades desse tipo, a “se conhecer”. A diversidade, ali, fica limitada, por exemplo, à diferença de idade e experiência – profissional e de vida – entre supervisionandos e supervisores, além do fato óbvio de que pessoas são diferentes umas das outras. De resto somos quase todos, com maior ou menos poder aquisitivo, trabalhadores de classe média, e temos em comum nossa escolha unânime pela Psicologia. Nossos horizontes existenciais são minimamente compartilhados, e mesmo se considerarmos as dificuldades econômicas vividas (paradoxalmente) pelos estudantes da rede privada de ensino superior, fazemos parte de uma elite privilegiada, com acesso, entre outras coisas, à educação superior. Nessa vertente, a da prática de sensibilização para estagiários de Psicologia, a oficina pode ser entendida como espaço de abertura para que o formando se perceba diferente, e também como ferramenta para o acolhimento a uma presumida diversidade externa, constituída pela clientela a ser atendida por ele. Dentro dessa oficina, entretanto, os limites são estreitos. O desalojamento proporcionado por ela é, de alguma forma, mais confortável do que aquele ao qual somos submetidos quando saímos do ambiente protegido da clínica. Um outro mundo é o que já descrevi, no simpósio passado, como aquele dos “clientes nos ambientes de origem deles, com suas mais que precárias condições de vida, que vêm nos confrontando com configurações do exercício profissional até agora pouco exploradas” (Cupertino, 2005), que exigem uma outra forma de deslocamento. Um mundo que se mostra, a cada ano que passa, mais áspero à compreensão, enigmático, estrangeiro. Habitá-lo 5 profissionalmente tem servido para trazer à tona todo o peso da necessidade de contextualização e abertura para a alteridade, experimentado de forma mais limitada, e talvez mesmo ingênua, dentro do CPA. O período transcorrido entre o que foi apresentado no último simpósio e a redação desse texto foi extremamente rico em situações que começaram a caracterizar alguns limites para a implantação e funcionamento das Oficinas de Criatividade, relevantes não só para defini-las melhor como prática, mas para levantar temas importantes referentes à formação de psicólogos na época contemporânea. Se na Psicologia tradicional, de consultório ou de laboratório, ambientes assépticos mantêm à distância a “vida real”, e se na clínica tradicional o acontecer dessa vida é mediado e contido pela familiaridade e rigidez do setting, em nossa Oficina ela tem emergido com toda a força, convidando-nos não só a compreender nossas relações com clientes tão diferentes [entre eles e de nós] de forma a descobrir arranjos viáveis de atendimento, mas a perseguir a construção conjunta de significados para o que vivemos [eles e nós], na direção de estabelecer o diálogo e facilitar encontros transformadores. Em ambiente protegido, o trabalho vinha mostrando apenas parcialmente a questão principal, que é o alcance da diversidade propriamente dita. Em nossas saídas, por outro lado, no nosso trabalho na direção de capturar e potencializar, a partir do mergulho nessa diversidade mesma, as forças que impulsionam a vida e rompem com as cristalizações, o compromisso de dar conta do diferente invade nossas supervisões e nossas vidas, estabelecendo-se como o maior desafio que temos a enfrentar. Idosos, crianças, jovens, mães, professores, pacientes de fisioterapia, portadores de Parkinson ou AVC, voluntários, agentes comunitários, que constituem nossa clientela, a cada ano, em cada grupo, demandam de nós um estado quase permanente de procura de condições de diálogo com tão variados segmentos, com histórias e circunstâncias de vida o mais das vezes tão alheias às nossas. O movimento de ampliação dos contextos de atuação atingiu uma variedade caleidoscópica, como mostra a lista de alternativas de atendimento apresentadas acima. Entre os pressupostos implícitos nesse movimento, que consigo identificar nesse momento com mais clareza, esteve, em primeiro lugar, fazer com que os alunos vivenciassem diversas possibilidades de atendimento fora do setting tradicional do exercício profissional, normalmente constituído por um consultório dentro de uma clínica, para a qual os clientes devem se dirigir em horários estabelecidos, para serem atendidos por um tempo determinado, tanto em minutos, quanto em dias da semana e em semanas do semestre letivo. Para fazer as oficinas, eles têm que se adaptar às condições das instituições às quais recorrem para cumprimento das horas de estágio, e viabilizar o atendimento às vezes em condições inconcebíveis para os enquadres mais 6 tradicionais. A variedade de situações trazidas para as supervisões a cada semana funcionou como uma fonte inesgotável de possibilidades de troca, de constatação da inquestionável multiplicidade das formas do existir humano e da conseqüente necessidade de configurar, para cada situação, condições apropriadas e viáveis para facilitar encontros transformadores, que estivessem alicerçados no âmbito do fazer psicológico. Valeu, também, para que os alunos percebessem que não existem modelos fixos que possam ser “aplicados” em qualquer relação humana. Os insights relacionados a esse aspecto foram bastante intensos e mobilizadores, reafirmando a percepção de que parte do aprendizado em psicologia deve se dar num estado de suspensão, de gestação e paciência, para que se configurem os sentidos possíveis para cada experiência vivida. Associado a esse pressuposto estava um outro, que era o seguinte questionamento: já que não nos dirigimos aos nossos ambientes de trabalho munidos de manuais e de regras preestabelecidas, nem estamos propensos a classificar, rotular e “curar”, que Psicologia estaríamos fazendo nessas condições, fora de modelos e settings preestabelecidos. Ou seja, minha pretensão era ir tornando explícitos, junto com os alunos, os conhecimentos por eles adquiridos ao longo dos primeiros quatro anos de curso, através da retomada de quais deles estavam sendo postos em ação, quais as incompatibilidades identificadas, os paradoxos, as fantasias e expectativas do que se constituía, para eles, como um atendimento psicológico. A pergunta ao fundo de nossas supervisõesera, primordialmente: de que maneira o atendimento em questão pode ser considerado um atendimento psicológico? A pertinência dessas perguntas deriva de dois riscos envolvidos na prática das oficinas de criatividade. Um deles é o uso de recursos expressivos, que pode caracterizar a atividade como um passatempo mais parecido com uma terapia ocupacional ou produção de artesanato, e o outro são as particularidades de algumas populações atendidas, como crianças ou idosos asilados, por exemplo, aos quais os estagiários podem mais fazer companhia, ou de quem podem “tomar conta”, sem que isso se caracterize como um atendimento psicológico. Além dos pressupostos implícitos, é possível identificar, dessa vez a partir dos dados recolhidos nos grupos de supervisão (para 80 alunos, divididos em cinco grupos) ao longo do ano letivo de 2006, algumas respostas deles às especificidades dessa modalidade de atendimento, assim como algumas categorias mais amplas relacionadas a elas, para começar a discutir. Então, com relação ao primeiro item, e diante das indagações formuladas acima, identifico três segmentos distintos, distribuídos pelos diferentes grupos. O primeiro deles foi o dos alunos que de fato tomaram conta ou proporcionaram um passatempo assistido aos seus clientes. Em sua maioria chocados com a realidade à qual haviam 7 sido transportados, mantiveram a maior parte do tempo uma atitude condescendente que quem está “ajudando o próximo”, angustiando-se muito com um sofrimento que não é “apenas” psicológico, do qual (esse, sim) acreditavam que podiam dar conta, mas sim derivado da precariedade das condições de vida dos clientes. Um outro bloco de alunos conseguiu superar ou desconsiderar esse choque (muitas vezes porque são oriundos do mesmo tipo de comunidade à qual prestavam atendimento), mas manteve-se no nível de trabalhar as atividades propostas apenas como técnicas, como tarefas a serem cumpridas, por eles e pelos clientes. Outro segmento foi formado por alunos especialmente produtivos em promover discussões férteis para muito além da supervisão dos atendimentos, que ajudaram a delinear questões muito pertinentes ao estabelecimento de um lugar para as oficinas dentro das instituições por eles freqüentadas e também dentro da gama de possibilidades de atendimento em Psicologia. Alunos diferenciados, em termos de compromisso com a formação, conhecimento prévio, dedicação ao estudo e ao trabalho, mostravam compreender o fazer característico desse tipo de atendimento, apresentando ousadia e flexibilidade nas diversas situações vividas nas instituições. Isso facilitava a avaliação rápida dos acontecimentos e a tomada de decisões pertinentes para as necessárias mudanças de rumo ao longo dos encontros com os clientes. A maioria deles demonstrou bastante autonomia e, além disso, foram alunos questionadores, nos dois sentidos: o de demonstrar inquietação, curiosidade, habilidade no levantamento de questões pertinentes e o de colocar em xeque as propostas mesmas do estágio, confrontando alguns pressupostos e estratégias. Das discussões ocorridas em tais situações, algumas questões foram sendo identificadas e passaram a se constituir como categorias, que apenas começo a aprofundar nesse texto. Nessa reflexão está embutida a preocupação com temas como o individualismo contemporâneo, o compromisso estereotipado com o “social”, a possibilidade de engajamento político num mundo fragmentado, que não oferece pontos de apoio que não nos fundamentalismos. Passa também pela falência das utopias, e pelo estabelecimento de horizontes micropolíticos como norteadores da experiência humana contemporânea engajada na manutenção e no movimento da vida, e do papel da Psicologia e suas modalidades de atuação/intervenção nesse processo. Os relatos estão ainda desconexos, na forma de cenários ou reformulações pontuais de conceitos e noções, identificados na literatura, e precisam ser melhor articulados. Afastando um pouco o olhar, como prometido, para as condições de onde emerge a possibilidade de nossa prática, percebemos que o mesmo movimento de interpenetração de subjetividades já não mais rigidamente definidas percebido nos atendimentos parece reger as relações num mundo globalizado, mas num processo onde a diferença vem se confundindo com 8 a desigualdade. Não só o universo que a prática da oficina abrange se ampliou consideravelmente, requisitando de nós o desdobramento em múltiplas direções. O mundo em que vivemos – nós e nossos clientes – vem passando por mudanças importantes. Entre o período do pós-guerra até Maio de 68, e daí até o atentado às Torres Gêmeas, em 2001, podemos identificar mudanças drásticas em conceitos como comunidade, igualdade, direitos, liberdade. A diversidade se impõe com tanta força que se configura fortemente a questão da (im)possibilidade de qualquer expectativa de um horizonte último norteador da convivência entre homens e entre estes e o planeta. Levantado a partir do embate nem sempre suave com as condições de vida dos clientes, e de nossa conseqüente (porém inexoravelmente constitutiva) dificuldade em compreender esses transbordamentos de sentido, esse questionamento se dirige para tópicos que passo a explorar. Dentre as categorias identificadas e citadas acima, escolhi apresentar nesse encontro a que está melhor formulada e que sugere direções estimulantes para o debate, através do qual o plenário desse simpósio pode ajudar-me a refletir. Ela é a mais forte, justamente por ser a que nos confronta com situações de vida tão estrangeiras que demandam de nós um esforço de tradução (ou contextualização), relembrando, entretanto, e em consonância com Sarti (2003), que “o “contexto” […] é o mundo de significação do sujeito pesquisado. Isso implica não tomar como referência apenas o mundo de significação do pesquisador, no sentido de traduzir o fenômeno em seus termos, mas tentar entender que há um mundo de significação a ser desvendado…” (p. 13). Essa noção não redutiva e ampla de contextualização afirma, implicitamente, a existência de horizontes mínimos que sustentem, ainda que provisoriamente, qualquer diálogo na busca de conhecimento, ações ou políticas compartilhadas. Aprofundar essa questão passa pelo já suficientemente debatido fim das grandes narrativas e, junto com ele, o ponto que me instiga e que quero trazer para discussão: a quase consensual constatação do fim das utopias, definidas como o design de uma sociedade ideal que “tem a intenção de modelar a imagem da sociedade a partir de um ideal ético, de uma certa concepção da justiça, da felicidade, da eficácia e da responsabilidade” (Attali, 2000). Nos diz Russell Jacoby que “se o século XIX deu origem às utopias, o século XX estimulou as antiutopias. […] As utopias que falam ao nosso século são distopias, como “We” [Nós], de Zamyatin, “Admirável Mundo Novo”, de Huxley, e “1984”, de Orwell, que mostram um mundo de controle e dominação.” (2001, p. 206). Tomando o exemplo das obras literárias, tão caras ao nosso fazer de oficineiros, esse pensamento se expande em direções às vezes paralisantes. Por exemplo, como passamos dessas 9 distopias para uma “fantasia”(?) como a descrita em “Não me abandone jamais”, de Kazuo Ishiguro? Se as primeiras ainda se mantinham no nível compreensível do humano, ainda que no registro da dominação, a última nos coloca frente ao dilema há pouco impensável, de uma comunidade de humanos clonados criados para serem peças de reposição de órgãos. Humanos com uma vida, sentimentos, relações de afeto e desafeto, criados para o abate. Um outro exemplo de dilema relacionado à convivência com a diversidade e a condição volátil de qualquer horizonte último sobre o qual ela possa se assentar vem do mesmo Jacoby (idem), quando se refere à sentençade morte imposta ao escritor Salman Rushdie pelo aiatolá Khomeini, tradução do embate entre os valores da sociedade européia e os islâmicos. Denuncia a omissão dos intelectuais ocidentais atribuindo-a ao fato de que estes, confrontados com um “princípio abstrato de liberdade”, consideram que não se pode tomar posição, quando se trata de valores ancorados em culturas diferentes. Essas questões são relevantes diante do nosso cotidiano profissional, conduzido junto a populações diante das quais nos perguntamos em que medida temos que entrar no mérito de algumas situações inquietantes e/ou complicadas por elas levantadas. Ao discutir a validade ou não do estabelecimento de categorias universais para avaliar situações como essa, ou a questão feminina, racial, homossexual, e outras, entramos em um debate onde encontramos pontos de cisão e outros de contato. Se os movimentos estudantis de Maio de 68 visavam a disseminação de direitos universais a mulheres, negros, homossexuais, ampliando o “universal” ditado pelo modelo do homem europeu ocidental civilizado, hoje se observa o acirramento dos antagonismos de forma a por em risco conquistas dessa mesma sociedade ocidental, como os direitos humanos, por exemplo, e os valores democráticos, que vêm sofrendo sérios golpes desde o ataque ao World Trade Center há seis anos atrás. Há, entretanto, os que ainda defendem idéias revistas de utopia, por acreditarem que sem ela estamos condenados à imanência, a um mundo unidimensional, sem transcendência. Jacques Attali é um deles, e seu pensamento já havia me ajudado anteriormente no início da minha trajetória pelas periferias urbanas, diante dos mesmos impasses de “tradução” de experiências, sobre as quais devemos nos furtar de aplicar modelos derivados do paradigma da lógica positivista a elas alheios. Sobre o que ele me ensinou eu já dizia em outro trabalho: “Sobre a lógica não linear, a principal obra para a análise de nossa trajetória como grupo de pesquisa na favela na qual trabalhamos, até esse momento, é o livro Chemins de Sagesse (1997), de Jacques Attali, economista francês preocupado com as formas contemporâneas de organização social e de relação com o mundo. A essas formas, definidas por ele como não 10 lineares, Attali contrapõe o ideal de linearidade, transparência e racionalidade da era Moderna. Segundo ele, as pistas que devemos seguir atualmente foram deixadas pelos povos antigos, através dos labirintos, presentes nos quatro cantos do mundo e análogos a muitas das situações vividas na era contemporânea, desde a trama do transporte urbano até navegação pela Internet, do acúmulo de informações à aceitação das diferenças culturais. Nos diz ele que "na sociedade mercantil, o ideal de comunicação e troca é a linha reta, transparente" (pg. 139), atribuindo as mesmas características aos processos de conhecimento, calcados em "atributos valorizados na sociedade industrial: a rapidez, a razão, a lógica, a transparência" (pg. 160). A contraposição a esta idéia é a necessidade de voltarmo-nos ao legado das sociedades nômades e do mito dos labirintos, aprendendo a conhecer aquilo que se mostra obscuro através de vias pouco valorizadas até agora, como "a perseverança, a lentidão, a malícia, a curiosidade, a improvisação, o domínio de si mesmo, a flexibilidade, a astúcia" (pg. 160). A experiência que temos como grupo de pesquisa em uma favela brasileira tem sido fortemente apoiada por esse tipo de reflexão. Numa posição a ser esclarecida ao longo deste artigo, nesta situação vivemos todos – favelados e pesquisadores - uma experiência labiríntica.” (Cupertino, 2000) As características que Attali define como valiosas para o trânsito na contemporaneidade são, como se observa, positivas. E, anos depois, ele permanece num otimismo, dessa vez, um tanto pueril. Em sua análise crítica da falência das utopias até agora propostas, identifica quatro eixos que as vêm norteando: a eternidade, a igualdade, a liberdade e a fraternidade. Afirma a falência das três primeiras propostas dizendo que “Atualmente, chegamos ao ponto em que estes três tipos de utopia tropeçam em contradições. Para prometer a eternidade, as religiões restringem as liberdades. Onde existem, estas últimas não conseguiram impedir o aumento das desigualdades e da precariedade. Ao contrário, a igualdade só soube esboçar-se sobre a ruína das liberdades. De todo modo, nenhuma dessas utopias logrou alcançar o objetivo que havia estabelecido.” (Attali, 2000, p. 62) E imagina, uma noção um tanto mágica e singela, de um mundo no qual “cada um se sinta feliz em fazer felizes aos outros. Isso receberá o nome de fraternidade.” (idem) sem elaborar melhor de que forma chegaríamos a esse ponto. Trabalho recente do próprio Russell Jacoby (2007), que antes registrava o fim das utopias, pretende recuperá-las partindo da análise e da crítica das falas dos principais intelectuais que as associam aos totalitarismos, de início rejeitando o caráter utópico pretensamente atribuído a movimentos como, por exemplo, o nazismo. Reconhecendo que o pensamento utópico pode estar na base de reformas reais, nessa obra ele separa o que denomina de utopias projetistas das utopias iconoclastas. As primeiras seriam aquelas citadas acima (1984, Admirável Mundo Novo), com prescrições rigorosas até quanto ao vestuário e alimentação de 11 seus habitantes. Segundo ele, essas são utopias engessadas, que apenas projetam o passado para o futuro, ou seja, não revelam nenhum tipo de ruptura ou transformação. Já as iconoclastas reconhecem idéias usualmente associadas às utopias, como a harmonia, a paz, o prazer, mas apenas aspiram a elas, sem dar-lhes forma. O desenho de ambas as modalidades de utopia nos traz de volta às Oficinas de Criatividade, e ao tema que me levou a escolher perseguir essa questão em primeiro lugar, pelo tratamento que dá a um de seus ingredientes mais fundamentais: a imaginação, com sua força subversiva. Serão as oficinas, com sua proposta de cultivo da imaginação dentro de ambientes onde predomina a racionalidade dos caminhos preestabelecidos, o lugar para poder conceber não apenas uma diversidade de mundos, mas mundos menos desiguais? É dessa forma que gosto de pensar que o campo criado em cada oficina favorece as trocas e mudanças: num ambiente em que as especificidades dos participantes, mais que determinar posições hierárquicas ligadas à detenção do saber, servem para compor uma visão multidimensional das problemáticas abordadas, permitindo o estabelecimento de afinidades, redes e solidariedade e favorecendo as descobertas. Claramente, não há espaço para a imaginação nas utopias projetistas, onde tudo está previsto e arrumado. Também não há espaço para ela no exercício profissional do psicólogo voltado ao ajustamento, à condução das experiências para o interior de parâmetros antecipadamente definidos, predominantemente retrospectivos. O contato diário com a desigualdade, o conhecimento das diversas formas de dominação e extermínio ocasionadas pelo choque entre supostas regras e modos de funcionamento de “mundos civilizados” e outros que devem ser transformados à imagem e semelhança dos primeiros (ou será o contrário?), as possibilidades destrutivas e massificantes que podem tomar forma através do desenvolvimento da técnica, encontram contraponto nessa inefável condição desejante da utopia iconoclasta, que não dá forma definida às suas aspirações, e resiste ao apresentar uma “recusa a reduzir o futuro desconhecido ao presente conhecido, a esperança à sua causa.”(Jacoby, 2007, p. 69) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATTALI, J. Chemins de sagesse. Paris: Fayard, 1997. __________ Fraternidades. Buenos Aires: Paidós, 2000. CUPERTINO, C.M.B. The limits of traditional evaluation and the identification of gifted children in a Brazilian“favela”. [Os limites da avaliação tradicional e a identificação de 12 superdotados em uma favela brasileira]. Gifted Education International, v. 15, n. 1, 2000, p. 71 a 79. ___________________Criação e formação: fenomenologia de uma oficina. São Paulo: Arte e Ciência, 2001. ___________________ Criação e formação: a Oficina de Criatividade Revisitada. Anais do VI Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituição – Psicologia e Políticas Públicas. Vitória, ES: UFES, 2005. ISHIGURO, K. Não me abandone jamais. São Paulo: Companhia da Letras, 2005. JACOBY, R. O fim da utopia. Rio de janeiro: Record, 2001. ___________ Imagem imperfeita. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2007. SARTI, C. A. A família como espelho.. São Paulo: Cortez: 2003.
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