Buscar

disney e Andersen

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

Branca de neve e os sete anões (1937)
Versão dos Grimm
Na versão dos irmãos Grimm, a mãe de Branca de Neve devora o pulmão e o fígado da filha: “E, como justo naquele instante estava passando por ali um pequeno porco selvagem, ele o matou, tirou dele pulmão e fígado e os apresentou à rainha como prova. A rainha logo os cozinhou no sal e os comeu, pensando estar comendo o pulmão e o fígado de Branca de Neve.” (p.249, tradução de Mazzari, versão de 1822)
“E como naquele momento passasse por ali, pulando, um veadinho novo, ele o matou, tirou seu pulmão e seu fígado, e levou-os à rainha, como prova. O cozinheiro teve de assá-los com sal, e a malvada mulher come-os, pensando que comia o pulmão e o fígado de Branca de Neve.” (p.50, trad. de Tatiana Belinky, versão de 1858)
Versão dos Grimm
Nas versões dos Grimm, os anões dão o caixão de Branca de Neve para o príncipe:
“Os criados, porém, que toda hora tinham de levar o caixão de um lugar a outro, não estavam nada satisfeitos, e um deles abriu a tampa, ergueu Branca de Neve e disse : “Passamos o dia sofrendo, por uma menina morta!”, e com isso deu um tapa nas costas dela. Nesse instante, o pedaço de maçã podre que ela havia mordido saltou de sua garganta e Branca de Neve estava viva outra vez. Então, ela foi até o príncipe, que, de tanta, felicidade ao vê-la, nem sabia o que fazer, e alegras os dois sentaram-se à mesa para comer.” (p.254, tra. De Mazzari, versão de 1822)
“E quando ele falou assim, os bons anões sentiram pena dele e deram-lhe o caixão. E o príncipe mandou que seus servos o levassem nos ombros. Aí aconteceu que eles tropeçaram numa raiz, e com a sacudidela, o pedaço de maçã envenenada que Branca de Neve mordera saltou de sua garganta. Logo depois ela abriu os olhos, levantou a tampa do caixa, sentou-se e ficou viva de novo.
- Ai, meu Deus, onde é que eu estou? – exclamou ela.
O príncipe falou, cheio de alegria:
- Tu estás comigo, - e contou o que tinha acontecido. E disse:
- Eu te amo mais que tudo no mundo; vem comigo para o castelo do meu pai, para seres minha esposa.
E Branca de Neve ficou feliz e foi com ele, e o seu casamento foi celebrado com grande pompa e riqueza. (p.60-61, trad. de Belinky, versão de 1858)
Desfecho do conto dos Grimm: a madrasta é punida
“Então, colocaram pantufas de ferro no fogo e, quando estavam em brasa, ela foi obrigada a calçá-las e a dançar, e seus pés foram terrivelmente queimados e ela só poderia parar de dançar quando caísse morta.” (p.256, trad. de Mazzari, versão de 1822)
“Mas lá já estavam preparadas para ela pantufas de ferro sobre carvões acesos, e elas foram trazidas com tenazes e colocadas diante da malvada mulher. Então ela teve de calçar as pantufas rubras em brasa, e dançar até cair morta no chão.” (trad. de Belinky, p.61, versão de 1858)
* Nas versões dos Grimm, a bondade de Branca de Neve não é tão realçada. Pelo contrário, ela transgride as normas dos anões ao abrir a porta para a mãe/madrasta disfarçada e é punida por isso.
* Na versão da Disney, a bondade da menina é o tempo inteira enfatizada. Já no começo ela esfrega as escadarias do palácio sorrindo e cantando: “No meu mundo feliz”
* No filme da Disney, a rainha só vai uma vez à casa dos anões, de forma que a transgressão de Branca de Neve não fica tão em evidência quando nas versões dos Grimm, visto que ela só erra uma vez...
Na versão da Disney, os anões não dão o caixão para o príncipe. Branca de Neve acorda após ser beijada por ele, ainda na floresta perto da casa dos anões.
A madrasta é punida na versão da Disney, mas por um infortúnio do destino, quando fugia da vingança dos anões. Dessa forma, a punição não é um ato intencional de Branca de Neve e do Príncipe, ressaltando os valores maniqueístas das personagens da versão fílmica, divididas em boas e más. 
Cinderela (1950)
Versão dos Grimm
Na versão dos Grimm, as aves ajudam a Gata Borralheira a separar as lentilhas e as favas, tarefa imposta pela madrasta. 
A menina vai até o túmulo da mãe e deseja roupas novas, seu desejo é atendido e surgem ao seu redor, “um lindo vestido prateado, pérolas, meias de seda com presilhas prateadas, sapatos prateados e demais acessórios surgiram à sua frente. Ela levou tudo para casa e, depois de tomar banho e se vestir, parecia uma rosa que o orvalho lavara. E diante da porta uma carruagem já a aguardava, com seis cavalos negros encilhados e cocheiros com trajes azuis e prateados, que a colocaram dentro da carruagem e a levaram a galope ao castelo do rei.” (trad. de Mazzari, 1822). 
Disney
 Não há a presença da fada madrinha. Também não há, na versão da Disney, as mutilações impostas às irmãs na versão dos Grimm. 
- inicia a história com a abertura de um livro, sugerindo que é uma história que já foi contada por alguém...;
- o reino é descrito como próspero e feliz, sem desigualdades sociais;
- o pai de Cinderela é devotado a ela e casa-se novamente para que ela tenha uma mãe;
- o pai morre e a menina é maltratada pelas irmãs e pela madrasta, transforma-se em uma gata borralheira que executa as tarefas domésticas. Apesar disso, ela não dorme nas cinzas, como na versão dos Grimm, mas em um quarto no alto de uma torre;
- Apesar das irmãs e da madrasta terem esbanjado a fortuna do pai de Cinderela com seus caprichos, não há indícios de que elas passem privações;
 Disney
- Cinderela é descrita como gentil e bondosa. Apesar das vicissitudes, continua a alimentar seus sonhos de felicidade; Ela já acorda sorrindo, lembrando-se do lindo sonho que teve, provavelmente com o príncipe;
- Ela canta o refrão de sua vida: “Que importa o mal que te atormenta [...] se o sonho pode se realizar”, revelando uma postura passiva diante dos problemas que enfrenta; Em outro momento ela afirma que apesar das agruras, “ninguém me impedirá de sonhar.”
-Cinderela, diferentemente da versão de Perrault, interagem com os animais, que formam tramas secundárias dentro da trama principal. Inclusive, os ratos serão nomeados, como Otávio, cujo apelido é Tata. Assim, há uma luta entre ratos e gato, entre bons e maus, entre Cinderela e a madrasta e suas filhas; Ironicamente, o nome do gato é Lúcifer;
- ao contrário de Cinderela, as irmãs são desafinadas, horrorosas, mal-humoradas;
 Disney
- Quando o cachorro se desentende com Lúcifer, Cinderela afirma “sei que não é fácil, mas devemos viver em paz”, deixando clara sua postura de aceitação passiva das mazelas da vida;
- há a inserção do pai do príncipe, que é quem planeja o baile. Seu intuito é casar o filho e arrumar uma mãe para seus futuros netos; Apesar de o rei ambicionar os herdeiros, motivos econômicos não são levantados;
- há um diálogo com os contos de fadas quando o Duque critica o rei por desejar uma história de contos de fadas para seu filho, com uma noiva predestinada, no momento exato em que o príncipe encontra Cinderela e se encanta por ela;
- as irmãs e a madrasta não veem Cinderela no baile, há empecilhos que as impedem, como a multidão, uma cortina;
 Disney
A versão da Disney está mais próxima de versão de Perrault pela postura passiva de Cinderela em relação às irmãs e à madrasta, pela presença da fada madrinha e das transformações mágicas que ela efetua: transforma uma abóbora em carruagem, ratos em cavalos e em um cocheiro, e com a varinha de condão transforma os trajes pobres de Cinderela em um belo vestido.
Na versão da Disney, o pai simplesmente morreu, o que ameniza o conflito edípico tratado nos contos dos Grimm e de Perrault. Ou seja, os assuntos prementes são amenizados ou desaparecem.
 Disney
Cinderela é tão idealizada em sua bondade infinita, que não sabe que o rapaz com quem dançou é, na verdade, o príncipe; Com certeza, o propósito do filme é libertá-la de qualquer outro interesse que não o mais puro amor...;
O Príncipe também assume uma postura passiva. É o Duque quem vai procurar a moça que perdeu o sapatinho de vidro;
- o ponto alto do filme, a meu ver, é quando o sapatinho de vidro se quebra. Há, nesse
episódio, uma retomada bem humorada das críticas de Balzac em relação ao sapato, na versão de Perrault, ser de vidro.
- o humor ameniza os episódios mais angustiantes.
- há o famoso “e foram felizes para sempre”.
Bergounioux
“Os protagonistas dos romances juvenis analisados são como marionetes cujo traço definidor é a defesa de uma ideia, reforçando a verdade americana de que deve haver uma aceitação de si mesmo e uma visão positiva sobre a realidade social (BERGOUNIOUX, 1979, p. 15). Assim, para o estudioso, os romances analisados são perniciosos em razão de defenderem valores tradicionais e de apregoarem o conformismo; são “despolitizantes” porque abordam somente os efeitos dos problemas na sociedade e não suas causas. Quanto às personagens, elas não são críticas, mas somente positivas. Em face dessas considerações, cabe ressaltar a importância do ensaio de Bergounioux ao alertar sobre os valores que estão por trás do aprendizado configurado nas obras voltadas para o adolescente.” (Cruvinel, 2009, p.195)
Hans Christian Andersen (1805 - 1875)
Os personagens de Andersen podiam ser enxergados, enquanto os demais não passavam de figuras difusas, sem contornos precisos. Sentia nesses contos, ademais, uma certa melancolia, que não se dissolvia inteiramente nem mesmo depois do final feliz – isso, quando o final era feliz. Pois, apesar de tudo, não se conseguia despregar os olhos de qualquer um desses contos, uma vez começada a leitura.” (Mariano Jr., 1996, P.09)
“Hans Christian Andersen foi um dos maiores escritores que a Dinamarca já produziu. Seus contos não visavam apenas ao público infantil. O que intentava ao escrevê-los era que também fossem apreciados pelos adultos que o lessem ou escutassem, conforme ele próprio o declarou expressamente, mais de uma vez. Eram escritos, por assim dizer, em dois patamares, cada qual adequado a um nível de compreensão.” (Mariano Jr. 1996, p.09)
Andersen
Andersen nasceu nos arrebaldes da pequena cidade dinamarquesa de Odense, filho de um sapateiro e de uma mulher que mal dominava as primeiras letras. [...] Aos 11 anos, perdeu o pai, tendo de ganhar a vida em sua cidade natal, exercendo ofícios modestos. Aos 14 anos, cansado daquela existência sem quaisquer perspectivas, ajuntou o pouco que tinha e rumou para a capital do país, Copenhague.” (Mariano Jr., 1996, p.10)
Andersen teve que enfrentar “uma mãe melancólica e bêbada, uma avó seca e dura, uma irmã que acaba prostituindo-se, vizinhas que vivem da mendicância e que tiram as cartas para adivinhar alguma súbita mudança de sorte” (tradução de Vera Beatriz Bertol de Oliveira na dissertação de mestrado “A representação da criança na obra de Hans Christian Andersen: o desvelar de um paradigma”, Soriano, p.63).
Andersen
Trabalhou como figurante no teatro e como dramaturgo, mas sem sucesso. 
Foi “adotado” por Jonas Collins, um dos diretores do Teatro Real, que resolveu patrocinar-lhe os estudos. Assim, Andersen pôde terminar o curso médio, entrando em 1828 para a Universidade de Copenhague. (Mariano Jr. 1996, P.10)
Em 1933, reuniu quatro contos, “editou um opúsculo intitulado “Contos de fadas para crianças”. Nesse livro, rompendo com a tradição literária de sua terra, utilizou a linguagem coloquial, reproduzindo a fala e maneira de narrar dos contadores de histórias. O grande público apreciou a inovação, mas a crítica recebeu-a com frieza, se não mesmo com hostilidade.” (Mariano Jr. 1996, p.11).
Andersen
Apesar do silêncio da crítica, seus contos tiveram sucesso editorial e foi “acolhido entusiasticamente no estrangeiro. Suas obras traduzidas já se multiplicavam. Sucediam-se os convites para viagens e o jovem escritor teve a oportunidade de visitar a Escandinávia setentrional, a Itália, a Península Ibérica, a Grécia, a Ásia Menor e o Norte da África. Sua produção literária passou a alternar-se entre livros de viagem e contos infantis, recebidos com agrado cada vez maior.” (Mariano Jr., 1996, p.11).
“Na Inglaterra e na Alemanha, era recepcionado nos meios intelectuais e cortejado pela nobreza. Tornou-se amigo de vários escritores estrangeiros, especialmente de Charles Dickens, em cuja casa pousava sempre que estava de passagem por Londres. Em vista disso, a intelectualidade dinamarquesa acabou tendo de curvar-se à evidência de seu renome, permitindo-lhe finalmente o acesso ao seu círculo fechado.” (Mariano Jr. 1996, p.11)
Andersen
“Foi assim que o filho do sapateiro passou além dos sapatos, desfrutando em vida a glória e o reconhecimento, e sendo atualmente aclamado como o mais famoso escritor dinamarquês de todos os tempos.” (Mariano Jr., 1996, p.11).
“Seus contos infantis caracterizavam-se pela diversidade de temas e de tratamento. Ele não foi um mero recontador de histórias, como Perrault e os irmãos Grimm, a quem, aliás, dedicava grande admiração. Dos 156 contos que compõem sua obra completa nesse gênero, 144 – isto é, 92% - são virtualmente de sua inteira autoria, ainda que alguns se tenham baseado em temas populares ou clássicos. [...] A roupa nova do Imperador” provém de uma história medieval espanhola.” (Mariano Jr., 1996, p.11)
Andersen
“Hans Christian Andersen faleceu em Copenhague, aos 4 de agosto de 1875. Contava então 70 anos. As homenagens que recebeu ao final de sua existência, multiplicada depois de sua morte, por certo compensaram as agruras de sua juventude, deixando-lhe a certeza de haver conquistado “não a fortuna, que os poetas nunca chegam a possuir, mas o pássaro dourado que todo artista almeja capturar um dia: a fama e o reconhecimento”. (Mariano Jr., 1996, p.12)
Hans Christian Andersen lendo a história O Anjo, para crianças no ano de 1862. Pintura de Elisabeth Jerichau-Bauman (1819-1881)31 
Marc Soriano
Segundo Marc Soriano, “a obra de Andersen é composta por 156 narrativas. Alguns são contos populares muito conhecidos, como A princesa e a ervilha ou O companheiro de viagem, mas ele reconta esses contos com uma emoção e leveza (brincadeira) muito eficazes. Um de seus romances, de cunho autobiográfico, intitula-se O improvisador. E, efetivamente, Andersen é bem um improvisador, um artista popular dotado, o qual na sua época ainda , por algum tempo, percorreu os campos e ouvia os velhos contarem interminavelmente suas histórias.
A segunda parte de sua obra é mais pessoal. A partir de 1843, ele começa a publicar os contos inventados por ele mesmo e que têm por herói objetos familiares, como por exemplo a vida gloriosa ou calamitosa de uma árvore de Natal, de um pião ou de um soldado de chumbo”. (tradução nossa, p.44)
Literatura infantil, Nelly Novaes Coelho
Segundo Nelly Novaes Coelho, os contos de fadas de Andersen representa a visão do “mundo religioso cristão, no qual a vida terrena é vista como passagem para o céu ou para o inferno; é o vale de lágrimas onde o homem da queda deve pagar sua culpa... daí a valorização das narrativas exemplares, em que a Virtude é exaltada e o vício ou Pecado condenados.” (Literatura infantil, p.95)
“O autor mais importante dessa representação de mundo cristã na literatura infantil foi Hans Christian Andersen, legítimo representante do ideário romântico-cristão. Suas centenas de contos (extraídos do folclore dinamarquês ou inventados por ele) são exemplares como transfiguração literária daquela orientação ético-religiosa. Muitas de suas histórias são realistas: situam-se no mundo real, cotidiano, com personagens simplesmente humanas em luta com as adversidades da vida e, em geral, vencidos por elas, mas vitoriosos na conquista do céu. [...] Nota-se, no geral das narrativas de Andersen, a tendência para fundir o maravilhoso pagão com o espiritualismo cristão.” (p.96)
A pequena sereia, Jeanne Harbour, 1932. “Enquanto peixes infelizes nadam abaixo dela, a Pequena Sereia contempla as bolhas que sobem para a superfície do oceano. Seu desejo é ir atrás delas.” (Tatar, p.327)
“Longe, longe da terra, em alto mar, onde as águas são azuis como as pétalas da centáurea e transparentes como vidro, lá onde as
âncoras dos navios não conseguem chegar ao fundo, vive o povo do mar. Tão profunda é essa parte do oceano, que seria preciso empilhar várias torres de igreja, para que finalmente uma delas apontasse na superfície.
Mas não vamos pensar que no fundo do mar só exista areia branquinha. Não: ali crescem plantas estranhíssimas; suas hastes e folhas são tão leves e delgadas, que o menor movimento da água faz com que elas se agitem de um lado para o outro, como se fossem dotadas de vida. Peixes grandes e pequenos deslizam entre os ramos, como fazem os pássaros da terra, voando através dos galhos das árvores. No lugar mais profundo, foi onde o Rei do Mar construiu seu castelo, de paredes de coral e janelas de âmbar. O telhado é feito de conchas de ostras, que ficam abrindo e fechando o tempo todo. A cada vez que se abrem, pode-se ver, em cada uma dessas conchas, uma pérola leitosa e brilhante, digna de estar engastada na coroa da rainha mais vaidosa.” (p.17)
“Eram seis sereiazinhas encantadoras, cada qual mais bonita que a outra. A mais bela de todas, porém, era a caçula, que tinha a pele fina como uma pétala de rosa e os olhos azuis como as águas de um lago profundo. Só que ela não era humana: era uma sereia; em vez de pernas e pés, tinha uma cauda de peixe na extremidade de seu corpo.” (p.118)
“Ela era uma criança estranha, quieta e pensativa. Enquanto suas irmãs enfeitavam seus canteiros com diversos objetos recolhidos de navios naufragados, ela colocou no meio do seu apenas a estátua de um rapaz. Era uma estátua de mármore branco, quase transparente. Devia estar sendo transportada para alguma ilha, quando o navio que a levava foi a pique. Ao lado da estátua, plantou uma árvore cor-de-rosa parecida com um salgueiro-chorão, pois seus ramos dobravam-se no alto, descendo até o chão, como se a copa e as raízes estivessem querendo beijar-se.” (p.118)
Arthur Rackham, 1932. “Abraçada à estátua de mármore, a Pequena Sereia busca se misturar às formas do mundo humano, enquanto seu cabelo, em contraste, parece se tornar um dos elementos submarinos.” (Tatar, p.331)
Arthur Rackham, 1932. “Os prazeres do mundo aquático ficam evidentes nesta cena, em que vemos três das irmãs sereias brincando de pular corda em seu paraíso oceânico.” (Tatar, p.322)
“De todas, porém, aquela que mais ansiava por subir à superfície era a mais nova, justamente a que teria de esperar mais tempo, até completar quinze anos!” (p.119)
“Por fim, também ela completou quinze anos!
- Agora, você já tem a liberdade de ir e vir – disse-lhe a velha rainha-mãe. – Vou arrumá-la, assim como fiz com suas irmãs.
A avó colocou-lhe na cabeça uma grinalda de lírios brancos. As pétalas eram formadas por pérolas cortadas ao meio. Em seguida, prendeu-lhe na cauda oito ostras, de maneira que todos vissem que se tratava de uma princesa legítima.
- Isso dói – queixou-se a sereiazinha.
- A nobreza de sangue exige algum sofrimento – replicou a avó.
A pequena sereia teria trocado prazerosamente sua grinalda de pérolas, pesadas e desconfortável, por uma só flor vermelha de seu jardim. De fato, ela toda a vida preferira enfeites mais simples e discretos, mas naquele momento teve de se submeter às exigências da cerimônia.
- Adeus – despediu-se a sereiazinha de todos, subindo para a superfície, leve como uma bolha.” (p.122)
“Por fim, ela o alcançou. Esgotado pelo esforço, o rapaz já não conseguia nadar. Sem forças, fechou os olhos e esperou com resignação a morte que tão próxima se avizinhava. E de fato teria morrido, se a sereiazinha não viesse em seu socorro, segurando-o e mantendo sua cabeça fora da água, enquanto deixava que as ondas os arrastassem para bem longe.
Quando amanheceu, a tempestade cessou. Não se via o menor sinal do navio naufragado. O sol surgiu, brilhante e rubro, fazendo voltar a cor às faces pálidas do príncipe. Mas seus olhos permaneciam fechados. A pequena seria deu-lhe um beijo na testa e afagou-lhe os cabelos molhados. Vendo-o de perto, achou suas feições parecidas com as da estátua de mármore que enfeitava seu jardim. Beijou-o novamente, implorando aos céus que não o deixassem morrer.” (p.124-125)
Edmund Dulac, 1911. “Com a cabeça apenas ligeiramente acima da água, o príncipe é salvo pela sereia.” (Tatar, p.329)
“- Eles também morrem, minha netinha. Sua vida é até mais curta que a nossa. Enquanto vivemos trezentos anos, eles raramente chegam a cem. Eles enterram seus mortos; nós, não: apenas nos transformamos em espuma do mar. Isso é porque nós não temos uma alma imortal; eles têm. Nossa morte é definitiva. Somos como o junco verde, que, uma vez cortado, nunca mais recupera sua cor. A morte dos homens só atinge seu corpo, já que suas almas continuam a viver por toda a eternidade. Elas sobem para o céu, para além das estrelas. Assim como nós subimos à tona do mar para contemplar o mundo dos homens, eles sobem à tona do céu, para contemplar o mundo desconhecido, que nossos olhos jamais chegarão a ver.
- Por que também não temos uma alma imortal? – queixou-se a pequena seria. – Eu trocaria meus trezentos anos de vida por uma só dia como ser humano, desde que isso me permitisse o acesso à eternidade dos céus!”
[...] – Nada! – respondeu a avó – Isso só viria a acontecer se um homem se apaixonasse por você, amando-a tanto, que você se tornaria para ele mais cara que a própria mãe e o próprio pai; tanto, que todos os seus pensamentos lhe fossem dedicados; tanto, que ele não hesitaria em levá-la à presença de um sacerdote, colocando a mão direita sobre a sua e jurando ser-lhe eternamente fiel. Então, a alma dele entraria em seu corpo, e você também iria partilhar da felicidade humana. Sim, ele poderia conferir-lhe uma alma, sem que para tanto tivesse de perder a dele. Mas isso é impossível de acontecer, pois o adorno mais belo do nosso corpo, ou seja, a cauda de peixe que temos, é considerada feia e monstruosa lá no mundo superior. Eles nada entendem de beleza! O que acham bonito, lá em cima, são duas escoras grosseiras e feiosas, às quais dão o nome de perna...” (p.127-128)
 
“- Você chegou na hora certa – continuou. – Se só viesse amanhã, seria tarde demais, e teria de esperar um ano para ter seu desejo atendido. Vou preparar-lhe uma poção mágica. Tome-a amanhã de manhã, antes do nascer do sol, sentada na areia da praia. Sua cauda há de dividir-se e encolher, até se transformar naquilo que os humanos chamam de belas pernas. Vai doer: será como se uma espada estivesse atravessando seu corpo. Mas quem olhar para você dirá que é a criatura humana mais linda jamais vista. Você caminhará mais graciosamente que qualquer dançarina; entretanto, cada vez que um de seus pés tocar o chão, será como se estivesse pisando no gume de uma faca afiada, produzindo dor e sangramento. Se esse sofrimento não lhe causa temor, estou pronta a realizar seu desejo.” (p.13)
“- Mas lembre-se – avisou a bruxa: - uma vez transformada em ser humano, nunca mais você voltará a ser uma sereia! Nunca mais poderá nadar com suas irmãs e visitar o castelo de seu pai! E se não conseguir conquistar o amor do príncipe, a ponto de fazer com que ele, por sua causa, esqueça pai e mãe, tenha todos os pensamentos voltados para você, não hesitando em leva-la até o altar para que se tornem marido e mulher; então, se ele desposar outra mulher, logo na manhã seguinte seu coração há de se desfazer em pedaços, e você terá o fim que toda sereia tem: vai-se transformar em espuma do mar!” (p.130)
Edmund Dulac, 1911. “A Pequena sereia, ansiosa por conquistar o amor do príncipe, avança pelo triste território da bruxa do mar. Carregando consigo a poção mágica, abre caminho entre os pólipos, sem dificuldades.” (Tatar, p.337)
“ – Mas isso não sairá de graça para você – disse a bruxa, sorrindo maldosamente. – Seu capricho vai-lhe sair caro. Você tem a voz mais bela do fundo do mar. Suponho que pensa em fazer uso dela para fascinar o príncipe. Pois este é o meu preço: quero sua voz. Vou ter de usar o meu sangue para fazer a poção mágica, a fim de que ela se torne mais poderosa
que uma espada de dois gumes. Troco meu sangue preciosos pela sua voz, que é a coisa mais preciosa que você tem. [...]
- Pronto – disse a bruxa, enquanto cortava a língua da pequena sereia, com um golpe rápido e certeiro.
A pobrezinha ficou muda. Nunca mais poderia falar ou cantar.” (p.131)
Ler páginas 136-139
Edmund Dulac, 1911. “Numa imagem que faz lembrar a descrição da morte de Ofélia, em Hamlet, a Pequena Sereia morre no elemento que outrora foi seu lar.” (Tatar, p.345)
Honor Appleton, 1922. “O sol nascente anuncia o renascimento da Pequena Sereia, que, como uma filha do ar, pode conquistar uma alma imortal praticando boas ações durante trezentos anos.” (Tatar, p.347)
Contos de fadas, Maria Tatar
“A crueldade e a violência forma muitas vezes vistas como a marca dos contos de fadas alemães, mas P.L Travers, a autora de Mary Poppins, considerava Hans Christian Andersen um mestre na arte da tortura. ‘Como eu preferiria ver madrastas malvadas fervidas no óleo’, ela declarou, ‘a suportar a agonia prolongada da Pequena Sereia.” Para Andersen o sofrimento é a insígnia da superioridade espiritual, e seus protagonistas tiranizados emergem triunfantes por sofrer humilhações aparentemente infindáveis. A Pequena Sereia, no entanto, tem ambições mundanas que sugerem mais do que o sofrimento silencioso. Atraída pelo mundo superior, está ansiosa por singrar os mares, escalar montanhas e explorar o território proibido. Em roupas de menino, cavalga com o príncipe, transgredindo fronteiras de gênero de maneiras sem precedentes. E, a despeito de toda a sua paixão por aventura e vida e de sua natureza pagã, é uma criatura piedosa, que reluta em sacrificar a vida do príncipe pela sua própria.” (p.318)
“Para poder viver no mundo humano, a sereia de Andersen tem de sacrificar sua voz à bruxa do mar, uma figura diametralmente oposta à promessa de salvação eterna. O pântano em que ela reside e os ossos humanos que sustentam sua casa, tudo aponta para a mortalidade humana e a deterioração física. Inicialmente disposta a enfrentar os perigos de uma visita à bruxa, a Pequena Sereia renuncia finalmente às suas artes negras quando lança ao mar a faca destinada ao príncipe e é recompensada com a possiblidade de ganhar a imortalidade.” (Tatar, 2013, p.318)
O patinho feio
“História clássica de metamorfose de um patinho num belo cisne tem sido por gerações como uma fonte de consolo para os que sofrem de um sentimento de inadequação ou isolamento. Ela alcançou uma espécie de autoridade moral que merece muita atenção, pois transmite uma mensagem muito clara sobre autoestima, status social e a promessa de transformação. O patinho feio transcende sua condição inferior sem nenhum esforço real de sua parte. Simplesmente suporta humilhações, privação e perigos até que sua hora chegue. Depois abre suas asas e se une ao majestático parente que flutua sobre as águas, servindo como fonte de encantamento visual para as crianças no parque.” (Tatar, p.305)
“Pequenas, impotentes e muitas vezes tratadas com desdém, as crianças tendem a se identificar com o feioso animal que, é o mais novo da ninhada, neste caso o último a sair da casca. O Patinho Feio, como a proverbial tartaruga ou o minúsculo Pequeno Polegar, pode não parecer grande coisa, mas com o tempo supera as expectativas. Como Bruno Bettelheim assinala na Psicanálise dos Contos de fadas, o protagonista de Andersen não precisa se submeter aos testes, tarefas e provações usualmente impostos aos heróis dos contos de fadas: “Nenhuma necessidade de realizar coisa alguma é expressa em O Patinho Feio. As coisas estão simplesmente predestinadas e se desenrolam de acordo, quer o herói empreenda ou não alguma ação.” Andersen sugere que a superioridade inata do patinho advém do fato de ele ser de uma espécie diferente. Ao contrário dos outros patos, foi chocado de um ovo de cisne. Essa hierarquia implícita na natureza – cisnes majestáticos versus “a ralé do terreiro” – sugere que a dignidade e o valor, juntamente com a superioridade estética e moral, são determinados não pela realização mas pela natureza.” (p.306)
“Sejam quais forem os prazeres de uma história que celebra o triunfo do mais fraco, vale a pena refletir sobre as questões éticas e estéticas suscitadas por essa vitória. A história de Andersen não só perpetua estereótipos culturais ao vincular realeza e aristocracia à beleza; promove também um culto do sofrimento, um culto que vê virtude na dor física e na angústia espiritual. Seria possível objetar que o Patinho Feio tem seu caráter e coragem postos à prova. Ao suportar bravamente as zombarias dos outros e ao enfrentar os desafios físicos da natureza, ele sobrevive, vitorioso, e não obstante sem orgulho nem vaidade me sua glória. No lago, o patinho feio sofre um encarceramento glacial: torna-se um ornamento congelado, morto para o mundo. Para Andersen um desvio da carnalidade (que por vezes assume a forma externa da mortificação da carne e da paralisia física) torna-se o pré-requisito da plenitude espiritual e da salvação.” (p.306)
“No entanto, se no fim triunfa e reina supremo como o mais “belo de todos”, e também como o melhor (pois não tem um coração orgulhoso), o Patinho Feio é mais uma vez reduzido à categoria de um ornamento, a deslizar na superfície do lago ante o olhar admirado das crianças que premiam seu garbo com migalhas de pão. Muitos estudiosos afirmaram que O Patinho Feio é a história de Andersen mais profundamente pessoal, uma narrativa que traça a trajetória da penosa ascensão do próprio escritor de suas origens humildes à aristocracia literária. Alvo de escárnio mesmo como autor (críticos frequentemente depreciavam seus escritos), Andersen conquistou fama e admiração em seus últimos anos.” (p.306)
Hohn Hassal, 1932. “O patinho feio saboreia sua nova identidade, observado por crianças e adultos.” (Tatar, p.317)
A Pequena vendedora de fósforos
“Poucas histórias para crianças celebram o sofrimento com o tipo de paixão deste conto sobre uma vendedora de fósforos. A criança frágil e desamparada que morre de frio na véspera do ano novo tornou-se uma espécie de ícone cultural, a vítima de um pai brutal (muito mais cruel que os ogros e bicho-papões dos contos de fadas) e de uma sociedade desalmada. Até a natureza lhe volta as costas, não lhe oferecendo abrigo nem sustento. A mágica dos contos de fadas desaparece, e a salvação chega apenas na forma da intervenção divina.” (p.294)
“O narrador da história da vendedora de fósforos nos transporta para o mudo mental da heroína, permitindo-nos sentir sua dor à medida que a temperatura cai e o vento uiva. Também partilhamos suas visões, primeiro de calor, depois de alimento, depois de beleza e, finalmente, de afeição e compaixão humana. Se a imagem final da história nos apresenta um cadáver congelado, a morte da pequena vendedora de fósforos é ainda assim uma “bela morte”, envolta em espiritualidade radiante e significado transcendente. Quer leiamos seus sofrimentos como “torturas disfarçadas em pieguices” (como o fez P.L Travers, a autora de Mary Poppins) ou consideremos sua infelicidade como a precondição para a passagem a uma esfera mais elevada, a história impregna nossa imaginação e continua sendo uma das mais memoráveis narrativas da infância.” (p.294-295)
Honor Appleton, 1920. “Descalça, a pequena vendedora de fósforos senta-se num degrau coberto de neve. Ao acender um fósforo para se aquecer, vê sua avó chamando-a para seus braços.” (Tatar, p.298)
“Muitos concordarão que o único requisito para um bom livro infantil é o triunfo do protagonista. A pequena vendedora de fósforos, com sua cena de morte, foi adaptada e reescrita muitas vezes ao longo do último século, de maneira especialmente notável numa edição de 1944, que em seu texto de capa proclamava: “As crianças lerão extasiadas esta nova versão do famoso conto de Hans Christian Andersen. Pois nela a pequena vendedora de fósforos, naquela véspera de Natal de tanto tempo atrás, não é vitimada pelo frio cortante, mas encontra calor,
alegria e um lar encantador onde vive feliz para sempre.” Andersen, que escreveu esta história numa década de inquietação social e convulsão política, ficaria sem dúvida desolado pela inflexão positiva dada a uma história que pode ser lida como uma crítica poderosa a desigualdades sociais.” (Tatar, p.295)
A roupa nova do imperador
“Menos um conto de fadas que uma fábula sobre as consequências da hipocrisia coletiva, a história de Andersen transmite uma mensagem que se tornou uma verdade proverbial condensada no dito “O rei está nu”. A opção por ignorar o que salta à vista e o agir cegamente como se nada houvesse de errado são os alvos das farpas satíricas de Andersen. O fato de ser preciso uma criança “inocente” para adivinhar a verdade que “Sua Majestade” é incapaz de discernir é um lembrete dos efeitos imbecilizantes das conveniências sociais e do modo como a cultura e a civilização produzem duplicidade e hipocrisia.” (Tatar, p.284)
“Embora ninguém tenha identificado fontes orais para esta história, Andersen está explorando um rico veio folclórico que mostra trapaceiros passando a perna em monarcas e levando a melhor sobre a gente da cidade, clérigos e estalajadeiros. O narrador não adota nenhum ponto de vista claro, nem aprovando a esperteza dos vigaristas, nem defendendo a vaidade do imperador, embora o conto seja cuidadosamente construído para transmitir uma moral clara. Andersen, um homem de origens humildes que desprezava as afetações da aristocracia, teria tomado o partido da criança inocente do conto, cuja voz revela a verdade à multidão.” (p.284)
“À medida que o conto se desenrola, fica claro que as invenções dos vigaristas, seus atos de sedução e logro, têm certo valor de verdade, embora uma verdade diametralmente oposta àquela afirmada pelos ladrões. Aqueles que veem a roupa são, de fato, os imbecis ou inaptos para as funções que exercem, ou as duas coisas. Só a crianças de semblante puro, transparente, tem a coragem de afirmar que o imperador está nu. Em sua celebração da sabedoria e franqueza da criança e da revelação por ela das hipocrisias adultas, este conto é uma leitura especialmente atraente para a hora de dormir.” (p.285)

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Outros materiais