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Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal FACULDADE DE DIREITO Direito Penal III MATERIAL 10 Prof.º Rone Miller Roma Caiapônia-GO DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL O fundamento dos crimes contra a liberdade pessoal repousa no art. 5.º, caput, da Constituição Federal, que assegura a todos o direito à liberdade. Daí se extrai que qualquer espécie de violação à liberdade do ser humano reclama punição, justificando a tipificação das condutas definidas pelos arts. 146 a 149 do Código Penal. ART. 146 – CONSTRANGIMENTO ILEGAL Objetividade jurídica É a liberdade do ser humano para agir dentro dos limites legalmente previstos. O fundamento desse delito, no âmbito de uma visão constitucional do Direito Penal, encontra- se no art. 5.º, inciso II, da Constituição Federal: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nesses termos, somente a lei pode obrigar alguém a adotar determinado comportamento, ou então proibi-lo de agir ao seu livre alvedrio. Objeto material É a pessoa sobre a qual recai a conduta criminosa. Núcleo do tipo Constranger equivale a coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Consiste, em suma, no comportamento de retirar de uma pessoa a sua liberdade de autodeterminação. Há crime, uma vez que somente ao Estado, não de modo arbitrário, mas exclusivamente por meio de lei, confere-se a tarefa de disciplinar a obrigação ou a proibição de condutas por seres humanos. Em síntese, o delito pode ocorrer em duas hipóteses: a) quando a vítima é compelida a fazer alguma coisa (conduta comissiva ou positiva). Exemplos: beber um copo de cerveja, andar sem sapatos em via pública etc.; e b) quando a vítima é compelida a deixar de fazer algo (conduta omissiva ou negativa), que também engloba a situação em que ela é coagida a permitir que o agente faça alguma coisa. Exemplos: não fumar em local permitido, não correr em um parque público etc. Mas não basta o agente obrigar a vítima a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. Precisa impor à vítima um comportamento certo e determinado. Além disso, o constrangimento há de ser ilegal, isto é, a ação ou omissão pretendida pelo sujeito ativo deve estar em desconformidade com a legislação em vigor. E, nesse contexto, a ilegitimidade da pretensão pode ser: Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal a) absoluta: quando o agente não tem direito à ação ou omissão. Exemplo: obrigar a vítima a cantar uma música; e b) relativa: quando o agente tem direito à ação ou omissão, mas a vítima não pode ser compelida a comportar-se da forma por ele visada. Exemplo: obrigar o ofendido a quitar uma dívida resultante de jogo de azar. Consequentemente, não há crime quando o constrangimento objetiva impedir a realização de ação ou omissão proibida pela lei. Quem assim age está acobertado no exercício regular do direito, causa excludente da ilicitude prevista no art. 23, inciso III, do Código Penal. Todavia, estará caracterizado o delito de constrangimento ilegal na hipótese em que o sujeito, valendo- se de violência (própria ou imprópria) ou grave ameaça, busca evitar a realização de um ato meramente imoral pela vítima. Ressalte-se, porém, que, se o comportamento da vítima puder ser exigido por meio de ação judicial, o crime será o de exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345). Também estará configurado este delito sempre que o agente, embora incidindo em erro, acreditar ser legítima sua pretensão. Para realizar qualquer das condutas previstas no tipo penal, o sujeito pode se valer dos seguintes meios de execução: violência, grave ameaça e qualquer outro meio que reduza a capacidade de resistência da vítima. a) Violência: Violência própria, ou física, é o emprego de força bruta sobre a vítima. A violência pode ser direta ou imediata, quando dirigida contra a vítima, ou indireta ou mediata, quando dirigida a pessoa ou coisa ligada ao ofendido. b) Grave ameaça: Também chamada de violência moral, consiste na promessa de realização de mal grave, futuro e sério contra a vítima ou pessoa que lhe é próxima. Pode ser transmitida ao ofendido oralmente ou por escrito. Note-se que, ao contrário do crime de ameaça (CP, art. 147), não precisa ser injusta. c) Qualquer outro meio que reduza a capacidade de resistência da vítima: o legislador previu a violência imprópria, valendo-se da interpretação analógica. Depois de estabelecer uma fórmula casuística (violência ou grave ameaça), recorreu a uma fórmula genérica. Constitui-se, portanto, meio de execução do crime de constrangimento ilegal qualquer outra conduta, ainda que não prevista em lei, mas análoga à violência própria e à grave ameaça, idônea a tolher a liberdade de autodeterminação da vítima. Exemplos: uso de narcóticos, hipnose, embriaguez etc. Fica nítido, portanto, que o constrangimento ilegal é crime de forma livre. Sujeito ativo Pode ser qualquer pessoa (crime comum). Entretanto, se o sujeito ativo for funcionário público, e o fato for cometido no exercício de suas funções, responderá por abuso de autoridade, na forma definida pelos arts. 2.º e 3.º da Lei 4.898/1965. Sujeito passivo Qualquer pessoa, desde que dotada de capacidade de autodeterminação. Excluem-se, portanto, as crianças de tenra idade e os doentes mentais, entre outros. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Elemento subjetivo É o dolo. Não se admite a modalidade culposa. Para Damásio E. de Jesus, exige-se ainda um especial fim de agir, uma vez que a conduta é realizada com o fim de que a vítima não faça o que a lei permite ou faça o que ela não determina. Para outros autores, contudo, basta o dolo, pois as expressões “a não fazer o que a lei permite” e “a fazer o que ela não manda” constituem elementos objetivos do tipo, e não subjetivos. A finalidade do sujeito ativo é irrelevante, isto é, pouco importa o motivo que o levou a agir em contrariedade ao Direito. Consumação Dá-se no instante em que a vítima faz ou deixa de fazer algo, em decorrência da violência ou grave ameaça utilizada pelo agente. Cuida-se de crime material e instantâneo. Tentativa É possível, tanto quando busca o agente constranger a vítima a não fazer o que a lei permite (exemplo: “A”, em vão, diz a “B” para ele não frequentar uma praça pública, pois caso contrário irá agredi-lo), bem como quando deseja que ela faça o que a lei não manda (exemplo: “A” golpeia “B” com socos para que este último cante uma música, no que não é atendido). Subsidiariedade tácita O constrangimento ilegal é crime subsidiário. Destarte, a lei que o define é afastada pela lei que utiliza o constrangimento ilegal como elemento, qualificadora ou meio de execução de um crime mais grave. É o que se verifica nos crimes de extorsão (CP, art. 158) e estupro (CP, art. 213), entre outros. Causas de aumento da pena: art. 146, § 1.º O art. 146, § 1.º, do Código Penal arrola duas causas de aumento da pena para o crime de constrangimento ilegal. Incidem, portanto, na derradeira etapa do critério trifásico de dosimetria da pena privativa de liberdade. Dizem respeito à execução do crime: reunião de mais de três pessoas e emprego de arma. A presença de uma ou de ambas as causas de aumento de pena produz os seguintes efeitos simultâneos: as penas previstas no caput (detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa) serão aplicadas cumulativamente (detenção e multa) e em dobro (detenção, de 6 meses a 2 anos, e duplicada a multa). Reunião de mais de três pessoas Pela redação do dispositivo legal, é imprescindívelque ao menos quatro pessoas tenham se envolvido nos atos executórios do constrangimento ilegal. Trata-se de crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário, e, por tal motivo, ingressam nesse número os inimputáveis e os sujeitos não identificados. A pena será aumentada em razão do concurso de agentes para a execução do constrangimento ilegal. Se, todavia, a união de quatro ou mais pessoas182 para a prática de crimes específicos for estável e permanente, haverá concurso material entre o constrangimento ilegal simples e a associação criminosa (CP, art. 288). Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Emprego de armas Como a lei não definiu o tipo de arma que leva ao aumento da pena, é possível falar na exasperação tanto quando se tratar de arma própria como no tocante à arma imprópria. Arma própria é todo objeto ou instrumento que foi originariamente concebido com a finalidade de ataque ou defesa, da qual são exemplos o revólver, o punhal e a pistola, etc. Ao contrário, arma imprópria é o objeto ou instrumento que, embora criado com finalidade diversa, pode ser utilizado para ataque ou defesa, tais como a faca de cozinha, o machado e a chave de fenda, entre outros. Nada obstante o dispositivo legal fale em “emprego de armas”, basta uma única arma para legitimar o aumento da pena. A lei faz menção ao gênero, e não ao número. E, para que seja aplicada a causa de aumento de pena, é necessário seja a arma efetivamente empregada pelo agente. Mas seu porte ostensivo, utilizado com o nítido propósito de amedrontar a vítima, também autoriza a incidência da majorante. Em face da reduzida quantidade de pena do constrangimento ilegal, os crimes de posse ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/2003, art. 12) ou de porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/2003, art. 14) não são por ele absorvidos. Estará configurado o concurso material de crimes. Anote-se que o arquivamento de inquérito policial pela prática do crime de porte ilegal de arma de fogo não impede o reconhecimento da causa de aumento de pena prevista no § 1.º do art. 146 do Código Penal. Enquanto o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) define os crimes voltados à repressão do uso e porte de arma de fogo, a majorante do constrangimento ilegal refere-se a qualquer arma, desde que ela tenha a capacidade de impingir à vítima a grave ameaça contida nocaput do art. 146 do Código Penal. Concurso material obrigatório: art. 146, § 2.º O legislador entendeu que o emprego de violência torna o crime de constrangimento ilegal mais grave do que quando praticado com grave ameaça, pois é idôneo a proporcionar consequências mais funestas à vítima. Daí a razão de ser obrigatória, nessa hipótese, além das penas cominadas ao constrangimento ilegal, a imposição da pena resultante da violência utilizada na execução do crime. Em outras palavras, o agente que, com violência, constrange ilegalmente a vítima, vindo a feri- la, deve responder por dois crimes em concurso material: constrangimento ilegal (simples ou agravado, conforme o caso), e lesão corporal, leve, grave ou gravíssima. Ação penal É pública incondicionada, em todas as modalidades do delito. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA O constrangimento ilegal é crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); doloso; de forma ou ação livre (admite qualquer meio de execução); material (exige a produção do resultado naturalístico); simples (tutela um único bem jurídico, qual seja a liberdade pessoal ou poder de autodeterminação); instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); de dano (consuma-se somente com a lesão ao bem jurídico penalmente protegido); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (praticado por uma única pessoa, mas compatível com o concurso de agentes, e eventualmente de concurso necessário, na figura agravada prevista no § 1.º); plurissubsistente (conduta pode ser fracionada em diversos atos); e subsidiário. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Causas de exclusão do crime: art. 146, § 3.º O art. 146, § 3.º, do Código Penal arrola duas hipóteses nas quais “não se compreendem na disposição deste artigo”, ou seja, situações em que, nada obstante alguém tenha tolhida sua liberdade de autodeterminação, o fato não configura o crime de constrangimento ilegal. Justifica-se a opção legislativa pela proteção de um bem jurídico indisponível: a vida humana. A doutrina dominante classifica tais casos como causas especiais de exclusão da ilicitude, por se constituírem em manifestações inequívocas do estado de necessidade de terceiro. O sujeito é atingido em sua liberdade pessoal justamente para ser protegido do perigo que lhe rodeia. Há, contudo, posições contrárias. Para alguns autores, a redação da lei (“não se compreendem na disposição deste artigo”) instituiu causas excludentes da tipicidade, pois, se os fatos não se encontram compreendidos na norma penal incriminadora, são condutas atípicas. Qualquer que seja a posição adotada, porém, opera-se a exclusão do crime. Em verdade, se o delito é, no mínimo, o fato típico e ilícito, afastando-se a tipicidade ou a ilicitude, o crime deixa de existir. A intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida: inciso I Pouco importa o motivo que leva o paciente em iminente perigo de vida, ou seu representante legal, a discordar da intervenção médica ou cirúrgica. Ainda que de cunho religioso, em que pese ser o Brasil um Estado laico, pode agir o profissional da medicina contra a vontade do paciente ou de quem o represente, a fim de salvar sua vida. A coação exercida para impedir suicídio: inciso II O suicídio não é definido como crime no Brasil. Mas é uma conduta ilícita, não tolerada pelo Direito, pois a vida humana é bem jurídico indisponível, de interesse coletivo e expressamente protegido pelo art. 5.º, caput, da Constituição Federal. Portanto, não há constrangimento ilegal na coação, exercida com violência ou grave ameaça, para impedir a eliminação da própria vida por quem quer que seja. O constrangimento, ao contrário, é legal, pois o suicídio, este sim, é ilegal. O dispositivo em análise permite o emprego de coação para combater um ato ilícito. Em geral, para impedir uma ação ou omissão ilícita, a constrição violenta de um indivíduo sobre outro deixa de ser criminosa. E, ao reconhecer expressamente a licitude da coação para evitar suicídio, o Código Penal o fez apenas para afastar a controvérsia doutrinária sobre se o suicídio é ato contra ius ou simplesmente imoral (ou indiferente ao direito). ART. 147 – AMEAÇA Objetividade jurídica O bem jurídico tutelado pela lei penal é a liberdade da pessoa humana, notadamente no tocante à paz de espírito, ao sossego, à tranquilidade e ao sentimento de segurança. Objeto material É a pessoa contra a qual se dirige a ameaça. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Núcleo do tipo O núcleo do tipo é “ameaçar”, que significa intimidar, amedrontar alguém, mediante a promessa de causar-lhe mal injusto e grave. Não é qualquer mal que caracteriza o delito, mas apenas o classificado como “injusto e grave”, que pode ser físico, econômico ou moral. Mal injusto é aquele que a vítima não está obrigada a suportar, podendo ser ilícito ou simplesmente imoral. Por sua vez, mal grave é o capaz de produzir ao ofendido um prejuízo relevante. Além disso, o mal deve ser sério, ou fundado, iminente e verossímil, ou seja, passível de realização. Em outras palavras, a ameaça há de ser séria e idônea à intimidação dapessoa contra quem é dirigida. Destarte, o fato é atípico, por constituir crime impossível, quando inidôneo a amedrontar, tal como quando causa risos ou quando seu destinatário não lhe confere credibilidade, por pior que seja a intimidação. Em tais casos, o bem jurídico protegido pela lei penal não é atingido pela conduta do agente. A pessoa visada não foi abalada em sua paz de espírito e em seu sentimento de segurança e de tranquilidade. Também não há crime na praga e no esconjuro, tal quando alguém diz “vá para o inferno” ou “que um raio te parta”, uma vez que o agente não tem o poder de concretizar o mal prometido. Admite-se, contudo, a ocorrência do delito de ameaça na hipótese de dano fantástico, quando o sujeito passivo é supersticioso e o sujeito ativo tem consciência desta circunstância pessoal.188 Trata-se de crime de forma livre. O próprio tipo penal é claro ao permitir seja a conduta praticada por palavras (exemplo: dizer a alguém que vai sequestrar seu filho), escritos (exemplo: remeter uma carta, na qual consta que a filha da vítima será estuprada), gestos (exemplo: fazer para alguém um indicativo de que irá cortar seu pescoço) ou qualquer outro meio simbólico (exemplo de Nélson Hungria: enviar a alguém o desenho de um punhal atravessando um corpo humano). Não há necessidade de ser a ameaça proferida na presença da vítima. Basta que chegue ao seu conhecimento. Espécies de ameaça A ameaça, quanto à pessoa em relação a qual o mal injusto e grave se destina, pode ser: a) direta ou imediata:é a dirigida à própria vítima. Exemplo: “A” telefona para “B” dizendo que irá matá-lo. b) indireta ou mediata:é a endereçada a um terceiro, porém vinculado à vítima por questões de parentesco ou de afeto. Exemplo: “A” diz a “B” que irá agredir “C”, filho deste último. Além disso, o delito em apreço divide-se também no tocante à forma pela qual a ameaça é praticada: a) explícita: cometida sem nenhuma margem de dúvida. Exemplo: apontar uma arma de fogo. b) implícita: aquela em que o agente dá a entender que praticará um mal contra alguém. Exemplo: “A” diz para “B”: “Já que você fez isso, pode providenciar seu lugar no cemitério”. c) condicional:é a ameaça em que o mal prometido depende da prática de algum comportamento por parte da vítima. Exemplo: “A” diz para “B”: “Irá morrer se cruzar novamente o meu caminho”. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Ameaça e promessa de mal atual ou futuro Discute-se se o mal prometido deve ser unicamente futuro, ou se pode também ser atual. Há duas posições sobre o assunto: O mal necessariamente há de ser futuro O próprio tipo penal exige seja futuro o mal prometido, uma vez que ameaçar nada mais é do que prometer realizar, ulteriormente, mal injusto e grave. Consequentemente, o mal atual (que está ocorrendo) nada mais é do que ato preparatório ou executório de outro crime. Exemplo: “A” diz a “B” que irá pegar uma faca para matá-lo. De posse do instrumento pérfuro-cortante, é agarrado por terceiros que o impedem de agredir a vítima. Há, no caso, tentativa de homicídio, e não ameaça. É a posição a que nos filiamos. Sujeito ativo Pode ser qualquer pessoa (crime comum). Se, todavia, tratar-se de funcionário público no exercício de suas funções, estará caracterizado o delito de abuso de autoridade (Lei 4.898/1965, art. 3.º). Sujeito passivo Qualquer pessoa certa e determinada, desde que capaz de compreender o caráter intimidatório da ameaça contra ela lançada. Excluem-se, entre outros, as crianças de pouca idade, os loucos e todas as pessoas incapazes, no caso concreto, de entenderem a ameaça (exemplo: um surdo em relação a uma ameaça verbal). Se a ameaça é endereçada simultaneamente a diversas pessoas, reunidas por qualquer motivo ou acidentalmente, há diversos crimes (dependendo do número de ofendidos) em concurso formal. Não há crime de ameaça contra a coletividade, nem contra pessoas indeterminadas. Há crime contra a Segurança Nacional, definido pelo art. 28 da Lei 7.170/1983, quando a ameaça é proferida contra o Presidente da República, do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal. Elemento subjetivo É o dolo, consistente na vontade livre e consciente de intimidar alguém. É imprescindível tenha sido a ameaça efetuada em tom de seriedade, nada obstante seja irrelevante possua o agente, em seu íntimo, a real intenção de realizar o mal prometido. Não se reclama nenhuma finalidade específica, e também não se admite a modalidade culposa. A intenção de brincar (animus jocandi), a simples bravata e a mera incontinência verbal não caracterizam o crime de ameaça. Prevalece o entendimento de que o crime de ameaça não depende de ânimo calmo e refletido por parte do agente. Em suma, o estado de ira não afasta por si só o delito, pois subsiste o dolo, consistente na vontade de intimidar. Além disso, a emoção e a paixão não excluem a imputabilidade penal (CP, art. 28, inc. I). A cautela recomenda, contudo, a análise individual do caso prático. Com efeito, em algumas situações a ira pode agravar ainda mais a ameaça, causando elevado temor à vítima. Em outras hipóteses, porém, o descontrole emocional é capaz de fazer com as que as pessoas lancem em Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal vão as palavras ao vento, atacando-se umas às outras sem a firme vontade de concretizarem o que foi dito. Igual raciocínio se aplica à ameaça proferida pelo ébrio. A embriaguez, como se sabe, não exclui a imputabilidade penal (CP, art. 28, inc. II). Em algumas situações, subsiste o crime, pois o estado de embriaguez pode causar temor ainda maior à vítima; em outros casos, todavia, retira completamente a credibilidade da ameaça, levando à atipicidade do fato. Consumação Dá-se no instante em que se verifica a percepção da ameaça pelo sujeito passivo, isto é, no momento em que a vítima toma conhecimento do conteúdo da ameaça, pouco importando sua efetiva intimidação e a real intenção do autor em fazer valer sua promessa. O crime é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Basta queira o agente intimidar, e tenha sua ameaça capacidade para fazê-lo. Tentativa É admissível nas hipóteses de ameaça escrita, simbólica ou por gestos, e incompatível nos casos de ameaça verbal. Ação penal É pública condicionada à representação. Distinções O crime de ameaça não se confunde com o de constrangimento ilegal (CP, art. 146). Naquele, o agente quer apenas amedrontar a vítima; neste, deseja uma conduta positiva ou negativa do sujeito passivo. Em face do princípio da especialidade no conflito aparente de leis penais, a ameaça na cobrança de dívida caracteriza crime contra as relações de consumo, de ação penal pública incondicionada (Lei 8.078/1990, art. 71). Subsidiariedade O crime de ameaça é subsidiário em relação a outros delitos mais graves. Exemplificativamente, serve como elementar do tipo penal do roubo, da extorsão e do estupro. E, se após a ameaça for praticada lesão corporal contra a mesma vítima, aquele delito será por este absorvido. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA A ameaça é crime doloso; comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); de forma livre (admite qualquer meio de execução); unissubsistente (exemplo: ameaça verbal) ou plurissubsistente (exemplo: ameaça escrita); formal (é irrelevante se a vítima sentiu-se ou não ameaçada); instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo);unilateral, unissubjetivo ou de concurso eventual (em regra praticado por uma única pessoa, mas admite o concurso); e subsidiário.Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal ART. 148 – SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO Objetividade jurídica O bem jurídico protegido pela lei penal é a liberdade de locomoção, consistente no direito de ir, vir e permanecer, de toda e qualquer pessoa humana. O fundamento constitucional deste delito encontra-se no art. 5.º, caput, da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade...”. Tão relevante é esse direito que a Constituição Federal prevê o habeas corpus como garantia para zelar pelo seu respeito, sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder (art. 5.º, LXVIII). Objeto material É a pessoa humana que suporta a conduta criminosa, com a privação da sua liberdade. Núcleo do tipo A nota comum entre os crimes de sequestro e de cárcere privado é a privação da liberdade da vítima, sem o seu consentimento, por tempo juridicamente relevante. O núcleo do tipo é “privar”, que significa tolher, total ou parcialmente, a liberdade de locomoção de alguém. Vale destacar que a palavra “cárcere” é sinônima de calabouço, cela ou prisão, evidenciando a inserção da vítima em local fechado, enclausurado. Anote-se, porém, que a diferenciação entre sequestro e cárcere privado é eminentemente doutrinária. Em termos práticos, esta distinção não interfere na tipicidade do delito, podendo influenciar somente na dosimetria da pena, em consonância com as circunstâncias judiciais previstas no art. 59, caput, do Código Penal. Admite-se a execução do crime por ação (regra geral), ou, excepcionalmente, por omissão, desde que presente o dever de agir (CP, art. 13, § 2.º), tal como na hipótese em que o pai nota que o filho de pouca idade está preso em seu quarto, mas dolosamente nada faz para libertá-lo. Ademais, o sequestro e o cárcere privado podem ser cometidos mediante detenção (exemplo: levar a vítima a um cativeiro) ou retenção (exemplo: impedir a saída da vítima de sua residência). Sujeito ativo Qualquer pessoa (crime comum). Se, todavia, tratar-se de funcionário público, no exercício das suas funções, estará caracterizado o crime de abuso de autoridade, na forma definida pelo art. 3.º, a, da Lei 4.898/1965: “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção”, ou, dependendo do caso concreto, pelo art. 4.º, a, da Lei 4.898/1965: “Constitui também abuso de autoridade ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”. Sujeito passivo Qualquer pessoa. Se, porém, a vítima é ascendente, descendente, cônjuge, ou companheiro do agente, ou pessoa com idade superior a 60 (sessenta) anos ou inferior a 18 (dezoito) anos, incide a figura qualificada (CP, art. 148, § 1.º, inc. I ou IV). Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Estará caracterizado crime contra a Segurança Nacional, definido pelo art. 28 da Lei 7.170/1983, na hipótese de sequestro ou cárcere privado praticado contra o Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal. O consentimento da vítima, se válido, exclui o crime. Essa afirmação deve ser interpretada com bom-senso. Com efeito, o direito à liberdade é indisponível e irrenunciável. Não se aceita, a título ilustrativo, a autorização de alguém para ser mantido em prisão perpétua. Mas nada impede uma pessoa de deixar de exercer temporariamente seu direito de locomoção, em condições éticas, legítimas e toleradas pelo ordenamento jurídico, a exemplo do que se dá no tempo mínimo de permanência de candidatos em salas de vestibulares, provas em geral e concursos públicos. Elemento subjetivo É o dolo, sem qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa. Se o propósito do agente, com a privação da liberdade de uma pessoa, for obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate, o crime será de extorsão mediante sequestro (CP, art. 159). Por sua vez, se o sequestro ou cárcere privado for cometido com fins libidinosos, incidirá a figura qualificada definida pelo art. 148, § 1.º, inciso V, do Código Penal. A retenção de paciente em hospital para garantir o pagamento dos honorários médicos tipifica o delito de exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345). De outro lado, a privação de liberdade com finalidade corretiva caracteriza o crime de maus- tratos (CP, art. 136). Exemplo: pai que não permite que seu filho saia do quarto, em razão de ter sido reprovado na escola. Finalmente, não se caracteriza o crime tipificado pelo art. 148 do Código Penal quando a privação da liberdade de alguém objetiva a fuga, por parte de criminosos, da ação da autoridade pública. Consumação O crime é permanente e material. Por corolário, a consumação se prolonga no tempo, ou seja, reclama a privação da liberdade de alguém por tempo juridicamente relevante, a ser aferido com razoabilidade no caso concreto. É possível a prisão em flagrante a qualquer momento, enquanto subsistir a eliminação da liberdade da vítima. Há, todavia, entendimentos no sentido de que a duração da privação de liberdade é irrelevante para a consumação do delito, devendo ser considerada unicamente na dosimetria da pena. Exige-se certeza da intenção do agente de tolher o poder de locomoção da vítima. Nesse contexto, o crime de sequestro ou cárcere privado distingue-se nitidamente do constrangimento ilegal (CP, art. 146). Enquanto no sequestro ou cárcere privado o sujeito ativo retira da vítima sua liberdade de locomoção por período razoável, sem nenhuma motivação especial (exemplo: prender alguém, gratuitamente, no porta-malas de um automóvel), no constrangimento ilegal o agente interfere na esfera de locomoção da vítima para obrigá-la a fazer ou deixar de fazer alguma coisa (exemplo: vítima compelida a dar fuga a um criminoso em seu automóvel). Tentativa É possível, tanto no sequestro como no cárcere privado. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Subsidiariedade O sequestro e o cárcere privado subsistem como delitos autônomos somente quando a privação da liberdade não funciona como elementar ou meio de execução de outro crime. Exemplificativamente, o crime de extorsão mediante sequestro (CP, art. 159) absorve o delito tipificado pelo art. 148 do Código Penal. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA O crime é doloso; material (reclama o resultado naturalístico, consistente na privação da liberdade de alguém); permanente (a consumação se prolonga no tempo, por vontade do agente); de forma livre (admite diversos meios de execução); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); comissivo ou omissivo (nesse último caso, quando presente o dever de agir); unissubsistente ou plurissubsistente; unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (praticado por uma única pessoa, mas admite o concurso de agentes); e subsidiário. Qualificadoras: §§ 1º e 2º Os §§ 1.º e 2.º do art. 148 do Código Penal elencam diversas qualificadoras, relacionadas à condição da vítima, ao meio de execução do crime, ao tempo de duração da privação da liberdade, à finalidade do agente e ao resultado produzido. A pena, que era de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, no caput, passa a ser de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, no § 1º, e de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, no § 2º. Em todas as qualificadoras o Código Penal apresenta crimes de elevado potencial ofensivo, incompatíveiscom os benefícios instituídos pela Lei 9.099/1995. Qualificadoras do § 1.º Se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos: inciso I A maior gravidade da conduta repousa no fato de ter sido o crime praticado no âmbito das relações familiares, no seio da união estável, ou ainda contra pessoa idosa, mais frágil em razão da avançada idade, e, consequentemente, com menor possibilidade de defesa. No tocante ao ascendente, ao descendente, ao cônjuge e à pessoa maior de 60 (sessenta) anos, não se aplicam as agravantes genéricas do art. 61, inciso II, alíneas “e”, e “h”, do Código Penal, sob pena de dupla punição pelo mesmo fato (bis in idem). O pai que sequestra o próprio filho, descumprindo ordem judicial, comete somente crime de desobediência (CP, art. 330). Como o crime definido pelo art. 148 do Código Penal é permanente, incide a qualificadora mesmo que a conduta seja iniciada antes de a vítima completar 60 (sessenta) anos, desde que subsista depois de completar esta idade. Se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital: inciso II Esse crime, conhecido como internação fraudulenta, pode ser praticado por médico ou por qualquer outra pessoa. A razão da maior punição repousa no estratagema empregado pelo agente, que, na maioria das vezes, utiliza-se de remédios ou drogas para criar uma suposta debilidade física e mental na vítima, e, assim, interná-la em casa de saúde ou hospital. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias: inciso III A privação da liberdade, por si só, já caracteriza o crime, em sua forma simples. A privação de longa duração ou duradoura, entretanto, constituiu uma qualificadora, pois quanto mais longa a supressão da liberdade, maiores são as possibilidades de a vítima suportar danos físicos e psíquicos. Trata-se de crime a prazo. O período legalmente exigido deve ser computado em conformidade com a regra traçada pelo art. 10 do Código Penal, compreendendo o intervalo entre a consumação do delito e a libertação do ofendido. Se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos: inciso IV Aplica-se às hipóteses em que a vítima é criança ou adolescente, e, nesse último caso, impede a utilização da agravante genérica prevista no art. 61, inciso II, alínea “h”, do Código Penal. Justifica-se a opção legislativa na circunstância de se tratar de pessoa mais vulnerável e ainda em desenvolvimento físico e mental. Essa figura qualificada não se confunde com o crime tipificado no art. 230 da Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente: “Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos”. O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta um crime menos rigoroso, no qual a criança ou o adolescente é apreendido (detido) de forma ilegal, sem, contudo, ser colocado no cárcere. No crime previsto no Código Penal, com a redação dada pela Lei 11.106/2005, a situação é mais grave: a criança ou o adolescente é privado de sua liberdade por tempo juridicamente relevante, e não simplesmente retido e levado à Delegacia de Polícia sem ordem judicial ou situação de flagrante de ato infracional. Se o crime é praticado com fins libidinosos: inciso V Esse inciso foi acrescido pela Lei 11.106/2005 para suprir a lacuna surgida em razão da revogação do crime de rapto, que cuidava somente da privação da liberdade de mulher honesta. Atualmente, a qualificadora consiste na privação da liberdade de uma pessoa, homem ou mulher, com fins sexuais. Ao contrário do caput (crime material), a figura qualificada contém um crime formal, de resultado cortado ou de consumação antecipada: consuma-se com a privação da liberdade, desde que o sujeito deseje praticar atos libidinosos com a vítima, pouco importando se alcança ou não o fim almejado. Se envolver-se sexualmente com a vítima, responderá, em concurso material, pelo delito em apreço e pelo respectivo crime contra a liberdade sexual, tal como o estupro. Qualificadora do § 2.º: Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral O art. 148, § 2.º, do Código Penal contempla um crime qualificado pelo resultado. Os maus-tratos consistem na conduta agressiva do agente que ofende a moral, o corpo ou a saúde da vítima, sem produzir lesão corporal. Contudo, se ocorrer lesão corporal estará caracterizado concurso material entre o sequestro ou cárcere privado, na forma simples, e o crime de lesão corporal leve, grave ou gravíssima. Igual raciocínio se aplica se houver a morte da vítima, situação em que haverá concurso material com o homicídio, doloso ou culposo. Por sua vez, a natureza da detenção diz respeito ao aspecto físico da privação da liberdade do ofendido, tal como prendê-la em local frio e úmido, sem luz solar, etc. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal ART. 149 – REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO O crime tipificado pelo art. 149 do Código Penal é doutrinariamente conhecido como plágio. Essa denominação remonta ao Direito Romano, época em que a Lex Fabia de Plagiariis vedava a escravização de homem livre, bem como o comércio de escravo alheio, então chamado de plagium, indicativo da total e completa submissão de uma pessoa à vontade alheia. Não se trata, todavia, de escravidão. É suficiente seja a vítima reduzida à condição análoga, isto é, semelhante à de escravo. Objetividade jurídica O bem jurídico protegido é o status libertatis, ou seja, o direito à liberdade de qualquer indivíduo, e não somente do trabalhador, em todas as suas formas de exteriorização, como corolário da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, III).195 Esse direito é inviolável e assegurado peremptoriamente pelo art. 5.º, caput, da Constituição Federal. Em síntese, a lei penal busca impedir seja uma pessoa submetida à servidão e ao poder de fato de outrem, assegurando sua autodeterminação. Mas há situações em que o art. 149 do Código Penal, sem prejuízo da liberdade individual, também tutela a organização do trabalho (crime pluriofensivo). Nesses casos, a competência para processo e julgamento do delito será da Justiça Federal, como estudaremos no item 1.6.1.4.13. Objeto material É a pessoa humana tratada como escravo. Núcleo do tipo O núcleo do tipo é “reduzir”, que no âmbito do art. 149 do Código Penal significa subjugar, forçar alguém a viver em situação semelhante àquela em que se encontravam os escravos em períodos remotos. Contudo, ao contrário do que ocorria em épocas pretéritas, não mais se exige seja a vítima açoitada ou acorrentada. O tipo penal contém a palavra “escravo”, que funciona como elemento normativo do tipo. Seu significado, portanto, deve ser extraído mediante uma valoração por parte do magistrado. Atualmente, escravo traduz a ideia de um indivíduo incapaz de ditar os caminhos a seguir em sua vida, pois outra pessoa (patrão ou empregador) se considera como seu legítimo e exclusivo proprietário. Em sua redação original, o dispositivo legal estabelecia: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. O tipo penal era excessivamente aberto, impreciso e vago, e reclamava o uso rotineiro da analogia, procedimento inadequado no Direito Penal. Na prática, o crime era compreendido como uma espécie de sequestro ou cárcere privado, uma vez que os escravos sempre foram privados desse bem jurídico, associado ao emprego de maus-tratos.A situação foi alterada com a edição da Lei 10.803/2003. A figura típica agora descreve minuciosamente os modos de execução do delito, que era de forma livre e passou a ser de forma vinculada. A finalidade da reforma legislativa foi estabelecer as hipóteses em que se configura a condição análoga à de escravo, tanto nas modalidades do caput como nas formas equiparadas do § 1.º. Fica nítido que não mais se exige o tratamento do ser humano como em épocas distantes da nossa história (pessoas acorrentadas e sujeitas a chibatadas, aprisionadas no pelourinho etc.). O conceito de escravo há de ser interpretado em sentido amplo, abrangendo inclusive a submissão de alguém a uma jornada exaustiva de trabalho. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal O escopo do legislador, evidentemente, foi combater o problema, ainda existente em grandes fazendas, notadamente nas cidades longínquas e distantes dos centros urbanos, dos trabalhadores privados da liberdade e forçados a trabalhos excessivos e degradantes, que não recebem a remuneração mínima prevista em lei e são arbitrariamente excluídos de benefícios trabalhistas e previdenciários. O art. 149, caput, do Código Penal enumera formas de conduta alternativas, e não cumulativas. Todavia, o sujeito que incide em mais de uma conduta prevista no tipo penal, em relação a uma só vítima, pratica um único crime. Essa circunstância deve ser levada em conta na dosimetria da pena-base, para o fim de aumentá-la, nos termos do art. 59, caput, do Código Penal. a) Submeter alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva: Não é qualquer trabalho forçado que caracteriza o crime. Não se configura esse delito, exemplificativamente, quando o patrão determina ao seu serviçal que realize, uma só vez, alguma atividade para a qual não foi contratado. Trabalhos forçados consistem em atividades desenvolvidas de forma compulsória, e continuamente, com emprego de violência física ou moral, pois a vítima pode suportar algum castigo se não desempenhá-las na forma desejada. Note-se que o ordenamento jurídico em vigor veda os trabalhos forçados até mesmo aos condenados (CF, art. 5.º, inc. XLVII, alínea “c”). Com maior razão, portanto, essa espécie de trabalho não pode ser imposta a pessoas livres. Jornada exaustiva, por sua vez, é o período de labor diário que extrapola as regras da legislação trabalhista, esgotando física e psiquicamente o trabalhador, pouco importando o pagamento de horas extras ou qualquer outro tipo de compensação. Exemplo: “A” obriga “B” a trabalhar 18 horas por dia, sem descanso semanal remunerado. É imprescindível a supressão da vontade da vítima. Nesse contexto, cumpre destacar que, se é o próprio trabalhador quem busca a jornada exaustiva, seja para aumentar sua renda, seja para alcançar qualquer outro tipo de vantagem, o fato é atípico, pois não há redução da vítima, pelo empregador, a condição análoga à de escravo. O tipo exige seja o ofendido submetido, isto é, colocado por outrem, contra sua vontade, em jornada exaustiva de trabalho. b) Sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho Condições degradantes de trabalho são as que caracterizam um ambiente humilhante de trabalho para um ser humano livre e digno de respeito. Exemplo: colocar vigias armados para impedir cortadores de cana de beberem água durante a jornada de trabalho. Um bom parâmetro para identificar se as condições de trabalho são degradantes ou não repousa nas disposições trabalhistas, pois asseguram as condições mínimas para o trabalho humano. c) Restringir, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com empregador ou preposto É o que usualmente ocorre em propriedades rurais que alojam trabalhadores originários de outros Estados. Utiliza-se o expediente ilícito de constituir o empregado em eterno devedor, incapaz de honrar suas obrigações, criando um vínculo obrigatório que o impede de abandonar livremente seu local de trabalho. Exemplo: o valor do aluguel da casa em que reside é muito superior aos rendimentos do empregado, e, como sua dívida sempre aumenta, ele não pode deixar de trabalhar para o patrão. Qualquer que seja o meio empregado, se a liberdade de ir e vir do trabalhador for cerceada em função de dívida contraída com o empregador ou preposto seu,196 configura-se o delito do art. 149. Caso o patrão proporcione ao empregado a oportunidade de adquirir bens em comércio de sua propriedade, o que por si só não é ilícito, lhe é vedado em qualquer hipótese vincular a saída do empregado do seu posto em virtude da existência de dívida. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal O delito do art. 149, caput, do Código Penal, nessa modalidade, não se confunde com a figura típica delineada pelo art. 203, § 1.º, inciso I, do Código Penal (“obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida”). Na redução a condição análoga à de escravo, o patrão restringe a liberdade de locomoção porque o empregado lhe deve algo em razão de dívida, logo é o equivalente a impor um cárcere privado por conta de dívida não paga. No delito contra a organização do trabalho (CP, art. 203, § 1.º, I), figura residual e mais branda, o empregador obriga o trabalhador a usar mercadoria de determinado estabelecimento com o fim de vinculá-lo, pela dívida contraída, ao seu posto de trabalho, mas sem afetar sua liberdade de locomoção. Destarte, se o trabalhador se sentir vinculado ao local de trabalho por conta de dívida, embora possa ir e vir, estará configurado o tipo penal do art. 203, § 1.º, inciso I, mas se não puder locomover-se em razão disso, o crime passa a ser o do art. 149. Além disso, o crime do art. 203, § 1.º, inciso I, é formal, enquanto o do art. 149 é material (deve envolver sempre restrição efetiva à liberdade de ir e vir). Figuras equiparadas: art. 149, § 1.º O § 1.º do art. 149 do Código Penal arrola figuras equiparadas àquelas descritas pelo caput, pois se sujeitam às mesmas penas. São de tipos penais básicos e autônomos que também configuram o crime de redução a condição análoga à de escravo. a) Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho: inciso I Consiste em impedir o trabalhador de utilizar qualquer meio de transporte para mantê-lo integralmente vinculado ao seu posto de trabalho. Esse dispositivo visa precipuamente grandes fazendas, distantes dos centros urbanos, nas quais o empregador arbitrariamente retira o meio de transporte que levava os trabalhadores às cidades, para passeios, diversões, compras ou encontros familiares, para retê-los em seus locais de trabalho. Nada impede, todavia, a incidência desse tipo penal também em áreas urbanas, pois se admite o cerceamento de qualquer meio de transporte (ônibus, caminhões, carros, bicicletas etc.), e não somente daquele fornecido pelo patrão. b) Manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho: inciso II Manter vigilância ostensiva no local de trabalho, por si só, não constitui crime. Exemplo: seguranças armados de agências bancárias. Aperfeiçoa-se o delito somente quando presente uma finalidade específica: reter o trabalhador em seu local de trabalho. Não se exige o emprego de armas. Basta a vigilância ostensiva, ou seja, perceptível por qualquer empregado. É o que ainda ocorre em fazendas nas quais os capangas proíbem a saída dos empregados de seus postos de trabalho. Apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador consiste em crime permanente,pois visa tolher a liberdade de locomoção do trabalhador. Essa é a finalidade específica prevista no tipo penal, que o diferencia do delito definido pelo art. 203, § 1.º, inciso II, do Código Penal (“impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais”). Com efeito, no crime contra a organização do trabalho (art. 203), crime instantâneo que se consuma com a mera retenção dos documentos, o empregador retém documentos pessoais ou contratuais do empregado, com o propósito de mantê-lo vinculado ao trabalho, mas sem cercear sua liberdade de locomoção. Trata-se de tipo subsidiário, aplicável quando não restar caracterizada a figura equiparada à condição análoga à de escravo. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Sujeito ativo Qualquer pessoa (crime comum), nada obstante o delito seja normalmente cometido pelo empregado ou por seus prepostos. Sujeito passivo Em uma primeira análise, qualquer ser humano, pouco importando seu sexo, raça, idade ou cor. É irrelevante seja a vítima civilizada ou não. Entretanto, a leitura atenta do tipo penal deixa claro que apenas a pessoa ligada a uma relação de trabalho pode ser vítima do crime de redução a condição análoga à de escravo. De fato, nada obstante a descrição típica fale em “alguém”, em todas as condutas criminosas a lei se refere a “trabalhador”, “empregador” ou “preposto”, e também a “trabalhos forçados” ou “jornadas exaustivas”, evidenciando a necessidade de vínculo de trabalho entre o autor do crime e o ofendido. Causas de aumento de pena: § 2.º Como já analisado, qualquer pessoa pode ser vítima do delito. Se, entretanto, o ofendido for criança (pessoa com idade inferior a 12 anos) ou adolescente (pessoa com idade entre 12 e 18 anos), ou o crime for praticado por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (inciso II), a pena será aumentada de metade. Elemento subjetivo É o dolo. Não se admite a forma culposa. Nas figuras equiparadas previstas no § 1.º, exige-se, além do dolo, um especial fim de agir, representado pelas expressões “com o fim de retê-lo no local de trabalho” (nos incisos I e II). Consumação A consumação ocorre quando o agente reduz a vítima à condição análoga à de escravo, mediante alguma das condutas taxativamente previstas no art. 149 do Código Penal. O ofendido é privado da sua liberdade de autodeterminação, de forma não transitória. Trata-se de crime material e permanente. É desnecessária a imposição de maus-tratos, e também não se exige a comprovação do sofrimento suportado pelo sujeito passivo. Basta o cerceamento da sua liberdade individual. Tentativa É possível. Penas: acumulação material O crime é punido com reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa. Além disso, se houver o emprego de violência, responderá também o agente pelo crime dela resultante (exemplo: lesão corporal). Adotou-se, portanto, o sistema do concurso material obrigatório entre a redução análoga à condição de escravo praticado com violência e o crime dela decorrente. Competência A redução à condição análoga à de escravo está prevista no Título I do Código Penal – Crimes contra a Pessoa –, em seu Capítulo VI, inerente aos Crimes contra a Liberdade Individual. Prof. Rone Miller Roma – Especialista em Direito Penal Consequentemente, a competência para processar e julgar este delito é, em regra, da Justiça Comum Estadual. Entretanto, a reforma efetuada pela Lei 10.823/2003 revelou a nítida preocupação do legislador com a liberdade de trabalho. De fato, nada obstante o delito esteja previsto no capítulo relativo aos crimes contra a liberdade individual, há o interesse em tutelar a organização do trabalho, o que o coloca entre os delitos de competência da Justiça Comum Federal, nos termos do art. 109, inciso VI, da Constituição Federal. Cumpre destacar, entretanto, que será competente a Justiça Estadual quando o crime for cometido contra uma única pessoa, ou então no tocante a poucas pessoas, e não a um grupo de trabalhadores. Nessa hipótese, ofende-se unicamente a liberdade individual do ser humano. Ação penal É pública incondicionada, em todas as modalidades do crime. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA Trata-se de crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa) doloso; simples (um só bem jurídico é tutelado); de forma vinculada; permanente (a consumação se prolonga no tempo, por vontade do agente); material (reclama a produção do resultado naturalístico, consistente no cerceamento da liberdade ou de qualquer situação abusiva ou degradante da atividade laboral); de dano(depende da lesão do bem jurídico, ou seja, da liberdade individual); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual(praticado em regra por uma única pessoa, mas admite o concurso); comissivo ou, excepcionalmente, omissivo impróprio ou comissivo por omissão (pode ser praticado por omissão, quando presente o dever de agir. Exemplo: Um policial toma ciência de que uma pessoa é reduzida à condição análoga à de escravo, e, dolosamente, não lhe presta auxílio); e plurissubsistente (conduta composta de diversos atos).
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