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Positivismo Jurídico Aula 02 Hermenêutica e Argumentação Proposta Características gerais do PJ PJ e interpretação Positivismo Exegético e Normativista Kelsen Hart Positivismo Jurídico Para Bobbio (1995, p. 119) , temos o positivismo jurídico como sendo a “doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” ou, como Dimoulis (2006, p. 130) entende em sua perspectiva, o positivismo jurídico stricto sensu, como teoria que se baseia no “reconhecimento exclusivo de normas postas pelo legislador reconhecido para tanto em determinado espaço e momento histórico” PJ DE(A) VALIDADE DE(A) INTERPRETAÇÃO (DIMOULIS, 2006, p. 209) Para MacCormick (2006, p. 313), “entre as perguntas mais desprovidas de sentido que poderiam ser feitas está a que indaga se essa é a essência do positivismo. Não existe nada que se possa chamar de essência do positivismo. O termo positivismo serve apenas para caracterizar uma abordagem da teoria do direito, ou um programa para ela, sustentada por algum teórico ou alguns teóricos. Há uma faixa de usos possíveis do termo a partir da qual tudo o que se pode fazer é selecionar de modo estipulativo o que caracteriza a abordagem que se deseja defender - ou atacar”. Para Dimoulis (2006, p. 81) , contemporaneamente podemos dividir em positivismo jurídico lato sensu (correspondente à sua distinção do jusnaturalismo, correspondendo ao grupo de autores que rejeitam o direito natural)) e positivismo jurídico stricto sensu (tratando-se de um grupo mais restrito de autores que admitem não somente a rejeição ao direito natural, mas também a vinculação do direito a outros fenômenos e sistemas normativos sociais, diferenciando-o do moralismo jurídico). O positivismo jurídico lato sensu, então, consistiria numa teoria monista em oposição ao dualismo jurídico do direito natural. Nesse sentido, o PJLS nega a possibilidade de reconhecer validade jurídica a imperativos que apresentem pelo menos uma das características: a) são de origem divina ou decorrem de leis da natureza ou da razão humana, sendo, em todos os casos, caracterizados pela imutabilidade; b) podem ser descobertos mediante reflexão e observação do homem e do mundo, independentemente de seu endossamento por um legislador político; c) vigoram em paralelo a normas de direito positivo e podem entrar em conflito com essas últimas.” Prática Jurídica Pré- Revolução – e Revolução 1789 Prática As posturas de desorganização e insegurança podem ser percebidas na Inglaterra, a partir de Bacon (1561-1626) Na Itália, a partir de Luigi António Muratori (1672-1750, ao expor os “defeitos da jurisprudência”, em especial “o arbítrio dos juízes que, deixados à vontade por uma legislação defeituosíssima e por uma doutrina indisciplinada e ‘preciosa’, tudo resolviam segundo o seu bel prazer”, defendendo , como remédio, “os princípios fixos do direito natural, a reforma da legislação, pela edição de códigos e centralização da edição do direito nas mãos do príncipe” (HESPANHA, 2005, p. 235) . Como reconhece David (2002, p. 59) , a situação alemã é bastante diferente. Apenas em partes limitadas poderia se falar de um direito privado alemão diante da desintegração do império e da sociedade no séc. XIII, desaparecendo a jurisdição central . A partir do séc. XVIII, é que surgiriam as polêmicas em torno da codificação e da chamada escola histórica. “À medida que os julgamentos dos tribunais se multiplicam nas monarquias, a jurisprudência tomava decisões que às vezes são contraditórias, porque os juízes que se sucedem pensam de maneira diferente, ou porque as mesmas causas são bem ou mal defendidas; ou enfim por uma infinidade de abusos que se infiltram em tudo o que passa pelas mãos dos homens. É um mal necessário que o legislador corrige de vez em quando, como contrário até mesmo ao espírito dos governos moderados. Pois, quando somos obrigados a recorrer aos tribunais, isto deve vir da natureza da constituição e não das contradições e da incerteza das leis. [...] Quanto mais o governo se aproxima da república, mais a forma de julgar se torna fixa; e, era um vício da república da Lacedemônia que os éforos julgassem arbitrariamente, sem que houvesse leis para dirigi-los. Em Roma, os primeiros cônsules julgaram como os éforos: sentiram os inconvenientes disto e criaram leis precisas. Nos Estados despóticos, não há lei: o juiz é ele mesmo sua própria regra. Nos Estados monárquicos, existe uma lei: e onde ela é precisa o juiz segue-a; onde ela não é, ele procura seu espírito. No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei. Não há cidadão contra quem se possa interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida. Em Roma, os juízes sentenciavam somente que o acusado era culpado de um determinado crime, e a pena se encontrava na lei, como podemos ver em várias leis que foram feitas. Assim também, na Inglaterra, os jurados decidem se o acusado é culpado ou não do fato que lhes foi relatado, e se ele for declarado culpado o juiz pronuncia a pena que a lei inflige para este crime e para tanto ele só precisa ter olhos.” Montesquieu (1996, p. 87-88) E Beccaria(2006, p. 27): “Assim, vemos a sorte de um cidadão mudar várias vezes, ao passar por diversos tribunais e vemos a vida dos miseráveis ser vítima de falsos raciocínios ou do atual fermento dos humores de um juiz, o qual tomou como legitima interpretação o vago resultado de toda uma serie confusa de noções, que lhe agitam a mente. Vemos, pois, os mesmos delitos punidos diferentemente em épocas diferentes, pelo mesmo tribunal, por ter este consultado não a voz imutável e constante da lei, mas a errante instabilidade das interpretações.” O movimento revolucionário francês dirigiu-se também contra os juízes do Ancién Régime, terminando a partir da monopolização (normativa e coercitiva) numa reviravolta em seus poderes. O abandono do caráter supletivo da perspectiva jusracionalista pela maior codificação francesa proporcionou o juízo de non liquet, registrando, no entanto, uma tripla dificuldade a qual os juízes estavam sujeitos: à obscuridade, à insuficiência e ao silêncio da lei (conforme art. 4º do Código de Napoleão). Quanto à primeira, o juiz deveria tornar-lhe clara através da interpretação; quanto à segunda, o juiz deveria completa-la a partir da integração; quanto à terceira, caso típico das denominadas “lacunas” e parecido quanto à segunda hipótese, o juiz deveria supri-la deduzindo a regra a ser aplicada ao caso concreto (BOBBIO, 1995, p. 74) . A principal discussão à época é decorrente do fenômeno do silêncio da lei (ou da insuficiência de certo modo), a partir do qual era reforçado o dogma da onipotência do legislador, ou, na expressão de Thibaut, a perfeição substancial da codificação. “Os redatores do Código de Napoleão quiseram eliminar este inconveniente, ditando o art. 4º [O juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada. ], que impunha ao juiz decidir em cada caso, e o art. 9º [Nas matérias civis, o juiz, na falta de leis precisas, é um ministro de eqüidade. A eqüidade é o retorno à lei natural e aos usos adotados no silêncio da lei positiva. ], que indicava os critérios com base nos quais decidir no silêncio ou, de qualquer maneira, na incerteza da lei. Eliminado o segundo artigo, o primeiro considerado isoladamente e prescindindo dos motivos históricos que o haviam sugerido é compreendido pelos primeiros intérpretes do Código de modo completamente diverso; isto é, é interpretado, assim, no sentido de que se deveria sempre deduzir da própria lei a normapara resolver quaisquer controvérsias. Tal artigo, de fato, tem sido um dos argumentos mais freqüentemente citados pelos juspositivistas, para demonstrar que, do ponto de vista do legislador, a lei compreende a disciplina de todos os casos (isto é, para demonstrar a assim chamada completitude da lei).” (BOBBIO, 1995, p. 77) . E é aqui, ainda sobre a experiência francesa, que a tensão pelas duas principais ideias de sistema jurídico volta a acontecer: se analisarmos a doutrina do PJSS, a solução a ser adotada seria a primeira, decorrente da onipotência legislativa, vinculando o juiz a buscar a regra dentro do próprio sistema, pois apenas teríamos direitos reconhecidos nele (daí o uso da analogia ou princípios gerais). No entanto, ainda que posteriormente vencidos no Conselho de Estado, os redatores do projeto final de um código civil francês tinham por intenção a manutenção da segunda opção: “deixar aberta a possibilidade da livre criação do direito por parte do juiz”, pois o “arbítrio aparente da eqüidade é ainda melhor do que o tumulto das paixões.” (BOBBIO, 1995). É desse entendimento que se fundará a conhecida École de L'exégèse, considerando que o Código de Napoleão tivesse sepultado todo o direito precedente e contivesse todas as normas para todos os possíveis casos futuros, pretendendo, com isso, fundar a resolução de todas as questões na chamada intenção do legislador (BOBBIO, 1995, p. 77) . PJ e interpretação Considerações Gerais PJ Exegético (ou legalista) França Escola da Exegese Alemanha Jurisprudê ncia dos Conceitos Common law “Jurisprud ência Analítica” Normativist a A partir da obra de Kelsen, tem-se sido comumente utilizada a expressão positivismo normativo (ou positivismo normativista). Por exemplo, Streck (2014d, p. 34) elaborará a diferenciação entre positivismo exegético (legalista) e positivismo normativista. O primeiro vincula uma análise sintática da codificação; o segundo, a partir especialmente de Kelsen, uma análise primordialmente semântica. O debate contemporâneo acerca do PJ, em especial considerando-se os autores de língua inglesa na esteira dum cenário pós-hartiano, possuem como principais autores Joseph Raz, Wilfrid Waluchow, David Lyons, Jules Coleman, Kenneth Himma, Philip Soper, Scott Shapiro, dentre outros. Nos dizeres de Bobbio (1995, p. 198) , a mais coerente expressão da teoria do ordenamento jurídico na perspectiva analisada deve-se a Kelsen (2003b) , também considerado como o principal autor deste movimento teórico, e também o marco de sua decadência. A teoria kelseniana, então, baseia-se em três pontos fundamentais: unidade, coerência, e completitude, sendo o somatório das três que proporciona a caracterização do direito como um ordenamento, distinto das normas singulares que o constituem. Relembrando, em síntese, que: “somente ordenamentos coercitivos em relação aos quais se supõe a norma fundamental podem ser considerados direito” (BARZOTTO, 2007a, p. 47) . Quanto à coerência, esta comumente é analisada em conjunto à completitude, devido à estreita diferenciação entre ambos os conceitos. Geralmente à primeira referencia-se à ideia de ausência de contradição, e à segunda, a ausência de lacunas. Para o PJ, nega-se a existência de antinomias (normas incompatíveis entre si), a partir da garantia de uma determinada norma, implícita em todo o ordenamento jurídico, “segundo a qual duas normas incompatíveis (ou antinômicas) não podem ser ambas válidas, mas somente uma delas pode (mas não necessariamente deve) fazer parte do referido ordenamento”, mas também analisado como sendo que, “a compatibilidade de uma norma com seu ordenamento (isto é, com todas as outras normas) é condição necessária para a sua validade” (BOBBIO, 1995, p. 203). E, para que possamos identificar qual norma deve ser tida como válida diante desta situação, o PJ estabeleceu os três critérios clássicos para a solução: cronológico (lex posterior derogat priori), hierárquico (lex superior derogat inferior) especialidade (lex specialis derogat generali). Tais critérios encontram confirmação no direito positivo (BOBBIO, 1995, p. 205) . Se retornarmos ao final do séc. XVIII, e início do XIX, as bases racionalistas fincadas à época nos esclarecem o recurso às operações lógicas para a dedução da norma geral: a subsunção, entre o caso concreto (premissa menor) e a norma geral abstrata (premissa maior). Ao admitirem as leis da lógica como leis naturais (independente da razão), as elegeram como sendo o principal instrumento da interpretação jurídica (LOSANO, 2010, p. 142). Trata-se da chamada teoria da subsunção, ou seja, “a teoria segundo a qual a realização da justiça nos casos concretos seria assegurada subsumindo os ‘factos’ ao ‘direito’, nos termos de um raciocínio de tipo silogístico, em que a premissa maior era um princípio de direito e a premissa menor a situação de facto [...] a resolver.” (HESPANHA, 2005, p. 283) Para o PJ, tipicamente, a legislação diz respeito ao momento criativo/ativo, já a ciência jurídica ao teórico/cognoscitivo visando à sua aplicação. A jurisprudência seria enquadrada como sendo uma atividade puramente declarativa/reprodutiva de um direito pré-existente por intermédio de meios lógico-racionais, sem atividade cognoscitiva de criação ou produção de um direito novo (seus opositores). O legislativo cria, o judiciário interpreta e aplica (BOBBIO, 1995, p. 212) . Porém, essa interpretação a ser realizada era constituída de uma forma peculiar, propriamente significava um “remontar dos signos contidos nos textos legislativos à vontade do legislador expressa através de tais signos”, demonstrando-se uma interpretação estática sem se adaptar às condições histórico-sociais (em contraposição à interpretação evolutiva, por exemplo) (BOBBIO, 1995, p. 213-214) . É neste sentido que Bobbio (1995, p. 214) afirma que “a interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será antitextual, isto é, nunca se colocará contra a vontade que o legislador expressou na lei.” Como sinônimos, teríamos alusões: ao espírito do legislador, ao processo de formação da lei, ao espírito da lei (STRECK, 2014a, p. 150) . Conforme Hespanha (2005, p. 109) : “No pensamento jurídico medieval era possível a identificação do direito com a vontade do legislador. A análise dos textos romanísticos sugeria a concepção monárquica do direito, na qual a edição do direito era considerada como exclusiva do rei, cujos reflexos teóricos e filosóficos apareceriam em Duns Scotto e Guilherme d´Occam.” Assim, tendo por objetivo a reconstrução da vontade do legislador expressa na lei, e acompanhando, então, os três requisitos kelsenianos para a existência de um ordenamento jurídico, somando-se à limitação interpretativa exposta, fica compreensível entender-se a utilização dos tradicionais meios/métodos de interpretação textual definidos pelo PJ: a) o meio léxico (chamado com expressão pouco correta interpretação gramatical), que consiste na definição do significado dos termos usados pelo legislador, mediante a análise e a comparação dos contextos linguísticos nos quais tais termos são empregados (se a definição consiste na formulação das regras para o uso de um termo, pelo uso de um termo pode-se, ao contrário, extrair sua definição). b) o meio teleológico, chamado comumente de interpretação lógica, expressão imprópria, visto que se trata de um meio interpretativo baseado na ratio legis, isto é, no motivo ou finalidade para os quais a norma foi posta. Partindo do duplo pressuposto de que o legislador, como ser razoável, se coloque fins e estabeleça meios idôneos a serem atingidos, uma vez individualizadoso fim do legislador, este pode dar aqui esclarecimentos sobre as modalidades de sua consecução, isto é, sobre o conteúdo da lei. c) o meio sistemático, que implica não só no pressuposto da racionalidade do legislador, como também no pressuposto de que a vontade do legislador seja unitária e coerente. Com base em tal pressuposto pode-se procurar estabelecer o conteúdo de uma norma, considerando-a em relação a todas as outras. d) o meio histórico, que consiste na utilização de documentos históricos diferentes do texto legislativo, para reconstruir a vontade do legislador, com relação ao direito dos Estados parlamentares, tal meio comporta essencialmente o estado dos trabalhos preparatórios, pelos quais se pode conhecer as várias intenções para as quais uma lei foi aprovada e qual delas prevalece sobre as outras. (BOBBIO, 1995, p. 214-215) Métodos de interpretação extratextual A N A L O G I A Analogia legis Interpretação extensiva Analogia juris Métodos de interpretação extratextual A N A L O G I A Analogia legis Forma de autointegração. Prevista para o preenchimento de lacunas pela extensão a casos não expressamente previstos diante da mesma disciplina estabelecida por determinada norma jurídica em casos similares (BOBBIO, 1995, p. 215). "São permitidos todos aqueles comportamentos que não são obrigatórios, exceto aqueles que podem ser considerados similares aos obrigatórios", o que significa que temos aqui duas normas gerais de clausura: a norma geral exclusiva, que qualifica como lícitos os comportamentos não expressamente regulados, e aquela que podemos chamar de norma geral inclusiva, que submete os casos não expressamente regulados, mas similares aos regulados, à disciplina destes últimos. Quando o intérprete funda o seu raciocínio em argumentum a contrario, está apelando para a norma geral exclusiva; quando, em lugar disto, o funda em argumentum a simili, está apelando para a norma geral inclusiva. (BOBBIO, 1995, p. 215) Métodos de interpretação extratextual A N A L O G I A Analogia legis Interpretação extensiva Ampliação da hipótese normativa prevista ao caso similar expressamente regulado, apesar de constituir-se também numa das formas de analogia legis (BOBBIO, 1995, p. 219). Analogia juris Métodos de interpretação extratextual A N A L O G I A Analogia juris Utilização dos chamados princípios gerais do ordenamento jurídico ou princípios gerais do direito. Consiste em procedimento “duplo de abstração e de subsunção de uma species num genus” (BOBBIO, 1995, p. 220). “O processo de abstração consiste em extrair os princípios gerais do ordenamento jurídico: de um conjunto de regras que disciplinam uma certa matéria, o jurista abstrai indutivamente uma norma geral não formulada pelo legislador, mas da qual as normas singulares expressamente estabelecidas são apenas aplicações particulares: tal norma geral é precisamente aquilo que chamamos de um princípio do ordenamento jurídico. Uma vez formulada esta norma geral, o jurista a aplica àqueles casos que, não sendo disciplinados nas normas singulares expressas, são no entanto abrangidos no âmbito dos casos previstos pela mesma norma geral. Nessa segunda fase, o jurista executa precisamente um trabalho de subsunção de uma species (os casos não regulados pelas normas singulares) num genus (a categoria dos casos aos quais se refere a norma geral). (BOBBIO, 1995, p. 221) . PJ Exegético (ou legalista) França Escola da Exegese Alemanha Jurisprudê ncia dos Conceitos Common law “Jurisprud ência Analítica” Normativist a Exegese Exegese Busca principalmente pela solução do problema das lacunas (diante da impossibilidade de previsibilidade absoluta) Intepretação mecânica e passiva do Código (apenas à Exegese!) Causas (a) o advento da codificação, a partir do reconhecimento do texto como espécie de prontuário com a solução de todos os problemas, com desprezo a todas as demais fontes existentes (costume, doutrina, etc.) e diante da facilidade de identificação da solução possível; (b) o chamado princípio da autoridade, previsto na mentalidade dos juristas da época, que guiava seu raciocínio, o qual se garantia o fundamento para o respeito à vontade do legislador, expressa de modo seguro e completo; (c) a doutrina da separação dos poderes, que proporcionada uma justificativa jurídico-filosófica à não criação do direito pelo aplicador; (d) o chamado princípio da certeza do direito, com a necessidade da segurança jurídica presente na previsibilidade do direito positivado e na impossibilidade de se admitir criação do direito pelo aplicador; (e) as pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre os estabelecimentos, então reorganizados, de ensino superior do direito, garantindo o ensino somente do direito positivo (BOBBIO, 1995, p. 79-82) ; (f) o nacionalismo do séc. XIX, a partir da deturpação da visão dos códigos como nova expressão do direito, mas sim, como instrumento de uma “nacionalização do direito” (DAVID, 2002, p. 69) . Para Hespanha (2005, p. 267), os “monumentos” – Códigos, proporcionaram a exclusão do direito: Doutrinal Racional Impedindo a aplicação subsidiária do direito natural Suprapositivo Tradicional Jurisprudencial Restava-se apenas a lei. Positivismo Legal ou Legalismo O desenvolvimento histórico da escola da exegese pode ser distribuído em três momentos: seu início, de 1804 a 1830, seu desenvolvimento, de 1830 a 1880, e a partir de 1880, seu declínio, até o início do século XX (BOBBIO, 1995; CAMARGO, 2003). Diante do non liquet, tínhamos a completitude da lei e a onipotência do legislador: Culto ao texto da lei Interpretatio cessat in claris (PERELMAN, 2000, p. 50). O juiz deveria se fundar exclusivamente no texto legal para solução do caso concreto, interpretando a lei conforme a razão do legislador expressa na própria lei, e não, segundo a sua razão e seus próprios critérios valorativos, inexistindo contribuição criativa na interpretação da lei, limitando-se a tornar explícito, através de um procedimento lógico (silogismo judiciário), aquilo que já implicitamente estabelecido na lei (BOBBIO, 1995; CAMARGO, 2003) . Sob o manto da “perfeição da razão” os juristas franceses acreditavam que o meio mais seguro de se chegar à justiça era simplesmente fazer a exegese de seus códigos (DAVID, 2002, p. 114) , numa atividade quase mística de aplicação da Lei (PERELMAN, 2000, p. 53) Nas palavras de Laurent (BONNECASE apud CAMARGO, 2003, p. 66) : "Os códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; este não tem por missão fazer o direito. O direito está feito. Não há mais incertezas; o direito está escrito nos textos autênticos”. Assim também em Perelman (2000, p. 31). Registremos, entretanto, como relembra ainda, David (2002, p. 115), que a jurisprudência, no início da codificação napoleônica, jamais se limitou a aplicar os textos da lei, sendo que sua contribuição para a evolução do direito ficou obscurecida durante todo o século XIX. Métodos de interpretação privilegiados pela Exegese: Gramatical Sistemático Interpretação mais objetiva e neutra possível para alcançarmos a vontade do legislador (CAMARGO, 2003, p. 66; PERELMAN, 2000, p. 52), sendo realizada, muitas vezes, por meio dos trabalhos preparatórios do legislador, preâmbulos legislativos, etc. (HESPANHA, 2005, p. 268) . Assim, a partir da análise minuciosa dos termos da lei, a partir da estrutura gramatical e dos termos técnicos, seria possível encontrar-se a vontade do legislador, reconhecida como vontade geral. (DAVID, 2002, p.112; CAMARGO, 2003, p. 66) . Reconhecia-se quanto ao legislador, a busca por uma vontade real (a partir de uma obscuridade do texto legal, recorrendo-se essencialmente às razões de cunho histórico) e uma vontade presumida (no caso de lacuna/omissão de previsão legal, recorrendo-se à analogia e aos princípios gerais do direito na tentativa de, por uma ficção jurídica, estabelecer qual seria a vontade do legislador se ele tivesse previsto o caso em análise) (BOBBIO, 1995, p. 86; HESPANHA, 2005) . E é a partir de tal perspectiva que nasce em terreno francês a chamada interpretação da lei fundada na intenção do legislador, pois, se o único direito é aquele contido na lei, compreendida como manifestação escrita da vontade do Estado, torna-se então natural conceber a interpretação do direito como a busca da vontade do legislador naqueles casos (obscuridade ou lacuna da lei) nos quais ela não deflui imediatamente do próprio texto legislativo, e todas as técnicas hermenêuticas -estudo dos trabalhos preparatórios, da final idade para a qual a lei foi emitida, da linguagem legislativa, das relações lógico-sistemáticas entre uma dada disposição legislativa e as outras disposições etc. - são empregadas para atingir tal propósito. (BOBBIO, 1995, p. 87) Deve-se tomar cuidado para não confundir a concepção subjetivista de análise da vontade do legislador (voluntas legislatoris), com outro pensamento surgido no fim do século XIX, e início do século XX, a respeito da vontade da lei (voluntas legis). Este, parte de uma concepção objetiva da vontade da lei, prescindindo da intenção de seus autores. Enquanto aquela se finca ao momento da emissão da lei (sendo, pois, uma interpretação estático-conservadora), esta possibilita uma desvinculação do contexto histórico-social do surgimento da lei, possibilidade uma interpretação progressivo-evolutiva a partir da mudança das condições históricas e sociais (BOBBIO, 1995, p. 88). Interessante a ressalva que Perelman (2000, p. 206) faz da exegese quando esta buscava uma vontade às vezes manifestada mais de um século antes do momento interpretativo. Para tanto, sugere procurar na vontade do legislador atual, e não, daquele no momento da elaboração da lei em análise. Como veremos adiante, a característica da ausência de uma teoria juspositivista no âmbito da interpretação proporcionará o que Dimoulis (2006, p. 218) denomina de oscilação entre dois extremos: de um lado, a interpretação “automática”, mecânica, exegética, realizada de maneira literal por autoridades como “boca da lei”; por outro, a postura discricionária de Kelsen e Hart (e muitos outros) que silenciam sobre as finalidades e os métodos da interpretação convergindo, por consequência, com o realismo jurídico. Ocorre, nas palavras de Streck (2014a, p. 136) , o deslocamento da “racionalidade da lei” para a “vontade do intérprete”. Para Schmitz (2015, p. 83): “É muito comum no Brasil aceitarmos como correta a ideia de que a) o positivismo era a aplicação da “letra fria da lei”, e portanto não resolvia a complexidade das situações de vida; b) para ultrapassar esse problema, seria preciso inserir “valores” ou “princípios” na ordem jurídica, para reumanizar, dar vida ao Direito. Essa linha de raciocínio incorre em dois equívocos fundamentais: a) já desde o início do século, as formas mais elaboradas de positivismo não tinham nada a ver com a aplicação mecânica da lei, como em Hans Kelsen e em Herbert Hart; b) o Direito sempre teve uma forte carga axiológica e ideológica, mesmo no positivismo.” Moral Moral Para Dimoulis (2006, p. 168), podemos definir a moral como “conjunto de convicções que, primeiramente, têm como objeto distinguir o bem do mal; em segundo lugar, orientam o comportamento dos indivíduos (fazer o bem, evitar o mal); em terceiro lugar, permitem avaliar as condutas individuais, impondo sanções (difusas e informais) ao transgressor”. Moral e Sistema Moral (i) como sistema de normas de conduta; sistema de normas/sanção de determinada sociedade em determinado momento. O aspecto objetivo é fortalecido com base na aceitação/imposição, normalmente intitulado como moral dominante, moral social, moral convencional, moral positiva, dentre outros. (ii) como valores morais individuais; o aspecto subjetivo encontra-se em preponderância, pois indica “os valores morais que cada indivíduo aceita e organiza em um conjunto de comandos orientadores de sua conduta”, nascendo, muitas vezes, a sua diferenciação ou sinonímia com a ética. (ii) como conjunto de princípios/valores/imperativos sobre a conduta humana. “conjunto dos melhores princípios, valores e imperativos sobre a conduta humana, após termos realizado pesquisas históricas e apresentado argumentos filosóficos” e é nesse sentido que podemos caracterizar os princípios do direito natural ou da religião como sendo mais corretos e verdadeiros. Esse terceiro pode ser referenciado à existência de uma moral crítica, resultante de uma reflexão teórica questionadora (ao menos parcialmente) das abordagens anteriores” (DIMOULIS, 2006, p. 168) Kelsen Para Kelsen (2003b), tanto o legislador, quanto o juiz, possuem a função de aplicação e criação do Direito, funções estas exercidas posteriormente ao conhecimento do que será aplicado/criado, como estágio preparatório. Assim, a função de criação do Direito pode ser analisada, quanto ao legislador, no momento que o mesmo cria a norma jurídica geral; quanto ao juiz, quando este cria a norma jurídica individual. Já quanto à função de aplicação, quanto ao legislador, no momento em que este cria, ele também aplica a Constituição; quanto ao juiz, quando este cria, ele também aplica a norma jurídica geral. À exceção dos casos limites, encarados por Kelsen (2003b, p. 80,260) - a pressuposição da norma fundamental e a execução do ato coercitivo -, “todo ato jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior.” “Se considerarmos a ordem jurídica estadual sem ter em conta um Direito internacional que lhe esteja supra-ordenado, então a norma fundamental determina, de fato, a criação da Constituição, sem que ela própria seja, ao mesmo tempo, aplicação de uma norma superior. Mas a criação da Constituição realiza se por aplicação da norma fundamental. Por aplicação da Constituição, opera-se a criação das normas jurídicas gerais através da legislação e do costume; e, em aplicação destas normas gerais, realiza-se a criação das normas individuais através das decisões judiciais e das resoluções administrativas. Somente a execução do ato coercivo estatuído por estas normas individuais - o último ato do processo de produção jurídica - se opera em aplicação das normas individuais que a determinam sem que seja, ela própria, criação de uma norma. A aplicação do Direito é, por conseguinte, criação de uma norma inferior com base numa norma superior ou execução do ato coercivo estatuído por uma norma”. (KELSEN, 2003b, p. 260) . Sob essa perspectiva, não podemos considerar a aplicação separada da criação (explicados os casos-limite acima) do Direito, tratando-se, apenas de diferenciação em termos de graus, ou seja, a preponderância entre a criação/aplicação está diretamente relacionada à função do órgão que realiza o ato jurídico (KELSEN, 2003b, p. 262) . Para Larenz (1997, p. 107), “KELSEN não reconhece em princípio qualquer diferença entre legislação, jurisprudência, actividade administrativa e actuação da ´autonomia privada´. Trata-se sempre para ele de estabelecer uma norma hierarquicamente inferior no quadro de uma norma hierarquicamente superior. O que é, decerto, uma concepção sedutora na sua simplicidade, mas de forma alguma umaconcepção que corresponda às diferenças realmente existentes. ” Para Kelsen (2003b, p. 264), a decisão judicial: Não tem uma simples função declaratória (da previsão existente pela norma geral) Sempre possui um caráter constitutivo: Análise da constitucionalidade da norma geral a ser aplicada ao caso concreto, que proporcionará uma dupla divisão: Análise fática quanto ao pressuposto da sanção a que se pretende aplicar ao caso concreto Análise fática (correspondência formal) relativa à hipótese prevista pela norma geral à caracterização do ilícito. Essa característica (especialmente identificada na análise fática) fundamenta a afirmação de que somente através da verificação realizada pela decisão judicial (vigência- validade da norma geral a ser aplicada) é possível que tal norma seja aplicada ao caso concreto e se cria, através de tal verificação, “uma situação jurídica que antes da decisão não existia.” Vejamos um exemplo: “Se uma norma jurídica geral liga uma determinada pena ao crime de homicídio, este fato não é corretamente descrito se se apresenta o fato de alguém ter cometido um homicídio como o pressuposto da sanção. Não é o fato em si de alguém ter cometido um homicídio que constitui o pressuposto estatuído pela ordem jurídica, mas o fato de um órgão competente segundo a ordem jurídica ter verificado, num processo determinado pela mesma ordem jurídica, que um indivíduo praticou um homicídio. Quando se diz que o tribunal verificou que um determinado indivíduo praticou certo homicídio, embora "na realidade" esse indivíduo não tenha cometido o homicídio em questão, ou que o tribunal verificou que um determinado indivíduo não praticou certo homicídio, embora esse indivíduo tenha executado tal homicídio, isso significa que o tribunal verificou a existência ou não existência de um fato que, na opinião de outros não juridicamente competentes para essa verificação, não teve ou teve lugar.” (KELSEN, 2003b, p. 265) . A respeito da posição de Kelsen (2003b, p. 266-267): “Com efeito, a proposição jurídica não diz: Se um indivíduo determinado cometeu um homicídio, deve ser-lhe aplicada uma determinada pena, mas: Se o tribunal competente, num processo determinado pela ordem jurídica, verificou, com força de caso julgado, que determinado indivíduo praticou um homicídio, o tribunal deve mandar aplicar a este indivíduo uma determinada pena. No pensamento jurídico, o fato processualmente verificado vem ocupar o lugar do fato em si que, no pensamento não jurídico, condiciona o ato de coerção. Somente, esta verificação é, ela própria, um “fato”; e, quanto à questão de saber se ela, no caso concreto, existe, se a verificação se operou sequer, se ela foi feita pelo órgão competente e pelo processo prescrito, é igualmente possível uma divergência de opiniões, tal como relativamente à questão de saber se a verificação foi "correta" (isto é, conforme à realidade). E, assim, como uma decisão judicial pode ser atacada em recurso de instância com fundamento na inadequada verificação do fato de que um determinado delito foi praticado por determinado indivíduo, assim também o pode ser a execução da sanção com fundamento na não existência de uma decisão judicial, quer dizer, por incompetência do órgão ou deficiência do processo. ” Diante dessa função constitutiva É possível ter-se identificado após o trâmite processual a inexistência de norma geral a ser aplicada diante dos fatos que foram produzidos É possível, diante da ausência de tal norma geral (e no caso de poder/competência recebido pela ordem jurídica), exercer o poder de criação ex novo de direito material, exercendo a função de legislador, porém, apenas quanto à criação de uma norma jurídica individual, válida unicamente para o caso em análise. Kelsen – moldura - interpretação “Mas também no caso de o conteúdo da norma jurídica individual, a produzir pelos tribunais, ser predeterminado por uma norma jurídica geral positiva, à função criadora de Direito dos tribunais tem de ser deixada uma certa margem de livre apreciação. A norma jurídica geral positiva não pode prever (predeterminar) todos aqueles elementos que só aparecem através das particularidades do caso concreto. Tal sucede, v. g., quanto à extensão, a apurar pelo tribunal, dos prejuízos que têm de ser ressarcidos através da execução do patrimônio do demandado, execução essa a ordenar pelo mesmo tribunal; ou quanto ao momento em que a pena de prisão a aplicar deve começar, e deve terminar, ou em que a pena de morte há de ser executada. No processo em que uma norma jurídica geral positiva é individualizada, o órgão que aplica a norma jurídica geral tem sempre necessariamente de determinar elementos que nessa norma geral ainda não estão determinados e não podem por ela ser determinados. A norma jurídica geral é sempre uma simples moldura dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual. Mas esta moldura pode ser mais larga ou mais estreita. Ela é o mais larga possível quando a norma jurídica geral positiva apenas contém a atribuição de poder ou competência para a produção da norma jurídica individual, sem preestabelecer o seu conteúdo.” (KELSEN, 2003b, p. 272) . In te rp re ta ç ã o Autêntica realizada por órgãos jurídicos, quando da aplicação do Direito na relação entre escalões, tanto pelo legislativo quanto pelo judiciário Não-autêntica realizada pelos particulares, e, especialmente, pela ciência jurídica Para Kelsen (2003b, p. 394) : “A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito. Na verdade, só se fala de interpretação autêntica quando esta interpretação assuma a forma de uma lei ou de um tratado de Direito internacional e tem caráter geral, quer dizer, cria Direito não apenas para um caso concreto mas para todos os casos iguais, ou seja, quando o ato designado como interpretação autêntica represente a produção de uma norma geral. Mas autêntica, isto é, criadora de Direito é-o a interpretação feita através de um órgão aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute uma sanção.” Quanto à interpretação autêntica, acompanhando o já foi descrito sobre o fundamento de validade, bem como, o sentido objetivo de norma jurídica válida, temos que essa relação entre escalão superior-inferior é uma relação de vinculação/determinação (a partir da regulação do processo de criação da norma inferior, mas, eventualmente, do conteúdo desta norma). No entanto, a determinação nunca é completa, pela impossibilidade de vinculação da norma inferior em todos aspectos, todas as direções. Para Kelsen (2003b, p. 388) , sempre existe uma margem, de livre apreciação, de tal forma que “a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato”. Existirá sempre uma pluralidade de determinações a fazer. Acompanhando os exemplos de Kelsen (2003b, p. 388) : “Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever. [...] Uma lei de sanidade determina que, ao manifestar-se uma epidemia, os habitantes de uma cidade têm de, sob cominação de uma pena, tomar certas disposições para evitar um alastramento da doença. A autoridade administrativa é autorizada a determinar estas disposições por diferente maneira, conforme as diferentes doenças. A lei penalprevê, para a hipótese de um determina do delito, uma pena pecuniária (multa) ou uma pena de prisão, e deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma ou pela outra e determinar a medida das mesmas - podendo, para esta determinação, ser fixado na própria lei um limite máximo e um limite mínimo. ”+ Exemplo Bobbio “Vejamos um exemplo: o cidadão é obrigado a ressarcir o dano por um ato ilícito, visto que assim estabelece o juiz com sua norma particular (que condena quem causou o dano); por sua vez, o juiz estabeleceu a norma porque para isto foi autorizado pela lei; a lei (que os constitucionalistas chamam de "lei ordinária") foi posta pelo Parlamento, autorizado pela Constituição (ou lei constitucional); a Constituição, por sua vez, foi estabelecida pelo poder constituinte. E aqui começa a dificuldade. Por quem foi autorizado o poder constituinte a pôr a lei constitucional? Pode- se, talvez, responder apelando-se a um poder constitucional anterior, mas tal busca histórica chegaria a um ponto (isto é, um poder constituinte) além do qual não é possível caminhar (e este ponto é rapidamente atingido, se o poder constituinte de um ordenamento vigente é representado por uma assembléia oriunda de uma revolução, que rompeu a continuidade jurídica e anulou o ordenamento precedente). Aqui temos duas possibilidades: ou retemos o poder constituinte como fato social, e então deixamos o sistema aberto, fazendo o direito derivar do fato; ou ainda, para fechar o sistema, consideramos o poder constituinte como autorizado por uma norma fundamental, a qual estabelece que todos os cidadãos devem obedecer às normas emanadas de tal poder, isto é, daquela força política capaz de pôr normas para toda a sociedade e de impor-lhes a observância. É esta última a alternativa eleita por Kelsen, e que o conduziu à concepção da norma fundamental. Tal teoria foi submetida a muitas críticas. E, com efeito, pode-se duvidar que chegue a resolver o problema para o qual foi formulada, isto é, fechar o sistema normativo, assegurando-lhe a perfeita unidade. De fato, se fazemos a indagação: no que se funda a norma fundamental?, ou respondemos fazendo referência a uma outra norma, agora estaríamos diante de um recursus ad infinitum; ou respondemos que tal norma existe juridicamente enquanto for de fato observada, e recaímos na solução que se desejava evitar com a teoria da norma fundamental, isto é, fazemos depender o direito do fato.” (BOBBIO, 1995, p. 201-202) . Indeterminação Resume-se o pensamento do autor na afirmação de que: “todo o ato jurídico que em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado.” (KELSEN, 2003b, p. 389) . Essa indeterminação pode ser a respeito tanto do fato (pressuposto) condicionante, como da consequência condicionada (KELSEN, 2003, p.389). Indeterminação Intencional Intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar Não-intencional Sempre presente: palavras/sequências e palavras Discrepância entre a expressão verbal da norma e a vontade do legislador Existência de duas normas em contradição Independentemente do tipo de indeterminação existe sempre mais de uma possibilidade à aplicação jurídica, seja diante da pluralidade de significados, seja pela presunção de entre a enunciação e a vontade do legislador, ou pela existência de duas normas em contradição: “O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível” (KELSEN, 2003b, p. 390) . É neste sentido, partindo das premissas descritas sobre a indeterminação do Direito, que Kelsen (2003b, p. 390) afirma que “o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem”. Sendo assim, [...] a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral. (KELSEN, 2003b, p. 390-391) Nas palavras do autor: “Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica aplicanda. Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela ciência jurídica. ” (KELSEN, 2003b, p. 394) . Diante da existência de várias respostas possíveis, defende o autor não ser possível o estabelecimento de qualquer critério, para se definir entre qual das respostas possíveis uma deve ser escolhida. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas. [...] Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc. Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre a sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo. Relativamente a este, a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato. Só assim não seria se o próprio Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso, estas transformar-se-iam em normas de Direito positivo. (grifo nosso) (KELSEN, 2003b, p. 393-394) Controle? Hart Textura aberta Para Hart (2001, p. 148) : “A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelostribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflituantes que variam em peso, de caso para caso. Seja como for, a vida do direito traduz- se em larga medida na orientação, quer das autoridades, quer dos indivíduos privados, através de regras determinadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso. Este facto saliente da vida social continua a ser verdadeiro, mesmo que possam surgir incertezas relativamente à aplicabilidade de qualquer regra (quer escrita, quer comunicada por precedente) a um caso concreto.” Essa característica ínsita da linguagem gerará um poder discricionário a fim de que, quando diante de um caso concreto, se tornem precisos padrões que eram inicialmente vagos, resolvendo as incertezas da lei ou, quando da qualificação e desenvolvimento das regras comunicadas, apenas de forma imperfeita, pelos precedentes dotados de autoridade (HART, 2001, p. 146-149) . Registre-se, também, que para o autor, mesmo diante da existência de tal poder que proporciona tal escolha, existe um “núcleo de significado estabelecido”, do qual o intérprete/aplicador não é livre para se afastar, e que manterá ativa a possibilidade certo padrão quanto à manifestação acerca das regras primárias oficiais e não-oficiais. Tal perspectiva proporcionará a ideia de que as manifestações do intérprete/aplicador não são infalíveis, porém, definitivas (HART, 2001, p. 158) . Nas palavras de Hart (2001, p. 141) : “É, contudo, importante apreciar por que razão, posta de parte esta dependência da linguagem tal como efectivamente ocorre, com as suas características de textura aberta, não devemos acarinhar, mesmo como um ideal, a concepção de uma regra tão detalhada, que a questão sobre se se aplicaria ou não a um caso particular estivesse sempre resolvida antecipadamente e nunca envolvesse, no ponto de aplicação efectiva, uma escolha nova entre alternativas abertas. Dito, e forma breve, a razão reside em que a necessidade de tal escolha é lançada sobre nós porque somos homens, não deuses.” Reconhecendo essa característica com referência expressa a Hart, v. Alexy (1990, p.81) . A partir desta constatação, Hart (2001, p. 139-140) divide os casos em simples e difíceis. Quanto aos primeiros, estes estão sempre a ocorrer em contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são claramente aplicáveis, parecendo não necessitar de interpretação e os casos de aplicação parecem ser “automáticos”, proporcionando o surgimento de certo acordo geral nas decisões quanto à aplicabilidade de tais termos classificatórios. Quanto ao segundo tipo, seja pelas especificidades da situação concreta em razão da natureza ou invenção humana, seja pela necessidade de classificação das variantes dos casos familiares, segundo os termos gerais surge uma crise de comunicação: “há razões, quer a favor, quer contra o nosso uso de um termo geral e nenhuma convenção firme ou acordo geral dita o seu uso, ou, por outro lado, estabelece a sua rejeição pela pessoa ocupada na classificação.” Abre-se, então, a utilização de um poder discricionário (ou, em outro momento, denominada de uma função restrita de criação de direito (HART, 2001, p. 314) ) derivado da linguagem, com o qual Hart (2001, p. 140) trabalhará a partir de certo método de solução dos casos difíceis: diante da identificação da indeterminação da regra a ser aplicada ao caso concreto, caracterizando-o como difícil, o intérprete/juiz pode considerar se o presente caso difícil em análise assemelha-se “suficientemente” ao caso simples em aspectos “relevantes” – fatores estes que atravessam o sistema jurídico e as finalidades/intenções que possam ser atribuídas à regra em análise -, optando por acrescentar a uma série de casos um caso novo, diante das semelhanças razoavelmente consideradas (quer como juridicamente relevantes ou suficientemente próximas). Em outras palavras: diante da identificação do caso novo (difícil), a solução a ser adotada dar-se-á através de uma escolha entre os interesses concorrentes, “à luz das finalidades sociais”, isto é, “o juiz tem de escolher entre sentidos alternativos a dar às palavras de uma lei ou entre interpretações conflituantes do que um precedente ‘significa’” (HART, 2001, p. 17) . EXEMPLO “Quando nos atrevemos suficientemente a cunhar certa regra geral de conduta (por ex. uma regra de que nenhum veículo pode ser levado para um parque), a linguagem usada neste contexto estabelece as condições necessárias que qualquer coisa deve satisfazer para se achar dentro do seu âmbito de aplicação, e certamente podem apresentar-se ao nosso espírito exemplos claros do que cai certamente dentro do seu âmbito. São os casos paradigmáticos ou claros (o automóvel, o autocarro, o motociclo); e a nossa finalidade ao legislar é até determinada, porque fizemos uma certa escolha. Resolvemos desde o início a questão de que a paz e a tranquilidade no parque deviam ser mantidas à custa, em qualquer caso, da exclusão destas coisas. Por outro lado, até que tenhamos posto a finalidade geral da paz no parque em confronto com aqueles casos que não encarámos inicialmente ou não podíamos encarar (talvez um automóvel de brinquedo, movido electricamente), a nossa finalidade é, nessa direcção, indeterminada. Não resolvemos, porque não figurámos antecipadamente a questão que será suscitada pelo caso não contemplado, quando ele ocorrer: se algum grau de paz no parque deve ser sacrificado ou mantido relativamente às crianças, cujo prazer ou interesse residem em usar estas coisas. Quando surge o caso não contemplado, confrontamos as soluções em jogo e podemos resolver a questão através da escolha entre os interesses concorrentes, pela forma que melhor nos satisfaz. Ao fazer isto, teremos tornado a nossa finalidade inicial mais determinada e teremos incidentalmente resolvido uma questão respeitante ao sentido, para os fins desta regra, de uma palavra geral.” (HART, 2001, p. 141- 142)
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