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São João Crisóstomo 349 - 407 DC SOBRE A VANGLÓRIA E A EDUCAÇÃO DOS FILHOS SUMÁRIO: 1. A vanglória ataca a Igreja como uma fera. 2. A vanglória é um demônio mau e perverso, mas de rosto amável. 3. A vanglória se assemelha aos frutos de Sodoma. 4. Da inutilidade da glória de um espetáculo teatral. 5. Mudança de decoração: no pagar está o chorar. 6. A vanglória, mais que pó e cinza, é fogo e fornalha. 7. Tampouco os que pela vanglória gastam moderadamente tiram algum proveito. 8. A vanglória do povo: o pobre quer parecer rico. 9. Outra insensatez: por guardar o "decoro" as pessoas morrem de fome. 10. A causa de todos estes males é que os meninos são educados desde o princípio na vanglória. 11. Ninguém pense que se trata de ninharia. 12. Antes de todas as coisas é preciso educar as crianças desde a primeira infância. 13. O pai deve tratar seu filho como os pescadores as pérolas, os pintores seus quadros e os escultores suas estátuas. 14. A alma da criança é como uma cidade recém fundada e construída, na qual se deve colocar leis severas. 15. Devemos impor a lei e vigiar seu cumprimento. 16. As leis das cinco portas. 17. Regras mais concretas de formação: ameaças e castigos. 18. Novos preceitos sobre a guarda da língua. 19. A criança não deve ouvir mitos nem histórias da carochinha. 20. A história de Caim e Abel contada às crianças (Gen. 4, 1-16). 21. Fruto da narração. 22. O pai deverá acompanhar seu filho à igreja. 23. A história de Esaú e Jacó contada às crianças. 24. Digressão: que nomes devemos colocar nas crianças. 25. Outros episódios que deverão ser relatados às crianças. 26. Leis da porta do olfato. 27. Leis da porta dos olhos. 28. Dificuldade para guardar a porta dos olhos. 29. As leis da porta do tato. 30. As casas e dispensas dos cidadãos. 31. Leis dos que vivem nas cidades. 32. O jovem deverá se exercitar previamente no domínio da paixão da ira. 33. Aquele que ensina também aprende. Cada um seja seu próprio criado. 34. A origem da escravidão. 35. O exemplo de Jó. 36. Leis sobre a concupiscência. 37. Meios para guardar a castidade: o menino não deve frequentar o teatro. 38. Outros meios para a guarda da castidade. 39. A oração, meio para guardar a castidade. 40. O jovem deve se casar logo. 41. O trato com o sacerdote. 42. As honras. 43. Leis da prudência. 44. A boda. A corrente de ouro. 45. Epílogo: a mãe eduque também sua filha. 1. A VANGLÓRIA ATACA A IGREJA COMO UMA FERA. Fizestes o que vos pedi? Rogastes a Deus por nós e por todo o corpo da Igreja, pedindo-lhe que apague o incêndio que provocou a vanglória? Essa vanglória que danifica todo o corpo, que o divide, não obstante sua unidade, em mil pedaços e afasta a caridade! Como uma fera que se lança sobre um corpo nobre e terno e incapaz de defender-se, assim a vanglória cravou seus dentes execráveis e inoculou seu veneno e encheu tudo com seu mau cheiro. Umas partes, depois de despedaçá-las, arrojou ao chão; outras, dilacerou; outras, espremeu entre seus dentes. Se nos fosse dado contemplar com os olhos a vanglória e a Igreja, veríamos um espetáculo lastimável e muito mais espantoso que o dos estádios: o corpo estendido no solo e ela, a vanglória, presidindo desde o alto, dirigindo seu olhar a toda parte, agarrando os que caem, não cedendo um ponto e perdoando jamais. Quem poderá, pois, afastar de nós essa fera? O mesmo que organizou o combate, a quem havemos de suplicar que envie seus anjos e, prendendo como com cordas a boca insolente e desavergonhada da fera, a afaste assim de nós. Mas o que organizou o combate fará isso, desde que nós, uma vez retirada a fera, não a procuremos novamente. Mas se Ele enviar seus anjos e mandar que a terrível fera se afaste de nós e, uma vez que se tenha afastado e tenha sido encerrada em sua toca, formos nós, embora com mil feridas, e a busquemos novamente e batamos à porta e a aticemos até faze-la sair novamente, Deus não se compadecerá de nós nem nos perdoará. Porque "quem", diz a Escritura, "terá pena do encantador mordido pela serpente ou dos que se aproximam das feras?" (Ecl. 12, 13) 2. A VANGLÓRIA É UM DEMÔNIO MAU E PERVERSO, MAS DE ROSTO AMÁVEL Como, pois, podemos nos livrar desse demônio mal e perverso? Porque é realmente demônio, mas que tem um rosto amável. Imaginemos, com efeito, um demônio que se transforma em rameira, se adorna de mil enfeites de ouro, se veste com belos vestidos, exala mil perfumes e toma, enfim, a forma ou a imagem esplêndida de uma mulher que ofusca toda a beleza. Suponhamos, ademais, que apareça naquela idade em que mais excita as almas dos jovens, na flor da juventude, enfeitada com uma faixa de ouro, com seus cabelos cacheados de diferente forma, à maneira de um bonito coque; também leve ajustado um diadema na cabeça, que dê extraordinária graça aos cabelos descobertos, brilhe sobre seu colo o ouro e as pedras preciosas. Um demônio assim, metido na figura de uma menina de pouca idade, apresente-se sozinha diante da casa dos demônios e mostre além disso todo o pudor do mundo; quem passando perto dela, não ficará seduzido? E se, finalmente, depois de tudo isso, entrasse em casa e, depondo toda aquela formosura, se mostrasse a si mesmo negro, ígneo e selvagem, como é natural que seja um demônio, e fizesse o miserável caído perder o juízo, e, zombando dele e agarrando sua alma, enlouquecesse sua inteligência, aí teríamos uma imagem cabal do que é esse maligno demônio da vanglória. Que há, efetivamente, de mais bela aparência que está? Que mais amável? Mas se considerarmos que tudo isso é pura fantasia e ficção, não nos deixaremos prender em suas redes nem cairemos em sua trama. O que se diz da rameira pode muito bem ser dito também da vanglória: "Mel destila os lábios da mulher". (Prov. 5,3) 3. A VANGLÓRIA SE ASSEMELHA AOS FRUTOS DE SODOMA Porque a vanglória vem a ser como os frutos de Sodoma. Estes frutos apresentam uma aparência brilhante e, pelo seu aspecto, fazem pensar a quem os vê, que são frutos bons. Porém ao se pegar na mão uma romã ou uma pera, cede imediatamente à menor pressão dos dedos e, rompida a casca superficial, estes se afundam no pó e cinza de dentro. Algo assim é também a vanglória. Numa rápida olhada, parece ser grande e admirável; mas se a apertamos entre as mãos, nos mete imediatamente a alma no pó. Muitas provas podemos dar de que assim é exatamente a vanglória. Quereis que comecemos pelos de fora? 4. DA INUTILIDADE DA GLÓRIA DE UM ESPETÁCULO TEATRAL. O teatro está superlotado; o povo todo está sentado ali, oferecendo uma vista esplêndida, composta de tantas fisionomias que muitas vezes alcançam o teto, e o próprio telhado superposto fica escondido pelos corpos das pessoas. Não é possível ver uma telha nem uma pedra, senão caras e corpos de pessoas em toda parte. E entra então à vista de todos o homem ambicioso que ali os reuniu; todos imediatamente ficam em pé e a uma só voz, como se fossem uma só boca, além de lhe estenderem as mãos, o chamam em coro, como benfeitor e protetor da cidade. Logo, conforme as coisas avançam, o comparam ao maior rio, equiparando a magnificência e profusão do espetáculo às águas do Nilo, e chamam o próprio homem de Nilo de dons. E não falta quem, para bajulá-lo ainda mais, considerando pouco o exemplo do Nilo e, afastando-se de rios e mares, consideram o próprio oceano, e dizem que é oceano: o que o oceano é em águas, isso é aquele homem em magnificência. Não há,enfim, elogio que não lhe seja atribuído. Esplêndida é a fisionomia da vanglória; porém recordai-vos, vos rogo, da imagem da garota na qual representamos o demônio, adornando-o com mil enfeites de ouro e colocando-o em idade de uma rameira e vereis que não será muito diferente da imagem da realidade. 5. MUDANÇA DE DECORAÇÃO: NO PAGAR ESTÁ O CHORAR. O que vem depois disso? O homem se inclina com gesto de adoração diante dos espectadores, com o que também ele a honra, e toma assento, invejado por toda aquela multidão, cada um dos quais faz votos de ser o que ele é então, e morrer imediatamente. Enfim, depois de ter gasto muito ouro e prata, cavalos, vestidos, escravos e tudo o mais; depois de consumidos muitos bens, novamente o acompanham entre coros de elogios, mas não muitos. Porque, uma vez terminado o teatro, todos têm pressa de ir cada um para seu destino. Logo em casa, suntuosas comidas, banquetes esplêndidos, magnífico brilho de dia inteiro. Ao meio-dia, o mesmo, e assim dois e três dias. E, quando tudo foi gasto - milhares de talentos de ouro - é quando aparece a cinza e o pó de todas aquelas vozes. 6. A VANGLÓRIA, MAIS QUE PÓ E CINZA, É FOGO E FORNALHA. Porque, estando em casa, feitas suas contas e considerando a enormidade dos gastos, surgem as lamentações. É que quando está satisfazendo seu desejo, como que tomado pelo vinho da vanglória, gastaria a si mesmo por ela, e o homem não pode nem remotamente perceber os prejuízos. Porém voltando para casa, já estando ali o demônio que pintamos, acaba-se toda aquela formosura uma vez desfeita a concorrência e, quando o homem contempla o teatro vazio e quando já não ouve ninguém assobiar e vê que o prejuízo não é fantástico, mas que lhe toca diretamente o dinheiro, então é que sente o sabor da cinza. 7. TAMPOUCO OS QUE PELA VANGLÓRIA GASTAM MODERADAMENTE TIRAM ALGUM PROVEITO. Mas se porventura gasta mais do que lhe permitia seu patrimônio e fica na miséria e, inclinado sobre seus pés, se vê obrigado a pedir no meio da praça, quando percebe que nenhum dos que antes o aclamavam se aproxima agora nem lhe estende a mão, antes se alegram com sua desgraça (do mesmo modo que antes, mesmo quando o elogiavam se corroíam de inveja e tinham como consolo de seus próprios males a esperança de que aquele homem tão brilhante então viesse a cair um dia na maior desgraça); quando ninguém, repito, se aproxima nem lhe estende a mão, poderá ocorrer alguma desgraça maior? Não é caso para se chorar? O que pode acontecer que seja mais trágico que isso? 8. A VANGLÓRIA DO POVO: O POBRE QUER PARECER RICO. Por acaso não conheceis ninguém a quem tenha acontecido isso. E oxalá se tivessem se contentado em não lhe estender a mão; mas, pelo contrário, os mesmos que o enalteceram antes, sufocam-no agora com acusações. "Por que", dizem, "se fez de louco? Por que ambiciona a glória? Quem o mandou gostar de prostitutas e farsantes?" Homem ingrato, tu mesmo não o admiravas? Não o elogiavas e, com teus aplausos e louvores não o induzistes? Não o chamaste um Nilo, um oceano de magnificência? Não consumistes dias inteiros em exaltá-lo com teus elogios? Como, pois, agora mudas repentinamente? E quando seria hora de ter compaixão, tu o acusas mais insistentemente nas mesmas coisas pelas quais o aplaudias. Porque, se quando acusamos com razão, ao vermos castigado o culpado, não somos tão duros que não nos comovamos, não seria mais natural comover-nos quando vemos na desgraça o mesmo que um dia exaltamos? Mas tu o acusas. Por que não o acusavas quando te divertias com o espetáculo, quando, abandonando todos os teus afazeres, passavas ali o dia? 9. OUTRA INSENSATEZ: POR GUARDAR O "DECORO" AS PESSOAS MORREM DE FOME. Vês que tais são os traços do diabo? Vês os frutos da vanglória? Eu te disse que era pó e cinza; porém agora vejo que não é apenas pó e cinza, mas também fogo e fornalha. Porque a coisa não termina simplesmente em não tirar proveito algum, mas também acarreta um acúmulo de males. A vanglória poderia chamar-se pó e cinza naqueles que, gastando muito, não sofrem nada; mas não nos que padecem o que acabamos de explicar. 10. A CAUSA DE TODOS ESTES MALES É QUE OS MENINOS SÃO EDUCADOS DESDE O PRINCÍPIO NA VANGLÓRIA. Então? - Dizes. É por acaso um fruto pequeno ser honrado e admirado pelas pessoas nessas liturgias ou serviços públicos? -Claro que sim; pois não é grande honra, como expliquei, o fato de ver-se objeto de gozação e alvo de maledicência e de calúnias. -E que importa isto aos que são honrados? -É que não são honrados pelas liturgias públicas, mas porque se espera que gastem novamente para gosto da plebe. Porque se os honrou no passado, por que os acusa quando não têm? Por que as pessoas não querem nem se aproximar então, mas os insultam com sarcasmos pródigos e abomináveis? Compreendes como a vanglória é uma loucura? 11. Ninguém pense que se trata de ninharia. Mas deixemos esta espécie de vanglória que se limita a um ou outro e passemos para outra. Mas se alguém me objetasse: - E que dizer dos que gastam moderadamente nas diversões das cidades? -Dize-me, te suplico: Que proveito se extrai disso? Porque efêmera também é a glória e grita que estes conseguem. A prova é que se a estes se desse opção entre recuperar o que gastaram, ou pelo menos uma terça parte, e até uma parte qualquer, e não ter ouvido nenhuma daquelas vozes, não crês que prefeririam mil vezes a primeira opção? Porque aqueles que por um só óbolo são capazes das maiores vergonhas e insolências, o que não fariam para recuperar tanto dinheiro tolamente gasto? 12. ANTES DE TODAS AS COISAS É PRECISO EDUCAR AS CRIANÇAS DESDE A PRIMEIRA INFÂNCIA. Agora minha palavra se dirige urgentemente aos que entre vós sois crentes e vos negais a estender a Cristo, pobre e necessitado do necessário sustento, nem o mais insignificante. E aquilo que os homens vãos, por ouvir uma única voz, presenteiam às mulheres perdidas, aos comediantes e dançarinos, vós não o dais a Cristo pelo reino eterno. 13. O PAI DEVE TRATAR SEU FILHO COMO OS PESCADORES AS PÉROLAS, OS PINTORES SEUS QUADROS E OS ESCULTORES SUAS ESTÁTUAS. Porém passemos a outro tipo de vanglória. Qual é este? O que é comum entre as pessoas e não se limita a um ou outro: Nós nos alegramos ao ser louvados sobre coisas que sabemos não termos mérito nem parte. Assim, o pobre move céus e terra a troco de vestir lindos trajes sem outro fim que o de ser honrado pelos demais, e muitas vezes, podendo servir a si próprio, paga um criado, não porque precise dele, mas para não passar pela desonra de servir-se a si mesmo. Porque, se não, responde: Ele que toda sua vida se serviu com suas próprias mãos, que necessidade tem de que agora outro lhe venha servir? Logo, se aumenta seu dinheiro, compra vasos de prata e uma casa muito bonita. Tudo isso é desnecessário. Se tudo isso fosse necessário, a maior parte do gênero humano teria perecido, quero dizer: Há coisas necessárias sem as quais não se pode viver. Assim, é necessário que a terra dê frutos, e sem os produtos da terra não seria possível viver. Vestir-nos, proteger-nos debaixo de um teto, calçar-nos são coisas necessárias. Todo o resto é supérfluo. Porque se também o outro fosse necessário e não fosse possível ao homem viver sem criado, a maior parte do gênero humano teria perecido, pois a maior parte dos homens não tem quem lhes sirva. Se fosse necessário servir-se de vasilha de prata e sem ela não se pudesse viver, haveria também morrido a maior parte dos homens, pois a maior parte nunca vê nas mãos a prata. Pois bem, se aos que possuem a pratase diz: Qual é a finalidade desse vaso? Qual o motivo para possuí-lo e que utilidade te traz? Esse tal não saberia dizer outra coisa senão a honra que recebe do vulgo. -Tenho o vaso - diz - para chamar a atenção e para eu não ser desprezado; mas o escondo para não provocar inveja e que me queiram prejudicar. Pode acontecer insensatez maior que essa? Se o tens para granjear-te honra da parte das pessoas, mostra-o para todo mundo; e se temes a inveja, absolutamente não é bom possuí-lo. 14. A ALMA DA CRIANÇA É COMO UMA CIDADE RECÉM FUNDADA E CONSTRUÍDA, NA QUAL SE DEVE COLOCAR LEIS SEVERAS. Falarei de outra insensatez? Muitas vezes acontece que alguns se privam do necessário e passam fome, a troco de possuírem tais vasilhas. E se lhes perguntamos a causa: -É que tenho - dizem - que guardar meu decoro. Que decoro, homem? Não consiste nisso o decoro do homem. Será que não guardava o decoro - e um grande decoro - o Justo Elias, e Eliseu, e João? E, no entanto, Elias não tinha mais do que sua pele de ovelha (4 Re. 2,8) e foi pedir a uma mulher viúva, e além disso pobre, e como mendigo se colocou diante da porta daquela mulher e dirigiu a ela palavras de mendigo (3 Re. 17,8, ss). Considerando isso, nem Eliseu guardou seu decoro quando foi alimentado por outra mulher pobre (4 Re. 4,7 ss.). Indecorosamente também viveu João, pois não possuía roupa alguma, nem um único pão (cf. Mt. 3,4; Mc. 1,6). A única indecência é possuir muitas coisas e essa realmente é a grande indecência. Porque então se tem fama de crueldade, moleza, necessidade, soberba, vanglória e arrogância. Não consiste o decoro em ter roupas bonitas, mas em revestir-se de boas ações. 15. Devemos impor a lei e vigiar seu cumprimento. Na verdade, sei que alguns se maravilham com isso. Fulano - dizem - preserva seu decoro; tem leito alcatifado e muitas vasilhas de prata. É senhor da sua casa. Por que, pois, culpas a nós que possuímos essas coisas, quando deverias culpar aqueles que têm muito mais? -Pois muito mais os acuso por meio de vós. Porque se não absolvo de culpa aos que possuem pouco, muito menos absolverei àqueles que possuem mais. A decência não consiste na beleza da casa, nem no luxo dos empregados, nem no quarto com tapetes e cama bem enfeitada, nem no grande número de criados. Tudo isso são coisas que estão fora de nós e nada têm a ver conosco. O que nos corresponde é a modéstia, o desprezo pelas riquezas, o desprezo ela glória, zombarmos da honra vinda do povo, transcender a natureza através da virtude da vida. Esta é a decência, esta é a glória, esta é a honra. Mas a causa de todos os males vem do princípio, e eu vos direi como. 16. AS LEIS DAS CINCO PORTAS. Apenas nascido o menino, o pai busca todos os meios imagináveis, não para educá-lo, mas para adorná-lo e vesti-lo com roupas de ouro. Homem, por que motivo fazes isso? Basta que te vistas dessa forma; para que ensinar também isso para um filho que ainda não conhece tamanha loucura? Para que fim lhe colocas um enfeite no pescoço? O que a criança precisa é de um pajem escrupuloso para educá-lo, e não de adornos de ouro. Além disso, lhe deixas o cabelo comprido com o que, desde o início fazes o menino aparentar ser uma menina e amoleces o lado rígido da sua natureza, infundindo-lhe desde o nascimento o amor supérfluo das riquezas e persuadindo-o a que se iluda com coisas inúteis. Que necessidade tem de preparar-lhe maior ataque? Por que fazes com que se interesse pelo corporal? "Para o varão", diz o Apóstolo, "deixar crescer a cabeleira é uma desonra". (I Cor. 11, 14) A natureza não quer isso. Deus não permitiu isso. É uma coisa proibida. É obra de superstição gentílica. Muitos lhes penduram enfeites de ouro nas orelhas. Oxalá não os usassem nem as próprias meninas. E vós ainda estimulais essa peste entre os homens. 17. REGRAS MAIS CONCRETAS DE FORMAÇÃO: AMEAÇAS E CASTIGOS. Talvez muitos riam do que estou dizendo, considerando-o ninharia. Não são ninharias, mas coisas muito relevantes. A menina que aprende já no quarto materno a encantar-se com as roupas femininas, quando sair da casa paterna, será ingovernável e um fardo para seu marido e mais insuportável que os cobradores de impostos. Eu já vos disse outras vezes que a causa de que a maldade seja difícil de extrair está em que ninguém lhes fala sobre a virgindade, ninguém lhes diz uma palavra sobre a castidade, ninguém sobre o desprezo pelas riquezas e pela glória, ninguém lhes recorda as promessas que temos nas Escrituras. 18. NOVOS PRECEITOS SOBRE A GUARDA DA LÍNGUA. Pois bem, se desde a primeira infância carecem as crianças de mestres, que será delas? Se alguns, educados e instruídos desde o ventre materno até a velhice, não conseguem triunfar, que males serão capazes de cometer aqueles que desde o começo da vida se acostumaram a ouvir semelhantes palavras? O certo é que todas as pessoas se esforçam para que seus filhos se instruam nas artes, nas letras e na eloquência; mas a ninguém ocorre pensar em como exercitar sua alma. 19. A CRIANÇA NÃO DEVE OUVIR MITOS NEM HISTÓRIAS DA CAROCHINHA. Eu não cesso de vos exortar, rogando-vos e suplicando-vos que, antes de qualquer coisa, eduqueis bem os vossos filhos. Se tendes consideração por vossos filhos, aqui o haveis de mostrar. Ademais, tampouco vos faltará a recompensa. Escuta o que te diz São Paulo: "Salvar-se-á pela educação dos filhos, se permanecerem na fé, na caridade e na santidade com castidade". (I Tim. 2, 15) Se a tua consciência te acusa de mil pecados, busca algum consolo para eles. Educa um atleta para Cristo. Não te digo que o afastes do matrimônio e o envies ao deserto e o faças abraçar a vida monástica. Não é isso o que digo. Quero-o, certamente, e faria promessa a Deus para que todos a abraçassem; mas como isso parece muito pesado, não aponto como obrigação para ninguém. Educa um atleta para Cristo, e mesmo permanecendo no mundo, ensina-o a ser piedoso desde os primeiros anos. 20. A HISTÓRIA DE CAIM E ABEL CONTADA ÀS CRIANÇAS (GEN. 4, 1- 16). Se os bons ensinamentos se imprimem na alma quando está ainda é terna, logo, quando se tiverem endurecido como uma imagem, ninguém será capaz de os arrancar. É o que acontece com a cera. Agora o tens em tuas mãos quando ainda teme, treme e se espanta com teu olhar, com uma palavra, com qualquer gesto teu. Usa o teu poder para o que convém. Se tens um filho bom, tu serás o primeiro a gozar desse bem; em breve Deus. Para ti trabalhas. 21. FRUTO DA NARRAÇÃO. Disseste que as pérolas, no momento de se colher, são apenas água. Pois bem, se aquele que a colhe é esperto, põe em sua mão aquela gota de água e, fazendo-a girar sobre o vazio da mesma, a torneia de modo perfeito e a torna completamente redonda. E uma vez que tenha tomado uma forma, já não é possível dar-lhe outra. E é assim que, em geral, o tenro, como ainda não recebeu sua própria forma, presta-se a adotar qualquer uma que se lhe dê. Daí a facilidade com que se faz dele o que se quer. Mas o duro, como se da dureza tivesse recebido uma disposição peculiar, já não é fácil fazer perdê-la e passar para outra estrutura. 22. O PAI DEVERÁ ACOMPANHAR SEU FILHO À IGREJA. Cada um, pois, de nós, pais e mães, pela maneira que vemos como os pintores e escultores trabalham tão esmeradamente seus quadros e estátuas, assim devemos cuidar destas maravilhosas esculturas, que são os filhos. Os pintores, com efeito, pondo-se diante da tela cada dia, a vão pintando convenientemente. E o mesmo fazem os que vão polindo a pedra,ora tirando o supérfluo, ora colocando o que falta. Assim, nem mais nem menos, fazei também vós: estais esculpindo esculturas. Todo vosso tempo há de ser consagrado a preparar para Deus estas maravilhosas estátuas. Cerceai o supérfluo e acrescentai o que falta, e examinai diariamente quais os ganhos que já têm sobre seu natural, a fim de aumentá-los, e que defeitos também lhes vêm da natureza, para corrigi-los. E, antes de tudo, e com todo rigor, afastai deles todas as palavras de intemperança, pois esta paixão é a que mais prejudica a alma dos jovens. Ou, melhor, antes que o jovem chegue a conhecê-la pela experiência, ensinai-o a ser sóbrio, a vigiar, a velar pela oração e a pôr o sinal da cruz em tudo que diga ou faça. 23. A HISTÓRIA DE ESAÚ E JACÓ CONTADA ÀS CRIANÇAS. Imagina seres um rei e que uma cidade esteja submetida a ti, que é a alma da criança; pois a alma é, efetivamente, uma cidade. E do mesmo modo que em uma cidade uns roubam e outros agem justamente; uns trabalham e outros fazem tudo pelo prazer, assim acontece exatamente na alma com a inteligência e os pensamentos; uns lutam contra os que cometem iniquidade, como fazem na cidade os soldados; outros proveem ao conjunto, ao corpo e à casa, como os que administram a cidade; outros ordenam e mandam, como fazem os governantes; e há também os que narram coisas dissolutas, como fazem os intemperantes; outros, coisas graves, como os castos ou temperantes; há também os afeminados, como mulheres entre nós; outros falam com pouca razão, como fazem os meninos; e uns são mandados como os criados, como se faz com os escravos; outros são nobres, como o são os cidadãos livres. 24. DIGRESSÃO: QUE NOMES DEVEMOS COLOCAR NAS CRIANÇAS. Necessitamos, pois, de leis, a fim de desterrar os maus e admitir os bons e não consentir que os maus se revoltem contra os bons. Porque do mesmo modo que se em uma cidade se fizessem leis concedendo total impunidade aos ladrões, se transtornaria tudo; e se os soldados não usassem devidamente da ira, se faria um dano universal, e se cada um deixasse seu posto, se intrometesse no dos outros, com tal intromissão se chegaria a perder toda a disciplina; assim acontece exatamente na alma. 25. OUTROS EPISÓDIOS QUE DEVERÃO SER RELATADOS ÀS CRIANÇAS. Cidade, pois, é a alma do menino, cidade recém fundada, habitada por cidadãos forasteiros que ainda não têm experiência alguma. E esses são justamente os que mais facilmente se educam. Aqueles que têm tido má conduta, como os velhos, dificilmente mudam; não que seja impossível, pois também os velhos, se quiserem, podem mudar; mas os que ainda não têm nenhuma experiência, receberão mais facilmente as leis que lhes imponham. 26. LEIS DA PORTA DO OLFATO. Portanto, estabelece, para esta cidade e seus cidadãos leis severas e enérgicas e constitui-te o defensor das que forem transgredidas, pois de nada serve fazer leis se não forem aplicadas as punições previstas. 27. LEIS DA PORTA DOS OLHOS. Estabelece, pois, as leis para esta cidade e vigia escrupulosamente: Estamos estabelecendo leis para a terra inteira e vamos hoje fundar uma cidade. Tem que haver cercas e portas: os quatro sentidos. O corpo em geral seja como a muralha; as portas desta, os olhos, a língua, o ouvido, o olfato e, se queres, também o tato. Através destas portas, efetivamente, entram e saem os cidadãos desta cidade. Ou seja, através destas portas se corrompem ou se endireitam nossos pensamentos. 28. DIFICULDADE PARA GUARDAR A PORTA DOS OLHOS. Eis, pois, vamos primeiramente à porta da língua, pois esta é a que mais se movimenta, e a devemos construir antes de qualquer outra, porta e fechadura, não de madeira nem de ferro, mas de ouro. Porque de ouro é verdadeiramente a cidade que assim se prepara. E é verdade que nela, não um homem, mas o próprio rei do universo deverá habitar, quando estiver preparada, e já verás, mais a frente, onde lhe assinalaremos os palácios. Construamos, portanto, para essa entrada, portas e fechaduras de ouro, que são os oráculos de Deus, como disse o profeta: "Os oráculos de Deus são mais doces para minha boca que o mel e o pão"; (Ps. 118,103) "mais apetecíveis que o ouro e pedras preciosas em abundância" (Ps. 18, 10- 11) Ensinemos-lhes a levar sempre nos seus lábios as palavras divinas, inclusive nos seus passeios, não casualmente e superfluamente, nem poucas vezes, mas continuamente. Sobre as portas não nos contentemos em colocar lâminas de ouro, mas construamos as mesmas inteiras e por dentro de ouro puro, densas e maciças, e levando pedras preciosas ao invés de pedras incrustadas por fora. O ferrolho destas portas há de ser a cruz do Senhor, que deverá ser fabricado inteiramente de pedras preciosas e correr de ponta a ponta nas portas. E assim quando tivermos construído estas portas maciças e de ouro puro e sobreposto o ferrolho, preparemos também cidadãos dignos. Como prepará-los? Ensinando as crianças a falar palavras nobres e piedosas. E deveremos praticar uma rigorosa expulsão de estrangeiros, afim de que não se misturem com estes cidadãos gente em abundância e corruptoras; ou seja, havemos de excluir as palavras insolentes e maledicentes, as insensatas, as torpes, as seculares e mundanas. Importa banir todas essas palavras. Ninguém, exceto o rei, deverá entrar por estas portas. Só a Ele e a quantos com Ele vão, há de estar aberta a porta, para que dela também se diga: "Esta é a porta do Senhor, os justos entrarão por ela". (Ps. 117, 20) E segundo o bem-aventurado Paulo: "Se tens alguma palavra boa, seja para a edificação, de maneira que faça bem aos ouvintes" (Ef. 4, 29) As palavras sejam de ação de graças, cânticos sagrados, todas as suas conversas sejam sobre Deus e sobre a filosofia do céu. 29. AS LEIS DA PORTA DO TATO. Como, pois, consegui-lo? E por quais meios educaremos? Constituindo- nos juízes rigorosos de suas ações. A criança nos oferece para isso, muita facilidade. Como? Não luta pelas riquezas, nem pela glória. Ainda é um menino. Não luta pela mulher, nem pelos filhos, nem pela casa. Dessa forma, pouco pretexto pode ter para injuriar e nem para falar mal de alguém. Toda sua luta é com os de sua idade. 30. AS CASAS E DISPENSAS DOS CIDADÃOS. Impõe a ele, imediatamente, a lei de que não insulte a ninguém nem fale mal de ninguém, nem jure, nem procure desavenças. Se perceberes que infringe a lei, castiga-o, algumas vezes com um olhar severo, outras com palavras que o mortifiquem, outras com impropérios. Às vezes também haverás de acariciá-lo e prometer-lhe algo. Não bate nele assiduamente nem se acostume ele a esta maneira de educação. Porque se aprender a ser continuamente castigado, aprenderá também a desprezar o castigo; e se aprender a depreciar, tudo estará perdido. Não. O filho deverá temer sempre que for ameaçado, mas não se deverá bater nele. Deve se levantar a correia, mas não baixá-la. As ameaças não devem se transformar em ato. Porém, que não veja claramente que a ameaça reduz-se apenas a palavras; pois a ameaça só é eficaz quando se pensa que ela poderá ser realizada. Se o pecador se dá conta de que se trata apenas de uma ameaça, a desprezará. Não. Que espere sempre o castigo, mas procure que este não chegue. Não se extinga o temor; seja mais como um fogo vivo que consome todos os espinhos próximos ou como uma enxada ou uma picareta afiada e larga que cava até o fundo. Mas se perceberes que só o medo produz efeito, afrouxa um pouco a rédea, pois nossa natureza requer também um pouco de rédea solta. 31. LEISDOS QUE VIVEM NAS CIDADES. Ensina-o a ser modesto e caridoso. Se percebes que insulta seu acompanhante, não consinta, mas castiga-o livremente. Aquele que sabe que não lhe é lícito injuriar seu próprio escravo, com muito mais razão se guardará de não injuriar ou maldizer o que é livre e igual si. Costura sua boca para toda a maldade. Se notas que calunia alguém, fecha-lhe a boca e força-o a voltar a língua para seus próprios pecados. 32. O JOVEM DEVERÁ SE EXERCITAR PREVIAMENTE NO DOMÍNIO DA PAIXÃO DA IRA. Aconselha sua mãe, a pajem e o acompanhante que digam estas mesmas coisas à criança, de forma que todos sejam guardiões e vigiem para que não saia da boca do menino nenhum daqueles maus pensamentos nem atravesse aquelas portas de ouro. 33. AQUELE QUE ENSINA TAMBÉM APRENDE. CADA UM SEJA SEU PRÓPRIO CRIADO. E não pensa, te suplico, que a isto requeira muito tempo. Se desde o início o atacas e ameaças e colocas tantos guardiões, dois meses bastam e tudo se consegue e endireita, e a coisa vem tomar a firmeza do natural. 34. A ORIGEM DA ESCRAVIDÃO. Desta forma, pois, pode esta porta fazer-se digna do Senhor. Através dela não há de passar torpeza nem grosseria alguma, nem alguma palavra insensata, nem coisa parecida, mas só as que são dignas do Senhor. Se aqueles que instruem na milícia temporal, apenas entram seus filhos nelas já os ensinam a manusear o arco e vestir a clâmide e a montar a cavalo, e a idade não representa obstáculo algum, mais justo é que aqueles que militam na milícia celeste vistam imediatamente todo este magnífico adorno. Aprenda, portanto, a criança a cantar a Deus, para que não se entregue às canções medíocres e às histórias inconvenientes. 35. O EXEMPLO DE JÓ. Assim está porta será assegurada, e estes são os cidadãos que hão de se inscrever no registro. Todos os demais deverão ser mortos dentro, como fazem as abelhas com os zangões, e não deverão deixar que saiam e zumbam fora. 36. LEIS SOBRE A CONCUPISCÊNCIA. Vamos agora a outra porta. Qual é esta? A que está próxima à da boca e tem muito parentesco com ela: a do ouvido. Pela porta da boca saem de dentro os cidadãos e ninguém entra por ela; pela porta do ouvido, ao contrário, entram de fora e não sai ninguém. Estão, pois, entre si estreitamente relacionadas. Com efeito, se a porta do ouvido não deixar pisar seus umbrais nenhum corruptor nem corrompido, não cria grandes dificuldades à boca, pois aquele que não ouve coisas vergonhosas e más, tampouco as fala; assim como, estando a porta do ouvido aberta de par em par a tudo o que vem, prejudicará a outra e levará à turbação todos os de dentro. E talvez fosse conveniente ter dito primeiro tudo que é relacionado a esta porta e ter fechado bem a primeira entrada. 37. MEIOS PARA GUARDAR A CASTIDADE: O MENINO NÃO DEVE FREQUENTAR O TEATRO. Assim, pois, as crianças não hão de ouvir palavras desonestas, nem dos escravos, nem das pajens, nem das governantas. As plantas precisam de cuidados especiais quando são tenras. Assim também as crianças. Deve-se provê-los, portanto, de boas pajens, afim de que o fundamento, desde a base, seja bom e não se lhes infiltre absolutamente nada mal. 38. OUTROS MEIOS PARA A GUARDA DA CASTIDADE. Consequentemente, não ouçam histórias da carochinha. "Fulano - diz - amou fulana. O filho do rei e a filha caçula fizeram isso". Nada disso devem ouvir. Ouçam outras histórias sem tantos rodeios, com toda simplicidade. Podem, efetivamente, contá-las os escravos ou os acompanhantes. Não todos, pois não se deve permitir a todos os escravos misturarem-se com as crianças. Brilhantes hão de ser, como quem se aproxima de uma estátua brilhante, os que nos ajudarão nessa arte. Se fossemos arquitetos e tratássemos de construir um palácio para o imperador, não deixaríamos que todos os escravos, sem mais nem menos, pusessem as mãos na construção; não seria, pois, absurdo que, quando fundamos uma cidade e queremos formar cidadãos para o imperador celeste, encomendemos a obra a todas as pessoas? Não. Tomemos como colaboradores na educação dos filhos aqueles escravos que sejam proveitosos. Se não há nenhum, paga remuneração a um cidadão livre, que seja homem virtuoso, e a este encomenda toda a obra, este seja teu colaborador. 39. A ORAÇÃO, MEIO PARA GUARDAR A CASTIDADE. Não ouçam, pois, semelhantes histórias. Não. Quando forem aliviar o cansaço do estudo, já que a alma aprecia as histórias antigas, conta-as à criança, afastando-a dos jogos... sim, estás criando um filósofo, e um atleta, e um cidadão do céu. Diga-lhe, portanto, e conte-lhe assim: "Havia no início do mundo dois filhos do mesmo pai, dois irmãos". Logo, após uma breve pausa, prossegue: "Os dois tinham saído do mesmo ventre. Um era maior, o outro menor. E um era agricultor, o maior; e o menor, era pastor. O pastor levava seu rebanho nos vales e lagos." E procura suavizar a narração, para que também a criança sinta gosto e sua alma não se canse. "O agricultor semeava e plantava. Uma vez, pois, decidiram os dois fazer um sacrifício a Deus. E o pastor, pegando o melhor de seus rebanhos, o ofereceu a Deus". Não é melhor, muito melhor, contar estas coisas ao invés de tudo aquilo do carneiro de ouro e outros fantásticos prodígios? Logo anima-o (pois a narrativa também o leva consigo) sem acrescentar nenhuma mentira, mas partindo sempre das Escrituras. Portanto, como ofereceu a Deus o melhor, prontamente desceu fogo do céu e arrebatou tudo para o altar do alto. Assim não fez o irmão mais velho, mas guardando nos celeiros para si a melhor parte das suas colheitas, ofereceu a Deus o que valia menos. E Deus não se dignou nem olhar aquelas ofertas, mas virou seu rosto e as deixou no chão. E já dissemos que as outras havia aceitado para si. É o que acontece com os que mandam nos lugares: O dono honra um que lhe traz suas ofertas e permite que entre; o outro deixa do lado de fora. Exatamente dessa forma aconteceu nesse caso. Então, o que aconteceu depois? O irmão maior ficou ressentido, pensando ter sido desonrado e preterido, e estava triste. Então disse-lhe Deus: "Por que estás triste? Não sabias que fazias oferta a Deus? Por que me ofendeste? Tinhas alguma coisa contra mim? Por que me ofereceste a parte que valia menos?" Ou se preferes usar uma linguagem mais simples, dirás: "Ele esteve quieto, não tendo o que refutar", ou para dizer melhor ainda, "se calou". Depois disso, vendo seu irmão menor, lhe disse: "Vamos andar no campo". E lançando-se contra o irmão mais novo, o matou de forma traiçoeira. E imaginava que Deus não iria inteirar-se disso. Mas Deus se aproximou e lhe disse: "Onde está o teu irmão?" Ele respondeu: "Não sei. Por acaso sou o guardião do meu irmão?" Disse-lhe Deus: "Eis que o sangue do teu irmão está clamando por mim desde a terra". Sentada a teu lado também deverá estar a mãe, enquanto se forma assim a alma da criança com essas histórias, para que ela também colabore e elogie as coisas que vão sendo ditas. "O que aconteceu, pois, em seguida? Ao que foi assassinado Deus admitiu no céu, e lá em cima está mesmo depois de morto." E é assim, com estas histórias, que a criança recebe a doutrina da ressurreição. Porque se nos mitos ou nas histórias se narram prodígios como: "Ela se tornou - dizem - semideusa", e a criança acredita (realmente não sabe o que é semideusa, mas imagina que é algo acima da natureza humana e fica admirada quando ouve isso), com mais razão quando ouve falar da ressurreição e que a alma do irmão maisnovo subiu ao céu. "O menor, portanto, Deus levou imediatamente ao céu; mas o outro, o que o havia assassinado, viveu ainda muitos anos sofrendo muitos males, entre temores e tremores, e sobre ele caíram mil calamidades e castigos todos os dias". E ressalta energicamente este castigo, não de passagem, que ouviu de Deus: "Com temor e tremor residirás sobre a terra". Certamente a criança não sabe o que é isso. Pois tu lhe dirás: "Da mesma forma que tu estás diante do mestre muito angustiado, temendo e tremendo se alguma vez te tem que açoitar, assim sempre viveu aquele assassino por ter ofendido a Deus". 40. O JOVEM DEVE SE CASAR LOGO. Basta chegar até aqui; e isso podes contar a ele em um único dia durante a ceia. Por sua vez, o mesmo, deverá lhe dizer a mãe. Logo, quando já tiver ouvido muitas vezes, pede a ele mesmo: "Conta-me o que se passou", e assim também seu amor próprio será despertado. E quando notares que compreendeu bem a história contada, explicarás a ele também o fruto que deve ser extraído. É verdade que a alma por si mesma, ao receber a narração, sabe extrair o fruto antes mesmo de que lhe venhas explicar; no entanto, tu podes também acrescentar o seguinte: "Vês que mal tão grande é a voracidade? Vês que mal tão grande é ter inveja do irmão? Vês que mal tão grande é pensar que algo pode ocultar-se a Deus? Porque Deus vê tudo, mesmo o que se faz ocultamente". Só com essa doutrina, semeada profundamente na criança, já não lhe fará falta a pajem, pois o temor de Deus lhe será incutido mais profundamente do que todo outro temor e mexerá com sua alma. 41. O TRATO COM O SACERDOTE. E não só isso, mas também deves levar a criança pela mão à Igreja, e procura principalmente levá-lo quando lá seja lida essa mesma história. E então verás como se orgulhará e saltará de alegria, pois ele sabe o que todos ignoram, e se adiantará e entenderá melhor e tirará grande proveito. E a partir de então a história se gravará em sua memória. 42. AS HONRAS. Ainda pode-se extrair outros frutos da história. Portanto, aprenda a criança, de tua boca, que não devemos lamentar o sofrimento, como a própria morte o demonstra aqui, no princípio do mundo, pois Deus recebeu no céu aquele que se tornou glorioso por sua morte. 43. LEIS DA PRUDÊNCIA. Quando a história anterior estiver bem gravada na alma da criança, poderás contar outra, por exemplo, a de outros dois irmãos, e começarás assim: "Havia também outros dois irmãos, um maior e outro menor; o maior era caçador; o menor era caseiro". Esta história é mais interessante do que a outra, por conter mais peripécias e pelos irmãos serem mais velhos. "Estes dois irmãos também eram gêmeos e, quando nasceram, a mãe amava mais o menor, e o pai o maior. Um passava a maior parte do tempo fora de casa, nos campos, enquanto o menor ficava em casa. E ocorreu que o pai, já velho, disse ao filho que ele mais amava: 'Vês, filho, que já estou velho; portanto, vai e me traga uma caça. Isto é, vê se caças uma gazela ou uma lebre, e me trazes e asses para mim, e depois de comer, te darei minha benção'. Mas para o menor não disse nada disso. Como a mãe ouvira o pai falar daquela forma, chamou o irmão menor, e lhe disse: 'Filho, como teu pai mandou a teu irmão que lhe traga caça, a fim de abençoá-lo depois que tiver comido, escuta-me: Vai agora até o rebanho e pega uns cabritos bonitos e gordos e traze-os para mim, e eu os prepararei como sei que teu pai gosta. Tu os apresentarás, a fim de que, depois que ele tiver comido, te bendiga'. Importa saber que o pai havia perdido a vista com a velhice. Assim, portanto, o irmão menor trouxe os cabritos, a mãe os assou, colocou seus pedaços bons numa travessa, e a deu para o filho e este a apresentou ao pai. Antes a mãe o havia vestido com peles de cabra, para que não fosse descoberto, pois não tinha pêlos, e seu irmão era peludo. Era preciso dissimular e que o pai não percebesse. Preparado dessa forma, a mãe o despachou. E o pai, imaginando que fosse realmente o mais velho, acabando de comer, lhe deu a benção. Logo, após dar a benção, chegou o maior com a caça e, vendo o que tinha acontecido, gritou e começou a chorar”. 44. A BODA. A CORRENTE DE OURO. Olha quantos bens se extraem disso. E não conta a história inteira. Repara quanto proveito pode ser tirado do que foi contado. Em primeiro lugar, as crianças admirarão seus pais, vendo que assim disputam estes dois irmãos pela benção do seu, e preferirão mil vezes ser açoitados ao invés de ouvir uma maldição de seus pais. Porque se uma fábula qualquer lhes interessa e a têm como digna de fé, como não interessá-los o que realmente é verdade, e quanto maior temor não lhes infundirá? Aqui perceberão que devem desprezar o ventre; pois deves contar-lhes que "ao maior não valeu de nada sua primogenitura, pois por sua intemperança do ventre vendeu seu privilégio de primogênito". 45. EPÍLOGO: A MÃE EDUQUE TAMBÉM SUA FILHA. Logo, quando assimilar bem o descrito, numa outra noite lhe dirás: "Então conta-me a história daqueles dois irmãos". E começará a contar-te a história de Caim e Abel: mas lhe replicarás dizendo: "Não, não é esta a que pergunto, mas a dos outros dois irmãos, que disputavam entre si a benção do pai". E dá-lhe os sinais pois, ainda não deves atribuir-lhes os nomes. E como não contaste a história inteira, continua teu relato dizendo: "Ouça, pois, o que aconteceu então. Também este tentava matar seu irmão, como o da outra história, e esperava a morte de seu pai. Como a mãe ficou sabendo, e temia, providenciou que o irmão menor fugisse”. Logo vem a grande filosofia que certamente supera a capacidade da criança, mas que, se soubermos manejar bem o relato, pode também, com condescendência, ser apresentada à tenra inteligência infantil. Portanto, lhe diremos assim: "O irmão perseguido se pôs a caminho e chegou a um lugar, sem a companhia de ninguém, sem escravo, sem provedor, nem pajem, nem qualquer pessoa deste mundo. Estando ali, fez oração e disse: 'Senhor, dá-me pão e roupa e salva-me'. Logo, dito isso, a própria tristeza o fez dormir. E viu uma escada que chegava da terra ao céu e os anjos de Deus que subiam e desciam, e viu o próprio Deus que estava em cima na extremidade, e disse: 'Abençoa-me'. E o abençoou e o chamou de Israel”.
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