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311 FORMANDO LEITORES OU BRUXO? A POLÊMICA EM TORNO DA SÉRIE HARRY POTTER Elaine Cristina AMORIN (PG – UEM) Vera Helena Gomes WIELEWICKI (UEM) ISBN: 978-85-99680-05-6 REFERÊNCIA: AMORIN, Elaine Cristina; WIELEWICKI, Vera Helena Gomes. Formando leitores ou bruxo? A polêmica em torno da série Harry Potter. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 311-320. Em 1997, a britânica Joanne Rowling, comumente conhecida como J.K. Rowling, lança seu primeiro livro Harry Potter e a Pedra Filosofal iniciando uma série de sucesso, que lhe garantiu a seqüência de mais seis livros: Harry Potter e a Câmara Secreta (1998); Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (1999); Harry Potter e o Cálice de Fogo (2000); Harry Potter e a Ordem da Fênix (2003); Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2005) e Harry Potter And The Deathly Hallows (2007). Cada livro narra a vida de Harry Potter na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts onde ele aprende sobre mágica e como preparar poções, além de ultrapassar inúmeros obstáculos tanto mágicos como pessoais. À primeira vista, o enredo é simples e a trama conhecida, com uma linguagem dinâmica. Mas o que faz dos livros de Rowling os mais vendidos em todo o mundo, garantindo-lhe a posição de mulher mais rica da Inglaterra, riqueza esta maior que a da própria rainha? De tal modo, Harry Potter convida à discussão não apenas da “guerra das culturas”, mas também do problema do leitor em formação, particularmente aquela que se dá num país de tradição iletrada como o nosso [...] (CECCANTINI, 2005, p.24). Dessa forma, esta análise baseia-se, devido ao grande sucesso entre o público jovem, na possibilidade de despertá-los para o mundo literário, a partir do desenvolvimento de seu lado crítico por meio do ficcional. Nessa perspectiva, Lajolo (2001, p.7) afirma que: “Ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive”. 312 O mundo ao qual Lajolo (2001) refere-se está em constante transformação, onde o imediato ocupa o espaço do lúdico, ou seja, ler pode tornar-se uma tarefa árdua e sem vínculo com o mundo real do leitor. Assim, por meio de uma diferente “leitura do mundo”, sobretudo do mundo das bruxas, Harry Potter pode influenciar o ato de leitura ao invés de só estimular o hábito de leitura de diversos leitores.1 Logo, Colomer (2003, p.87) posiciona-se afirmando que, Na atualidade, [...], parece firmar-se a idéia de que a resposta efetiva do leitor, pode influir mais em sua compreensão do texto do que a própria organização da história (MOSENTHAL, 1997). Em torno desta idéia estão se desenvolvendo linhas de estudo tais como a percepção estética de linguagem, a resposta emotiva ao enredo, a identificação com os personagens ou a variabilidade das interpretações entre os leitores. Neste contexto, de constante mutação social, a afirmação de Camões (apud Lajolo, 2001, p.12) “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, é pertinente na sociedade contemporânea, visto que os indivíduos passam por inúmeras mudanças sociais, históricas e ideológicas. Pressupõe-se assim, que um dos pontos que auxiliam no sucesso da série, é o fato de que seus leitores se identificam com as personagens, ou melhor, com o protagonista que se desfaz do estereótipo de herói virtuoso, apregoado pela literatura infanto-juvenil em geral: - ÓTIMO! – berrou Harry, e era tanta a raiva que centelhas vermelhas e douradas dispararam da ponta da varinha que ainda segurava na mão....(A Ordem, p.32) - ENTÃO VOCÊS NÃO TÊM PARTICIPADO DAS REUNIÕES, GRANDE COISA! ESTIVERAM AQUI O TEMPO TODO, NÃO FOI? ESTIVERAM JUNTOS O TEMPO TODO! AGORA, EU, FIQUEI ENCALHADO NA RUA DOS ALFENEIROS O MÊS INTEIRO! E JÁ RESOLVI MUITO MAIS DO QUE VOCÊS JAMAIS CONSGUIRAM E DUMBLEDORE SABE DISSO – QUEM SALVOU A PEDRA FILOSOFAL? QUEM SE LIVROU DO RIDDLE? QUEM SALVOU A PELE DE VOCÊS DOS DEMENTADORES? (Caixa alta no original - A Ordem, p.58) A partir do trecho acima, pode-se refletir: as pessoas que convivem no dia-a-dia umas com as outras são 100% boas, apenas possuem sentimentos nobres, sem inveja, ciúmes, impaciência, raiva, ou será que elas possuem uma variedade de sentimentos que as fazem não serem necessariamente boas ou más? Dessa forma, se considerarmos esse preceito emocional dos indivíduos, o leitor é levado a perceber a natureza humana, em maior ou menor grau, de uma ou de várias personagens. Souza (2004, p.42) corrobora com essa assertiva expondo que é 1 Paulo Freire mostra que há diferenças entre o hábito de leitura e o ato de ler, ou seja, o primeiro baseia- se apenas na mecanicidade da leitura, com simples identificação dos sinais gráficos sem nenhum tipo de interpretação, já o segundo está fundamentado na importância do desenvolvimento do ato de pensar, do agir e do modo de escolha (Costa, 2006). 313 [...] justamente por abordar o contraditório, a Literatura, em vez de trabalhar com personagens idealizadas, previsíveis e abstratas – além de “politicamente corretas” – típico dos livros pedagógicos, pode apresentar ao leitor seres humanos fictícios, mas complexos e paradoxais, mergulhados num constante processo de modificação e empenhados na construção de um significado para suas vidas. É da maior importância, acredito que leitores, sejam eles crianças, ou não, tenham acesso a personagens assim. São elas que permitem a verdadeira identificação entre a pessoa que lê e o texto. Além de mostrar Harry Potter como um herói emocionalmente humano, a personagem Hermione Granger, caracterizada como intelectual e contestadora, possui um aguçado poder crítico no que diz respeito ao mundo que a cerca: Dentro havia uns 50 distintivos de cores diferentes, mas todos com os mesmos dizeres: F.A.L.E. (...) - Não é fale – protestou Hermione impaciente – É F.A.L.E. Quer dizer, Fundo de Apoio à Liberação dos Elfos! (O Cálice, p.180). - Elfos domésticos! – disse Hermione em voz alta, comprovando que Harry acertara – Nem uma vez, em mais de mil páginas, ‘Hogwarts uma história’, menciona que somos todos convenientes na opinião de centenas de escravos. (O Cálice, p.195) Por meio do questionamento de Hermione das convenções vigentes, Souza (2004, p.44) justifica que deve-se considerar que o leitor [...] para além do plano educacional, vive no plano da existência concreta e particular (não teórico) e, assim, está sujeito a inúmeras situações contraditórias e inspiradas, ou seja, situações que não constam do cardápio das regras e modelos ideais. Ao discutir-se a questão dos modelos ideais levantados por Souza (2004), talvez o maior incentivo na adoção de Harry Potter para a formação do leitor, seja o de possibilitar a anulação da posição mecânica e passiva do ato de ler. Ou seja, a leitura torna-se uma construção crítica não apenas do texto ficcional, mas também do mundo que cerca o leitor. Por exemplo, o leitor poderá perceber os diferentes modos de construir uma narrativa, principalmente no que concerne à personagem bruxa ao apresentar como protagonista um homem bruxo, Harry Potter. Nos livros da série a figura da bruxa(o) diverge da figura estereotipada até então fortemente caracterizada, principalmente, pelos contos de fadas, que foram influenciadas pela perseguição às mulheres bruxas na Idade Média, o que leva Oliveira (2005 – on line) a refletir: Em minhas reminiscências de infância, a imagem da bruxa era sempre apavorante. Sua caracterização física auxiliava sobremaneira na construção do medo diante dessa figura feminina, que muitas vezes era usada até por pais como elementos ameaçador a fim de disciplinar as crianças [...] Isso sem falar da Madrasta da Branca de Neveque personifica essa maldade a fim de castigar a enteada por sua beleza. 314 Associado a essas imagens, surge o adjetivo bruxa, como caracterização de mulher feia e megera. Portanto, ao apresentar as bruxas e bruxos como pessoas normais e comuns, o leitor pode ser levado a repensar a ideologia presente na estereotipação de tal personagem, além de possibilitar a comparação dela em diversas obras literárias. Esta situação de “confronto” entre leituras é fundamental para o trabalho de formação do leitor, pois, [...] o ato de ler implica um mergulho na própria existência – esta considerada como produto das determinações não apenas internas, mas externas aos sujeitos – no resgate dos significados já produzidos ao longo da vida e no confronto destes com a proposta feita pelo autor. No processo que se concretiza, o sujeito-leitor recupera seus conhecimentos e crenças, implementa seu raciocínio e se reorganiza, marcado por uma nova interação (GUIMARÃES, 1995, p.88 apud SANTOS e SOUZA, 2004, p.80). Dessa maneira, Harry Potter proporciona uma multiplicidade de leituras, de caráter dialógico, entre texto e leitor. Isto é, o leitor dá vida ao texto por meio das múltiplas significações que este pode fazer surgir. Como exemplo, pode-se citar a valorização e respeito à diversidade cultural, que está visível na obra na convivência entre bruxos, trouxas, duendes, gigantes, elfos, e principalmente, ao repúdio a qualquer atitude de cunho “racial”: - É praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer – ofegou Rony voltando – Sangue-ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe, que não tem pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que se chamam de sangue puro [...] Quero dizer, nós sabemos que isso não faz a menor diferença [...] - É ridículo. A maioria dos bruxos hoje em dia é mestiça. Se não tivéssemos casado com trouxas, teríamos desaparecido da terra (A Câmara, p.102-3). Atitude esta que pode ser considerada benéfica, inclusive Colomer (2003, p.128) assim se posiciona sobre esta questão: “[...] recente atenção à composição multicultural das sociedades pós-industriais também produziu uma grande quantidade de iniciativas sobre o conteúdo ideológico dos livros que, por um lado, foram analisadas sob o prisma do respeito universal entre culturas”. A convivência multicultural em Harry Potter se verifica em dois planos: o mundo real (Londres) e o paralelo, um mundo mágico, onde bruxos e trouxas (não-bruxos) convivem lado a lado. Todavia, essa aproximação atraiu para Rowling e, conseqüentemente, para sua obra, a ira de diversas instituições religiosas conservadoras, pois na relação autor – texto – leitor, o último estaria sendo influenciado de forma negativa: Ele não tem voz cavernosa, mãos em forma de garras nem pés virados para trás. Não recebe sacrifícios com sangue de virgens nem surge de repente em meio a um pentagrama de fogo. É um menino alvo, de cabelos pretos, olhos azuis vivos e óculos de aros redondos, que lhe conferem certo ar intelectual. A cicatriz em forma de raio estampada 315 na testa, no entanto, dá a pista. Harry Potter, o menino bruxo criado em ficção pela escritora inglesa J.K. Rowling, teria parentesco com o tranca-porta, o coisa-ruim, o asmodeu. Ou seja, com o Diabo. Há quem acredite nisso - e o grupo se torna maior a cada dia. Nos últimos meses, vários pastores protestantes e padres católicos têm-se dedicado a alertar os fiéis para o que julgam uma iniciação à bruxaria e ao satanismo (DANTAS, 2001 on line). Contudo, a polêmica da influência dos livros nos leitores não deve ser vista de forma alarmante, pois de acordo com Wystrand (apud COLOMER, 2003, p. 998-9), [...] o significado do texto é uma construção negociada pelo autor e leitor, através da mediação do texto. A mensagem não se transmite do autor para o leitor, mas se constrói, como uma espécie de ponto ideológico, que se edifica no processo de sua interação. Os limites do significado acham-se nas relações entre as intenções do autor, o conhecimento do leitor e as propriedades do texto, durante o processo de interpretação. Mas, ao desconsiderar a construção interpretativa e crítica do leitor, a indignação religiosa se baseia no uso de palavras como: feitiços, bruxas, bruxaria, adivinhação, na obra, e são encaradas de forma negativa por algumas instituições religiosas, já que a opinião corrente é de que a bruxa é sempre uma aliada do mal, da magia negra, da ilusão e dos demônios. Porém, na obra de Rowling é forte a idéia de contrariar esse pensamento usual; que para Santos e Souza (2004, p.83): O texto de ficção – pensado como obra aberta, proposta por Eco deve proporcionar ao pequeno leitor não só prazer, mas também uma autonomia, que o faça buscar por si só uma diversidade nas suas opções de leitura e habilidade para produzir leituras diversas, que contribuirão para a produção de conhecimento e para a formação de um leitor crítico. Essa possibilidade de formação crítica do leitor é desconsiderada por Stefano (2001) na matéria Harry Potter: Fantasia ou Satanismo publicado pela Revista Eclésia, que defende a não-ingenuidade do texto e que por trás dele existe uma séria ameaça à fé cristã, com livre associação ao ocultismo. Compartilhando da opinião de Stefano (2001), Stoltz (2005) em artigo intitulado Harry Potter: Muito mais problemas do que apenas bruxaria, expõe que: “Valores tradicionais cristãos é coisa bem rara nessa obra. Aquilo que é considerado virtude praticamente não existe no mundo de Harry ou é descrito de modo fictício”. O escritor evangélico Samuel Fernandes Costa (apud Stefano, 2001, p.38) corrobora com essa opinião, para ele: “[...] o personagem ensina aos leitores diversos preceitos contrários às normas de Deus”. Aliás, uma leitura mais atenta contradiz essas premissas, como, quando Lily Potter sacrifica sua própria vida para salvar seu filho: O Harry não, o Harry não, por favor, o Harry não!!! Afaste-se de mim sua tola... Afaste-se agora... 316 O Harry não, por favor não, me leve, me mate no lugar dele... (O Prisioneiro, p.148) E, tem-se no Novo Testamento (p.216) “Ninguém tem maior amor que este: de dar alguém a sua vida pelos amigos” (João, 15:13). Vemos ainda que Harry enfrenta a morte em muitas ocasiões, o que não o desanima na sua luta contra o mal (Voldemort), porque seu poder é fruto de uma magia muito poderosa: [...] ter sido amado tão profundamente, mesmo que a pessoa que nos amou já tenha morrido, nos confere uma proteção eterna [...] Por isso Quirrel cheio de ódio, avareza e ambição, compartindo a alma com Voldemort, não podia tocá-lo. Era uma agonia tocar uma pessoa marcada por algo tão bom (A Pedra, p.255). Em 1Cor. 13:13, lê-se: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor” (O Novo Testamento, p.346). E ainda, encontra-se no livro referência à mais importante tradição cristã: o Natal. - Feliz Natal – disse Rony sonolento quando Harry pulou da cama e vestiu o roupão. - Pra você também – falou Harry. – Olhe só isso! Ganhei presentes? (O Prisioneiro, p.170). - E hoje você não vai se sentar com os monitores – disse Jorge – Natal é uma festa de família (O Prisioneiro, p.172). Dessa forma, ao citar o Natal na série, a autora faz uma referência aos valores cristãos, pois sua demarcação pontua uma tentativa dela de resgatar a importância desta data como um momento de união com a família, amigos, etc. Na contramão destas acusações de Harry Potter incentivar ao satanismo e ocultimos, Smadja (apud CECCANTINI, 2005, p.31) defende o “pequeno bruxo”: É preciso dizer de saída que as aventuras de Harry Potter constituem- se na forma de um paradoxo. Em primeirolugar, paradoxo de um livro que, embora povoado de seres fantásticos, de magia e de vassoiras voadoras, e de uma racionalidade lógica que [...] não parecem falhar. Joanne K. Rowling chega a lançar um olhar bastante crítico sobre o mundo da magia e da clarividência por meio da personagem ridicularizada da professora Trelawney, uma vidente que ensina Adivinhação aos jovens bruxos do colégio de Hogwarts e cujas predições, de hábito, se revelam falsas impregnadas de charlatanismo e equívoco. As críticas vão além do aspecto do ocultismo, outro fator associado a Rowling e sua obra é o fato de não existir uma linha nítida entre a realidade e a ficção, ou seja, [...] é apenas mais um dos motivos pelos quais Harry Potter é perigoso para as crianças. Se adultos já tem uma certa dificuldade em fazer distinção entre o real e o imaginário, imagine então o quão mais difícil é essa tarefa para as crianças! [...] Isso é o que está acontecendo com 317 muitas crianças pensando que Harry Potter, seus amigos e sua escola são reais [...] Se a autora encoraja essa confusão entre o real e o fantástico é porque ela compreende e deseja os resultados negativos que se seguirão. (STOLTZ, 2005 on line) Porém, na intenção de forma leitores críticos, é interessante que este encontre uma identificação do seu mundo com aquele encontrado no livro e acreditar que as crianças não conseguem delimitar o real do fantástico é subestimar sua sagacidade. De acordo com Colomer (2003, p.191-2)o mundo ficcional: [...] Estabelece um funcionamento baseado na descrição de um mundo secundário completo, onde se desenvolve uma luta entre o bem e o mal, onde a fantasia baseia-se na alusão a personagens e poderes antigos recolhidos das traduções míticas e onde o desenvolvimento narrativo adota a forma de uma missão de busca, através de grandes aventuras. Logo, em Hary Potter é visível a apresentação de “coisas quem coincidem com o mundo real, por exemplo, o cenário das histórias se encaixa com algum lugar próximo a Londres. Assim, as personagens vivem no nosso mundo e no nosso tempo. Aspecto esse que pode tornar a leitura mais interessante e concreta para o leitor. Além da acusação de falta de delimitação entre o real e o fictício, Stoltz (2005) e Stefano (2001) corroboram da opinião de que as personagens não são necessariamente boas ou más, conforme já discutido no início desse artigo, pois saem da premissa clássica da polaridade bem x mal, visto que Harry Potter vai além dessa marca tradicionalmente demarcada da “[...] simplicidade das situações descritas, a clara distinção entre o bem e o mal, a facilidade de identificação do leitor com o herói positivo e o desenlace feliz da história” (BETTELHEIM apud COLOMER, 2003, p.63). Entretanto, para despertar o interesse do leitor é importante que ele se identifique com as personagens e com a obra quando “[...] percebe que essas são mais humanas, o que permite a identificação emocional entre a pessoa que lê e o texto” (SOUZA, 2004, p.45). Há na voz dos críticos mais uma crítica aos valores não-cristãos supostamente difundidos na série, proveniente de uma leitura equivocada acerca dos livros, ao questionar os valores religiosos cristãos: “[...] um fantasma que assombra o dormitório das meninas, lamenta sua própria morte porque ele não pode cometer suicídio novamente” (STOLTZ, 2005 on line), demonstra o desconhecimento da obra de Rowling. Como se vê pelo exemplo a seguir, não é mencionado, nenhuma vez, que a personagem tenha cometido suicídio: A atitude de murta mudou na hora. Parecia que nunca alguém lhe fizera uma pergunta tão elogiosa. [...] Morri aqui mesmo neste boxe. Me lembro tão bem! [...] Em todo caso, o que me incomodou foi que era a voz de um garoto. Destranquei a porta do boxe para mandar ele sair e ir usar o banheiro dos garotos e então... – Murta inchou fazendo-se de importante, o rosto brilhante. – Morri. (A Câmara, p.253) Como vemos, o tal fantasma não assombra o dormitório feminino como afirma Stoltz (2005), e sim o banheiro; e ela não comete suicídio, é vítima de um ser mágico, 318 ou seja, ela não vai contra o preceito cristão de que só Deus pode retirar a vida de alguém. Por fim, uma das críticas contra Harry Potter baseia-se no fato de que a autora menciona figuras ligadas ao “sobrenatural” em sua obra e “[...] todas essas novidades, como Harry Potter, induzem ao ocultismo” (STEFANO, 2001, p.38). Segundo Colbert (2001, p.52) Quando embarcam pela primeira vez no Expresso Hogwarts, Rony mostra a Harry as figurinhas dos bruxos e bruxas famosos que vêm dentro da embalagem dos sapos de chocolate. Ele cita alguns: Dumbledore, Merlin, Paracelso, a druida Cliodna, Hengisto de Woodcroft, Morgana, Ptolomeu e Circe. Alguns desses bruxos existiram mesmo. Outros existem em lendas que já têm centenas de anos. No entanto, isso não significa que ela esteja querendo despertar a atenção das crianças para o ocultismo, já que, a literatura mundial está repleta de referências à pessoas ou situações reais. Tais informações apenas enriquecem o ficcional, representando uma pesquisa mitológica da autora, mas está longe de qualquer tipo de “dominação satânica”. E Dantas (2001 on line) justifica dizendo que “não há dúvidas de que as histórias de Harry Potter têm relação com cultos e rituais mágicos – até porque isso está no centro de todo o enredo que se passa numa escola de bruxos”. Com efeito, como buscou-se demonstrar no desenvolvimento desse trabalho, o fenômeno cultural Harry Potter pode se tornar um grande aliado na formação do leitor, dado ao seu grande sucesso, principalmente entre o público infanto-juvenil, possibilitando despertar o interesse pela leitura mais crítica e, conseqüentemente, despertar o interesse pela literatura. Além disso, por meio da obra é possível fazer referências com o mundo real do leitor e com outras obras literárias, e ainda, Entre os atributos destacados, podem ser lembrados: o ritmo ágil, originado por farta ação e muitos diálogos; o humor e a paródia; o caráter fortemente simbólico; a promoção de valores humanistas; [...] a fusão eficiente entre o real e o fantástico; [...] o diálogo com uma vasta tradição literária; [...] Da perspectiva da formação de leitores, tais qualidades constituem um significativo diferencial, uma vez que propiciam um significativo diferencial, uma vez que propiciam aos mediadores, de fato, cumprir o seu papel, aprofundando os níveis de leitura com que os jovens podem se debruçar sobre a obra e sabendo que ela tem seguramente o que oferecer (CECCANTINI, 2005, p.50-1). Quanto ao aspecto da polêmica em torno da influência satânica de Harry Potter sobre seus leitores, conclui-se que algumas atitudes críticas são provenientes de uma posição ideológica que foi demarcada há muitos anos atrás e que dificilmente serão modificadas. Contudo, vale ressaltar, que a série Harry Potter se faz importante para ser utilizada no despertar do jovem para o mundo literário, pois possibilitará o desenvolvimento de seu senso crítico através da leitura dos mais diversos textos ficcionais. 319 REFERÊNCIAS CECCANTINI, João Luís C. T. Leitores de Harry Potter: do negócio à negociação da leitura. In: JACOBY, S.; RETTENMAIER, M; (orgs). Além da Plataforma nove e meia. Passo Fundo: UPF, 2005. p. 23-52. COLBERT, David. O mundo mágico de Harry Potter: mitos, lendas e histórias fascinantes. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. COLOMER, Teresa. A formação do Leitor Literário. Narrativa Infantil e Juvenil atual. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003. COSTA, Patrícia. 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