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1 2 Silvânio Barcelos PATERNALISMO: Uma maldita herança da escravidão 1ª Edição Clube de Autores 2015 3 4 À minha esposa Fátima, meus filhos André, Rafaela, Aline, Kariny e Iuri e aos sempre queridos netos Gabriel, Thor, Helena, Ohana, Theodora, Davi, Lara e Maria de Fátima. . 5 SUMÁRIO Descrição Página Introdução 06 Capítulo 1: Escravidão da Era Moderna: análise histórica 13 1.1 A presença africana na constituição da modernidade 15 1.2 Escravidão: uma contradição da modernidade 23 Capítulo 2: A escravidão no Brasil 75 3 Racismo: o legado da escravidão 137 Considerações finais 152 6 PATERNALISMO: uma maldita herança da escravidão Arroga-se como principal objetivo desta sondagem historiográfica, o estudo da escravidão, como importante objeto de reflexão para a análise das condicionantes históricas que permeiam o conceito de paternalismo. No âmbito destas discussões o sistema paternalista, como aspecto de uma visão historiográfica culturalista presente em obras de inúmeros pensadores clássicos, e, também, contemporâneos, será utilizado como fio condutor de uma linha de raciocínio que busca em seus antípodas a superação de arraigados estereótipos produzidos pelo regime escravocrata. Inserimo-nos neste importante debate para questionar os limites impostos pela presunção do paternalismo, uma ideologia que agrega aos africanos escravizados durante o regime, e, aos afro-brasileiros no presente, a condição de povos sem história. De acordo com nosso discernimento, tanto a ideologia paternalista1, quanto as premissas do racismo, entendido como consequência 1 Nosso entendimento acerca desta importante questão muito se deve à leitura da seminal obra de Adelmir Fiabani, “Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes [1532-2004]”, publicada em 2005 pela editora Expressão Popular. Trata-se de uma obra de referência para o entendimento do importante fenômeno representado pela formação de quilombos no Brasil, um esforço de superação dos estereótipos produzidos pela visão cultural paternalista presente nos escritos de alguns pensadores da historiografia brasileira. 7 daquela e do próprio regime da escravidão, constituem- se em importantes referenciais teóricos para se pensar a situação social, econômica e política dos afro-brasileiros no presente. Também não menos importante, utilizamos de conceitos desenvolvidos por pensadores contemporâneos, de diferentes áreas do conhecimento humano, tais como “diáspora”, “identidade”, “local/global” e “por uma outra globalização” como ferramentas necessárias ao desenvolvimento desta pesquisa. Da constelação de importantes autores, no contexto internacional, que estudam esta temática, utilizamos as análises de Paul E. Lovejoy para entender os processos que transformaram o africano escravizado em mercadoria, uma visão estereotipada que reflete diretamente na vida e no ideário dos negros na atualidade. Paul Gilroy, por sua vez, parte da ideia-chave da diáspora deslocando-se do conceito de raça para formas geopolíticas, e, também geo-culturais capazes de modificar e transcender a condição subalterna imposta aos afro-americanos pela pretensa ideologia da cultura superior europeia. Para ele, a política da transfiguração presente na arte e cultura tornou-se expressões políticas da identidade negra dos povos no entorno do Atlântico. A partir das análises de Stuart Hall, sobre a condição dos africanos na diáspora, poder-se-á levantar questões importantes para o estudo dos processos de autoidentificação étnica, assim como do fator raça como 8 determinante à posição ocupada pelos negros nas sociedades contemporâneas e pós-modernas. Os conceitos de “local” e “global” trabalhados por Zygmunt Bauman possibilitam, por analogia, desvelar alguns dos problemas enfrentados pelos afro americanos que lutam por sua inserção tanto no mercado de trabalho, assim como em todas as esferas da vida humana. Opondo-se ao determinismo histórico e sociológico dos citados conceitos de Bauman, Milton Santos desvela os caminhos de superação destes problemas com uma visão alternativa possibilitada pelo conceito de “por uma outra globalização”. De outra forma, Boaventura de Souza Santos entende que a globalização possibilitou a insurgência de uma nova ordem capitalista, detentora de um terço da produção mundial, aprofundando assim as desigualdades sociais nos países periféricos e semiperiféricos. Para ele, tal modelo de desenvolvimento econômico produziu um caótico quadro social, desigual e excludente, o que, teoricamente, leva à ideia da inexistência da globalização enquanto conceito, mas sim de globalizações como parte de um mesmo processo em contínua expansão no mundo contemporâneo. Dos escritos de Eugene Dominick Genovese, acerca das revoltas de escravos nas Américas, destacamos como relevantes as questões relacionadas ao sistema paternalista, bem como as manifestações culturais como forma de resistência ao regime escravocrata, 9 principalmente da música negra, questão que corrobora, inclusive, com as teorias desenvolvidas por Paul Gilroy. As reflexões em torno da temática do paternalismo também estão presentes na obra de Emília Viotti da Costa. Não obstante, entendemos como de vital importância à análise dos problemas históricos enfrentados pelos afro-brasileiros o conceito de “momentos de crise” utilizado pela autora nos estudos relativos à revolta de escravos em Demerara. Para a autora é nos momentos de crise que a verdade aflora expondo contradições, tomadas de partido, comprometimentos, motivações, tornando-as públicas. Também é nestas ocasiões que se observa a defesa de nichos identitários como forma de garantia de determinadas ordens sociais. Da extensa gama de obras que privilegiam a temática da escravidão racial no Brasil, destacamos alguns autores cujos estudos, de uma forma ou de outra, se relacionam à visão paternalista nas relações entre escravos e senhores, bem como de seus antípodas que entendem tais encadeamentos a partir das premissas da dominação e da violência. Desta forma, utilizamos os escritos de Gaspar Barléu, um notável representante da nobiliarquia batava, para desvelar numa leitura reversa a ideologia dominante na qual, conforme também o senso-comum, o escravo era entendido como ator passivo de sua história, um selvagem para o qual a escravidão o tornaria civilizado. Contrapondo-se à ideia de povos sem história, Luis Felipe de Alencastro alude, 10 como consequência do regime senhorial, à contracolonização desencadeada pelos descendentes de africanos no Brasil, tendo em vista, principalmente, sua maioridade demográfica na atualidade. Seguindo esta mesma linha de raciocínio Mary Del Priore defende a ideia de que a visão estereotipada do africano, como ser desprovido de humanidade, dotado de crendices e comportamentos degenerados, deve ser superada no âmbito da historiografia. Também defende esta posição Perdigão Malheiros cujos estudos delimitam os aspectos jurídicos com os quais os escravos eram vistos pelas classes hegemônicas, segundo ele um profundo atraso social a ser superado. No conjunto representado pelos escritos de Manolo Florentino, Eduardo Silva, João José Reis, Robert Slenes e José Roberto Góes, trabalhadosneste capítulo, em suas análises acerca da família escrava, do conceito de negociação e cartas de alforria, sobressai-se, de uma forma ou de outra, os pressupostos da presunção paternalista. De acordo com nosso discernimento, e da leitura de autores que se opõe a esta forma de pensamento, se trata de visões culturalistas das relações entre senhores e escravos derivadas, assim, das clássicas teorias desenvolvidas por Gilberto de Mello Freyre. Por outro lado, entendemos que as relações paternalistas entre senhores e escravos constituíram-se, enquanto tal, em contextos e regiões específicas, não podendo desta forma serem consideradas de forma homogeneizante com relação à história da escravidão. A constatação destas condicionantes históricas encontra-se, 11 como visto anteriormente, nas obras de Eugene Genovese e Emília Viotti da Costa, situando-as, assim, nos períodos pós-campanhas abolicionistas. Em oposição à corrente paternalista, e, também neopaternalista, utilizamos como obras de referência os escritos de Décio Freitas, para o qual as insurreições escravas em Salvador foram tentativas de destruição do próprio regime da escravidão. Para ele, quando os escravos se revoltavam contra o regime recuperavam sua própria humanidade sequestrada pelo escravismo. Ao analisar o conjunto das condicionantes históricas do escravismo nas estâncias e charqueadas no Rio Grande do Sul, Fernando Henrique Cardoso desvela os limites impostos ao sistema paternalista. Em suas importantes argumentações, Cardoso desmistifica a suposta democracia gaúcha presente na visão dos relatos de viajantes do século XVIII e XIX, entendendo que as condições materiais de vida dos escravos eram extremamente hostis. Entende também o autor que o sistema escravocrata no Rio Grande do Sul, marcados pela violência explícita e dominação, produziu em consequência a posição subalterna dos negros na sociedade contemporânea. Concordamos com Cardoso e, também, com Jaime Pinsky e Israel Farias de Figueiredo, cujas considerações acerca das consequências do regime da escravidão, traduzidas nas formas do racismo e do preconceito de cor, foram por nós utilizados no encerramento deste estudo. Conforme entendemos, as premissas do racismo e do preconceito, nas quais se insere a noção de 12 paternalismo, determinaram de certa forma a posição subalterna dos afro-brasileiros em relação aos grupos hegemônicos no presente. Devidamente contextualizados o escopo deste estudo, passamos ao seu desenvolvimento. 13 Capítulo 1 Escravidão da Era Moderna: análise histórica Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites! Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! (Navio Negreiro – Castro Alves) De acordo com a convenção sobre a escravatura assinada em Genebra, no dia 25 de setembro de 1926, e emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na sede da Organização das Nações Unidas, realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de Nova York, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”.2 Ainda tratando da 2 As Convenções antes referidas são utilizadas como os instrumentos jurídicos mais antigos quando do trato da denominada escravidão contemporânea. Para maiores esclarecimentos acerca dos tratados relativos à escravidão negra vide: Tratados de paz de Paris de 1814 e 1815; Declarações do Congresso de Viena de 1815; Declaração de Verona de 1822; Tratados de 1831 e 1833 entre França e Inglaterra; Tratado de Londres de 1841; Tratado de 14 mesma temática em seu parágrafo segundo do mesmo artigo, o tráfico de escravos significa todo e qualquer ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo. Significa, também, qualquer ato de aquisição de um escravo com a finalidade de vendê-lo ou trocá-lo, ou seja, todo ato deliberado de “comércio, bem como de transporte de escravos.”3 O canadense Paul E. Lovejoy4 defende a ideia de que os escravos eram, em termos absolutos, uma propriedade, e que também: “eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor”5. Estas observações permitem entender, de alguma forma, a transformação do africano escravizado em coisa, em mero feixe de músculos a serviço do regime que o oprime. De nosso ponto de vista, esta visão estereotipada do escravo como res, no limite, como um ser desprovido de história, contribui para a difícil Washington de 1862; Ato Geral da Conferência de Berlin de 1885 e o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890. 3 Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_escravatura.php , acesso em 22 de Junho de 2014. 4 Paul E. Lovejoy é historiador e africanista, profissionalmente atua como professor da York University, em Toronto, onde ocupa a cátedra de História da África e da Diáspora Africana. 5 Lovejoy, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Tradução Regina A. R. Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 29. 15 posição social ocupada pelos negros no interior das sociedades contemporâneas. Pode-se, com relativa facilidade, relacionar os processos socioculturais excludentes a partir de premissas raciais - a racialização do negro, portanto, no interior de sociedades marcadas profundamente pelo predomínio e pela hegemonia das populações brancas – à própria construção, no âmbito da história, da condição do escravo como um mero instrumento de produção de bens capitalistas. Numa visão abrangente, não há como entender a própria modernidade ocidental sem considerar os processos históricos inerentes à escravidão racial da era moderna. Assim, importantes intelectuais relacionam o nefasto evento da escravidão com a constituição da própria sociedade moderna e pós-moderna. Mantidas as devidas proporções, um insight fecundo que retira do africano escravizado o caráter monolítico de coisa, um ser supostamente amorfo e sem história. 1.1 A presença africana na constituição da modernidade Paul Gilroy6 analisa o mundo ocidental contemporâneo, a partir das interações dos afro- americanos, percebendo o absurdo e a contradição nas vastas obras de intelectuais que tratam da modernidade sem, ao menos, considerar a hipótese da contribuição 6 Paul Gilroy é um importante sociólogo londrino, com doutorado em filosofia pela Universidade de Birmingham, um dos expoentes do movimento negro mundial. 16 dos africanos escravizados à formação do mundo capitalista, condição relevante à sua própria existência. Para ele, torna-se necessário um esforço no sentido de fazer com que a cultura e a história negras sejam levadas a sério nos meios acadêmicos: “[...] em lugar de serem atribuídas, via a ideia de relações raciais, à sociologia, e, daí, abandonadas ao cemitério de elefantes no qual as questões políticas intratáveis vão aguardar seu falecimento”7. Na visão de Paul Gilroy, ao buscar-se os elementos que possibilitemo rompimento dos diques muito bem instalados na política cultural eurocêntrica nacionalista, que coloca o negro ora como não humano, ora como não cidadão, procura-se os meios que possam ativar os códigos re-interpretativos da condição do negro na modernidade. Assim, a diáspora responde o debate e ancora o caráter híbrido meta-nacional8 da condição cultural desse negro, de acordo com essa ideia-chave nós poderemos então ver não a raça: “[...] e sim formas geopolíticas e geo-culturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos 7 Gilroy, Paul. O Atlântico Negro : Modernidade e dupla consciência. São Paulo; Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. P. 40. 8 Acerca dessa denominação devemos referir que o autor aponta a possibilidade de identidades supranacionais, marcadas por caracteres resultantes da aproximação de diferentes traços, daí seu caráter hibrido. 17 que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem”9. Stuart Hall10 utiliza o conceito “diáspora negra” para explicar a experiência dos africanos desterritorializados em função da escravidão racial. Afro- caribenho vivendo em Londres, Hall entendeu sua condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os dois lugares [Jamaica e Inglaterra] percebeu que na verdade não pertencia a nenhum deles, e esta é exatamente a experiência diaspórica: “[...] longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada”11. Este autor aponta que, curiosamente, o pensamento pós-colonial prepara o indivíduo para viver uma relação diaspórica com a identidade. Para ele, a experiência da diáspora origina-se na bíblia ao narrar a recuperação de uma terra ocupada por outros povos. No 9 Gilroy. Op. Cit. P. 25. 10 Stuart Hall é sociólogo e professor da Open University. Esse jamaicano de classe média viveu as contradições culturais e sociais no contexto colonizado da Jamaica, uma sociedade marcada por políticas de branqueamento racial. Na sua infância foi chamado de “coolie” uma espécie de pária entre os seus, por ser de todos os membros de sua família o mais negro. Em 1951 mudou-se para a Inglaterra onde mais tarde filiar-se-ia à “Nova Esquerda Inglesa”. 11 Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. P. 415. 18 esforço de aproximação entre a diáspora bíblica e a diáspora negra ele aponta a experiência de sofrimento, exílio, cultura do livramento e da redenção como alguns dos seus fatores comuns. Essa condição explica, de alguma forma, porque os adeptos do Movimento Rastafári12 utilizam com frequência a bíblia, pois ela: “conta a história de um povo no exílio dominado por um poder estrangeiro, distante de casa e do poder simbólico do mito redentor”. Em suas conclusões, o que marcou definitivamente o rastafarianismo foi o fato de ter tornado definitivamente negra a Jamaica, descolonizando as mentes: “Como todos os movimentos, o rastafarianismo se representou como um retorno. Mas, aquilo a que ele nos retornou foi a nós mesmos. Ao fazê- lo produziu a África, novamente, na diáspora”13. Pode-se inferir, considerando-se as particularidades e contextos específicos da escravidão racial no Novo Mundo, que a experiência do sofrimento e do exílio, características da 12 Na década de 1960, excluídos do sistema capitalista, muitos Rastas procuraram formas de subsistência através da arte, entre elas o artesanato, esculpindo peças inspiradas em motivos africanos. Entretanto, onde a cultura Rasta desenvolveu-se, tanto na Jamaica quanto fora dela, foi na música, com o surgimento do Reggae, um estilo musical inovador . No começo o Reggae é o Ska, ritmado ao som de instrumentos metálicos que foram inspirados na Black music norte-americana. Mais tarde o Ska que ficara mais lento, originou o Rocksteady. Acrescido das percussões africanas e batidas da guitarra ao estilo Rock nos anos 1970 o antigo Rocksteady passa a denominar-se Reggae 19 diáspora negra, encontrou seu apogeu nos interstícios das plantations escravistas. A análise das estruturas políticas, sociais e culturais no interior das fazendas que utilizavam o regime da plantation14 revela dados impressionantes de particularismos e concentração de poderes num regime fechado, longe dos olhos e do alcance das instituições estatais. Foi nesse ambiente que o terror racial se desenvolveu. Entretanto, foi também neste espaço “permitido/conquistado”15 que os escravos, absorvendo 13 Hall. Op. Cit. P. 417. 14 O conceito de Plantation utilizado aqui refere-se às fazendas de monocultura do algodão encontradas no sul dos Estados Unidos no século XVIII e início do XIX, que utilizavam mão de obra escrava. Importa lembrar que este conceito foi também utilizado por alguns intelectuais brasileiros que trabalham com a questão agrária, como veremos oportunamente. 15 Utilizamos essas aspas para chamar a atenção do leitor para o fato da questão subjetiva intrínseca ao próprio termo por nós utilizado. O sentido de apropriação, como o entende Roger Chartier, explica bem toda dinâmica envolvida nos espaços controlados das senzalas, onde os escravos gozando de relativas e momentâneas liberdades expressavam seus modos de vida característicos, manifestando a resistência natural ao regime da escravidão através dos sincretismos religiosos, das manifestações culturais e lúdicas. Obviamente, as pequenas liberdades aconteciam em um nível elevado de negociação em resposta à necessidade sempre constante da utilização de meios para aliviar a pressão do próprio sistema. Esses recursos foram largamente utilizados pela elite escravocrata que também se via obrigada a negociar seus interesses. Desta forma, as concessões de privilégios colaboravam para a manutenção do próprio regime da escravidão. Por outro lado se os espaços de relativa liberdade lhes eram “permitidos” isso ocorria também em 20 os elementos culturais da sociedade dominante, criaram mecanismos de defesa e autoafirmação como forma de resistência numa terra distante e desconhecida, recriando seu espaço do viver. Analogamente, pequenas porções da África reterritorializadas pelas vias da recordação. Expressando-se através do corpo os africanos, na diáspora, recriaram padrões estéticos que conformaram a própria noção de contracultura da modernidade. A música, um dos elementos culturais permitidos e/ou até incentivados pelos senhores da plantation, expressando pensamentos e desejos inefáveis, colocava para os escravos um mundo idealizado, tal qual gostariam que fosse, em oposição à realidade do vivido, fornecendo-lhes a necessária dose de coragem para prosseguirem suas vidas. Esta concepção utópica de um mundo perfeito, recriado ludicamente através da música, é denominada por Gilroy de “política de transfiguração” que enfatiza desejos novos no interior da comunidade racial. Segundo ele a política de transfiguração: “Aponta especificamente para a formação de uma comunidade de necessidades e solidariedades, que é magicamente tornada audível na música em si e palpável nas relações sociais de sua utilidade e reprodução cultural”16. Para o autor, a evasão lúdica do mundo real constitui-se numa espécie de resistência ao presentefunção da pressão interna, de dentro da senzala para fora, tendo por conseqüência o medo sempre presente de revoltas ou sublevações incontroláveis. Considerado neste contexto, o espaço “permitido/conquistado” existe em função do espaço “negociado”. 16 Gilroy. Op. Cit. P. 96. 21 opressor dilatando, pelas vias da imaginação, as esperanças num amanhã glorioso. Obviamente, transitar no espaço “permitido/conquistado” no interior das fazendas no regime da escravidão exige exercício laborioso de audácia e inteligência buscando no espaço do subliminar o escopo de suas ações. Desenvolvida debaixo do nariz dos senhores, os desejos utópicos que alimentam a política complementar da transfiguração, como espaços de transgressões, só podem tomar forma por meios mais sutis, situando-se em regiões de difícil acesso aos olhos de quem domina e oprime, pois: Essa política existe em uma frequência mais baixa, onde é executada, dançada e encenada; além de cantada e decantada, pois as palavras, mesmo as palavras prolongadas por melisma e complementadas ou transformadas pelos gritos que ainda indicam o poder compíscuo do sublime escravo, jamais serão suficientes para comunicar seus direitos indizíveis à verdade.17 Não se trata de um contra discurso, como afirma Gilroy, mas sim de uma contracultura capaz de reconstruir, de forma desafiadora, sua própria genealogia crítica, intelectual e moral recriando seu espaço numa esfera pública pouco perceptível, porém totalmente dotada de singular personalidade. No centro dinâmico 17 Id. Ibidem. 22 desta contracultura18 encontram-se as expressões artísticas da música negra, que embora não excluindo as desigualdades sociais sua ética bem fundamentada oferece as condições para o debate em torno das questões de dominação que, por sua vez, determinam sua própria existência. Destarte, as expressões artísticas possibilitam meios plausíveis para a afirmação do indivíduo, bem como para a libertação da comunidade. Para o autor, a força criativa da ação traduzida no conceito de poiésis e a poética começam a coexistir em formas inéditas: “[...] literatura autobiográfica, maneiras criativas especiais e exclusivas de manipular a linguagem falada e, acima de tudo, a música. As três transbordaram os vasilhames que o estado-nação moderno forneceu a elas.”19 18 De acordo com a socióloga Marília Quentel Corrêa, “a contracultura é um movimento que tem seu auge na década de 60, quando teve lugar um estilo de mobilização e contestação sociais e com ele novos meios de comunicação em massa. Jovens inovando estilos, voltando-se mais para o antissocial aos olhos das famílias mais conservadoras, com um espírito mais libertário, resumindo como uma cultura alternativa ou cultura marginal, focada principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano.” Ainda segundo sua análise “a contracultura pode ser definida como um ideário alternador que questiona valores centrais e vigentes instituídos na cultura ocidental”. Disponível em: http://estudossociologicos.blogspot.com/2009/06/contracultura.html acesso em 12 de Fevereiro de 2014. 19 Gilroy. Op. Cit. P. 100. 23 Paul Gilroy, na já citada obra, nos lembra que as comunidades negras que se formaram no entorno do Atlântico, são conectadas de alguma forma através das expressões da arte e da música, uma síntese da influência cultural africana no Novo Mundo. Foi exatamente na confluência expressiva destas conexões lúdicas que surgiu, no bojo da diáspora africana, o que podemos denominar de consciência negra. Sendo esta resultante das formas culturais e sociais de valorização étnica, elos de solidariedade inconfundíveis utilizados, freqüentemente, como forma de atendimento às demandas políticas dos afro-americanos. Para além destas constatações de ordem pragmática, alguns pensadores empreenderam importantes reflexões acerca das contradições encontradas no estudo da escravidão em sua interface com a modernidade Ocidental. 1.2 Escravidão: uma contradição da modernidade É latente a necessidade de se repensar historiograficamente todas as periodizações simples do moderno e do pós-moderno, sob uma nova orientação que privilegie a história da escravidão racial enquanto elo importante na conformação do próprio conceito de modernidade. Se considerados, por exemplo, a porcentagem de afrodescendentes na população brasileira, cujas estimativas apontam um índice superior 24 a cinquenta por cento20, natural seria sua presença também no âmbito historiográfico. A escravidão racial da era moderna demanda, portanto, uma leitura despida de ideias eurocêntricas pré-concebidas, em prol de um nível mais elevado de entendimento da nossa sociedade atual. Essa questão primordial parece adormecida nos ânimos de pensadores ocidentais, embora a presença de importantes vozes que se levantam contra este pensamento hegemônico. Se por um lado, considerados os números demográficos da presença africana no Novo Mundo ao ponto de, conforme Luiz Felipe de Alencastro, tal cifra possibilitar a assertiva de que fomos colonizados por africanos e europeus, a situação social, política e econômica dos afro-americanos indica exatamente o contrário. Ou seja, a despeito de todas as conquistas alcançadas pelos negros no Ocidente, e da superioridade demográfica, como no caso do Brasil, a posição destes nas sociedades globalizadas estão muito aquém daquela ocupadas pelos outros segmentos sociais. Por outro lado torna-se, também, necessária uma reflexão amplificada dos contextos históricos e sociais que conformam as próprias estruturas do mundo globalizado em que vivemos. Neste sentido, Zygmunt Bauman, Boaventura de Souza Santos e Milton Santos, 20 De acordo com o censo demográfico realizado pelo IBGE, em 2010, de um total de 190.755.799 habitantes 96.795.294 são afro- brasileiros perfazendo, assim, uma significativa porcentagem de 50,7% em relação aos brancos e outros, e 51,5 % em relação à população branca deduzida os números relativos aos “outros” (amarelos). 25 em uma diversidade de obras publicadas, fornecem elementos que possibilitam o entendimento das sociedades contemporâneas e das forças em jogo que as definem. Bauman destaca em suas análises sociológicas as transformações sociais por que passam as sociedades atuais em conseqüência da globalização. O estado de contínuo movimento em que o mundo se encontra produz desequilíbrios e alarga o fosso que separa ricos de pobres. Para o autor: “Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis”.21 Essa noção de movimento polariza a balança do poder aumentando a capacidade de operação dos que são globalizados, estendendo as fronteiras de seus domínios ao mesmo tempo em que aumenta o nível de exclusão social dos localizados. Entende ele que: “[...] ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social”.22 Nesse contexto globalizado, a mobilidade constitui-se na peça chave com a qual determinados grupos sociais combinam fatores essenciais dominando o mundo dos negócios, das finanças, comércio e controle dos fluxos de informações. A falta de mobilidade estratégica, a redução à condição de “local” são os fatores que determinam a exclusão social de pobres no mundo contemporâneo promovendo, assim, 21 Bauman, Zygmunt. Globalização: as consequênciashumanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. P. 8. 22 Id. Ibidem. 26 um estado de insegurança e incertezas. Bauman, a partir destes pressupostos, compreende a importância de se articular as dimensões do local e global como forma dos grupos sociais menos favorecidos garantirem efetivamente suas sobrevivências. Para Boaventura de Sousa Santos, no entanto, a globalização, entendida em seu sentido genérico, refere-se a processos altamente complexos que abarcam praticamente a totalidade da vida contemporânea. Sociólogo e professor catedrático da Universidade de Coimbra, em Portugal, Boaventura de Sousa Santos, em sua obra “Globalização e as ciências sociais”, empreende uma profunda análise do fenômeno da globalização, sendo esta marcada pelo seu caráter difuso e multifacetado. Para ele, a globalização refere-se a processos que perpassam a diversidade da vida social, desde a unificação dos sistemas produtivos às profundas modificações das áreas tecnológicas, de informação e comunicação provocando, assim, o aumento significativo das desigualdades sociais. Boaventura Santos, aprofundando os conceitos desenvolvidos por Bauman, assevera que o impacto da globalização sobre as estruturas globais e locais são, de fato, contraditórios e heterogêneos, pois: Cada uma das áreas da vida social é o produto de uma negociação conflitual e de resultados relativamente indeterminados entre o que é concebido como local, ou endógeno, e o que 27 é concebido como global, ou exógeno, entre rupturas e continuidades, entre novos riscos e velhas seguranças, entre mal-estares conhecidos e mal-estares desconhecidos, entre emergências e inércias.23 Boaventura Santos identifica, em suas formulações, três diferentes níveis de globalização no mundo contemporâneo. Em primeiro plano encontra-se o que denomina de globalização hegemônica, sendo esta orquestrada pelos países centrais cujos custos e oportunidades por ela produzidos são: “desigualmente distribuídos no interior do sistema mundial”.24 É exatamente por estas razões que num crescente se alarga o fosso entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres de uma mesma localidade. Para ele, os países centrais possuem a prerrogativa da mobilidade intrínseca à globalização hegemônica, capaz de dela auferir as vantagens do sistema econômico transferindo, ao mesmo tempo, o ônus dos custos sociais aos países periféricos. Perfeitamente alinhado ao pensamento de Bauman, para o qual resta aos locais “lamber as feridas”, Boaventura Santos nos lembra que pertencer ao sistema da globalização hegemônica significa possuir a capacidade de maximizar as vantagens e minimizar os custos dela 23 Santos, Boaventura de Souza. (Org.) A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. P. 11. 24 Santos, B. S. Op. Cit. P. 12. 28 provenientes. Não obstante, o mesmo não ocorre fora das fronteiras dos países centrais. Em segundo e terceiro planos, Boaventura Santos identifica os países periféricos e semiperiféricos. Para o autor, aqueles sofreram nas últimas décadas uma crescente degradação em suas posições ocupadas no sistema mundial, o que significa o mesmo nível de decomposição dos padrões de vida de seus habitantes. Isto ocorreu, principalmente, por que foram forçados a pagar os custos dos próprios benefícios produzidos pelos países centrais, sem, no entanto alcançar as oportunidades também por eles criadas. A situação não é muito diferente para os países semiperiféricos, ou de desenvolvimento intermédio para utilizar uma expressão do autor. A diferença reside na capacidade destes de usufruir, em determinados níveis, das vantagens produzidas pela globalização hegemônica, minimizando seus inconvenientes. No entanto, nos lembra o autor: “São países que tanto podem cavalgar a globalização hegemônica para, com base nela, obter alguma promoção nas hierarquias do sistema mundial, como podem ser cavalgados por ela nos declives que promovem a despromoção.”25 Desta forma, os problemas provocados pela globalização hegemônica tendem a produzir para os países ditos semiperiféricos efeitos imprevisíveis e, via de regra, de difíceis resoluções. No caso do Brasil, um país semiperiférico de acordo com o autor, sua posição ocupada na hierarquia do sistema 25 Id. Ibidem. 29 mundial está diretamente relacionada às consequências do regime militar de 1964, notoriamente marcado pelo impulso modernizador. Neste caso, no período de transição política, verificado em meados da década de 1980, não se modificaram as estruturas de poder econômico e social mantendo-se, autoritariamente, as mesmas configurações do Estado. Foi neste contexto, segundo Boaventura Santos, que as elites conservadoras: “[...] cavalgaram com êxito a transição democrática, aproveitando e reforçando a crise de Estado para entregar o país à nova ortodoxia neoliberal onde viram as novas oportunidades para reproduzir seu poder.”26 Num contexto mais abrangente, não obstante, Boaventura Santos assevera que uma das principais características do sistema mundial contemporâneo reside na obliteração da força política em detrimento do que denomina metaconsenso neoliberal. Esta ideia-força, o metaconsenso neoliberal, apoia-se na movimentação e na insurgência de uma nova divisão internacional do trabalho promovida, num continuum, pela fusão de empresas multinacionais convertidas, agora, em principais atrizes no cenário econômico mundial. Desta forma, uma classe capitalista transnacional emerge hoje em escala global superando, facilmente: “[...] as organizações nacionais de trabalhadores, bem como os Estados externamente fracos da periferia e da semiperiferia do sistema mundial.”27 O 26 Santos, B. S. Op. cit. P. 13. 27 Id. Ibidem. P. 32. 30 equilíbrio de forças que permite a hegemonia capitalista global se deve à anuência de uma classe insurgente composta por dois ramos distintos: um local e outro internacional. O ramo local, representado pelo que o autor denomina de “burguesia nacional” é composto pela elite empresarial, altos funcionários estatais, lideranças políticas influentes bem como de profissionais liberais. A despeito da aparente heterogeneidade dos atores sociais em questão, segundo o autor estes se constituem em classe social tendo em vista que: Os seus membros, apesar da diversidade de seus interesses setoriais, partilham uma situação comum de privilégio socioeconômico e um interesse comum de classe nas relações do poder político e do controle social que são intrínsecos ao modo de produção capitalista.28 O ramo internacional, por sua vez, representado pelo que o autor denomina “burguesia internacional”, é constituído pelos administradores das empresas multinacionais, assim como pelos responsáveis pelas instituições financeiras globalizadas. Esta nova estrutura de classe têm produzido de forma crescente as desigualdades sociais antes referidas, fato aceito e reconhecido, inclusive, pelas agências multinacionais que conduzem o próprio processo da globalização 28 Id. Ibidem. P. 33. 31 hegemônica, tais como: Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Para o autor, é evidente que o descompasso na distribuição da renda mundial constitui-se em um dos maiores problemas causados pelo sistema econômico mundial nas últimas décadas. Segundo estatísticas da Organização das Nações Unidas, ¼ da população mundial vive na pobreza absoluta, com rendimento inferior a um dólar por dia,enquanto que 2/4 desta mesma população aufere a renda de dois dólares por dia. Paradoxalmente, a má distribuição de riquezas, a nova pobreza globalizada, imposta pelos países centrais não resulta da escassez humana e nem de recursos materiais, mas sim do: “[...] desemprego, da destruição das economias de subsistência e da minimização dos custos salariais à escala mundial.”29 À despeito do aparente caráter monolítico de que se reveste o conceito de globalização hegemônica, Boaventura Santos argumenta no sentido de sua própria desmistificação no que entende como “a natureza das globalizações”. Contrapondo-se à ideia do caráter dominante da globalização, o autor desconstrói tal assertiva revelando seu caráter omisso quanto à própria teoria a ela subjacente posto que, para ele, tal fenômeno não é linear, nem ao menos inequívoco. No entanto, esta visão apesar de falsa é aceita sem maiores problemas. Torna-se necessário e urgente entender que o aparente caráter hegemônico de que se reveste o conceito de globalização 29 Id. Ibidem. P. 35. 32 constitui-se em dispositivos ideológicos e políticos que possuem suas próprias lógicas e intencionalidades. Entre estes dispositivos Boaventura Santos destaca a falácia do determinismo, que para ele consiste na: Inculcação da ideia de que a globalização é um processo espontâneo, automático, inelutável e irreversível que se intensifica e avança segundo uma lógica e uma dinâmica próprias suficientemente fortes para se imporem a qualquer interferência externa.30 Contribui para esta falácia, de acordo com o autor, não somente os arquitetos da globalização, mas também intelectuais de referência, como é o caso de Manuel Castells, para quem a globalização é o resultado direto da revolução tecnológica da área informacional. Conforme Castells apud Boaventura Santos, a globalização se reveste de caráter mundial porque as atividades produtivas, de distribuição e consumo são organizadas em escala global. Para Boaventura Santos, a falácia de Castells consiste na transformação das causas da globalização em seus efeitos. De fato, assevera o autor, a globalização é resultado direto de decisões políticas passíveis de identificação tanto no tempo como em sua autoria, qual seja dos Estados centrais, mais precisamente pelo Consenso de Washington. Também conhecido 30 Id. Ibidem. P. 50. 33 como “consenso neoliberal”, o Consenso de Washington foi implantado pelos países centrais, em meados da década de 1980, abrangendo entre outras coisas: “[...] o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia.”31 Nos lembra o autor, que a falácia do determinismo, entre outras, perde sua força na mesma proporção em que a globalização se transforma em um campo de contestação sociopolítica. Se para seus defensores a globalização constitui-se no ápice da racionalidade, da abundância e do progresso ilimitados, para seus críticos ela transporta em seu bojo: “[...] a miséria, a marginalização e a exclusão de grande maioria da população mundial, enquanto a retórica do progresso e da abundância se torna em realidade apenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados.”32 Por estas razões, e por outras tantas elencadas pelo autor, aqui suprimidas por romper com os limites desta tese, se torna imperioso repensar os limites da ideia falseada da globalização enquanto conceito homogeneizante. Assim, destacamos como relevante para nosso estudo a contradição entre globalização e localização encontradas na obra aqui referenciada. A pluralidade de discursos sobre o caráter homogeneizante da globalização deve, segundo o autor, ser repensada de forma crítica, entre eles merece destaque a contradição entre o global e o local. Assim, o 31 Santos, B. S. Op. cit. P. 27. 32 Santos, B. S. Op. Cit. P. 53. 34 tempo presente, aparentemente, parece clivado pela ideia errônea de que a globalização não pode ser desvinculada da localidade. De fato, nos lembra o autor: À medida que a interdependência e as interações globais se intensificam, as relações sociais em geral parecem estar cada vez mais desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos às opções, que atravessam fronteiras até pouco tempo policiadas pela tradição, pelo nacionalismo, pela linguagem e pela ideologia, e frequentemente por todos eles em conjunto.33 Em aparente contradição a esta tendência, por outro lado, percebe-se a insurgência de novas identidades regionais, locais e nacionais que são construídas num esforço proeminente de volta às origens, às raízes. Estes localismos, confere o autor, tanto podem constituir-se em territórios reais, assim como em imaginários, onde as relações sociais são caracterizadas pela proximidade e pela interatividade. De acordo com suas próprias palavras: “relações face a face”. Boaventura Santos cita como exemplo deste localismo territorializado aqueles protagonizados por povos que: “[...] ao fim de séculos de genocídio e de opressão cultural, reivindicam, finalmente com algum êxito, o direito à autodeterminação dentro dos seus territórios 33 Santos, B. S. Op. Cit. P. 54. 35 ancestrais.”34 É este o caso dos povos indígenas da América Latina. Entendemos que também é este o caso das comunidades quilombolas contemporâneas que reivindicam seu direito à propriedade e permanência em suas terras, numa busca incessante por sua condição de atores e protagonistas de suas próprias vidas. Neste sentido é de vital importância para os propósitos desta tese a análise de Boaventura Santos acerca da “globalização contra-hegemônica”. Um dos debates ocorridos à época da escrita da obra de Boaventura Santos consistiu na indagação da existência de uma ou demais globalizações, em termos conceituais. Trata-se de um quase consenso nos meios especializados a noção da existência de somente uma globalização, sendo esta de cunho “capitalista neoliberal”. Desta forma, em havendo somente uma globalização, a resistência a ela só poderia ser classificada como “localização não assumida”. Não obstante, numa evidente crítica a este modelo, ainda nos dias atuais a maior parte da população mundial mantém economias calcadas na tradição. Boa parte desta população vive acima da margem de pobreza, sendo que a parte empobrecida o fora tendo em vista as políticas neoliberais. Portanto, explica o autor, a resistência mais produtiva contra a globalização: “[...] reside na promoção das economias locais e comunitárias, economia de pequena escala, diversificadas, autossustentáveis, ligadas a forças exteriores, mas não dependente delas.” Segundo 34 Id. Ibidem. 36 esta lógica a resposta eficiente contra os processos de desterritorialização promovidos pela globalização hegemônica só pode encontrar respaldo na reterritorialização, ou seja, a redescoberta do sentido de lugar, de pertença e da comunidade, o que implica: “[...] a redescoberta ou a invenção de atividades produtivas de proximidade”.35 Vale dizer, exploração econômica regionalizada. Para o autor, localização significa o conjunto de iniciativas que visam: “criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relações face a face, orientados para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas.”36 Em conformidade com diversos atores citados por Boaventura Santos, nestas propostas incluem-se: pequena agricultura familiar, comércioe moedas locais, sendo uma de suas características o não isolacionismo, mas, sim um novo sistema de autoproteção contra as forças econômicas hegemônicas. Estas medidas contra- hegemônicas são necessárias na medida em que se entende que a economia global, longe de haver rompido com os velhos protecionismos, constitui-se, ela mesma, uma estratégia da economia global hegemônica, que visa à proteção das multinacionais e dos organismos financeiros em escala mundial. Não obstante, para o autor, o paradigma da localização, suas bases regionais, não deve se opor à ideia da transglobalização. Deve, 35 Santos, B. S. Op. Cit. P. 72. 36 Id. Ibidem. 37 sobretudo, consistir no esforço pela superação dos problemas causados pela globalização hegemônica, permitindo, assim, a livre iniciativa dos localizados no sentido de otimização de sua produção e intercâmbio comerciais, bem como culturais, alavancando desta forma: “a pequena escala em larga escala”. De acordo com nosso discernimento, isto constitui-se numa visão capaz de superar os velhos estereótipos e contrabalançar as estruturas de poder econômico que dominam o cenário mundial. De certa forma, o conceito de contra- hegemonia, aqui estudado, aproxima-se do conceito de “por uma outra globalização” de Milton Santos. Para o professor Milton Santos, um dos mais renomados geógrafos da atualidade, a globalização é o apogeu do mundo capitalista de um processo que conhecemos como internacionalização do mundo globalizado. Os fatores que levaram a este processo são: a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, o conhecimento do planeta e a mais valia globalizada, de acordo com suas palavras: “um motor único da história”37. Para o autor, o mundo contemporâneo é confuso e, ao mesmo tempo confusamente entendido. Isto se verifica tendo em vista, principalmente, que a realidade é mediocremente construída resumindo vários contextos em uma única abordagem, sendo ela refém dos detentores de dinheiro, poder e dos aparatos da informação. O domínio e o monopólio da técnica 37 Santos, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.- Rio de Janeiro: Record, 2002. P. 24. 38 permite aos arquitetos da globalização seu efetivo controle. As técnicas constituem-se em instrumentos com os quais as pessoas interagem no mundo. Para Milton Santos, as técnicas são exteriores a nós ao mesmo tempo em que a elas estamos submetidos. No mundo globalizado o controle das técnicas são fundamentais para o monopólio capitalista, aumentando o poder das grandes corporações na mesma proporção em que diminui a mobilidade individual e coletiva das comunidades periféricas. Existe uma estreita relação de causa e efeito entre o desenvolvimento da técnica e a consolidação do mundo globalizado, pois: É a partir da unicidade das técnicas, da qual o computador é uma peça central, que surge a possibilidade de existir uma finança universal, principal responsável pela imposição a todo o globo de uma mais valia mundial. Sem ela, seria também impossível a atual unicidade do tempo, o acontecer local sendo percebido como um elo do acontecer mundial. Por outro lado, sem a mais valia globalizada e sem essa unicidade do tempo, a unicidade da técnica não teria eficácia.38 Desvela o autor que a tirania dos meios de comunicação e dos poderes econômicos, possibilitadas através do progresso da técnica, e seu eficiente controle, 38 Santos, M. Op. Cit. P. 27. 39 constituem-se nos pilares de sustentação das elites globais que as utilizam em seu próprio benefício, mantendo-se assim sua hegemonia no mundo globalizado. Tal contingência de fatores produz, nos interstícios dos países periféricos, a crescente pauperização das massas excluídas tendo em vista, principalmente, a ineficácia do Estado na resolução destes graves problemas sociais. Deslocando-se desta visão equivocada torna-se necessária a compreensão da existência de três mundos distintos. Sendo eles: globalização como fábula (mundo fabricado, imposto e vendido como real); globalização como perversidade (mundo real em confabulações e expectativas) e, finalmente, uma outra globalização (mundo que pode vir a surgir). Trata-se de uma visão humanista calcada na esperança da construção de uma nova ordem universalista que, em tese, conferiria aos povos excluídos uma melhor posição social nas sociedades mundializadas e pós-modernas. A fábula de um mundo perfeito consolidou-se com a intenção de legitimar as construções imaginárias que contribuem, na ordem do discurso, para perpetuação do sistema hegemônico globalizado. Utilizando-se da propaganda, a máquina ideológica confere estatuto de legalidade à hegemonia planetária, como é o caso do mito da aldeia global, uma tentativa de inculcação da ideia de que a: “[...] difusão instantânea da notícia realmente informa as pessoas.”39 Aliado ao mito do encurtamento das distâncias, para os que possuem 39Santos, M. Op. Cit. P. 18. 40 mobilidade tão e somente, difunde-se a ideia de contração do tempo e do espaço. Numa paráfrase às formulações do autor, é como se o mundo globalizado estivesse ao alcance de todos sem distinção. Desta forma, o mercado global apresentado ideologicamente como homogeneizante, em realidade, só contribui para aprofundar as diferenças locais, afastando paulatinamente a possibilidade da implantação de uma cidadania universal e participante. Num esforço de dissipação desta ideologia, Milton Santos apresenta, em seus escritos, o mundo tal como se apresenta: a globalização como perversidade. Para ele, nada pode ser mais eficiente para desmascarar tal ideologia que a própria realidade, pois a mesma globalização que cria a utopia da cidadania global contribui para o alargamento do fosso entre ricos e pobres. Contribuem para a obliteração do mito de um mundo perfeito, o desemprego crescente, o aumento da pobreza e a baixa qualidade de vida das classes médias. A perversidade sistêmica sustentada por Milton Santos está na raiz da evolução negativa da humanidade, e tem a ver com o comportamento competitivo característico do capitalismo hegemônico e globalizado. Não obstante o aparente determinismo de tal ordem de fatores, o autor é otimista quanto às possibilidades de superação destes arraigados problemas provocados pela hegemonia dos poderes mundiais, propondo “uma outra globalização”. Baseados em princípios humanistas, Milton Santos sugere uma nova visão do mundo, mediante uma 41 globalização mais centrada no ser humano. Para ele, é através da utilização das mesmas bases técnicas que possibilitaram a hegemonia do capital (técnica, convergência dos momentos e conhecimento do planeta) que se tornará possível a implantação de uma nova forma de globalização. Para ele: “Essas mesmas bases técnicas poderão servir a outros objetivos, se forem postas a serviço de outros fundamentos sociais e políticos.”40 A possibilidade de mudanças torna-se possível graças à condições históricas favoráveis de finais do século XX, tanto no plano empírico, como teórico. Contribui para estas condições propícias, entre outras, o fenômeno da amálgama entre povos, raças e culturas no cenário social contemporâneo. Trata-se, utilizando as palavras do autor: “[...] da existência de uma verdadeira sociodiversidade, historicamente muito mais significativa que a própria biodiversidade.”41 Acrescenta-se à isto a emergência de uma verdadeira cultura popular, possibilitada pela unicidade das técnicas. De acordo com nossa compreensão,uma conexão lúdica e revolucionária capaz de influenciar o ideário das massas no mundo globalizado, da forma como entende Paul Gilroy, em sua obra “O atlântico negro”. Lembra-nos Milton Santos que é sobre estas bases que se edificam o discurso da escassez finalmente descoberto pelas massas. Trata-se de um contra discurso que afronta e desmistifica o mito da abundância generalizada presente no imaginário da globalização hegemônica, que nada faz senão atender 40 Santos, M. Op. Cit. P. 20. 41 Santos, M. Op. Cit. P. 21. 42 aos próprios interesses de uma elite privilegiada. No plano teórico o que se verifica é a possibilidade real de produção de novos discursos, assim como de uma: Nova metanarrativa, um novo grande relato. Esse novo discurso ganha relevância pelo fato de que, pela primeira vez na história do homem, se pode constatar a existência de uma universalidade empírica. A universalidade deixa de ser apenas uma elaboração abstrata na mente dos filósofos para resultar da experiência ordinária de cada homem.42 O discurso da escassez, conforme nossa compreensão, elevado aos cumes da experiência prosaica das massas produz a necessária contrapartida à globalização hegemônica imposta pelos poderes econômicos. Pelos mesmos caminhos utilizados pela ideologia dominante, os progressos alcançados pela informação se tornam os instrumentos de sua própria superação. Desta forma: “Criam-se, para todos, a certeza e, logo depois, a consciência de ser no mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material ou intelectual.”43 Resultado da profunda interação de diferentes povos, das mais variadas localidades do mundo, a consciência de ser no mundo produz as bases de uma nova esperança. A experiência 42 Id. Ibidem. 43 Santos, M. Op. Cit. P. 172. 43 cotidiana de cada pessoa, somadas às experiências coletivas constituem os pilares de sustentação de uma nova política fundada nas premissas do igualitarismo. Foi a partir destas bases conceituais que Milton Santos ousou pensar que a história do homem sobre a Terra: “[...] dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória.”44 Apesar da profundidade e seriedade de que se reveste a análise de Milton Santos na obra em questão, entendemos que as propostas por uma nova consciência coletiva constituem-se em tautologias e especulações relacionadas ao devir do povos. Há que se considerar, por exemplo, os processos do individualismo contínuo como uma das características que definem as sociedades pós- modernas, de acordo com as formulações de Zygmunt Bauman em diversas de suas obras. Trata-se de um truísmo que não pode ser desconsiderado e que constitui, per se, em fator sociocultural que dificulta a unicidade do pensamento e da consciência universal, em curtos ou médios prazos. Não obstante, entendemos a importância das formulações do autor como possibilidades potenciais, o que o aproxima das ideias apresentadas por Boaventura Sousa Santos. Para este se trata, convém lembrar, de condicionantes práticas realizáveis no presente. Questão bastante evidente em suas propostas de regionalização da economia, bem como da sustentação de uma cultura voltada para a valorização do espaço local, como forma 44 Santos, M. Op. Cit. P. 173. 44 eficiente de implantação de uma globalização contra- hegemônica. Após essas breves digressões acerca do conceito de globalização, continuamos nossos estudos das condicionantes históricas que definem o fenômeno da escravidão em seu contexto mais abrangente. Paul Gilroy alerta para a questão de que os defensores, bem como os críticos da modernidade ao que parece não atentam para o fato de que: “A história e a cultura expressivas da diáspora africana, a prática da escravidão racial ou as narrativas de conquista imperial europeia podem exigir que todas as periodizações simples do moderno e do pós-moderno sejam drasticamente repensadas”.45 Vistas em conjunto, as hipóteses levantadas pelo autor sugerem o rompimento com a tradicional periodização da história presente em boa parte do Ocidente. Para ele, a inclusão da importante contribuição e presença africana no Novo Mundo deveria, necessariamente, integrar-se de forma plena à própria história do Ocidente. Trata-se de uma contrapartida aos poderes hegemônicos presente na historiografia moderna e pós-moderna, inclusive, convém lembrar, no contexto das obras didáticas e dos manuais destinados à área da educação, principalmente aqueles relacionados à disciplina história. De certa forma, as propostas de Paul Gilroy corroboram com a ideia do rompimento da “localidade” de Boaventura Sousa Silva. Sobretudo, se considerado o esforço pela superação dos 45 Gilroy. Op. Cit. P. 103. 45 problemas provocados pela globalização hegemônica. O que permitiria, a partir da vontade dos localizados, romper seus próprios limites possibilitando-se, desta forma, o trânsito entre o local e o global. Se nos demais países do Ocidente tais questões são relevantes, no Brasil, cuja população é composta em sua maioria por afrodescendentes, estas proposições são fundamentais. Argumentando sobre o impacto violento da escravidão racial na sociedade contemporânea, Gilroy afirma que uma parte muito expressiva da novidade que representa o pós-moderno se oblitera de forma inexorável. Isto se verifica quando tal inovação é analisada sob a perspectiva histórica que representou os encontros entre europeus e aqueles que eles conquistaram, mataram e escravizaram de forma brutal e inconsequente. Assim, a periodização proposta pelo autor se torna essencial para compreensão da categoria de raça em si mesma, assim como da gênese do desenvolvimento da ideologia racista. Para ele: “Esta questão é pertinente, acima de tudo, na elaboração de uma interpretação das origens e da evolução da política negra”.46 Se a inclusão dos processos de racialização que deram origem ao estado social, político e econômico das sociedades ocidentais contemporâneas é importante segundo as hipóteses levantadas pelo autor, acreditamos que tais esforços historiográficos devem seguir os próprios caminhos de sua superação. Daí a importância de uma nova periodização do moderno e do pós-moderno para a 46 Gilroy. Op. Cit. P. 106. 46 história do negro no ocidente e da sua narrativa. Propõe o autor a inclusão, de forma racional e despida de preconceitos, da participação efetiva dos afro-americanos na história para além das relações de dominação e subordinação entre povos da Europa e o resto do mundo. De acordo com nosso pensamento, é de vital importância a inclusão efetiva da participação dos afro- brasileiros na história do Brasil superando, desta forma, a incoerência de uma suposta “história do negro no Brasil”. Ora, este maniqueísmo historiográfico coloca em condição de subordinação a presença dos negros no Brasil, perpetuando no campo das ideias as pressões impostas pelo racismo, uma virtual e nefasta construção ideológica iluminista, como nos lembra Paul Gilroy. Daí a necessidade urgente de mudança deste paradigma historiográfico, qual seja pensar o negro como parte integrante de nossa história, e não como complemento, um mero “aparte” desta. Gilroy se preocupa com a evolução do racismo científico para formas culturais novas, um tipo mais complexo de racismo gestado no pós-guerra, em lugar dahierarquia biológica simples tratada pelo cientificismo no século da razão. Para ele o racismo científico, propugnado em meados do século XIX, foi o produto intelectual mais durável da modernidade. Como vimos, a questão da dominação racial e suas consequências não faz parte da agenda de debates da modernidade. Em seu lugar, afirma ele, aparece uma modernidade inocente 47 que discute a vida feliz pós-iluminista em Paris, Berlim ou Londres. Conforme suas palavras: Esses lugares europeus são prontamente purgados de qualquer traço dos povos sem história, cujas vidas degredadas poderiam levantar questões incômodas sobre os limites do humanismo burguês. A famosa pergunta de Montesquieu ‘como pode alguém ser persa?’ permanece obstinada e deliberadamente sem resposta.47 Os processos nefastos do racismo explicam, em certas medidas, a atmosfera conflituosa e a construção ideológica do estranhamento em relação ao “outro” presentes nas relações que se estabelecem entre as diferentes etnias que compõem nossa sociedade. Sob este prisma, a pergunta de Montesquieu, “como pode alguém ser persa” certamente não encontrará resposta satisfatória, constituindo-se, talvez, em uma impossibilidade. Esta condição singular, que foi percebida por Stuart Hall com relação às comunidades na diáspora, é fundamental para o entendimento dos processos de autoidentificação étnica pelas vias culturais. Numa visão um pouco simplista das formulações deste pensador, quando saímos de nosso lugar de origem, perdemos a condição do retorno a ele ao mesmo tempo 47 Gilroy. Op. Cit. P. 107. 48 em que no local de destino somos considerados estrangeiros.48 Característica dos tempos pós-modernos, em função dos intensos movimentos migratórios, a identidade nesta condição única só poderia ser conformada pelas vias do conceito da diáspora. Desterritorializados de seus lugares de origem, os descendentes dos africanos escravizados recriaram, na diáspora, um modo de vida que busca na superação do fator raça a saída para suas demandas políticas, sociais, assim como econômicas, delimitando-se, desta forma, o lugar de fronteira entre o “nós” e os “outros”. Jürgen Habermas49, citado por Gilroy, em suas obras foi hábil defensor do potencial democrático da modernidade. No entanto Habermas não atenta para o fato de que os ideais iluministas não consideravam a questão da raça, central no pensamento de Gilroy em cujos conceitos acerca da escravidão racial destaca-se uma profunda contradição. Para ele, existe uma frágil percepção de que a universalidade e a racionalidade da Europa e da América iluministas: “[...] foram usadas mais para sustentar e transplantar do que para erradicar uma ordem de diferença racial herdada da era pré- 48 Essa afirmação não pode ser extensiva a todos os grupos sociais, em especial levando-se em conta a denominada ‘diáspora gaúcha’ no norte de Mato Grosso, ainda que para o contexto de investigação dessa pesquisa essa afirmação seja procedente. 49 Jürgen Habermas é considerado como importante filósofo e representante da Escola de Frankfurt, atuando como assistente do também filósofo e sociólogo Theodor Adorno. 49 moderna”.50 Como vimos na referida crítica, os pensadores da modernidade, em sua grande maioria, não observaram a importante questão da escravidão racial como um dos elementos que a constitui e lhe confere condição privilegiada nas vias das grandes inovações do mundo pós-guerras. Desta forma, contribuem com os continuísmos históricos, presentes nas políticas socioculturais, capazes de fazer sombra à importante movimentação das comunidades negras ao mesmo tempo em que legitima as relações de poder no seu interior. Paul Gilroy utiliza-se do pensamento de Frederick Douglass, intelectual e ativista político de meados do século XIX, considerado pai do “nacionalismo negro”, pois entre grandes pensadores do Atlântico negro51 foi o único marcado por sua condição 50 Gilroy. Op. Cit. P. 114. 51 Refere-se Gilroy à Martin Delany, importante ativista político de sua época, um dos primeiros ideólogos do afrocentrismo, explorador, conferencista, editor de jornal, correspondente, major das forças armadas dos EUA, autor de romance e diversos folhetos; Edward Wilmot Blyden considerado o pai do Pan-Africanismo, foi educador, escritor, diplomata e político, além de idealizar o que chamou de “etiopianismo”, baseado no sionismo judeu, um lugar na África para onde poderiam retornar os afro-americanos; Alexander Crummell foi um sacerdote episcopal nos EUA, também defensor do Pan-Africanismo, militou à favor da abolição da escravidão. Acrescentamos à lista dos notáveis pensadores negros do Atlântico Negro, citada por Gilroy, Abdias do Nascimento, certamente um dos maiores defensores dos negros no Brasil. Participou da Frente Negra Brasileira, do movimento integralista, foi ator e diretor teatral tendo criado o Teatro dos Sentenciados, 50 de ex-escravo, fator que lhe confere posição privilegiada no estudo da escravidão. Em sua complexa relação com a modernidade, evocava o iluminismo maior que supostamente traria um pouco de luz para a escuridão ética da escravidão. Para ele a plantation escravista era marcada pelo arcaísmo anti-modernista. Gilroy cita uma passagem de Douglass na sua clássica obra My bondage and my freedom (Minha escravidão e minha liberdade): A plantation é uma pequena nação em si mesma, tendo seu idioma próprio, suas regras, regulamentos e costumes. As leis e instituições do Estado aparentemente não a afetam em parte alguma. As dificuldades que surgem aqui não são resolvidas pelo poder civil do Estado.52 Douglass entendia a plantation escravista como uma própria antinomia da modernidade, um sistema atrasado, pré-capitalista e comparável às relações de trabalho pré-modernas da Europa feudal. Ele foi além ao afirmar que junto ao cristianismo, com a ideologia da sujeição escrava que não fez outra coisa senão servir à palco que revelou grandes nomes da dramaturgia brasileira como Ruth de Souza e Léa Garcia, foi também professor emérito da Universidade do Estado de Nova Iorque, doutor honoris causa por diversas universidades, indicado ao Prêmio Nobel em 2009, e ex- senador da República. 52 Gilroy. Op. Cit. P. 49. 51 causa burguesa, a plantation significava estagnação, quando não recuo, que encerrava a civilização na parte externa do mundo iluminista. Concordamos com Douglass em sua evocação da essência do iluminismo, não obstante, convém lembrar que este movimento produzido pela aristocracia do pensamento europeu setecentista possui uma relação ambígua com relação aos outros povos e outras classes sociais. Por outro lado, foi com as riquezas produzidas com o trabalho escravo, e a acumulação primitiva de capital, que se tornou possível o desenvolvimento desta elite desde o século das luzes. Colaborando com a ideia dos continuísmos históricos de Gilroy, vale lembrar que o trabalho análogo ao escravo nos campos brasileiros, conforme nos lembra José de Souza Martins, é utilizado sem grandes problemas por uma seleta classe de latifundiários. Ou seja, o que interessa ao capital é a maximização dos lucros, não importando os meios, mas sim os objetivos. Neste contexto específico, verifica-se uma profunda contradição. De um lado, grandes proprietários do agronegócio que se ufanam de pertencerem a uma sociedade democrática e pós- moderna utilizando-se, em alguns casos, de mão-de-obra semiescrava,- quase sempre com financiamento público, com incentivos e isenções fiscais -, enquanto desfrutam sem maiores problemas suas riquezas. Se, como vimos acima, a ideologia racista criou um sistema eficiente de controle e dominação nas plantations escravistas no Sul dos Estados Unidos, por 52 outro lado através das revoltas, uma contraparte do próprio sistema, os afro-americanos escreveram um capítulo crucial nos interstícios do longo período da escravidão naquele país. Mesmo que não tão expressivas quanto as revoltas ocorridas na Jamaica, São Domingos (atual Haiti), Suriname, Cuba e também no Brasil, aqueles africanos escravizados demonstraram a impossibilidade da sujeição total ao regime escravocrata, conforme assevera Genovese. Para Eugene Dominick Genovese53 as revoltas de escravos nas Américas moldaram o caráter democrático das lutas europeias exercendo, ao mesmo tempo, efetiva participação na conformação do mundo moderno. Lembra-nos Genovese que nos séculos XVII e XVIII, período de maior incidência das rebeliões escravas, os africanos escravizados lutaram por seu afastamento do regime escravocrata. Assim como pela recriação de um modo de vida específico gestado no âmbito da memória ancestral da África, uma africanização sociocultural, portanto, na dinâmica turbulenta da diáspora negra. Estas rebeliões assumiram caráter revolucionário principalmente após a era das revoluções levando, em alguns casos específicos, como em São Domingos, à contestação da própria hegemonia da classe senhorial. Entende o autor que a história da revolta dos escravos foi a maior testemunha do papel integral da escravidão na 53 Eugene Dominick Genovese é professor de História na Universidade de Rochester, editor da Marxist Perspectives, membro da Academia de Artes e Ciências (EUA) e ex-presidente da Organização de Historiadores Americanos. 53 transição do senhorialismo para o capitalismo. Nenhum outro movimento social, assevera: “[...] pode iluminar melhor o rico e contraditório processo mediante o qual os escravos moldaram a própria história, no contexto dos modos de produção dominantes.”54 Por vias restauracionistas, na maioria dos casos, inúmeras populações escravizadas na América se insurgiram contra a ordem colonial e os poderes senhoriais apoiando-se, quase sempre, em suas identidades culturais numa clara rejeição à opressão. De acordo com Genovese, quando tais revoltas não resultaram em fracassos e numerosas perdas de vidas, levaram à formação de comunidades quilombolas que utilizavam, também, do recurso de mão-de-obra escrava. Para consolidação de tal empresa, os insurgentes quilombolas empreenderam: Acordos com governos coloniais ou classes dirigentes que ainda aceitavam uma visão particularista da ordem social, hierarquicamente organizada. Assim, antes do triunfo do modo capitalista de produção e de uma ideologia burguesa coesiva, os escravos podiam usar o mundo colonial a fim de defender suas concepções tradicionais, relativas aos próprios direitos.55 54 Genovese, Eugene Dominick. Da rebelião à revolução: as revoltas de escravos negros nas Américas. São Paulo: Global, 1983. P. 17. 55 Id. Ibidem. 54 Genovese entende que boa parte das revoltas constituiu-se em refluxo à extrema violência que representava o regime senhorial, uma baliza defendida como contraparte às injustiças sofridas pelos africanos escravizados. Outras revoltas, de acordo com autores analisados por Genovese, objetivavam claramente a fuga da opressão e a criação de modos de vida tradicionais, uma ordem social arcaica, percebida como africanização dos costumes. Esta ideia é contestada pelo autor que a compreende como uma criação legitimamente afro- americana.56 A partir de finais do século XVIII e durante 56 Concordamos com Eugene Genovese no que se refere à impossibilidade da recriação de modos de vida autenticamente africanizados na diáspora negra. Aliás, a oposição manifestada pelo autor contra esta visão corresponde à de alguns pensadores brasileiros, tais como Mario Maestri e Adelmir Fiabani, para citar alguns exemplos, em cujas obras se percebe facilmente a clara oposição à visão culturalista com relação à resistência escrava no Brasil. De acordo com a visão culturalista, o africano escravizado fugia por não conseguir adaptar-se à cultura do branco, buscando nos espaços de fuga a criação de um ambiente legitimamente africanizado. Ora, é exatamente contra esta ideia “adocicada” das relações entre senhores e escravos que autores não culturalistas situam as suas análises. Para estes, fugia-se, antes de tudo, para conquistar-se a liberdade e a liberação de sua própria mão-de-obra. Sem dispêndio de muito esforço intelectual, pode-se estender estas premissas conceituais a outras situações distintas como, por exemplo, ao modo de vida dos ex-escravos que no pós-abolição deram origem à Associação da Mutuca. Todos os testemunhos orais colhidos em nossas pesquisas de campo apontam para a constituição de um modo de vida camponês, com suas relações de reciprocidade, uso comum da terra, hierarquias centradas nos critérios de idade, entre outros. Neste caso, assim como apontado 55 o século XIX, eclodiram revoltas que visavam, sobretudo, à total eliminação do regime escravocrata. Na visão do autor, constituía-se em nova forma de enfrentamento ao sistema hegemônico, condição esta totalmente desconhecida pelos escravos do mundo antigo. Pretendia-se, assim: “[...] garantir para os povos negros um lugar no sistema moderno das nações-estado”.57 Desta forma, assevera, as revoltas no Velho Sul dos Estados Unidos novecentista integraram-se ao conjunto de transformações das relações entre classes e raças do Hemisfério Ocidental. Ao contrário do que ocorreu nas ilhas do Caribe e na América do Sul, o regime da escravidão no Velho Sul dos EUA encontrou seu apogeu após a proibição do tráfico negreiro no primeiro quartel do século XIX. Foi neste contexto histórico que a política paternalista tornou-se vital para a manutenção do regime, assim: A perspectiva de lucros inesperados surgiu no momento exato em que se tornou necessário melhorar as condições materiais da vida dos escravos, a fim de garantir uma taxa adequada de reprodução. Essa conjuntura revelou-se decisiva para o florescimento do paternalismo e para o processo que levou os escravos a uma por Genovese: “uma criação legitimamente afro-brasileira”, identidades cujo entendimento só se torna possível se pensadas a partir da dinâmica da diáspora negra num eterno continuum espaço/temporal. 57 Genovese. Op. Cit. P. 27. 56 acomodação paulatina com o regime, embora essa acomodação fosse contraditória e violenta.58 Em Maryland e Virgínia (EUA), contudo, as políticas paternalistas foram implementadas pouco antes do fim do tráfico negreiro em função, principalmente, da queda dos preços do fumo e da expansão comercial do açúcar, colaborando para o aumento dos preços para aquisição de cativos. Diferente do sistema de controle existente nas fazendas produtoras de açúcar do Caribe onde, quase sempre, não contavam com a presença física dos senhores, os plantadores de fumo no Sul dos EUA mantinham estreitas relações com seus escravos. Desta forma, as bases de solidificação do paternalismo regional se tornaram mais evidentes. Isto se verificou na medida em que a proporção de escravos crioulos suplantou a dos escravos nascidos na África, tendo em vista uma maior aproximação cultural entre aqueles
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