Buscar

PATERNALISMO uma maldita herança da escravidão (2)

Prévia do material em texto

1 
 
 
 
2 
 
Silvânio Barcelos 
 
 
 
 
 
PATERNALISMO: 
Uma maldita herança da escravidão 
 
 
 
 
 
1ª Edição 
 
 
 
 
 
Clube de Autores 
2015
3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
4 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À minha esposa Fátima, 
meus filhos André, Rafaela, Aline, Kariny e Iuri 
e aos sempre queridos netos Gabriel, Thor, Helena, 
Ohana, Theodora, Davi, Lara 
 e Maria de Fátima. 
. 
 
 
 
 
 
 
5 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
Descrição Página 
Introdução 06 
Capítulo 1: Escravidão da Era 
Moderna: análise histórica 
 
13 
1.1 A presença africana na 
constituição da modernidade 
 
15 
1.2 Escravidão: uma contradição da 
modernidade 
23 
Capítulo 2: A escravidão no Brasil 75 
3 Racismo: o legado da escravidão 137 
Considerações finais 152 
 
 
 
 
6 
 
PATERNALISMO: uma maldita herança da escravidão 
 
 Arroga-se como principal objetivo desta 
sondagem historiográfica, o estudo da escravidão, como 
importante objeto de reflexão para a análise das 
condicionantes históricas que permeiam o conceito de 
paternalismo. No âmbito destas discussões o sistema 
paternalista, como aspecto de uma visão historiográfica 
culturalista presente em obras de inúmeros pensadores 
clássicos, e, também, contemporâneos, será utilizado 
como fio condutor de uma linha de raciocínio que 
busca em seus antípodas a superação de arraigados 
estereótipos produzidos pelo regime escravocrata. 
Inserimo-nos neste importante debate para questionar os 
limites impostos pela presunção do paternalismo, uma 
ideologia que agrega aos africanos escravizados durante 
o regime, e, aos afro-brasileiros no presente, a condição 
de povos sem história. De acordo com nosso 
discernimento, tanto a ideologia paternalista1, quanto as 
premissas do racismo, entendido como consequência 
 
1 Nosso entendimento acerca desta importante questão muito se 
deve à leitura da seminal obra de Adelmir Fiabani, “Mato, palhoça 
e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes 
[1532-2004]”, publicada em 2005 pela editora Expressão Popular. 
Trata-se de uma obra de referência para o entendimento do 
importante fenômeno representado pela formação de quilombos no 
Brasil, um esforço de superação dos estereótipos produzidos pela 
visão cultural paternalista presente nos escritos de alguns pensadores 
da historiografia brasileira. 
7 
 
daquela e do próprio regime da escravidão, constituem-
se em importantes referenciais teóricos para se pensar a 
situação social, econômica e política dos afro-brasileiros 
no presente. Também não menos importante, utilizamos 
de conceitos desenvolvidos por pensadores 
contemporâneos, de diferentes áreas do conhecimento 
humano, tais como “diáspora”, “identidade”, 
“local/global” e “por uma outra globalização” como 
ferramentas necessárias ao desenvolvimento desta 
pesquisa. 
Da constelação de importantes autores, no 
contexto internacional, que estudam esta temática, 
utilizamos as análises de Paul E. Lovejoy para entender 
os processos que transformaram o africano escravizado 
em mercadoria, uma visão estereotipada que reflete 
diretamente na vida e no ideário dos negros na 
atualidade. Paul Gilroy, por sua vez, parte da ideia-chave 
da diáspora deslocando-se do conceito de raça para 
formas geopolíticas, e, também geo-culturais capazes de 
modificar e transcender a condição subalterna imposta 
aos afro-americanos pela pretensa ideologia da cultura 
superior europeia. Para ele, a política da transfiguração 
presente na arte e cultura tornou-se expressões políticas 
da identidade negra dos povos no entorno do Atlântico. 
A partir das análises de Stuart Hall, sobre a 
condição dos africanos na diáspora, poder-se-á levantar 
questões importantes para o estudo dos processos de 
autoidentificação étnica, assim como do fator raça como 
8 
 
determinante à posição ocupada pelos negros nas 
sociedades contemporâneas e pós-modernas. 
Os conceitos de “local” e “global” trabalhados 
por Zygmunt Bauman possibilitam, por analogia, 
desvelar alguns dos problemas enfrentados pelos afro 
americanos que lutam por sua inserção tanto no 
mercado de trabalho, assim como em todas as esferas da 
vida humana. 
Opondo-se ao determinismo histórico e 
sociológico dos citados conceitos de Bauman, Milton 
Santos desvela os caminhos de superação destes 
problemas com uma visão alternativa possibilitada pelo 
conceito de “por uma outra globalização”. De outra 
forma, Boaventura de Souza Santos entende que a 
globalização possibilitou a insurgência de uma nova 
ordem capitalista, detentora de um terço da produção 
mundial, aprofundando assim as desigualdades sociais 
nos países periféricos e semiperiféricos. Para ele, tal 
modelo de desenvolvimento econômico produziu um 
caótico quadro social, desigual e excludente, o que, 
teoricamente, leva à ideia da inexistência da 
globalização enquanto conceito, mas sim de 
globalizações como parte de um mesmo processo em 
contínua expansão no mundo contemporâneo. 
Dos escritos de Eugene Dominick Genovese, 
acerca das revoltas de escravos nas Américas, destacamos 
como relevantes as questões relacionadas ao sistema 
paternalista, bem como as manifestações culturais como 
forma de resistência ao regime escravocrata, 
9 
 
principalmente da música negra, questão que corrobora, 
inclusive, com as teorias desenvolvidas por Paul Gilroy. 
As reflexões em torno da temática do 
paternalismo também estão presentes na obra de Emília 
Viotti da Costa. Não obstante, entendemos como de vital 
importância à análise dos problemas históricos 
enfrentados pelos afro-brasileiros o conceito de 
“momentos de crise” utilizado pela autora nos estudos 
relativos à revolta de escravos em Demerara. Para a 
autora é nos momentos de crise que a verdade aflora 
expondo contradições, tomadas de partido, 
comprometimentos, motivações, tornando-as públicas. 
Também é nestas ocasiões que se observa a defesa de 
nichos identitários como forma de garantia de 
determinadas ordens sociais. 
Da extensa gama de obras que privilegiam a 
temática da escravidão racial no Brasil, destacamos 
alguns autores cujos estudos, de uma forma ou de outra, 
se relacionam à visão paternalista nas relações entre 
escravos e senhores, bem como de seus antípodas que 
entendem tais encadeamentos a partir das premissas da 
dominação e da violência. Desta forma, utilizamos os 
escritos de Gaspar Barléu, um notável representante da 
nobiliarquia batava, para desvelar numa leitura reversa a 
ideologia dominante na qual, conforme também o 
senso-comum, o escravo era entendido como ator 
passivo de sua história, um selvagem para o qual a 
escravidão o tornaria civilizado. Contrapondo-se à ideia 
de povos sem história, Luis Felipe de Alencastro alude, 
10 
 
como consequência do regime senhorial, à 
contracolonização desencadeada pelos descendentes de 
africanos no Brasil, tendo em vista, principalmente, sua 
maioridade demográfica na atualidade. Seguindo esta 
mesma linha de raciocínio Mary Del Priore defende a 
ideia de que a visão estereotipada do africano, como ser 
desprovido de humanidade, dotado de crendices e 
comportamentos degenerados, deve ser superada no 
âmbito da historiografia. Também defende esta posição 
Perdigão Malheiros cujos estudos delimitam os aspectos 
jurídicos com os quais os escravos eram vistos pelas 
classes hegemônicas, segundo ele um profundo atraso 
social a ser superado. No conjunto representado pelos 
escritos de Manolo Florentino, Eduardo Silva, João José 
Reis, Robert Slenes e José Roberto Góes, trabalhadosneste capítulo, em suas análises acerca da família 
escrava, do conceito de negociação e cartas de alforria, 
sobressai-se, de uma forma ou de outra, os pressupostos 
da presunção paternalista. De acordo com nosso 
discernimento, e da leitura de autores que se opõe a esta 
forma de pensamento, se trata de visões culturalistas das 
relações entre senhores e escravos derivadas, assim, das 
clássicas teorias desenvolvidas por Gilberto de Mello 
Freyre. 
Por outro lado, entendemos que as relações 
paternalistas entre senhores e escravos constituíram-se, 
enquanto tal, em contextos e regiões específicas, não 
podendo desta forma serem consideradas de forma 
homogeneizante com relação à história da escravidão. A 
constatação destas condicionantes históricas encontra-se, 
11 
 
como visto anteriormente, nas obras de Eugene 
Genovese e Emília Viotti da Costa, situando-as, assim, 
nos períodos pós-campanhas abolicionistas. Em oposição 
à corrente paternalista, e, também neopaternalista, 
utilizamos como obras de referência os escritos de Décio 
Freitas, para o qual as insurreições escravas em Salvador 
foram tentativas de destruição do próprio regime da 
escravidão. Para ele, quando os escravos se revoltavam 
contra o regime recuperavam sua própria humanidade 
sequestrada pelo escravismo. Ao analisar o conjunto das 
condicionantes históricas do escravismo nas estâncias e 
charqueadas no Rio Grande do Sul, Fernando Henrique 
Cardoso desvela os limites impostos ao sistema 
paternalista. Em suas importantes argumentações, 
Cardoso desmistifica a suposta democracia gaúcha 
presente na visão dos relatos de viajantes do século XVIII 
e XIX, entendendo que as condições materiais de vida 
dos escravos eram extremamente hostis. Entende 
também o autor que o sistema escravocrata no Rio 
Grande do Sul, marcados pela violência explícita e 
dominação, produziu em consequência a posição 
subalterna dos negros na sociedade contemporânea. 
Concordamos com Cardoso e, também, com Jaime 
Pinsky e Israel Farias de Figueiredo, cujas considerações 
acerca das consequências do regime da escravidão, 
traduzidas nas formas do racismo e do preconceito de 
cor, foram por nós utilizados no encerramento deste 
estudo. 
Conforme entendemos, as premissas do racismo 
e do preconceito, nas quais se insere a noção de 
12 
 
paternalismo, determinaram de certa forma a posição 
subalterna dos afro-brasileiros em relação aos grupos 
hegemônicos no presente. Devidamente 
contextualizados o escopo deste estudo, passamos ao seu 
desenvolvimento. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
13 
 
Capítulo 1 
Escravidão da Era Moderna: análise histórica 
 
 
Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, 
Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade tanto horror 
 perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas co’a esponja de tuas vagas de teu 
manto este borrão?... 
Astros! Noites! Tempestades! Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! 
(Navio Negreiro – Castro Alves) 
 
De acordo com a convenção sobre a escravatura 
assinada em Genebra, no dia 25 de setembro de 1926, e 
emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à 
aceitação na sede da Organização das Nações Unidas, 
realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de Nova 
York, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A 
escravidão é o estado ou condição de um indivíduo 
sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os 
atributos do direito de propriedade”.2 Ainda tratando da 
 
2 As Convenções antes referidas são utilizadas como os 
instrumentos jurídicos mais antigos quando do trato da denominada 
escravidão contemporânea. Para maiores esclarecimentos acerca dos 
tratados relativos à escravidão negra vide: Tratados de paz de Paris 
de 1814 e 1815; Declarações do Congresso de Viena de 1815; 
Declaração de Verona de 1822; Tratados de 1831 e 1833 entre 
França e Inglaterra; Tratado de Londres de 1841; Tratado de 
14 
 
mesma temática em seu parágrafo segundo do mesmo 
artigo, o tráfico de escravos significa todo e qualquer ato 
de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o 
propósito de escravizá-lo. Significa, também, qualquer 
ato de aquisição de um escravo com a finalidade de 
vendê-lo ou trocá-lo, ou seja, todo ato deliberado de 
“comércio, bem como de transporte de escravos.”3 
 O canadense Paul E. Lovejoy4 defende a ideia de 
que os escravos eram, em termos absolutos, uma 
propriedade, e que também: “eram estrangeiros, 
alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais 
ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera 
ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que 
a sua força de trabalho estava à completa disposição de 
um senhor”5. Estas observações permitem entender, de 
alguma forma, a transformação do africano escravizado 
em coisa, em mero feixe de músculos a serviço do 
regime que o oprime. De nosso ponto de vista, esta visão 
estereotipada do escravo como res, no limite, como um 
ser desprovido de história, contribui para a difícil 
 
Washington de 1862; Ato Geral da Conferência de Berlin de 1885 e 
o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890. 
3 Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_escravatura.php , 
acesso em 22 de Junho de 2014. 
4 Paul E. Lovejoy é historiador e africanista, profissionalmente atua 
como professor da York University, em Toronto, onde ocupa a 
cátedra de História da África e da Diáspora Africana. 
5 Lovejoy, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas 
transformações. Tradução Regina A. R. Bhering e Luiz Guilherme 
B. Chaves. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 29. 
15 
 
posição social ocupada pelos negros no interior das 
sociedades contemporâneas. Pode-se, com relativa 
facilidade, relacionar os processos socioculturais 
excludentes a partir de premissas raciais - a racialização 
do negro, portanto, no interior de sociedades marcadas 
profundamente pelo predomínio e pela hegemonia das 
populações brancas – à própria construção, no âmbito da 
história, da condição do escravo como um mero 
instrumento de produção de bens capitalistas. 
Numa visão abrangente, não há como entender a 
própria modernidade ocidental sem considerar os 
processos históricos inerentes à escravidão racial da era 
moderna. Assim, importantes intelectuais relacionam o 
nefasto evento da escravidão com a constituição da 
própria sociedade moderna e pós-moderna. Mantidas as 
devidas proporções, um insight fecundo que retira do 
africano escravizado o caráter monolítico de coisa, um 
ser supostamente amorfo e sem história. 
1.1 A presença africana na constituição da modernidade 
 Paul Gilroy6 analisa o mundo ocidental 
contemporâneo, a partir das interações dos afro-
americanos, percebendo o absurdo e a contradição nas 
vastas obras de intelectuais que tratam da modernidade 
sem, ao menos, considerar a hipótese da contribuição 
 
6 Paul Gilroy é um importante sociólogo londrino, com doutorado 
em filosofia pela Universidade de Birmingham, um dos expoentes 
do movimento negro mundial. 
16 
 
dos africanos escravizados à formação do mundo 
capitalista, condição relevante à sua própria existência. 
Para ele, torna-se necessário um esforço no sentido de 
fazer com que a cultura e a história negras sejam levadas 
a sério nos meios acadêmicos: “[...] em lugar de serem 
atribuídas, via a ideia de relações raciais, à sociologia, e, 
daí, abandonadas ao cemitério de elefantes no qual as 
questões políticas intratáveis vão aguardar seu 
falecimento”7. 
 Na visão de Paul Gilroy, ao buscar-se os 
elementos que possibilitemo rompimento dos diques 
muito bem instalados na política cultural eurocêntrica 
nacionalista, que coloca o negro ora como não humano, 
ora como não cidadão, procura-se os meios que possam 
ativar os códigos re-interpretativos da condição do negro 
na modernidade. Assim, a diáspora responde o debate e 
ancora o caráter híbrido meta-nacional8 da condição 
cultural desse negro, de acordo com essa ideia-chave nós 
poderemos então ver não a raça: “[...] e sim formas 
geopolíticas e geo-culturais de vida que são resultantes 
da interação entre sistemas comunicativos e contextos 
 
7 Gilroy, Paul. O Atlântico Negro : Modernidade e dupla 
consciência. São Paulo; Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade 
Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. P. 40. 
8 Acerca dessa denominação devemos referir que o autor aponta a 
possibilidade de identidades supranacionais, marcadas por 
caracteres resultantes da aproximação de diferentes traços, daí seu 
caráter hibrido. 
17 
 
que elas não só incorporam, mas também modificam e 
transcendem”9. 
 Stuart Hall10 utiliza o conceito “diáspora negra” 
para explicar a experiência dos africanos 
desterritorializados em função da escravidão racial. Afro-
caribenho vivendo em Londres, Hall entendeu sua 
condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os 
dois lugares [Jamaica e Inglaterra] percebeu que na 
verdade não pertencia a nenhum deles, e esta é 
exatamente a experiência diaspórica: “[...] longe o 
suficiente para experimentar o sentimento de exílio e 
perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma 
chegada sempre adiada”11. 
Este autor aponta que, curiosamente, o 
pensamento pós-colonial prepara o indivíduo para viver 
uma relação diaspórica com a identidade. Para ele, a 
experiência da diáspora origina-se na bíblia ao narrar a 
recuperação de uma terra ocupada por outros povos. No 
 
9 Gilroy. Op. Cit. P. 25. 
10 Stuart Hall é sociólogo e professor da Open University. Esse 
jamaicano de classe média viveu as contradições culturais e sociais 
no contexto colonizado da Jamaica, uma sociedade marcada por 
políticas de branqueamento racial. Na sua infância foi chamado de 
“coolie” uma espécie de pária entre os seus, por ser de todos os 
membros de sua família o mais negro. Em 1951 mudou-se para a 
Inglaterra onde mais tarde filiar-se-ia à “Nova Esquerda Inglesa”. 
11 Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 
Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... 
[et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da 
UNESCO no Brasil, 2003. P. 415. 
18 
 
esforço de aproximação entre a diáspora bíblica e a 
diáspora negra ele aponta a experiência de sofrimento, 
exílio, cultura do livramento e da redenção como alguns 
dos seus fatores comuns. Essa condição explica, de 
alguma forma, porque os adeptos do Movimento 
Rastafári12 utilizam com frequência a bíblia, pois ela: 
“conta a história de um povo no exílio dominado por um 
poder estrangeiro, distante de casa e do poder simbólico 
do mito redentor”. Em suas conclusões, o que marcou 
definitivamente o rastafarianismo foi o fato de ter 
tornado definitivamente negra a Jamaica, 
descolonizando as mentes: “Como todos os movimentos, 
o rastafarianismo se representou como um retorno. Mas, 
aquilo a que ele nos retornou foi a nós mesmos. Ao fazê-
lo produziu a África, novamente, na diáspora”13. Pode-se 
inferir, considerando-se as particularidades e contextos 
específicos da escravidão racial no Novo Mundo, que a 
experiência do sofrimento e do exílio, características da 
 
12 Na década de 1960, excluídos do sistema capitalista, muitos 
Rastas procuraram formas de subsistência através da arte, entre elas 
o artesanato, esculpindo peças inspiradas em motivos africanos. 
Entretanto, onde a cultura Rasta desenvolveu-se, tanto na Jamaica 
quanto fora dela, foi na música, com o surgimento do Reggae, um 
estilo musical inovador . No começo o Reggae é o Ska, ritmado ao 
som de instrumentos metálicos que foram inspirados na Black 
music norte-americana. Mais tarde o Ska que ficara mais lento, 
originou o Rocksteady. Acrescido das percussões africanas e batidas 
da guitarra ao estilo Rock nos anos 1970 o antigo Rocksteady passa a 
denominar-se Reggae 
19 
 
diáspora negra, encontrou seu apogeu nos interstícios 
das plantations escravistas. 
A análise das estruturas políticas, sociais e 
culturais no interior das fazendas que utilizavam o 
regime da plantation14 revela dados impressionantes de 
particularismos e concentração de poderes num regime 
fechado, longe dos olhos e do alcance das instituições 
estatais. Foi nesse ambiente que o terror racial se 
desenvolveu. Entretanto, foi também neste espaço 
“permitido/conquistado”15 que os escravos, absorvendo 
 
13 Hall. Op. Cit. P. 417. 
14 O conceito de Plantation utilizado aqui refere-se às fazendas de 
monocultura do algodão encontradas no sul dos Estados Unidos no 
século XVIII e início do XIX, que utilizavam mão de obra escrava. 
Importa lembrar que este conceito foi também utilizado por alguns 
intelectuais brasileiros que trabalham com a questão agrária, como 
veremos oportunamente. 
15 Utilizamos essas aspas para chamar a atenção do leitor para o fato 
da questão subjetiva intrínseca ao próprio termo por nós utilizado. 
O sentido de apropriação, como o entende Roger Chartier, explica 
bem toda dinâmica envolvida nos espaços controlados das senzalas, 
onde os escravos gozando de relativas e momentâneas liberdades 
expressavam seus modos de vida característicos, manifestando a 
resistência natural ao regime da escravidão através dos sincretismos 
religiosos, das manifestações culturais e lúdicas. Obviamente, as 
pequenas liberdades aconteciam em um nível elevado de 
negociação em resposta à necessidade sempre constante da 
utilização de meios para aliviar a pressão do próprio sistema. Esses 
recursos foram largamente utilizados pela elite escravocrata que 
também se via obrigada a negociar seus interesses. Desta forma, as 
concessões de privilégios colaboravam para a manutenção do 
próprio regime da escravidão. Por outro lado se os espaços de 
relativa liberdade lhes eram “permitidos” isso ocorria também em 
20 
 
os elementos culturais da sociedade dominante, criaram 
mecanismos de defesa e autoafirmação como forma de 
resistência numa terra distante e desconhecida, 
recriando seu espaço do viver. Analogamente, pequenas 
porções da África reterritorializadas pelas vias da 
recordação. Expressando-se através do corpo os africanos, 
na diáspora, recriaram padrões estéticos que 
conformaram a própria noção de contracultura da 
modernidade. A música, um dos elementos culturais 
permitidos e/ou até incentivados pelos senhores da 
plantation, expressando pensamentos e desejos inefáveis, 
colocava para os escravos um mundo idealizado, tal qual 
gostariam que fosse, em oposição à realidade do vivido, 
fornecendo-lhes a necessária dose de coragem para 
prosseguirem suas vidas. Esta concepção utópica de um 
mundo perfeito, recriado ludicamente através da música, 
é denominada por Gilroy de “política de transfiguração” 
que enfatiza desejos novos no interior da comunidade 
racial. Segundo ele a política de transfiguração: “Aponta 
especificamente para a formação de uma comunidade 
de necessidades e solidariedades, que é magicamente 
tornada audível na música em si e palpável nas relações 
sociais de sua utilidade e reprodução cultural”16. 
Para o autor, a evasão lúdica do mundo real 
constitui-se numa espécie de resistência ao presentefunção da pressão interna, de dentro da senzala para fora, tendo por 
conseqüência o medo sempre presente de revoltas ou sublevações 
incontroláveis. Considerado neste contexto, o espaço 
“permitido/conquistado” existe em função do espaço “negociado”. 
16 Gilroy. Op. Cit. P. 96. 
21 
 
opressor dilatando, pelas vias da imaginação, as 
esperanças num amanhã glorioso. Obviamente, transitar 
no espaço “permitido/conquistado” no interior das 
fazendas no regime da escravidão exige exercício 
laborioso de audácia e inteligência buscando no espaço 
do subliminar o escopo de suas ações. Desenvolvida 
debaixo do nariz dos senhores, os desejos utópicos que 
alimentam a política complementar da transfiguração, 
como espaços de transgressões, só podem tomar forma 
por meios mais sutis, situando-se em regiões de difícil 
acesso aos olhos de quem domina e oprime, pois: 
 
Essa política existe em uma frequência mais 
baixa, onde é executada, dançada e encenada; 
além de cantada e decantada, pois as palavras, 
mesmo as palavras prolongadas por melisma e 
complementadas ou transformadas pelos 
gritos que ainda indicam o poder compíscuo 
do sublime escravo, jamais serão suficientes 
para comunicar seus direitos indizíveis à 
verdade.17 
 
Não se trata de um contra discurso, como afirma 
Gilroy, mas sim de uma contracultura capaz de 
reconstruir, de forma desafiadora, sua própria genealogia 
crítica, intelectual e moral recriando seu espaço numa 
esfera pública pouco perceptível, porém totalmente 
dotada de singular personalidade. No centro dinâmico 
 
17 Id. Ibidem. 
22 
 
desta contracultura18 encontram-se as expressões 
artísticas da música negra, que embora não excluindo as 
desigualdades sociais sua ética bem fundamentada 
oferece as condições para o debate em torno das 
questões de dominação que, por sua vez, determinam 
sua própria existência. Destarte, as expressões artísticas 
possibilitam meios plausíveis para a afirmação do 
indivíduo, bem como para a libertação da comunidade. 
Para o autor, a força criativa da ação traduzida no 
conceito de poiésis e a poética começam a coexistir em 
formas inéditas: “[...] literatura autobiográfica, maneiras 
criativas especiais e exclusivas de manipular a linguagem 
falada e, acima de tudo, a música. As três transbordaram 
os vasilhames que o estado-nação moderno forneceu a 
elas.”19 
 
18 De acordo com a socióloga Marília Quentel Corrêa, “a 
contracultura é um movimento que tem seu auge na década de 60, 
quando teve lugar um estilo de mobilização e contestação sociais e 
com ele novos meios de comunicação em massa. Jovens inovando 
estilos, voltando-se mais para o antissocial aos olhos das famílias 
mais conservadoras, com um espírito mais libertário, resumindo 
como uma cultura alternativa ou cultura marginal, focada 
principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do 
comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de 
expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano.” 
Ainda segundo sua análise “a contracultura pode ser definida como 
um ideário alternador que questiona valores centrais e vigentes 
instituídos na cultura ocidental”. Disponível em: 
http://estudossociologicos.blogspot.com/2009/06/contracultura.html 
acesso em 12 de Fevereiro de 2014. 
19 Gilroy. Op. Cit. P. 100. 
23 
 
Paul Gilroy, na já citada obra, nos lembra que as 
comunidades negras que se formaram no entorno do 
Atlântico, são conectadas de alguma forma através das 
expressões da arte e da música, uma síntese da influência 
cultural africana no Novo Mundo. Foi exatamente na 
confluência expressiva destas conexões lúdicas que 
surgiu, no bojo da diáspora africana, o que podemos 
denominar de consciência negra. Sendo esta resultante 
das formas culturais e sociais de valorização étnica, elos 
de solidariedade inconfundíveis utilizados, 
freqüentemente, como forma de atendimento às 
demandas políticas dos afro-americanos. Para além 
destas constatações de ordem pragmática, alguns 
pensadores empreenderam importantes reflexões acerca 
das contradições encontradas no estudo da escravidão 
em sua interface com a modernidade Ocidental. 
 
1.2 Escravidão: uma contradição da modernidade 
 
 É latente a necessidade de se repensar 
historiograficamente todas as periodizações simples do 
moderno e do pós-moderno, sob uma nova orientação 
que privilegie a história da escravidão racial enquanto 
elo importante na conformação do próprio conceito de 
modernidade. Se considerados, por exemplo, a 
porcentagem de afrodescendentes na população 
brasileira, cujas estimativas apontam um índice superior 
24 
 
a cinquenta por cento20, natural seria sua presença 
também no âmbito historiográfico. A escravidão racial da 
era moderna demanda, portanto, uma leitura despida de 
ideias eurocêntricas pré-concebidas, em prol de um 
nível mais elevado de entendimento da nossa sociedade 
atual. Essa questão primordial parece adormecida nos 
ânimos de pensadores ocidentais, embora a presença de 
importantes vozes que se levantam contra este 
pensamento hegemônico. Se por um lado, considerados 
os números demográficos da presença africana no Novo 
Mundo ao ponto de, conforme Luiz Felipe de 
Alencastro, tal cifra possibilitar a assertiva de que fomos 
colonizados por africanos e europeus, a situação social, 
política e econômica dos afro-americanos indica 
exatamente o contrário. Ou seja, a despeito de todas as 
conquistas alcançadas pelos negros no Ocidente, e da 
superioridade demográfica, como no caso do Brasil, a 
posição destes nas sociedades globalizadas estão muito 
aquém daquela ocupadas pelos outros segmentos sociais. 
Por outro lado torna-se, também, necessária uma 
reflexão amplificada dos contextos históricos e sociais 
que conformam as próprias estruturas do mundo 
globalizado em que vivemos. Neste sentido, Zygmunt 
Bauman, Boaventura de Souza Santos e Milton Santos, 
 
20 De acordo com o censo demográfico realizado pelo IBGE, em 
2010, de um total de 190.755.799 habitantes 96.795.294 são afro-
brasileiros perfazendo, assim, uma significativa porcentagem de 
50,7% em relação aos brancos e outros, e 51,5 % em relação à 
população branca deduzida os números relativos aos “outros” 
(amarelos). 
25 
 
em uma diversidade de obras publicadas, fornecem 
elementos que possibilitam o entendimento das 
sociedades contemporâneas e das forças em jogo que as 
definem. 
Bauman destaca em suas análises sociológicas as 
transformações sociais por que passam as sociedades 
atuais em conseqüência da globalização. O estado de 
contínuo movimento em que o mundo se encontra 
produz desequilíbrios e alarga o fosso que separa ricos de 
pobres. Para o autor: “Todos nós estamos, a contragosto, 
por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em 
movimento mesmo que fisicamente estejamos 
imóveis”.21 Essa noção de movimento polariza a balança 
do poder aumentando a capacidade de operação dos que 
são globalizados, estendendo as fronteiras de seus 
domínios ao mesmo tempo em que aumenta o nível de 
exclusão social dos localizados. Entende ele que: “[...] ser 
local num mundo globalizado é sinal de privação e 
degradação social”.22 Nesse contexto globalizado, a 
mobilidade constitui-se na peça chave com a qual 
determinados grupos sociais combinam fatores essenciais 
dominando o mundo dos negócios, das finanças, 
comércio e controle dos fluxos de informações. A falta de 
mobilidade estratégica, a redução à condição de “local” 
são os fatores que determinam a exclusão social de 
pobres no mundo contemporâneo promovendo, assim, 
 
21 Bauman, Zygmunt. Globalização: as consequênciashumanas. 
Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 
P. 8. 
22 Id. Ibidem. 
26 
 
um estado de insegurança e incertezas. Bauman, a partir 
destes pressupostos, compreende a importância de se 
articular as dimensões do local e global como forma dos 
grupos sociais menos favorecidos garantirem 
efetivamente suas sobrevivências. Para Boaventura de 
Sousa Santos, no entanto, a globalização, entendida em 
seu sentido genérico, refere-se a processos altamente 
complexos que abarcam praticamente a totalidade da 
vida contemporânea. 
Sociólogo e professor catedrático da Universidade 
de Coimbra, em Portugal, Boaventura de Sousa Santos, 
em sua obra “Globalização e as ciências sociais”, 
empreende uma profunda análise do fenômeno da 
globalização, sendo esta marcada pelo seu caráter difuso 
e multifacetado. Para ele, a globalização refere-se a 
processos que perpassam a diversidade da vida social, 
desde a unificação dos sistemas produtivos às profundas 
modificações das áreas tecnológicas, de informação e 
comunicação provocando, assim, o aumento significativo 
das desigualdades sociais. Boaventura Santos, 
aprofundando os conceitos desenvolvidos por Bauman, 
assevera que o impacto da globalização sobre as 
estruturas globais e locais são, de fato, contraditórios e 
heterogêneos, pois: 
 
Cada uma das áreas da vida social é o produto 
de uma negociação conflitual e de resultados 
relativamente indeterminados entre o que é 
concebido como local, ou endógeno, e o que 
27 
 
é concebido como global, ou exógeno, entre 
rupturas e continuidades, entre novos riscos e 
velhas seguranças, entre mal-estares 
conhecidos e mal-estares desconhecidos, entre 
emergências e inércias.23 
 
 Boaventura Santos identifica, em suas 
formulações, três diferentes níveis de globalização no 
mundo contemporâneo. Em primeiro plano encontra-se 
o que denomina de globalização hegemônica, sendo esta 
orquestrada pelos países centrais cujos custos e 
oportunidades por ela produzidos são: “desigualmente 
distribuídos no interior do sistema mundial”.24 É 
exatamente por estas razões que num crescente se alarga 
o fosso entre países ricos e países pobres e entre ricos e 
pobres de uma mesma localidade. Para ele, os países 
centrais possuem a prerrogativa da mobilidade intrínseca 
à globalização hegemônica, capaz de dela auferir as 
vantagens do sistema econômico transferindo, ao mesmo 
tempo, o ônus dos custos sociais aos países periféricos. 
Perfeitamente alinhado ao pensamento de Bauman, para 
o qual resta aos locais “lamber as feridas”, Boaventura 
Santos nos lembra que pertencer ao sistema da 
globalização hegemônica significa possuir a capacidade 
de maximizar as vantagens e minimizar os custos dela 
 
23 Santos, Boaventura de Souza. (Org.) A globalização e as ciências 
sociais. São Paulo: Cortez, 2002. P. 11. 
24 Santos, B. S. Op. Cit. P. 12. 
28 
 
provenientes. Não obstante, o mesmo não ocorre fora das 
fronteiras dos países centrais. 
 Em segundo e terceiro planos, Boaventura Santos 
identifica os países periféricos e semiperiféricos. Para o 
autor, aqueles sofreram nas últimas décadas uma 
crescente degradação em suas posições ocupadas no 
sistema mundial, o que significa o mesmo nível de 
decomposição dos padrões de vida de seus habitantes. 
Isto ocorreu, principalmente, por que foram forçados a 
pagar os custos dos próprios benefícios produzidos pelos 
países centrais, sem, no entanto alcançar as 
oportunidades também por eles criadas. A situação não é 
muito diferente para os países semiperiféricos, ou de 
desenvolvimento intermédio para utilizar uma expressão 
do autor. A diferença reside na capacidade destes de 
usufruir, em determinados níveis, das vantagens 
produzidas pela globalização hegemônica, minimizando 
seus inconvenientes. No entanto, nos lembra o autor: 
“São países que tanto podem cavalgar a globalização 
hegemônica para, com base nela, obter alguma 
promoção nas hierarquias do sistema mundial, como 
podem ser cavalgados por ela nos declives que 
promovem a despromoção.”25 Desta forma, os problemas 
provocados pela globalização hegemônica tendem a 
produzir para os países ditos semiperiféricos efeitos 
imprevisíveis e, via de regra, de difíceis resoluções. No 
caso do Brasil, um país semiperiférico de acordo com o 
autor, sua posição ocupada na hierarquia do sistema 
 
25 Id. Ibidem. 
29 
 
mundial está diretamente relacionada às consequências 
do regime militar de 1964, notoriamente marcado pelo 
impulso modernizador. Neste caso, no período de 
transição política, verificado em meados da década de 
1980, não se modificaram as estruturas de poder 
econômico e social mantendo-se, autoritariamente, as 
mesmas configurações do Estado. Foi neste contexto, 
segundo Boaventura Santos, que as elites conservadoras: 
“[...] cavalgaram com êxito a transição democrática, 
aproveitando e reforçando a crise de Estado para entregar 
o país à nova ortodoxia neoliberal onde viram as novas 
oportunidades para reproduzir seu poder.”26 Num 
contexto mais abrangente, não obstante, Boaventura 
Santos assevera que uma das principais características do 
sistema mundial contemporâneo reside na obliteração da 
força política em detrimento do que denomina 
metaconsenso neoliberal. 
 Esta ideia-força, o metaconsenso neoliberal, 
apoia-se na movimentação e na insurgência de uma nova 
divisão internacional do trabalho promovida, num 
continuum, pela fusão de empresas multinacionais 
convertidas, agora, em principais atrizes no cenário 
econômico mundial. Desta forma, uma classe capitalista 
transnacional emerge hoje em escala global superando, 
facilmente: “[...] as organizações nacionais de 
trabalhadores, bem como os Estados externamente fracos 
da periferia e da semiperiferia do sistema mundial.”27 O 
 
26 Santos, B. S. Op. cit. P. 13. 
27 Id. Ibidem. P. 32. 
30 
 
equilíbrio de forças que permite a hegemonia capitalista 
global se deve à anuência de uma classe insurgente 
composta por dois ramos distintos: um local e outro 
internacional. O ramo local, representado pelo que o 
autor denomina de “burguesia nacional” é composto 
pela elite empresarial, altos funcionários estatais, 
lideranças políticas influentes bem como de profissionais 
liberais. A despeito da aparente heterogeneidade dos 
atores sociais em questão, segundo o autor estes se 
constituem em classe social tendo em vista que: 
 
Os seus membros, apesar da diversidade de 
seus interesses setoriais, partilham uma 
situação comum de privilégio socioeconômico 
e um interesse comum de classe nas relações 
do poder político e do controle social que são 
intrínsecos ao modo de produção capitalista.28 
 
O ramo internacional, por sua vez, representado 
pelo que o autor denomina “burguesia internacional”, é 
constituído pelos administradores das empresas 
multinacionais, assim como pelos responsáveis pelas 
instituições financeiras globalizadas. Esta nova estrutura 
de classe têm produzido de forma crescente as 
desigualdades sociais antes referidas, fato aceito e 
reconhecido, inclusive, pelas agências multinacionais 
que conduzem o próprio processo da globalização 
 
28 Id. Ibidem. P. 33. 
31 
 
hegemônica, tais como: Banco Mundial e o Fundo 
Monetário Internacional (FMI). Para o autor, é evidente 
que o descompasso na distribuição da renda mundial 
constitui-se em um dos maiores problemas causados pelo 
sistema econômico mundial nas últimas décadas. 
Segundo estatísticas da Organização das Nações Unidas, 
¼ da população mundial vive na pobreza absoluta, com 
rendimento inferior a um dólar por dia,enquanto que 
2/4 desta mesma população aufere a renda de dois 
dólares por dia. Paradoxalmente, a má distribuição de 
riquezas, a nova pobreza globalizada, imposta pelos 
países centrais não resulta da escassez humana e nem de 
recursos materiais, mas sim do: “[...] desemprego, da 
destruição das economias de subsistência e da 
minimização dos custos salariais à escala mundial.”29 À 
despeito do aparente caráter monolítico de que se reveste 
o conceito de globalização hegemônica, Boaventura 
Santos argumenta no sentido de sua própria 
desmistificação no que entende como “a natureza das 
globalizações”. 
Contrapondo-se à ideia do caráter dominante da 
globalização, o autor desconstrói tal assertiva revelando 
seu caráter omisso quanto à própria teoria a ela 
subjacente posto que, para ele, tal fenômeno não é 
linear, nem ao menos inequívoco. No entanto, esta visão 
apesar de falsa é aceita sem maiores problemas. Torna-se 
necessário e urgente entender que o aparente caráter 
hegemônico de que se reveste o conceito de globalização 
 
29 Id. Ibidem. P. 35. 
32 
 
constitui-se em dispositivos ideológicos e políticos que 
possuem suas próprias lógicas e intencionalidades. Entre 
estes dispositivos Boaventura Santos destaca a falácia do 
determinismo, que para ele consiste na: 
 
Inculcação da ideia de que a globalização é 
um processo espontâneo, automático, 
inelutável e irreversível que se intensifica e 
avança segundo uma lógica e uma dinâmica 
próprias suficientemente fortes para se 
imporem a qualquer interferência externa.30 
 
Contribui para esta falácia, de acordo com o 
autor, não somente os arquitetos da globalização, mas 
também intelectuais de referência, como é o caso de 
Manuel Castells, para quem a globalização é o resultado 
direto da revolução tecnológica da área informacional. 
Conforme Castells apud Boaventura Santos, a 
globalização se reveste de caráter mundial porque as 
atividades produtivas, de distribuição e consumo são 
organizadas em escala global. Para Boaventura Santos, a 
falácia de Castells consiste na transformação das causas 
da globalização em seus efeitos. De fato, assevera o autor, 
a globalização é resultado direto de decisões políticas 
passíveis de identificação tanto no tempo como em sua 
autoria, qual seja dos Estados centrais, mais precisamente 
pelo Consenso de Washington. Também conhecido 
 
30 Id. Ibidem. P. 50. 
33 
 
como “consenso neoliberal”, o Consenso de Washington 
foi implantado pelos países centrais, em meados da 
década de 1980, abrangendo entre outras coisas: “[...] o 
futuro da economia mundial, as políticas de 
desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na 
economia.”31 Nos lembra o autor, que a falácia do 
determinismo, entre outras, perde sua força na mesma 
proporção em que a globalização se transforma em um 
campo de contestação sociopolítica. Se para seus 
defensores a globalização constitui-se no ápice da 
racionalidade, da abundância e do progresso ilimitados, 
para seus críticos ela transporta em seu bojo: “[...] a 
miséria, a marginalização e a exclusão de grande maioria 
da população mundial, enquanto a retórica do progresso 
e da abundância se torna em realidade apenas para um 
clube cada vez mais pequeno de privilegiados.”32 Por 
estas razões, e por outras tantas elencadas pelo autor, aqui 
suprimidas por romper com os limites desta tese, se torna 
imperioso repensar os limites da ideia falseada da 
globalização enquanto conceito homogeneizante. Assim, 
destacamos como relevante para nosso estudo a 
contradição entre globalização e localização encontradas 
na obra aqui referenciada. 
A pluralidade de discursos sobre o caráter 
homogeneizante da globalização deve, segundo o autor, 
ser repensada de forma crítica, entre eles merece 
destaque a contradição entre o global e o local. Assim, o 
 
31 Santos, B. S. Op. cit. P. 27. 
32 Santos, B. S. Op. Cit. P. 53. 
34 
 
tempo presente, aparentemente, parece clivado pela 
ideia errônea de que a globalização não pode ser 
desvinculada da localidade. De fato, nos lembra o autor: 
 
À medida que a interdependência e as 
interações globais se intensificam, as relações 
sociais em geral parecem estar cada vez mais 
desterritorializadas, abrindo caminho para 
novos direitos às opções, que atravessam 
fronteiras até pouco tempo policiadas pela 
tradição, pelo nacionalismo, pela linguagem e 
pela ideologia, e frequentemente por todos 
eles em conjunto.33 
 
Em aparente contradição a esta tendência, por 
outro lado, percebe-se a insurgência de novas identidades 
regionais, locais e nacionais que são construídas num 
esforço proeminente de volta às origens, às raízes. Estes 
localismos, confere o autor, tanto podem constituir-se em 
territórios reais, assim como em imaginários, onde as 
relações sociais são caracterizadas pela proximidade e 
pela interatividade. De acordo com suas próprias 
palavras: “relações face a face”. Boaventura Santos cita 
como exemplo deste localismo territorializado aqueles 
protagonizados por povos que: “[...] ao fim de séculos de 
genocídio e de opressão cultural, reivindicam, 
finalmente com algum êxito, o direito à 
autodeterminação dentro dos seus territórios 
 
33 Santos, B. S. Op. Cit. P. 54. 
35 
 
ancestrais.”34 É este o caso dos povos indígenas da 
América Latina. Entendemos que também é este o caso 
das comunidades quilombolas contemporâneas que 
reivindicam seu direito à propriedade e permanência em 
suas terras, numa busca incessante por sua condição de 
atores e protagonistas de suas próprias vidas. Neste 
sentido é de vital importância para os propósitos desta 
tese a análise de Boaventura Santos acerca da 
“globalização contra-hegemônica”. 
Um dos debates ocorridos à época da escrita da 
obra de Boaventura Santos consistiu na indagação da 
existência de uma ou demais globalizações, em termos 
conceituais. Trata-se de um quase consenso nos meios 
especializados a noção da existência de somente uma 
globalização, sendo esta de cunho “capitalista 
neoliberal”. Desta forma, em havendo somente uma 
globalização, a resistência a ela só poderia ser classificada 
como “localização não assumida”. Não obstante, numa 
evidente crítica a este modelo, ainda nos dias atuais a 
maior parte da população mundial mantém economias 
calcadas na tradição. Boa parte desta população vive 
acima da margem de pobreza, sendo que a parte 
empobrecida o fora tendo em vista as políticas 
neoliberais. Portanto, explica o autor, a resistência mais 
produtiva contra a globalização: “[...] reside na promoção 
das economias locais e comunitárias, economia de 
pequena escala, diversificadas, autossustentáveis, ligadas 
a forças exteriores, mas não dependente delas.” Segundo 
 
34 Id. Ibidem. 
36 
 
esta lógica a resposta eficiente contra os processos de 
desterritorialização promovidos pela globalização 
hegemônica só pode encontrar respaldo na 
reterritorialização, ou seja, a redescoberta do sentido de 
lugar, de pertença e da comunidade, o que implica: “[...] 
a redescoberta ou a invenção de atividades produtivas de 
proximidade”.35 Vale dizer, exploração econômica 
regionalizada. Para o autor, localização significa o 
conjunto de iniciativas que visam: “criar ou manter 
espaços de sociabilidade de pequena escala, 
comunitários, assentes em relações face a face, orientados 
para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas 
cooperativas e participativas.”36 
Em conformidade com diversos atores citados por 
Boaventura Santos, nestas propostas incluem-se: pequena 
agricultura familiar, comércioe moedas locais, sendo 
uma de suas características o não isolacionismo, mas, sim 
um novo sistema de autoproteção contra as forças 
econômicas hegemônicas. Estas medidas contra-
hegemônicas são necessárias na medida em que se 
entende que a economia global, longe de haver rompido 
com os velhos protecionismos, constitui-se, ela mesma, 
uma estratégia da economia global hegemônica, que visa 
à proteção das multinacionais e dos organismos 
financeiros em escala mundial. Não obstante, para o 
autor, o paradigma da localização, suas bases regionais, 
não deve se opor à ideia da transglobalização. Deve, 
 
35 Santos, B. S. Op. Cit. P. 72. 
36 Id. Ibidem. 
37 
 
sobretudo, consistir no esforço pela superação dos 
problemas causados pela globalização hegemônica, 
permitindo, assim, a livre iniciativa dos localizados no 
sentido de otimização de sua produção e intercâmbio 
comerciais, bem como culturais, alavancando desta 
forma: “a pequena escala em larga escala”. De acordo 
com nosso discernimento, isto constitui-se numa visão 
capaz de superar os velhos estereótipos e contrabalançar 
as estruturas de poder econômico que dominam o 
cenário mundial. De certa forma, o conceito de contra-
hegemonia, aqui estudado, aproxima-se do conceito de 
“por uma outra globalização” de Milton Santos. 
Para o professor Milton Santos, um dos mais 
renomados geógrafos da atualidade, a globalização é o 
apogeu do mundo capitalista de um processo que 
conhecemos como internacionalização do mundo 
globalizado. Os fatores que levaram a este processo são: a 
unicidade da técnica, a convergência dos momentos, o 
conhecimento do planeta e a mais valia globalizada, de 
acordo com suas palavras: “um motor único da 
história”37. Para o autor, o mundo contemporâneo é 
confuso e, ao mesmo tempo confusamente entendido. 
Isto se verifica tendo em vista, principalmente, que a 
realidade é mediocremente construída resumindo vários 
contextos em uma única abordagem, sendo ela refém dos 
detentores de dinheiro, poder e dos aparatos da 
informação. O domínio e o monopólio da técnica 
 
37 Santos, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento 
único à consciência universal.- Rio de Janeiro: Record, 2002. P. 24. 
38 
 
permite aos arquitetos da globalização seu efetivo 
controle. As técnicas constituem-se em instrumentos com 
os quais as pessoas interagem no mundo. Para Milton 
Santos, as técnicas são exteriores a nós ao mesmo tempo 
em que a elas estamos submetidos. No mundo 
globalizado o controle das técnicas são fundamentais 
para o monopólio capitalista, aumentando o poder das 
grandes corporações na mesma proporção em que 
diminui a mobilidade individual e coletiva das 
comunidades periféricas. Existe uma estreita relação de 
causa e efeito entre o desenvolvimento da técnica e a 
consolidação do mundo globalizado, pois: 
 
É a partir da unicidade das técnicas, da qual o 
computador é uma peça central, que surge a 
possibilidade de existir uma finança universal, 
principal responsável pela imposição a todo o 
globo de uma mais valia mundial. Sem ela, 
seria também impossível a atual unicidade do 
tempo, o acontecer local sendo percebido 
como um elo do acontecer mundial. Por outro 
lado, sem a mais valia globalizada e sem essa 
unicidade do tempo, a unicidade da técnica 
não teria eficácia.38 
 
Desvela o autor que a tirania dos meios de 
comunicação e dos poderes econômicos, possibilitadas 
através do progresso da técnica, e seu eficiente controle, 
 
38 Santos, M. Op. Cit. P. 27. 
39 
 
constituem-se nos pilares de sustentação das elites globais 
que as utilizam em seu próprio benefício, mantendo-se 
assim sua hegemonia no mundo globalizado. Tal 
contingência de fatores produz, nos interstícios dos países 
periféricos, a crescente pauperização das massas 
excluídas tendo em vista, principalmente, a ineficácia do 
Estado na resolução destes graves problemas sociais. 
Deslocando-se desta visão equivocada torna-se necessária 
a compreensão da existência de três mundos distintos. 
Sendo eles: globalização como fábula (mundo fabricado, 
imposto e vendido como real); globalização como 
perversidade (mundo real em confabulações e 
expectativas) e, finalmente, uma outra globalização 
(mundo que pode vir a surgir). Trata-se de uma visão 
humanista calcada na esperança da construção de uma 
nova ordem universalista que, em tese, conferiria aos 
povos excluídos uma melhor posição social nas 
sociedades mundializadas e pós-modernas. 
A fábula de um mundo perfeito consolidou-se 
com a intenção de legitimar as construções imaginárias 
que contribuem, na ordem do discurso, para perpetuação 
do sistema hegemônico globalizado. Utilizando-se da 
propaganda, a máquina ideológica confere estatuto de 
legalidade à hegemonia planetária, como é o caso do 
mito da aldeia global, uma tentativa de inculcação da 
ideia de que a: “[...] difusão instantânea da notícia 
realmente informa as pessoas.”39 Aliado ao mito do 
encurtamento das distâncias, para os que possuem 
 
39Santos, M. Op. Cit. P. 18. 
40 
 
mobilidade tão e somente, difunde-se a ideia de 
contração do tempo e do espaço. Numa paráfrase às 
formulações do autor, é como se o mundo globalizado 
estivesse ao alcance de todos sem distinção. Desta forma, 
o mercado global apresentado ideologicamente como 
homogeneizante, em realidade, só contribui para 
aprofundar as diferenças locais, afastando 
paulatinamente a possibilidade da implantação de uma 
cidadania universal e participante. Num esforço de 
dissipação desta ideologia, Milton Santos apresenta, em 
seus escritos, o mundo tal como se apresenta: a 
globalização como perversidade. 
Para ele, nada pode ser mais eficiente para 
desmascarar tal ideologia que a própria realidade, pois a 
mesma globalização que cria a utopia da cidadania 
global contribui para o alargamento do fosso entre ricos e 
pobres. Contribuem para a obliteração do mito de um 
mundo perfeito, o desemprego crescente, o aumento da 
pobreza e a baixa qualidade de vida das classes médias. A 
perversidade sistêmica sustentada por Milton Santos está 
na raiz da evolução negativa da humanidade, e tem a ver 
com o comportamento competitivo característico do 
capitalismo hegemônico e globalizado. Não obstante o 
aparente determinismo de tal ordem de fatores, o autor é 
otimista quanto às possibilidades de superação destes 
arraigados problemas provocados pela hegemonia dos 
poderes mundiais, propondo “uma outra globalização”. 
Baseados em princípios humanistas, Milton 
Santos sugere uma nova visão do mundo, mediante uma 
41 
 
globalização mais centrada no ser humano. Para ele, é 
através da utilização das mesmas bases técnicas que 
possibilitaram a hegemonia do capital (técnica, 
convergência dos momentos e conhecimento do planeta) 
que se tornará possível a implantação de uma nova forma 
de globalização. Para ele: “Essas mesmas bases técnicas 
poderão servir a outros objetivos, se forem postas a serviço 
de outros fundamentos sociais e políticos.”40 A 
possibilidade de mudanças torna-se possível graças à 
condições históricas favoráveis de finais do século XX, 
tanto no plano empírico, como teórico. Contribui para 
estas condições propícias, entre outras, o fenômeno da 
amálgama entre povos, raças e culturas no cenário social 
contemporâneo. Trata-se, utilizando as palavras do autor: 
“[...] da existência de uma verdadeira sociodiversidade, 
historicamente muito mais significativa que a própria 
biodiversidade.”41 Acrescenta-se à isto a emergência de 
uma verdadeira cultura popular, possibilitada pela 
unicidade das técnicas. De acordo com nossa 
compreensão,uma conexão lúdica e revolucionária 
capaz de influenciar o ideário das massas no mundo 
globalizado, da forma como entende Paul Gilroy, em sua 
obra “O atlântico negro”. Lembra-nos Milton Santos que 
é sobre estas bases que se edificam o discurso da escassez 
finalmente descoberto pelas massas. Trata-se de um 
contra discurso que afronta e desmistifica o mito da 
abundância generalizada presente no imaginário da 
globalização hegemônica, que nada faz senão atender 
 
40 Santos, M. Op. Cit. P. 20. 
41 Santos, M. Op. Cit. P. 21. 
42 
 
aos próprios interesses de uma elite privilegiada. No 
plano teórico o que se verifica é a possibilidade real de 
produção de novos discursos, assim como de uma: 
 
Nova metanarrativa, um novo grande relato. 
Esse novo discurso ganha relevância pelo fato 
de que, pela primeira vez na história do 
homem, se pode constatar a existência de uma 
universalidade empírica. A universalidade 
deixa de ser apenas uma elaboração abstrata 
na mente dos filósofos para resultar da 
experiência ordinária de cada homem.42 
 
O discurso da escassez, conforme nossa 
compreensão, elevado aos cumes da experiência prosaica 
das massas produz a necessária contrapartida à 
globalização hegemônica imposta pelos poderes 
econômicos. Pelos mesmos caminhos utilizados pela 
ideologia dominante, os progressos alcançados pela 
informação se tornam os instrumentos de sua própria 
superação. Desta forma: “Criam-se, para todos, a certeza 
e, logo depois, a consciência de ser no mundo e de estar 
no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em 
plenitude material ou intelectual.”43 Resultado da 
profunda interação de diferentes povos, das mais variadas 
localidades do mundo, a consciência de ser no mundo 
produz as bases de uma nova esperança. A experiência 
 
42 Id. Ibidem. 
43 Santos, M. Op. Cit. P. 172. 
43 
 
cotidiana de cada pessoa, somadas às experiências 
coletivas constituem os pilares de sustentação de uma 
nova política fundada nas premissas do igualitarismo. Foi 
a partir destas bases conceituais que Milton Santos ousou 
pensar que a história do homem sobre a Terra: “[...] 
dispõe afinal das condições objetivas, materiais e 
intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e 
dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova 
trajetória.”44 Apesar da profundidade e seriedade de que 
se reveste a análise de Milton Santos na obra em questão, 
entendemos que as propostas por uma nova consciência 
coletiva constituem-se em tautologias e especulações 
relacionadas ao devir do povos. Há que se considerar, por 
exemplo, os processos do individualismo contínuo como 
uma das características que definem as sociedades pós-
modernas, de acordo com as formulações de Zygmunt 
Bauman em diversas de suas obras. Trata-se de um 
truísmo que não pode ser desconsiderado e que constitui, 
per se, em fator sociocultural que dificulta a unicidade 
do pensamento e da consciência universal, em curtos ou 
médios prazos. Não obstante, entendemos a importância 
das formulações do autor como possibilidades potenciais, 
o que o aproxima das ideias apresentadas por Boaventura 
Sousa Santos. Para este se trata, convém lembrar, de 
condicionantes práticas realizáveis no presente. Questão 
bastante evidente em suas propostas de regionalização da 
economia, bem como da sustentação de uma cultura 
voltada para a valorização do espaço local, como forma 
 
44 Santos, M. Op. Cit. P. 173. 
44 
 
eficiente de implantação de uma globalização contra-
hegemônica. 
Após essas breves digressões acerca do conceito de 
globalização, continuamos nossos estudos das 
condicionantes históricas que definem o fenômeno da 
escravidão em seu contexto mais abrangente. 
Paul Gilroy alerta para a questão de que os 
defensores, bem como os críticos da modernidade ao que 
parece não atentam para o fato de que: “A história e a 
cultura expressivas da diáspora africana, a prática da 
escravidão racial ou as narrativas de conquista imperial 
europeia podem exigir que todas as periodizações simples 
do moderno e do pós-moderno sejam drasticamente 
repensadas”.45 Vistas em conjunto, as hipóteses 
levantadas pelo autor sugerem o rompimento com a 
tradicional periodização da história presente em boa 
parte do Ocidente. Para ele, a inclusão da importante 
contribuição e presença africana no Novo Mundo 
deveria, necessariamente, integrar-se de forma plena à 
própria história do Ocidente. Trata-se de uma 
contrapartida aos poderes hegemônicos presente na 
historiografia moderna e pós-moderna, inclusive, convém 
lembrar, no contexto das obras didáticas e dos manuais 
destinados à área da educação, principalmente aqueles 
relacionados à disciplina história. De certa forma, as 
propostas de Paul Gilroy corroboram com a ideia do 
rompimento da “localidade” de Boaventura Sousa Silva. 
Sobretudo, se considerado o esforço pela superação dos 
 
45 Gilroy. Op. Cit. P. 103. 
45 
 
problemas provocados pela globalização hegemônica. O 
que permitiria, a partir da vontade dos localizados, 
romper seus próprios limites possibilitando-se, desta 
forma, o trânsito entre o local e o global. Se nos demais 
países do Ocidente tais questões são relevantes, no Brasil, 
cuja população é composta em sua maioria por 
afrodescendentes, estas proposições são fundamentais. 
Argumentando sobre o impacto violento da 
escravidão racial na sociedade contemporânea, Gilroy 
afirma que uma parte muito expressiva da novidade que 
representa o pós-moderno se oblitera de forma 
inexorável. Isto se verifica quando tal inovação é 
analisada sob a perspectiva histórica que representou os 
encontros entre europeus e aqueles que eles 
conquistaram, mataram e escravizaram de forma brutal e 
inconsequente. Assim, a periodização proposta pelo autor 
se torna essencial para compreensão da categoria de raça 
em si mesma, assim como da gênese do desenvolvimento 
da ideologia racista. Para ele: “Esta questão é pertinente, 
acima de tudo, na elaboração de uma interpretação das 
origens e da evolução da política negra”.46 Se a inclusão 
dos processos de racialização que deram origem ao 
estado social, político e econômico das sociedades 
ocidentais contemporâneas é importante segundo as 
hipóteses levantadas pelo autor, acreditamos que tais 
esforços historiográficos devem seguir os próprios 
caminhos de sua superação. Daí a importância de uma 
nova periodização do moderno e do pós-moderno para a 
 
46 Gilroy. Op. Cit. P. 106. 
46 
 
história do negro no ocidente e da sua narrativa. Propõe o 
autor a inclusão, de forma racional e despida de 
preconceitos, da participação efetiva dos afro-americanos 
na história para além das relações de dominação e 
subordinação entre povos da Europa e o resto do mundo. 
De acordo com nosso pensamento, é de vital 
importância a inclusão efetiva da participação dos afro-
brasileiros na história do Brasil superando, desta forma, a 
incoerência de uma suposta “história do negro no Brasil”. 
Ora, este maniqueísmo historiográfico coloca em 
condição de subordinação a presença dos negros no 
Brasil, perpetuando no campo das ideias as pressões 
impostas pelo racismo, uma virtual e nefasta construção 
ideológica iluminista, como nos lembra Paul Gilroy. Daí 
a necessidade urgente de mudança deste paradigma 
historiográfico, qual seja pensar o negro como parte 
integrante de nossa história, e não como complemento, 
um mero “aparte” desta. 
Gilroy se preocupa com a evolução do racismo 
científico para formas culturais novas, um tipo mais 
complexo de racismo gestado no pós-guerra, em lugar dahierarquia biológica simples tratada pelo cientificismo no 
século da razão. Para ele o racismo científico, 
propugnado em meados do século XIX, foi o produto 
intelectual mais durável da modernidade. Como vimos, a 
questão da dominação racial e suas consequências não 
faz parte da agenda de debates da modernidade. Em seu 
lugar, afirma ele, aparece uma modernidade inocente 
47 
 
que discute a vida feliz pós-iluminista em Paris, Berlim 
ou Londres. Conforme suas palavras: 
 
Esses lugares europeus são prontamente 
purgados de qualquer traço dos povos sem 
história, cujas vidas degredadas poderiam 
levantar questões incômodas sobre os limites 
do humanismo burguês. A famosa pergunta de 
Montesquieu ‘como pode alguém ser persa?’ 
permanece obstinada e deliberadamente sem 
resposta.47 
 
Os processos nefastos do racismo explicam, em 
certas medidas, a atmosfera conflituosa e a construção 
ideológica do estranhamento em relação ao “outro” 
presentes nas relações que se estabelecem entre as 
diferentes etnias que compõem nossa sociedade. Sob 
este prisma, a pergunta de Montesquieu, “como pode 
alguém ser persa” certamente não encontrará resposta 
satisfatória, constituindo-se, talvez, em uma 
impossibilidade. Esta condição singular, que foi 
percebida por Stuart Hall com relação às comunidades 
na diáspora, é fundamental para o entendimento dos 
processos de autoidentificação étnica pelas vias culturais. 
Numa visão um pouco simplista das formulações deste 
pensador, quando saímos de nosso lugar de origem, 
perdemos a condição do retorno a ele ao mesmo tempo 
 
47 Gilroy. Op. Cit. P. 107. 
48 
 
em que no local de destino somos considerados 
estrangeiros.48 Característica dos tempos pós-modernos, 
em função dos intensos movimentos migratórios, a 
identidade nesta condição única só poderia ser 
conformada pelas vias do conceito da diáspora. 
Desterritorializados de seus lugares de origem, os 
descendentes dos africanos escravizados recriaram, na 
diáspora, um modo de vida que busca na superação do 
fator raça a saída para suas demandas políticas, sociais, 
assim como econômicas, delimitando-se, desta forma, o 
lugar de fronteira entre o “nós” e os “outros”. 
 Jürgen Habermas49, citado por Gilroy, em suas 
obras foi hábil defensor do potencial democrático da 
modernidade. No entanto Habermas não atenta para o 
fato de que os ideais iluministas não consideravam a 
questão da raça, central no pensamento de Gilroy em 
cujos conceitos acerca da escravidão racial destaca-se 
uma profunda contradição. Para ele, existe uma frágil 
percepção de que a universalidade e a racionalidade da 
Europa e da América iluministas: “[...] foram usadas 
mais para sustentar e transplantar do que para erradicar 
uma ordem de diferença racial herdada da era pré-
 
48 Essa afirmação não pode ser extensiva a todos os grupos sociais, 
em especial levando-se em conta a denominada ‘diáspora gaúcha’ 
no norte de Mato Grosso, ainda que para o contexto de investigação 
dessa pesquisa essa afirmação seja procedente. 
49 Jürgen Habermas é considerado como importante filósofo e 
representante da Escola de Frankfurt, atuando como assistente do 
também filósofo e sociólogo Theodor Adorno. 
49 
 
moderna”.50 Como vimos na referida crítica, os 
pensadores da modernidade, em sua grande maioria, não 
observaram a importante questão da escravidão racial 
como um dos elementos que a constitui e lhe confere 
condição privilegiada nas vias das grandes inovações do 
mundo pós-guerras. Desta forma, contribuem com os 
continuísmos históricos, presentes nas políticas 
socioculturais, capazes de fazer sombra à importante 
movimentação das comunidades negras ao mesmo 
tempo em que legitima as relações de poder no seu 
interior. 
Paul Gilroy utiliza-se do pensamento de 
Frederick Douglass, intelectual e ativista político de 
meados do século XIX, considerado pai do 
“nacionalismo negro”, pois entre grandes pensadores do 
Atlântico negro51 foi o único marcado por sua condição 
 
50 Gilroy. Op. Cit. P. 114. 
51 Refere-se Gilroy à Martin Delany, importante ativista político de 
sua época, um dos primeiros ideólogos do afrocentrismo, 
explorador, conferencista, editor de jornal, correspondente, major 
das forças armadas dos EUA, autor de romance e diversos folhetos; 
Edward Wilmot Blyden considerado o pai do Pan-Africanismo, foi 
educador, escritor, diplomata e político, além de idealizar o que 
chamou de “etiopianismo”, baseado no sionismo judeu, um lugar 
na África para onde poderiam retornar os afro-americanos; 
Alexander Crummell foi um sacerdote episcopal nos EUA, também 
defensor do Pan-Africanismo, militou à favor da abolição da 
escravidão. Acrescentamos à lista dos notáveis pensadores negros do 
Atlântico Negro, citada por Gilroy, Abdias do Nascimento, 
certamente um dos maiores defensores dos negros no Brasil. 
Participou da Frente Negra Brasileira, do movimento integralista, 
foi ator e diretor teatral tendo criado o Teatro dos Sentenciados, 
50 
 
de ex-escravo, fator que lhe confere posição privilegiada 
no estudo da escravidão. Em sua complexa relação com 
a modernidade, evocava o iluminismo maior que 
supostamente traria um pouco de luz para a escuridão 
ética da escravidão. Para ele a plantation escravista era 
marcada pelo arcaísmo anti-modernista. Gilroy cita uma 
passagem de Douglass na sua clássica obra My bondage 
and my freedom (Minha escravidão e minha liberdade): 
 
A plantation é uma pequena nação em si 
mesma, tendo seu idioma próprio, suas regras, 
regulamentos e costumes. As leis e 
instituições do Estado aparentemente não a 
afetam em parte alguma. As dificuldades que 
surgem aqui não são resolvidas pelo poder 
civil do Estado.52 
 
Douglass entendia a plantation escravista como 
uma própria antinomia da modernidade, um sistema 
atrasado, pré-capitalista e comparável às relações de 
trabalho pré-modernas da Europa feudal. Ele foi além ao 
afirmar que junto ao cristianismo, com a ideologia da 
sujeição escrava que não fez outra coisa senão servir à 
 
palco que revelou grandes nomes da dramaturgia brasileira como 
Ruth de Souza e Léa Garcia, foi também professor emérito da 
Universidade do Estado de Nova Iorque, doutor honoris causa por 
diversas universidades, indicado ao Prêmio Nobel em 2009, e ex-
senador da República. 
52 Gilroy. Op. Cit. P. 49. 
51 
 
causa burguesa, a plantation significava estagnação, 
quando não recuo, que encerrava a civilização na parte 
externa do mundo iluminista. 
Concordamos com Douglass em sua evocação da 
essência do iluminismo, não obstante, convém lembrar 
que este movimento produzido pela aristocracia do 
pensamento europeu setecentista possui uma relação 
ambígua com relação aos outros povos e outras classes 
sociais. Por outro lado, foi com as riquezas produzidas 
com o trabalho escravo, e a acumulação primitiva de 
capital, que se tornou possível o desenvolvimento desta 
elite desde o século das luzes. Colaborando com a ideia 
dos continuísmos históricos de Gilroy, vale lembrar que 
o trabalho análogo ao escravo nos campos brasileiros, 
conforme nos lembra José de Souza Martins, é utilizado 
sem grandes problemas por uma seleta classe de 
latifundiários. Ou seja, o que interessa ao capital é a 
maximização dos lucros, não importando os meios, mas 
sim os objetivos. Neste contexto específico, verifica-se 
uma profunda contradição. De um lado, grandes 
proprietários do agronegócio que se ufanam de 
pertencerem a uma sociedade democrática e pós-
moderna utilizando-se, em alguns casos, de mão-de-obra 
semiescrava,- quase sempre com financiamento 
público, com incentivos e isenções fiscais -, enquanto 
desfrutam sem maiores problemas suas riquezas. 
Se, como vimos acima, a ideologia racista criou 
um sistema eficiente de controle e dominação nas 
plantations escravistas no Sul dos Estados Unidos, por 
52 
 
outro lado através das revoltas, uma contraparte do 
próprio sistema, os afro-americanos escreveram um 
capítulo crucial nos interstícios do longo período da 
escravidão naquele país. Mesmo que não tão expressivas 
quanto as revoltas ocorridas na Jamaica, São Domingos 
(atual Haiti), Suriname, Cuba e também no Brasil, 
aqueles africanos escravizados demonstraram a 
impossibilidade da sujeição total ao regime escravocrata, 
conforme assevera Genovese. 
Para Eugene Dominick Genovese53 as revoltas de 
escravos nas Américas moldaram o caráter democrático 
das lutas europeias exercendo, ao mesmo tempo, efetiva 
participação na conformação do mundo moderno. 
Lembra-nos Genovese que nos séculos XVII e XVIII, 
período de maior incidência das rebeliões escravas, os 
africanos escravizados lutaram por seu afastamento do 
regime escravocrata. Assim como pela recriação de um 
modo de vida específico gestado no âmbito da memória 
ancestral da África, uma africanização sociocultural, 
portanto, na dinâmica turbulenta da diáspora negra. 
Estas rebeliões assumiram caráter revolucionário 
principalmente após a era das revoluções levando, em 
alguns casos específicos, como em São Domingos, à 
contestação da própria hegemonia da classe senhorial. 
Entende o autor que a história da revolta dos escravos foi 
a maior testemunha do papel integral da escravidão na 
 
53 Eugene Dominick Genovese é professor de História na 
Universidade de Rochester, editor da Marxist Perspectives, membro 
da Academia de Artes e Ciências (EUA) e ex-presidente da 
Organização de Historiadores Americanos. 
53 
 
transição do senhorialismo para o capitalismo. Nenhum 
outro movimento social, assevera: “[...] pode iluminar 
melhor o rico e contraditório processo mediante o qual 
os escravos moldaram a própria história, no contexto dos 
modos de produção dominantes.”54 Por vias 
restauracionistas, na maioria dos casos, inúmeras 
populações escravizadas na América se insurgiram 
contra a ordem colonial e os poderes senhoriais 
apoiando-se, quase sempre, em suas identidades 
culturais numa clara rejeição à opressão. De acordo com 
Genovese, quando tais revoltas não resultaram em 
fracassos e numerosas perdas de vidas, levaram à 
formação de comunidades quilombolas que utilizavam, 
também, do recurso de mão-de-obra escrava. Para 
consolidação de tal empresa, os insurgentes quilombolas 
empreenderam: 
 
Acordos com governos coloniais ou classes 
dirigentes que ainda aceitavam uma visão 
particularista da ordem social, 
hierarquicamente organizada. Assim, antes do 
triunfo do modo capitalista de produção e de 
uma ideologia burguesa coesiva, os escravos 
podiam usar o mundo colonial a fim de 
defender suas concepções tradicionais, 
relativas aos próprios direitos.55 
 
54 Genovese, Eugene Dominick. Da rebelião à revolução: as revoltas 
de escravos negros nas Américas. São Paulo: Global, 1983. P. 17. 
55 Id. Ibidem. 
54 
 
Genovese entende que boa parte das revoltas 
constituiu-se em refluxo à extrema violência que 
representava o regime senhorial, uma baliza defendida 
como contraparte às injustiças sofridas pelos africanos 
escravizados. Outras revoltas, de acordo com autores 
analisados por Genovese, objetivavam claramente a fuga 
da opressão e a criação de modos de vida tradicionais, 
uma ordem social arcaica, percebida como africanização 
dos costumes. Esta ideia é contestada pelo autor que a 
compreende como uma criação legitimamente afro-
americana.56 A partir de finais do século XVIII e durante 
 
56 Concordamos com Eugene Genovese no que se refere à 
impossibilidade da recriação de modos de vida autenticamente 
africanizados na diáspora negra. Aliás, a oposição manifestada pelo 
autor contra esta visão corresponde à de alguns pensadores 
brasileiros, tais como Mario Maestri e Adelmir Fiabani, para citar 
alguns exemplos, em cujas obras se percebe facilmente a clara 
oposição à visão culturalista com relação à resistência escrava no 
Brasil. De acordo com a visão culturalista, o africano escravizado 
fugia por não conseguir adaptar-se à cultura do branco, buscando 
nos espaços de fuga a criação de um ambiente legitimamente 
africanizado. Ora, é exatamente contra esta ideia “adocicada” das 
relações entre senhores e escravos que autores não culturalistas 
situam as suas análises. Para estes, fugia-se, antes de tudo, para 
conquistar-se a liberdade e a liberação de sua própria mão-de-obra. 
Sem dispêndio de muito esforço intelectual, pode-se estender estas 
premissas conceituais a outras situações distintas como, por 
exemplo, ao modo de vida dos ex-escravos que no pós-abolição 
deram origem à Associação da Mutuca. Todos os testemunhos orais 
colhidos em nossas pesquisas de campo apontam para a constituição 
de um modo de vida camponês, com suas relações de 
reciprocidade, uso comum da terra, hierarquias centradas nos 
critérios de idade, entre outros. Neste caso, assim como apontado 
55 
 
o século XIX, eclodiram revoltas que visavam, sobretudo, 
à total eliminação do regime escravocrata. Na visão do 
autor, constituía-se em nova forma de enfrentamento ao 
sistema hegemônico, condição esta totalmente 
desconhecida pelos escravos do mundo antigo. 
Pretendia-se, assim: “[...] garantir para os povos negros 
um lugar no sistema moderno das nações-estado”.57 
Desta forma, assevera, as revoltas no Velho Sul dos 
Estados Unidos novecentista integraram-se ao conjunto 
de transformações das relações entre classes e raças do 
Hemisfério Ocidental. Ao contrário do que ocorreu nas 
ilhas do Caribe e na América do Sul, o regime da 
escravidão no Velho Sul dos EUA encontrou seu apogeu 
após a proibição do tráfico negreiro no primeiro quartel 
do século XIX. Foi neste contexto histórico que a 
política paternalista tornou-se vital para a manutenção 
do regime, assim: 
 
A perspectiva de lucros inesperados surgiu no 
momento exato em que se tornou necessário 
melhorar as condições materiais da vida dos 
escravos, a fim de garantir uma taxa adequada 
de reprodução. Essa conjuntura revelou-se 
decisiva para o florescimento do paternalismo 
e para o processo que levou os escravos a uma 
 
por Genovese: “uma criação legitimamente afro-brasileira”, 
identidades cujo entendimento só se torna possível se pensadas a 
partir da dinâmica da diáspora negra num eterno continuum 
espaço/temporal. 
57 Genovese. Op. Cit. P. 27. 
56 
 
acomodação paulatina com o regime, embora 
essa acomodação fosse contraditória e 
violenta.58 
 
Em Maryland e Virgínia (EUA), contudo, as 
políticas paternalistas foram implementadas pouco antes 
do fim do tráfico negreiro em função, principalmente, 
da queda dos preços do fumo e da expansão comercial 
do açúcar, colaborando para o aumento dos preços para 
aquisição de cativos. Diferente do sistema de controle 
existente nas fazendas produtoras de açúcar do Caribe 
onde, quase sempre, não contavam com a presença física 
dos senhores, os plantadores de fumo no Sul dos EUA 
mantinham estreitas relações com seus escravos. Desta 
forma, as bases de solidificação do paternalismo regional 
se tornaram mais evidentes. Isto se verificou na medida 
em que a proporção de escravos crioulos suplantou a dos 
escravos nascidos na África, tendo em vista uma maior 
aproximação cultural entre aqueles

Continue navegando