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A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 1 Agradecimentos Como mãe de uma criança que foi submetida a dez cirurgias em três anos, gostaria em primeiro lugar de agradecer aos médicos e aos enfermeiros que por rotina lidam com os piores momentos que uma família pode enfrentar e suavizam as arestas: ao Dr. Roland Eavey e aos enfermeiros pediátricos do Mass. Olhos e Ouvidos - obrigada pelo final feliz da vida real. Enquanto escrevia Para a Minha Irmã, como sempre, apercebi-me do pouco que sei, e do quanto me apoio na experiência e no intelecto de outros. Por me permitirem inspirar-me nas suas vidas, pessoal e profissionalmente, ou por sugestões de puro gênio literário: obrigada Jennifer Sternick, Sherry Fritzsche, Giancarlo Cicchetti, Greg Kachejian, Dr. Vincent Guarerra, Dr. Richard Stone, Dr. Farid Boulad, Dr. Eric Terman, Dr. James Umlas, Wyatt Fox, Andréa Greene e Dr. Michael Goldman, Lori Thompson, Synthia Follensbee, Robin Kall, Mary Ann McKenney, Harriet St. Laurent, April Murdoch, Aidan Curran, Jane Picoult e JoAnn Mapson. Por me tornarem ajudante por uma noite, e parte de uma equipa de bombeiros voluntários: agradeço a Michael Clark, a Dave Hautanemi, a Richard "Pachorrento" Low e a Jim Belanger (que também merece uma medalha de ouro por editar os meus erros). Por me apoiarem tanto, agradeço a Carolyn Reidy, Judith Curr, Camille McDuffie, Laura Mullen, Sarah Branham, Karen Mender, Shannon McKenna, Paolo Pepe, Seale Ballenger, Anne Harris e ao indómito departamento comercial da Atria. Por ser a primeira a acreditar em mim, os meus sinceros agradecimentos a Laura Gross. Pela orientação extraordinária e por me conceder liberdade para levantar vôo, agradeço sinceramente a Emily Bestler. A Scott e Amanda MacLellan e a Dave Cranmer - que me proporcionaram uma visão dos triunfos e das tragédias de se viver o dia-a-dia com uma doença fatal - obrigada pela vossa generosidade, e desejos de um futuro longo e com saúde. E, como sempre, agradeço ao Kyle, ao Jake, ao Sammy e sobretudo ao Tim, por serem a coisa mais importante na minha vida. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 2 Prólogo Ninguém dá início a uma guerra - ou melhor, ninguém no seu juízo perfeito deve fazê-lo - sem que antes esteja claro na sua mente o que pretende alcançar através dessa guerra e como pretende conduzi-la. — CARL VON CLAUSEWITZ, Vom Kríege Nas minhas primeiras memórias, tenho três anos e estou a tentar matar a minha irmã. Por vezes a lembrança é tão viva que me consigo lembrar da comichão que a fronha da almofada fazia debaixo da minha mão, da ponta aguçada do seu nariz contra a minha palma. Ela não tinha hipóteses face a mim, é claro, mas mesmo assim não resultou. O meu pai apareceu, preparando a casa para a noite, e salvou-a. Ele levou-me para a minha cama. — Isto- disse-me ele- nunca aconteceu. Quando crescemos, eu parecia não existir, excepto em relação a ela. Observava-a enquanto dormia do outro lado do quarto, com uma longa sombra a unir as nossas camas, e contava as maneiras. Veneno, deitado em cima dos seus cereais. Uma corrente forte na praia. Um relâmpago. No entanto, acabei por não chegar a matar a minha irmã. Ela fê-lo sozinha. Ou pelo menos é isso que digo a mim mesma. SEGUNDA-FEIRA Irmão, sou fogo A surgir do fundo do oceano. Nunca irei juntar-me a ti, irmão Pelo menos, durante anos; Talvez milhares de anos, irmão. Depois irei aquecer-te, Abraçar-te, envolver-te em círculos, Usar-te e mudar-te Talvez milhares de anos, irmão. — CARL SANDBURG, "Kin" A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 3 Anna Quando era pequena, para mim o grande mistério não era como se faziam os bebês, mas porquê. A mecânica eu percebia - o meu irmão mais velho, Jesse, tinha-me informado - embora na altura eu estivesse certa de que ele tinha ouvido metade mal. Os outros miúdos da minha idade estavam ocupados a procurar as palavras pénis e vagina no dicionário da turma quando o professor estava de costas, mas eu prestava atenção a pormenores diferentes. Como por que razão algumas mães tinham apenas um filho, enquanto outras famílias pareciam multiplicar-se à frente dos nossos olhos. Ou como a rapariga nova na escola, Sedona, disse para toda a gente ouvir que o seu nome vinha do sítio onde os seus pais estavam a passar férias quando a fizeram (- Ainda bem que não estavam em Jersey City - costumava o meu pai dizer). Agora que tenho treze anos, estas diferenças tornaram-se ainda mais complicadas: a aluna do oitavo ano que abandonou a escola porque se meteu em sarilhos; uma vizinha que ficou grávida na esperança de que isso impedisse o marido de pedir o divórcio. É o que eu digo, se os extraterrestres viessem à Terra hoje e observassem com atenção porque é que os bebês nascem, chegariam à conclusão de que a maioria das pessoas tem bebês acidentalmente, ou porque bebeu de mais numa determinada noite, ou porque os anticoncepcionais não são cem por cento eficazes, ou por milhares de outras razões que na realidade não são muito lisonjeiras. Por outro lado, eu nasci para um fim muito específico. Não fui o resultado de uma garrafa de vinho barato, ou de uma lua cheia, ou de um entusiasmo momentâneo. Nasci porque um cientista conseguiu ligar os óvulos da minha mãe e os espermatozóides do meu pai para criar uma combinação específica de material genético precioso. De facto, quando o Jesse me contou como é que se faziam os bebês e eu, a grande céptica, decidi perguntar aos meus pais a verdade, ouvi aquilo que não queria. Eles fizeram-me sentar e contaram-me todas as coisas habituais, é claro - mas também me explicaram que me tinham escolhido especificamente a mim quando era um pequeno embrião, porque eu poderia salvar a minha irmã Kate. A minha mãe fez questão de me dizer que ainda gostava mais de mim porque sabia exactamente o que ia esperar. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 4 No entanto, fez-me pensar no que teria acontecido se a minha irmã tivesse sido saudável. Se calhar ainda estaria a flutuar no Céu ou onde quer que fosse, à espera de me ligar a um corpo para passar algum tempo na Terra. De certeza que não faria parte desta família. Vêem, ao contrário do resto do mundo livre, eu não cheguei aqui acidentalmente. E se os nossos pais nos tiverem por uma razão, então é bom que essa razão exista. Porque assim que ela desaparecer, nós desaparecemos também. As lojas de penhores podem estar cheias de tralha mas são também um terreno fértil para histórias, se quiserem saber a minha opinião, embora não a tenham pedido. O que terá acontecido para que alguém negoceie um Solitário de Diamante Nunca Antes Usado? Quem precisaria tanto de dinheiro que fosse vender um ursinho de peluche sem um olho? Enquanto me dirijo ao balcão, interrogo-me se alguém irá alguma vez olhar para o medalhão do qual me estou prestes a desfazer e fará estas mesmas perguntas. O homem que está na caixa registadora tem um nariz da forma de um nabo, e olhos tão encovados que não consigo imaginar como pode ver suficientemente bem para gerir o seu negócio. — Deseja alguma coisa? - pergunta. A única coisa que eu posso fazer para não dar meia volta e sair porta fora é fingir que entrei por engano. O que me mantém firme é saber que não sou a primeira pessoa a estar à frente deste balcão a segurar na única coisa no mundo da qual nunca julguei desfazer-me. — Tenho uma coisa para vender - digo-lhe. — Será que tenho de adivinhar o que é? - Oh - engolindo, tiro o medalhão do bolso das minhas calças de ganga; o coração cai em cima do balcão numa poça formada pelo seu próprio fio. - É de ouro de catorze quilates- digo eu com uma voz esganiçada. - Quase não foi usado - é mentira; até esta manhã, já não o tirava há sete anos. O meu pai deu-mo quando eu tinha seis anos, depois da colheita de medula óssea, porque ele tinha dito que alguém que desse à sua irmã um presente tão importante merecia também receber um. Ao vê-lo ali, em cima do balcão, o meu pescoço sente-se arrepiado e nu. O dono coloca uma lupa em frente ao olho, o que faz com que pareça ter um tamanho quase normal. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 5 — Dou-lhe vinte. — Dólares? - Não, pesos. O que é que acha? - Vale cinco vezes mais! - ponho-me eu a adivinhar. — Não sou eu quem precisa do dinheiro - diz encolhendo os ombros. Agarro no medalhão, resignada a fechar negócio, e acontece uma coisa muito estranha - a minha mão pura e simplesmente fecha-se com força como um instrumento de desencarceramento. O meu rosto fica vermelho do esforço de abrir os dedos. Parece que demora o que parece ser uma hora para que aquele medalhão caia na mão estendida do dono. Os seus olhos fixam-se no meu rosto, mais suaves agora. — Diga-lhes que o perdeu - sugere ele, dá o conselho de graça. Se o Sr. Webster tivesse decidido colocar a palavra aberração no seu dicionário, Anna Fitzgerald seria a melhor definição que ele lhe poderia atribuir. Não se trata apenas da minha aparência: escanzelada como uma refugiada sem peito absolutamente nenhum, com cabelo cor de terra, sardas nas bochechas como no jogo de unir os pontos que, deixem-me que lhes diga, não se atenuam com sumo de limão nem com protector solar, nem mesmo, infelizmente, com lixa. Não, Deus estava obviamente de mau humor no dia em que nasci, porque a esta fabulosa combinação física juntou um contexto mais abrangente - a família em que nasci. Os meus pais tentaram fazer com que tudo fosse normal, mas esse é um termo relativo. A verdade é que eu nunca cheguei a ser uma criança. Para ser sincera, nem a Kate nem o Jesse foram. Acho que talvez o meu irmão tenha tido o seu lugar ao sol durante os quatro anos da sua vida antes de ter sido diagnosticada a doença de Kate mas, desde essa altura, temos estado demasiado ocupados a olhar para trás para corrermos em frente e crescermos. Sabem, a maior parte das crianças pequenas pensa que é como os personagens dos desenhos animados - se uma bigorna lhe cair na cabeça, consegue sair do passeio e continuar a andar? bom, eu nunca acreditei nisso. Como poderia acreditar, quando praticamente pusemos um lugar na mesa de jantar para a Morte? A Kate tem leucemia promielocítica aguda. Na realidade, isso não é bem assim - neste momento ela não a tem, mas está a hibernar debaixo da sua pele como um urso, até decidir rugir de novo. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 6 Foi diagnosticada quando ela tinha dois anos; agora tem dezasseis. Recaída molecular granulócito e cateter depunção venosa- estas palavras fazem parte do meu vocabulário, embora nunca as venha a encontrar em nenhum exame de admissão à universidade. Eu sou uma dadora alogeneica - uma irmã totalmente compatível. Quando a Kate necessita de leucócitos, ou de células estaminais, ou de medula óssea para enganar o seu corpo, fazendo-o pensar que é saudável, eu forneço-os. Quase sempre que a Kate é hospitalizada eu acabo por ir para o hospital também. Nada disto quer dizer alguma coisa, excepto que não devem acreditar no que ouvem a meu respeito, muito menos no que eu própria vos conto. Enquanto subo as escadas, a minha mãe sai do seu quarto com um novo vestido de baile. — Ah - diz ela, virando-se de costas para mim. - Precisamente a rapariga que eu queria encontrar. Eu corro o fecho e observo-a a rodopiar. A minha mãe poderia ser bonita, se caísse de pára-quedas na vida de outra pessoa. Tem cabelos longos e escuros, e as clavículas elegantes de uma princesa mas os cantos da sua boca estão descaídos, como se tivesse engolido notícias amargas. Ela não tem muito tempo livre, visto que um plano é algo que pode alterar-se drasticamente se a minha irmã tiver um hematoma ou uma hemorragia nasal, mas aquele que tem gasta-o no Bluefly. encomendando vestidos de noite ridiculamente requintados para sítios aonde nunca irá. — O que achas? - pergunta ela. O vestido tem todas as cores do pôr do Sol, e é feito de um tecido que faz ruído quando ela se move. Não tem áleas; é o que uma estrela poderia usar bamboleando-se ao longo de uma passadeira vermelha - nada de acordo com o código de vestuário para uma casa suburbana situada em Upper Darby. RI. A minha mãe enrola o cabelo num nó e segura-o. Em cima da sua cama estão outros três vestidos - um discreto e preto, um com missangas e um que parece inacreditavelmente pequeno. — Pareces... Cansada. A palavra borbulha mesmo debaixo dos meus lábios. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 7 A minha mãe fica totalmente imóvel, e eu interrogo-me se a terei dito sem querer. Levanta uma das mãos, fazendo-me calar, com a orelha virada para a porta aberta. — Ouviste aquilo? - O quê? - A Kate. — Não ouvi nada. Mas ela não confia na minha palavra, porque no que diz respeito à Kate ela não confia na palavra de ninguém. Dirige-se lá para cima e abre a porta do nosso quarto, encontrando a minha irmã histérica na sua cama e, de um momento para o outro, o mundo volta a ruir. O meu pai, um astrônomo de trazer por casa, tentou explicar-me os buracos negros, como são tão pesados que absorvem tudo, até a luz, atraindo-a para o seu centro. Momentos como este são do mesmo tipo do vácuo; não importa ao que nos agarramos, acabamos sempre por ser sugados. — Kate! - a minha mãe afunda-se em direcção ao chão, com aquela estúpida saia como uma nuvem à sua volta. - Kate, querida, o que é que te dói? A Kate agarra uma almofada contra o estômago, e as lágrimas continuam a correr-lhe pelas faces. O seu cabelo pálido está colado ao rosto em madeixas molhadas; a sua respiração está demasiado rápida. Fico paralisada à porta do meu próprio quarto, à espera de instruções: Telefona ao Pai. Telefona para o 911. Telefona ao Dr. Chance. A minha mãe tenta arrancar uma explicação melhor à Kate. — É o Preston - soluça ela. - Ele vai deixar a Serena de vez. É nesta altura que reparamos na televisão. No ecrã, um borracho louro lança um olhar ansioso a uma mulher que chora quase tanto como a minha irmã, e depois bate com a porta. — Mas o que é que te dói? - pergunta a minha mãe, certa de que tem de haver algo para além disto. — Oh, meu Deus - diz a Kate -, fazes alguma idéia do que passaram a Serena e o Preston? Fazes? Aquele punho cerrado dentro de mim relaxa, agora que sei que está tudo bem. Normal, na nossa casa, é como um cobertor demasiado pequeno para uma cama - às vezes tapa-nos perfeitamente, e outras vezes deixa-nos com frio e a tremer; e o pior de tudo é nunca sabermos qual das duas coisas vai acontecer. Sento-me ao fundo da cama da Kate. Embora tenha apenas treze anos, sou mais alta do que ela e de vez em quando as A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 8 pessoas acham erradamente que sou a irmã mais velha. Em alturas diferentes neste Verão ela foi doida pelo Callahan, pelo Wyatt e pelo Liam, os actores principais desta novela. Agora, acho que é a vez do Preston. - Houve aquele susto do rapto - comunico eu. Eu segui de facto aquela história; a Kate obrigou-me a gravar o programa durante as suas sessões de diálise. — E aquela vez em que ela quase se casou com o gêmeo dele por engano - acrescenta a Kate. — Não te esqueças de quando ele morreu no acidente de barco Pelo menos, durante dois meses - a minha mãe entra na conversa, e eu lembro-me de que ela também costumavaver esta novela sentada ao lado da Kate, no hospital. Pela primeira vez, a Kate parece reparar na roupa da mãe. — O que tens vestido! - Oh. É uma coisa que vou devolver. - Ela põe-se de pé à minha frente para que eu possa abrir o fecho. Esta compulsão de fazer encomendas postais, no caso de outra mãe qualquer seria um sinal para começar a fazer terapia; no caso da minha mãe seria provavelmente considerada como um escape saudável. Interrogo-me se não será vestir a pele de alguém por uns momentos, ou se será a opção de poder devolver uma circunstância que não lhe assenta bem. Ela olha intensamente para a Kate. - Tens a certeza de que não te dói nada? Depois de a minha mãe se ir embora, a Kate afunda-se um bocadinho. É a única maneira de descrevê-lo - a rapidez com que a cor se esvai do seu rosto, a forma como ela desaparece contra as almofadas. Quando fica mais doente, esmorece um pouco mais até que receio que um dia eu acorde e não a consiga ver. — Afasta-te - manda a Kate. - Estás a tapar a imagem. Então vou sentar-me na minha cama. — São só as cenas dos próximos episódios. — bom, se eu morrer esta noite, quero saber o que vou perder. Ajeito as minhas almofadas debaixo da cabeça. A Kate, como de costume, trocou-as para ficar com todas as que são mais macias e que não parecem pedras debaixo do pescoço. Ela merece supostamente isto, por ser três anos mais velha do que eu, ou por ser doente, ou porque a A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 9 Lua está em Aquário - há sempre uma razão. Eu semicerro os olhos em direcção à televisão, desejando poder percorrer os canais, mas sabendo que não tenho hipóteses. — O Preston parece feito de plástico. — Então porque é que eu ontem à noite te ouvi dizer o nome dele para a almofada? - Cala-te - digo eu. — Cala-te tu - e depois a Kate sorri para mim. - De qualquer forma ele deve ser gay. É um desperdício, tendo em conta que as irmãs Fitzgerald são... - retraindo-se, fica a meio da frase e eu rebolo-me para o pé dela. — Kate? - Não é nada - diz esfregando o fundo das costas. São os seus rins. Queres que vá chamar a mãe? - Ainda não. chega-se para o intervalo entre as nossas camas, que estão unidas apenas o suficiente para nos podermos tocar se ambas quisermos. Eu também estendo a minha mão. Quando éramos pequenas fazíamos esta ponte e tentávamos ver quantas Barbies conseguíamos equilibrar em cima dela. Ultimamente, tenho tido pesadelos em que sou cortada em tantos pedaços que não resta nada de mim para ser reconstituído. O meu pai diz que um incêndio acaba por se extinguir por si, a não ser que se abra uma janela dando-lhe combustível. Acho que é isso que estou a fazer, quando penso bem no assunto; mas, por outro lado, o meu pai também diz que quando as chamas nos lambem os calcanhares temos de deitar abaixo uma parede ou duas se quisermos escapar. Portanto, quando a Kate adormece devido aos seus remédios, vou buscar a bolsa de cabedal que guardo entre o colchão e o estrado e vou para a casa de banho para ter privacidade. Sei que a Kate andou a bisbilhotar - entalei um fio vermelho entre os dentes do fecho para saber quem meteu o nariz nas minhas coisas sem autorização, mas embora o fio se tenha partido, não falta nada lá dentro. Ponho a água da banheira a correr para que pareça que estou lá por alguma razão, e sento-me no chão para contar. Se contar com os vinte dólares da loja de penhores, tenho 136,87 dólares. Não vai chegar, mas tem de haver alguma maneira de contornar a questão. O Jesse não tinha 2.900 dólares quando comprou o seu Jeep mais do que usado, e o banco concedeu-lhe algum tipo de empréstimo. É claro, os meus pais também tiveram de assinar os documentos, e eu A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 10 duvido que eles estejam dispostos a fazê-lo por mim, dadas as circunstâncias. Conto o dinheiro pela segunda vez, no caso de as notas se terem multiplicado miraculosamente, mas matemática é matemática e o total é o mesmo. E em seguida leio os recortes de jornal. Campbell Alexander. É um nome estúpido, na minha opinião. Parece uma bebida demasiado cara, ou uma empresa de corretagem. Mas não podemos negar o currículo do homem. Para irmos ao quarto do meu irmão, temos de facto de sair de casa, que é exactamente como ele gosta. Quando o Jesse fez dezasseis anos mudou-se para o sótão por cima da garagem - uma combinação perfeita, visto que ele não queria que os meus pais vissem o que ele fazia, nem os meus pais queriam realmente ver. A bloquear as escadas que conduzem ao seu quarto estão quatro pneus de neve, uma pequena parede de cartões, e uma secretária de carvalho apoiada num dos lados. Por vezes penso que é o próprio Jesse que coloca estes obstáculos, para que chegar até ele seja um desafio maior. Rastejo por cima da desarrumação e subo as escadas, que vibram com os baixos do estéreo do Jesse. Passam quase cinco minutos até que ele me ouça bater à porta. — O que é? - diz ele bruscamente, abrindo uma nesga. — Posso entrar? Ele pensa duas vezes e depois recua para me deixar entrar. O quarto é um mar de roupa suja, revistas e embalagens de restos de comida chinesa; cheira a chulé de um patim de hóquei. O único sítio limpo é a prateleira onde o Jesse guarda a sua colecção especial - uma miniatura de prata de um Jaguar, um símbolo da Mercedes, um cavalo da Mustang - ornamentos de capots de automóveis que ele me disse ter encontrado por aí espalhados, embora eu não seja suficientemente burra para acreditar nele. Não me interpretem mal - não é que os meus pais não se importem com o Jesse ou com qualquer problema em que se tenha metido. Só que não têm tempo para se preocupar com isso, porque se trata de um problema situado num nível mais baixo do totem. O Jesse ignora-me, voltando ao que quer que fosse que estava a fazer do outro lado da desarrumação. A minha atenção volta-se para uma panela eléctrica - que A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 11 desapareceu da nossa cozinha há alguns meses - que agora está em cima do televisor do Jesse com um tubo de cobre a sair da sua tampa serpenteando por uma caneca de leite de plástico cheia de gelo, esvaziando para dentro de um frasco de doce de vidro. O Jesse pode ser quase um delinqüente, mas é brilhante. Mesmo quando estou prestes a tocar na geringonça, o Jesse volta-se. — Hei! - quase voa por cima do sofá para me afastar a mão com uma sapatada. - Vais estragar a espiral de condensação. — Isto é o que eu estou a pensar que é? Um sorriso malévolo causa inquietação no seu rosto. — Depende do que pensas que é - ele retira o frasco de doce, e o líquido começa a pingar no tapete. - Prova. Para um alambique tão rudimentar, faz um whiskey caseiro bastante potente. Um inferno percorre tão depressa a minha barriga e as minhas pernas que caio para trás para cima do sofá. — Nojento - digo eu sufocada. Jesse ri e dá um gole também, só que no seu caso desce mais facilmente. — Então o que é que queres de mim? - Como é que sabes que quero alguma coisa? - Porque ninguém vem cá só para fazer uma visita - diz ele, sentado no braço do sofá. - E, se fosse qualquer coisa sobre a Kate, já me tinhas dito. — Mas é sobre a Kate. Mais ou menos - coloco os recortes de jornal na mão do meu irmão; eles explicam muito melhor do que eu alguma vez conseguiria. Ele examina-os e depois olha-me directamente nos olhos. Os dele são de um tom prateado muito pálido, tão surpreendentes que às vezes, quando olha para nós, consegue fazer-nos esquecer completamente o que tencionávamos dizer. — Não desafies o sistema, Anna - diz ele amargamente. - Todos nós sabemos de cor os nossos guiões. A Kate é a Mártir.Eu sou a Causa Perdida. E tu, tu és a Pacificadora. Ele pensa que me conhece, mas isso é válido para ambas as partes - e no que diz respeito ao conflito, o Jesse é um viciado. Eu olho directamente para ele. — Quem disse? O Jesse aceita esperar por mim no parque de estacionamento. Esta é uma das poucas vezes, de que me consigo lembrar, em que ele faz alguma coisa A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 12 que eu lhe tenha pedido. Caminho em volta dirigindo-me à parte da frente do edifício, que tem duas gárgulas a guardarem a entrada. O escritório do Doutor Campbell Alexancler situa-se no terceiro andar. As paredes têm painéis de madeira da cor do pêlo de uma égua castanha e, quando piso o espesso tapete oriental que está no chão, os meus tênis afundam-se dois centímetros e meio. A secretária calça sapatos pretos tão brilhantes que consigo ver o meu rosto neles. Olho de relance para as minhas calças cortadas sem bainha e para os Keds que tatuei a semana passada com Magic Markers quando estava aborrecida. A secretária tem uma pele perfeita, sobrancelhas perfeitas e lábios de mel, e está a utilizá-los para descompor quem quer que esteja do outro lado da linha. — Não é possível que ache que eu vá dizer isso a um juiz. Lá porque você não quer ouvir o Kleman divagar isso não quer dizer que eu tenha de o ouvir... não, na realidade, esse aumento deve-se ao trabalho excepcional que eu faço e às porcarias que aturo todos os dias, e já agora que falamos nisso... - Ela afasta o telefone do ouvido; eu consigo distinguir o ruído da ligação a cair. — Sacana - diz ela por entre dentes, e depois parece aperceber-se de que eu estou ali de pé a um metro de distância. - Deseja alguma coisa? Observa-me dos pés à cabeça, avaliando-me numa escala geral para as primeiras impressões e achando que eu deixo muito a desejar. Levanto o queixo e finjo estar muito mais segura do que na realidade estou. — Tenho uma reunião marcada com o Dr. Alexander. Para as quatro horas. — A sua voz - diz ela. - Ao telefone não parecia ser tão... — Jovem? Ela sorri desconfortavelmente. — Nós não aceitamos casos juvenis, por princípio. Se quiser posso fornecer-lhe os nomes de alguns advogados que exercem a profissão que... Respiro fundo. — Na verdade - interrompo -, está enganada. Smith contra Whately, Edmunds contra o Womens and Infants Hospital e Jerome contra a Diocese de Providence envolviam todos eles litigantes com menos de dezoito anos. Todos eles resultaram em veredictos a favor dos clientes do Dr. Alexander. E isto foi só no ano passado. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 13 A secretária pestaneja a olhar para mim. Em seguida um sorriso lento marca-lhe o rosto, como se tivesse decidido que afinal talvez gostasse de mim. - Pensando melhor, porque é que não espera no seu escritório? - sugere ela, e levanta-se para me indicar o caminho. Mesmo que passe cada minuto do resto da minha vida a ler, acho que nunca chegarei a consumir o número total de palavras que existem por toda a parte nas paredes do escritório do Doutor Campbell Alexander. Faço as contas - se houver cerca de 400 palavras em cada página, e se cada um destes livros de direito tiver 400 páginas, e se cada prateleira tiver vinte livros, e cada estante seis prateleiras - ora, são dezanove milhões de palavras, e isso representa apenas uma parte do escritório. Fico sozinha no escritório o tempo suficiente para reparar que a sua secretária está tão bem arrumada que poderíamos jogar futebol chinês em cima do mata-borrão; que não há nenhuma fotografia de uma mulher, ou de um filho, ou até dele próprio; e que, apesar de o escritório estar impecável, há uma caneca de água no chão. Dou por mim a arranjar explicações: é uma piscina para um exército de formigas. É uma espécie de humidificador primitivo. É uma miragem. Quase me convenci a mim própria desta última, e inclino-me para lhe tocar para ver se é real, quando a porta se abre de repente. Quase caio da cadeira e isso faz com que fique cara a cara com um pastor alemão, que me dardeja com o olhar e em seguida se dirige para a caneca e começa a beber. Campbell Alexander também entra. Tem cabelo preto e é no mínimo da altura do meu pai - um metro e oitenta - com um maxilar em ângulo recto e olhos fixos. Encolhe-se para tirar o casaco do fato e pendura-o cuidadosamente atrás da porta, em seguida saca um ficheiro de dentro de um armário antes de se dirigir para a sua secretária. Nunca chega a estabelecer contacto visual comigo, mas mesmo assim começa a falar. — Não quero biscoitos feitos pelas Escuteiras - diz Campbell Alexander. - Embora você mereça um doce pela sua tenacidade. - sorri da sua própria piada. — Não estou aqui para vender nada. Ele olha para mim com curiosidade, e depois carrega num botão no seu telefone. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 14 — Kerri - diz ele quando a secretária responde. - O que é isto no meu escritório? - Estou aqui para o contratar - digo eu. O advogado larga o botão do intercomunicador. — Não me parece. — Nem sequer sabe se eu tenho um caso. Dou um passo em frente; e o cão também. Pela primeira vez, apercebo-me de que tem um daqueles coletes com uma cruz vermelha, como um São Bernardo que transporta subindo uma montanha gelada. Estendo a mão automaticamente para lhe fazer festas. — Não faça isso - diz Alexander. - O Juiz é um cão de serviço. A minha mão volta para o meu lado. — Mas o senhor não é cego. — Obrigado por me chamar a atenção para esse facto. — Então qual é o seu problema? Assim que digo isso, desejo não o ter dito. Não tinha eu visto a Kate ser perseguida por esta pergunta feita por centenas de pessoas mal- educadas? - Tenho um pulmão artificial - diz Campbell Alexander secamente - e o cão impede-me de chegar demasiado perto de ímanes. Agora, se me conceder o imenso favor de se retirar, a minha secretária indicar-lhe-á o nome de alguém que... Mas eu não me posso ir embora ainda. — É mesmo verdade que processou Deus? - tiro todos os recortes de jornal e aliso-os em cima da sua secretária vazia. Um músculo pulsa na sua face, e em seguida pega no artigo de cima. - Processei a Diocese de Providence, representando uma criança de um dos seus orfanatos que precisava de um tratamento experimental que envolvia tecido embrionário, que eles achavam que violava o Vaticano II. No entanto, dizer que um menino de nove anos processa Deus por ficar com a palha mais curta na vida faz um título muito melhor. Limito-me a olhar fixamente para ele. — Dylan Jerome - admite o advogado - queria processar Deus por não se preocupar o suficiente com ele. Era como se um arco-íris surgisse no meio da grande secretária de mogno. — Dr. Alexander - digo eu -, a minha irmã tem leucemia. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 15 — Lamento. Mas mesmo que eu estivesse disposto a litigar com Deus de novo, que não estou, você não pode apresentar um processo legal em nome de outra pessoa. Há demasiadas coisas para explicar - o meu próprio sangue a passar para as veias da minha irmã; os enfermeiros a segurarem-me para me poderem picar para recolher glóbulos brancos para a Kate; o médico a dizer que não conseguiram o suficiente da primeira vez. As equimoses e a dor profunda nos ossos depois de ter doado a minha medula; as injecções que introduziram mais células estaminais em mim, para que houvesse algumas de reserva para a minha irmã. O facto de eu não estar doente, mas de ser como se estivesse. O facto de a única razão para eu ter nascido ser para servir de objecto de colheitas para a Kate. O facto de, agora mesmo, estar a ser tomada uma decisão importante sobre mim,e de ninguém se ter dado ao trabalho de perguntar à pessoa que mais merecia qual era a sua opinião. Há demasiadas coisas para explicar, e por isso faço o melhor que posso. — Não é Deus. São só os meus pais - digo eu. - Quero processá-los pelo direito ao meu próprio corpo. Campbell Quando só temos um martelo, tudo se assemelha a um prego. Isto é algo que o meu pai, o primeiro Campbell Alexander, costumava dizer; na minha opinião, também é a base do direito civil americano. Dito de uma forma simples, as pessoas que foram empurradas para um canto farão qualquer coisa para abrir caminho de novo para o centro. Para alguns, isso significa dar socos. Para outros, significa instaurar processos legais. E, por isso, estou especialmente grato. Na periferia da minha secretária, a Kerri dispôs as minhas mensagens da forma que eu prefiro - as urgentes escritas em Post-its verdes, os assuntos menos prementes em amarelos, alinhados em colunas bem arranjadas como uma paciência dupla. Há um número de telefone que atrai a minha atenção, e franzo o sobrolho, mudando o Post-it verde para o lado dos amarelos. A sua mãe telefonou quatro vezes! escreveu a Kerri. Pensando melhor, rasgo o Post-it ao meio e atiro-o à deriva para o lixo. Yohanna Khris Realce A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 16 A rapariga que está sentada à minha frente está à espera de uma resposta, resposta essa que eu estou deliberadamente a recusar-me dar. Ela diz que quer processar os pais, tal como muitas adolescentes no planeta. Mas ela quer processá-los pelo direito ao seu próprio corpo. Trata-se exactamente do tipo de caso de que eu fujo como da Peste Negra - um caso que requer demasiado esforço e tomar conta do cliente. com um suspiro, levanto-me. - Como disse que se chamava? - Não disse - ela senta-se um pouco mais direita. - Chamo-me Anna Fitzgerald. Abro a porta e grito pela minha secretária. - Kerri! Pode ir buscar o número do Planeamento Familiar para a Menina Fitzgerald? - O quê? - quando me volto, a miúda está de pé. - Planeamento Familiar? - Repare, Anna, vou dar-lhe um pequeno conselho. Instaurar um processo legal porque os seus pais não a deixam comprar a pílula anticoncepcional ou ir a uma clínica para fazer um aborto é como usar um malho para matar um mosquito. Pode guardar o dinheiro da sua mesada e ir ao Planeamento Familiar; eles estão muito mais bem preparados para lidar com o seu problema. Pela primeira vez desde que entrei no meu escritório, olhei mesmo, verdadeiramente para ela. A raiva brilha à volta desta miúda como electricidade. — A minha irmã está a morrer, e a minha mãe quer que eu lhe doe um dos meus rins - diz ela acaloradamente. - Não sei porquê mas acho que uma mão-cheia de preservativos não vai resolver o problema. Sabem como de vez em quando a nossa vida se estende à nossa frente como uma bifurcação na estrada e, assim que escolhemos um caminho pedregoso, nunca chegamos a tirar os olhos do outro, na certeza de ter cometido um erro? A Kerri aproxima-se, segurando na mão uma tira de papel com o número que pedi, mas eu fecho a porta sem o receber e volto para a minha secretária. — Ninguém a pode obrigar a doar um órgão se não quiser. — Ah, a sério? - ela inclina-se para a frente, contando pelos dedos. - A primeira vez que dei alguma coisa à minha irmã, foi sangue do cordão umbilical, e eu era recém- nascida. Ela tem leucemia - e as minhas células fazem com que entre em remissão. Da última vez que ela teve uma recaída, eu tinha cinco anos e retiraram-me linfócitos, três vezes, porque parecia que os médicos nunca tiravam o suficiente. Quando isso deixou de A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 17 resultar, retiraram medula óssea para fazer um transplante. Quando a Kate começou a ter infecções, tive de doar granulócitos. Quando teve uma nova recaída, tive de doar células estaminais sangüíneas periféricas. O vocabulário médico desta rapariga envergonharia alguns dos meus peritos remunerados. Tirei um bloco de notas. — É óbvio que concordou anteriormente em ser dadora da sua irmã. Ela hesita, e depois abana a cabeça. — Nunca ninguém me perguntou. — Disse aos seus pais que não queria doar um rim? - Eles não me dão ouvidos. — Talvez dessem se referisse isto. Ela olha para baixo, e o cabelo tapa-lhe o rosto. — Eles não me dão verdadeiramente atenção, excepto quando precisam do meu sangue ou algo do gênero. Se a Kate não estivesse doente, eu nem sequer estaria viva. Um herdeiro e um substituto; é um costume que data dos meus antepassados na Inglaterra. Parecia insensível - ter mais um filho - não vá o primeiro morrer -, no entanto, já foi muitíssimo prático outrora. Ser uma decisão a posteriorí talvez não soasse bem a esta miúda, mas a verdade é que todos os dias são concebidas crianças pOr razões muito pouco louváveis: para conservar um mau casamento; para manter o apelido de família; para moldar uma imagem de um dos pais. — Eles tiveram-me para que eu pudesse salvar a Kate - explica a rapariga. - Foram a médicos especiais e tudo, e escolheram o embrião que seria totalmente compatível a nível genético. Houve cursos de ética na faculdade de direito, mas eram na generalidade vistos como redutores ou como um oximoro, e eu costumava faltar. Mesmo assim, quem vir a CNN periodicamente estará informado sobre as controvérsias da pesquisa relativa às células estaminais. Bebês dadores, crianças geneticamente programadas, a ciência de amanhã para salvar as crianças de hoje. Bato com a caneta na secretária, e o Juiz - o meu cão - aproxima-se de esguelha. — O que acontece se não doar um rim à sua irmã? - Ela morre. — Sente-se à vontade com isso? A boca de Anna contrai-se numa linha fina. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 18 — Estou aqui, não estou? - É verdade. Estou apenas a tentar descobrir o que a fez reagir, depois deste tempo todo. Ela olha mais para a frente, para a estante. — Porque - diz ela de forma simples - isto nunca pára. De repente, parece lembrar-se de alguma coisa. Mete a mão no bolso e coloca um maço de notas amachucadas e algumas moedas em cima da minha secretária. - Também não tem de se preocupar com a sua remuneração. São 136,87 dólares. Eu sei que não é o suficiente, mas hei-de descobrir uma maneira de arranjar mais. — Eu cobro duzentos por hora. — Dólares. — As contas de conchas dos índios não cabem na ranhura dos depósitos das caixas multibanco. — Se calhar podia passear o seu cão, ou algo do gênero. — Os cães de serviço são passeados pelos donos. Havemos de descobrir alguma coisa - encolho os ombros. — O senhor não pode ser meu advogado de graça - insiste ela. — Muito bem, então. Pode polir as maçanetas das minhas portas - não é que eu seja um homem particularmente caridoso, mas é que, em termos legais, este caso resolve- se de caras: ela não quer doar um rim; nenhum tribunal no seu juízo perfeito iria obrigála a doar um rim; não tenho de fazer nenhuma pesquisa legal; os pais vão ceder antes de irmos a tribunal, e pronto. Para além disso, o caso vai dar-me uma montanha de publicidade, e vai inflacionar o meu trabalho pró bono durante toda a maldita década. - vou dirigir uma petição em seu nome ao tribunal de família: emancipação médica legal - digo eu. — E depois? - Vai haver uma audiência, e o juiz vai nomear um tutor ad litem, que é... — ... uma pessoa formada para trabalhar com crianças no tribunal de família, que determina o que é melhor para a criança - recita Anna. - Ou, por outras palavras, é mais um adulto que vai decidir o que me irá acontecer. — bom, é assim que funciona a lei, não há outra maneira. Mas um TAL teoricamente zela apenaspor si, e não pela sua irmã ou pelos seus pais. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 19 Ela observa-me a tirar o bloco e a escrever algumas notas. — Incomoda-o o seu nome estar ao contrário? - O quê? - paro de escrever, e fico a olhar para ela. — Campbell Alexander. O seu apelido é um nome próprio e o seu nome próprio é um apelido - ela faz uma pausa. - Ou uma sopa. — E o que tem isso a ver com o seu caso? - Nada - admite Anna -, só que foi uma decisão bastante má que os seus pais tomaram por si. Estendi a mão por cima da secretária para lhe entregar um cartão. — Se quiser fazer alguma pergunta, telefone-me. Ela aceita-o, e passa os dedos pelas letras do meu nome em relevo. O meu nome ao contrário. Por amor de Deus. Depois, ela inclina-se sobre a secretária, agarra no meu bloco, e rasga a parte inferior da página. Usando a minha caneta, escreve algo e entrega- me. Observo o bilhete na minha mão: Anna 555-3211 - Se quiser fazer alguma pergunta - diz ela. Quando me dirijo à recepção, a Anna já se tinha ido embora e a Kerri está sentada à sua secretária, com um catálogo aberto em cima desta. — Sabia que antigamente costumavam usar aqueles sacos de lona L. L. Bean para transportar gelo? - Pois - e vodka e Bloody Mary. Levado de casa para a praia todos os domingos de manhã. A propósito, a minha mãe telefonou. A Kerri tem uma tia que ganha a vida como médium e, de vez em quando, esta predisposição genética manifesta-se. Ou talvez ela já trabalhe para mim há tempo suficiente para conhecer a maior parte dos meus segredos. De qualquer modo, ela sabe o que estou a pensar. - Ela diz que o seu pai agora anda com uma rapariga de dezassete anos e que a palavra discrição não faz parte do vocabulário dele e que ela vai internar-se no The Pines se não lhe telefonar até às... - a Kerri olha para o relógio. - Ups. — Quantas vezes já ameaçou ela internar-se esta semana? - Só três - diz a Kerri. — Ainda estamos muito abaixo da média - inclino-me sobre a secretária e fecho o catálogo. - É altura de ganhar a vida, Menina Donatelli. — Aquela rapariga, Anna Fitzgerald... A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 20 — Planeamento Familiar? - Nem por isso - digo eu. - Vamos representá-la. Preciso de ditar uma petição para fins de emancipação médica, para a podermos entregar no tribunal de família amanhã. — Está a brincar! Vai representá-la? Ponho uma das mãos sobre o coração. - Estou magoado por me ter em tão baixa consideração. — Na verdade, estava a pensar na sua carteira. Os pais dela sabem? - Amanhã vão ficar a saber. — Será que você é completamente idiota? - Desculpe? Kerri abana a cabeça. — Onde vai ela viver? O comentário detém-me. De facto, ainda não tinha pensado verdadeiramente nisso. Mas uma rapariga que instaure um processo legal contra os pais não se sentirá particularmente confortável a viver debaixo do mesmo tecto depois de terem sido entregues os papéis. De repente, o Juiz está ao meu lado, a empurrar-me a coxa com o focinho. Abano a cabeça, aborrecido. O tempo é tudo. - Dê-me quinze minutos - digo à Kerri. - Chamo-a quando estiver pronto. — Campbell - insiste a Kerri, persistente -, não pode eStar à espera que uma miúda se desenrasque sozinha. Dirijo-me de novo para o meu escritório. O Juiz segue-me ficando à soleira da porta. — O problema não é meu - digo eu; e, em seguida, fecho a porta, tranco-a bem, e fico à espera. Sara 1990 A equimose é do tamanho e da forma de um trevo de quatro folhas, e situa- se mesmo entre as omoplatas da Kate. É o Jesse que a descobre, enquanto estão os dois na banheira. — Mamã - pergunta ele -, isso quer dizer que ela tem sorte? Primeiro tento esfregá-la, presumindo ser sujidade, mas sem sucesso. A Kate, de dois anos, objecto de escrutínio, olha para cima, para mim, com os seus olhos azuis de porcelana. — Dói-te? - pergunto-lhe eu, e ela abana a cabeça. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 21 Algures no corredor atrás de mim, o Brian está a contar-me como foi o seu dia. Cheira vagamente a fumo. — Então o tipo comprou uma caixa de charutos caros - diz ele -, e fez um seguro contra incêndio de 15.000 dólares. Logo a seguir, a companhia de seguros recebeu uma reivindicação, afirmando que se tinham perdido todos os charutos numa série de pequenos fogos. — Ele fumou-os! - digo eu, enxaguando o champô do cabelo do Jesse. O Brian encosta-se à soleira da porta. — Sim. Mas o juiz deliberou que a companhia aceitou assegurar os charutos contra incêndio sem definir fogo aceitável. — Hei, Kate, e agora, dói? - diz o Jesse, e carrega com o polegar, com força, na equimose na coluna da sua irmã. A Kate berra, contorce-se, e deita água do banho para cima de mim. Tiro-a da água, escorregadia como um peixe, e entrego-a ao Brian. com as cabeças pálidas de cabelos muito louros juntas, eles formam um conjunto. O Jesse é mais parecido comigo - magro, moreno, cerebral. O Brian diz que é assim que sabemos que a nossa família está completa: cada um de nós tem o seu clone. — Sai já dessa banheira - digo eu ao Jesse. Ele levanta-se, uma fonte de rapaz de quatro anos, e arranja maneira de tropeçar enquanto passa por cima da alta parede da banheira. Bate fortemente com o joelho e irrompe em lágrimas. Embrulho o Jesse numa toalha, acalmando-o enquanto tento continuar a conversar com o meu marido. Esta é a linguagem de um casamento: código Morse, pontuado por banhos, jantares e histórias ao deitar. — Então, quem te intimou? - pergunto ao Brian. - O réu? - A acusação. A companhia de seguros pagou o dinheiro, e detiveram-no durante vinte e quatro horas sob acusação de fogo posto. Eu tenho de ser o perito deles. Brian, um bombeiro profissional, é capaz de entrar numa estrutura enegrecida e encontrar o local onde começaram as chamas: uma beata carbonizada, um fio eléctrico A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 22 exposto. Todo o holocausto começa com uma brasa. Só precisamos de saber onde procurar. — O juiz encerrou o caso, não? - O juiz condenou-o a vinte e quatro penas de um ano consecutivas - diz o Brian. Põe a Kate no chão e começa a enfiar-lhe o pijama pela cabeça. Na minha vida anterior, eu era uma advogada especialista em direito civil. A dada altura acreditei verdadeiramente que era isso que queria ser - mas isso foi antes de uma criança pequena me ter dado uma mão-cheia de violetas esmagadas. Antes de compreender que o sorriso de uma criança é uma tatuagem: arte indelével. Isso põe a minha irmã Suzanne doida. Ela é um prodígio na área das finanças que destruiu a barreira de discriminação contra as mulheres no Banco de Boston e, na sua opinião, eu sou um desperdício de evolução cerebral. Mas eu acho que metade da batalha é encontrar o que nos convém, e eu sou muito melhor como mãe do que alguma vez seria como advogada. Às vezes interrogo-me se serei apenas eu, ou se há outras mulheres que descobrem qual é o seu lugar não saindo do mesmo sítio. Olho para cima enquanto enxugo o Jesse, e encontro o Brian a olhar-me fixamente. — Tens saudades disso, Sara? - pergunta ele suavemente. Embrulho o nosso filho na toalha e beijo-o no alto da cabeça. — Tantas como de uma desvitalização - digo eu. Quando acordo na manhã seguinte, o Brian já tinha ido para o emprego. Ele está de serviço dois dias, depois duas noites, e depois tem folga durante quatro, e, em seguida repete-se o ciclo. Olhando para o relógio, apercebo-me de que acordei depois das nove. E o mais surpreendente é os meus filhos não me terem acordado. De roupão, desço as escadas a correr, e encontro o Jesse a brincar com blocos no chão. — Já tomei o pequeno-almoço- informa-me ele. - Também fiz o teu. Pois fez, há cereais espalhados por toda a mesa da cozinha, e uma cadeira em equilíbrio assustadoramente precário colocada debaixo do armário onde estão guardados os flocos de milho. Há um rasto de leite que vem do frigorífico até à taça. — Onde está a Kate? - Está a dormir - diz o Jesse. - Tentei empurrá-la e tudo. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 23 Os meus filhos são um despertador natural; pensar que a Kate está a dormir até tão tarde faz-me lembrar que ela tem andado a fungar ultimamente, e depois interrogar- me se seria por isso que estava tão cansada ontem à noite. Subo as escadas, chamando-a em voz alta. No seu quarto, ela rebola-se na minha direcção, emergindo da escuridão para se focar no meu rosto. — Toca a acordar - levanto as persianas, deixo que o sol se espalhe pelos seus cobertores. Sento-me e esfrego-lhe as costas. Vamos lá vestir-te - digo eu, e tiro-lhe a parte de cima do pijama pela cabeça. Ao longo da sua coluna, como uma linha de pequenas jóias azuis, há uma fileira de equimoses. — É anemia, não é? - pergunto eu ao pediatra. - As crianças da idade dela não apanham mononucleose, pois não? O Dr. Wayne afasta o estetoscópio do peito estreito da Kate e puxa a sua saia cor-de-rosa para baixo. — Pode ser um vírus. Gostava de tirar algum sangue e fazer umas análises. O Jesse, que tem estado a brincar pacientemente com um GI Joe sem cabeça, levanta a cabeça ao ouvir estas notícias. — Sabes como é que tiram sangue, Kate? - com lápis? - com agulhas. Umas grandes e compridas que espetam como se fosse uma injecção... — Jesse - aviso eu. A minha filha, que confia em mim para lhe dizer quando pode atravessar a rua, para lhe cortar a carne em pedacinhos e para a proteger de todos os tipos de coisas horríveis como cães grandes, e escuridão, e foguetes ruidosos, fica a olhar para mim com grande expectativa. — É só uma pequenina - prometo eu. Quando a enfermeira pediatra entra com o seu tabuleiro, a sua seringa, os seus tubos de análise e o seu torniquete de borracha, a Kate começa a gritar. Respiro fundo. — Kate, olha para mim - os seus gritos ficam reduzidos a pequenos soluços. - Vai ser só uma picadinha. — Mentirosa - sussurra o Jesse baixinho. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 24 A Kate acalma-se, muito ligeiramente. A enfermeira deita-a na mesa de examinação e pede-me que segure nos seus ombros. Observo a agulha a penetrar na pele branca do seu braço; ouço o grito repentino - mas não há nenhum sangue a fluir. — Desculpa, querida - diz a enfermeira. - Tenho de tentar outra vez. - Retira a agulha, e pica de novo a Kate, que berra ainda mais alto. A Kate debate-se a sério durante o primeiro e o segundo tubos de análise. Quando chega ao terceiro, fica completamente sem forças. Não sei o que será pior. Esperamos pelos resultados da análise ao sangue. O Jesse está deitado de barriga para baixo no tapete da sala de espera, apanhando sabe Deus que tipo de micróbios de todas as crianças doentes que passam por este consultório. O que eu quero é que o pediatra apareça, que me diga que leve a Kate para casa e que lhe dê muito sumo de laranja, e que agite uma receita de Ceclor à nossa frente como se fosse uma varinha mágica. Passa uma hora até que o Dr. Wayne nos manda entrar no seu consultório de novo. — As análises da Kate estão um pouco problemáticas - diz ele. — Sobretudo, a sua contagem de glóbulos brancos. É muito mais baixa do que o normal. — O que quer isso dizer? - nesse momento, amaldiçoo-me por ter ido para a faculdade de direito, e não para a de medicina. Tento recordar-me do que fazem os glóbulos brancos. — Ela pode ter algum tipo de deficiência auto-imune. Ou pode tratar-se apenas de um erro laboratorial - ele toca no cabelo de Kate. - Acho que, só para termos a certeza, vou mandá-la consultar um hematologista no hospital, para repetir as análises. Estou a pensar: Só pode estar a brincar. Mas, em vez disso, observo a minha mão a mover-se por sua própria iniciativa para agarrar no papel que o Dr. Wayne entrega. Não se trata de uma receita, como eu esperava, mas de um nome. Ileana Farquad, Providence Hospital, Hematologia/Oncologia. — Oncologia - abano a cabeça. - Mas isso significa cancro. Espero que o Dr. Wayne me garanta que isso apenas faz parte do título da médica, que me explique que o A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 25 laboratório de hematologia e o departamento de oncologia partilham simplesmente a mesma localização, e nada mais do que isso. Mas ele não o faz. O recepcionista no quartel comunica-me que o Brian se encontra numa missão médica. Ele partiu no veículo de salvamento há vinte minutos. Hesito, e olho para a Kate, que está afundada num dos assentos de plástico da sala de espera do hospital. Uma missão médica. Acho que há encruzilhadas nas nossas vidas em que tomamos decisões grandiosas e abrangentes, sem nunca nos chegarmos a aperceber disso. Como passar os olhos pelos títulos de um jornal quando o semáforo está vermelho e, por isso, evitar a furgoneta que ultrapassa a fila de trânsito e provoca um acidente. Entrar num café por capricho e encontrar o homem com quem nos vamos casar um dia, enquanto ele procura trocos na carteira ao balcão. Ou isto: dizer ao nosso marido que venha ter connosco, quando passámos horas a convencer-nos de que não se trata de nada importante. — Chamem-no através do rádio - digo eu. - Diga-lhe que estamos no hospital. Há algum conforto em ter o Brian ao meu lado, como se fôssemos agora um par de sentinelas, uma dupla linha de defesa. Estamos no Providence Hospital há três horas, e a cada minuto que passa é mais difícil iludir-me a mim própria e acreditar que o Dr. Wayne tenha cometido um erro. O Jesse está a dormir numa cadeira de plástico. A Kate sofreu uma nova colheita de sangue traumática, e uma radiografia ao tórax, porque eu referi que ela estava constipada. — Cinco meses - diz o Brian cuidadosamente ao médico interno que está sentado à sua frente com um caderno de mola. Em seguida olha para mim. - Não foi nessa altura que ela começou a rebolar? - Acho que sim - por esta altura já o médico nos tinha perguntado tudo, desde o que tínhamos vestido na noite em que a Kate foi concebida até quando tinha ela aprendido a segurar numa colher. — A primeira palavra? - pergunta ele. — Papá - sorri Brian. — O que eu queria dizer era quando. — Oh - ele franze a testa. - Acho que estava quase a fazer um ano. - Desculpe - digo eu. - Pode dizer-me por que razão todas estas coisas são importantes? - Trata-se A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 26 apenas da história clínica, Sr. a Fitzgerald. Queremos saber o máximo possível sobre a sua filha, para que possamos perceber o que ela tem. — Sr. e Sr. Fitzgerald? - aproxima-se uma mulher jovem, vestindo uma bata. - Eu sou flebotomista. A Dr. a Farquad quer que eu faça um painel de coagulopatia à Kate. Quando ouve o seu nome, a Kate pestaneja ao meu colo. Olha para a bata branca e enfia os braços para dentro das mangas da sua própria camisola. — Não pode picar o dedo? - Não, esta é de facto a maneira mais fácil. De repente, lembro-me de como, quando estava grávida da Kate, ela costumava ter soluços. Durante horas seguidas, o meu estômago contorcia-se. Cada movimento que ela fazia, mesmo uns tão pequenos, obrigava-me a fazer algo que eu não controlava. — Acha - digo eu suavemente - que é isso que eu quero ouvir? Quando vai à cantina e pede um café, gostaria que lhe dessem uma Coca-Cola, porque é mais fácil de alcançar? Quando paga com o cartão de crédito, gostaria que lhe dissessem que dá muitotrabalho, e que portanto tem de pagar em dinheiro? - Sara - a voz de Brian é um vento distante. — Acha que é fácil para mim estar aqui sentada com a minha filha sem fazer a mínima idéia do que se passa ou por que razão estão a fazer todas estas análises? Acha que é fácil para ela? Desde quando alguém tem hipótese de escolher fazer aquilo que é mais fácil? - Sara - só quando a mão de Brian pousa no meu ombro é que eu me apercebo de que estou a tremer tanto. Mais um momento, e a mulher desaparece, com as socas a baterem no chão de ladrilhos. Assim que ela desaparece de vista, perco as forças. — Sara - diz o Brian. - O que se passa contigo? - O que se passa comigo? Não sei, Brian, porque ninguém nos vem dizer o que se passa com... — Chiu - diz ele e envolve-me nos seus braços, com a Kate presa entre nós num suspiro. Ele diz-me que vai tudo correr bem, e pela primeira vez na minha vida não acredito nele. Subitamente, a Dr. a Farquad, que já não víamos há horas, entra na sala. — Soube que houve um pequeno problema com o painel de coagulopatia - ela puxa uma cadeira para a nossa frente. - A contagem completa de células sangüíneas da A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 27 Kate teve alguns resultados anormais. A contagem de glóbulos brancos é muito baixa - 1,3. A hemoglobina é de 7,5, o hematócrito é de 18,4, as plaquetas são 81.000, e os neutrófilos são 0,6. Números como estes muitas vezes indiciam uma doença auto-imune. Mas a Kate também apresenta doze por cento de promielócitos, e cinco por cento de blastos, e isso sugere uma síndroma leucémica. — Leucémica - repito eu. A palavra é fluida, escorregadia, como a clara de ovo. — A leucemia é um cancro do sangue - a Dr. a Farquad acena com a cabeça. — O que significa isso? - o Brian limita-se a olhar para ela, de olhos fixos. — Pensem na medula óssea como uma creche para as células em desenvolvimento. Os corpos saudáveis fazem células sangüíneas que ficam na medula até serem suficientemente maduras para sair e combater as doenças ou coagular, ou transportar oxigênio, ou o que quer que seja que devem fazer. Numa pessoa com leucemia, as portas da creche abrem-se cedo de mais. As células sangüíneas imaturas acabam por entrar na circulação, incapazes de cumprir a sua função. Nem sempre é estranho ver promielócitos numa CCCS, mas, quando observámos a da Kate ao microscópio, conseguimos detectar anomalias - ela olha para cada um de nós separadamente. - Preciso de fazer uma aspiração de medula óssea para confirmar isso, mas parece-me que a Kate tem leucemia promielocítica aguda. A minha língua está presa sob o peso da pergunta que, passado um momento, o Brian obriga a sair da sua garganta: - Ela... ela vai morrer? Quero abanar a Dr. a Farquad. Quero dizer-lhe que eu própria tiro o sangue para o painel de coagulopatia dos braços da Kate se isso significar que ela retirará aquilo que disse. - A LPA é um subgrupo muito raro de leucemia mielóide. Apenas cerca de doze mil pessoas por ano são diagnosticadas com a doença. A taxa de sobrevivência dos doentes afectados pela LPA é de vinte a trinta por cento, se o tratamento for imediatamente iniciado. Empurro os números para fora da minha cabeça e ferro os dentes no resto da sua frase. — Há um tratamento - repito eu. — Sim. com um tratamento agressivo as leucemias mielóides têm um prognóstico de sobrevivência de nove meses á três anos. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 28 Na semana passada, fiquei na soleira da porta do quarto da Kate, observando-a agarrada a um cobertor de bebê de cetim enquanto dormia, um farrapo de tecido que raramente largava. Ouve bem o que te digo, sussurrei ao Brian. Ela nunca vai largar aquilo. vou ter de o coser ao seu vestido de noiva. — Precisamos de fazer essa aspiração de medula óssea. Vamos anestesiá-la com um anestésico geral ligeiro. E podemos traçar o painel de coagulopatia enquanto ela estiver a dormir - a médica inclina-se para a frente, solidária. - Saibam que os miúdos enganam as estatísticas. Todos os dias. — Está bem - diz o Brian. Bate uma palma, como se estivesse a preparar-se para um jogo de futebol. - Está bem. A Kate afasta a cabeça da minha camisola. Tem as faces afogueadas, e uma expressão vaga. Isto é um erro. Foi um infeliz tubo de análise com o sangue de outra pessoa que o médico levou para análise. Olhem para a minha filha, para o brilho dos seus caracóis esvoaçantes e para o seu sorriso como um vôo de borboleta - este não é o rosto de alguém que está a morrer por fases. Só a conheço há dois anos. Mas, se considerarmos cada lembrança, cada momento, se os colocarmos uns a seguir aos outros, ponta a ponta, seriam infindáveis. Enrolam um lençol e colocam-no sob a barriga da Kate. Prendem-na com fita adesiva à mesa de examinação, com duas longas tiras. Uma das enfermeiras acaricia a mão de Kate, mesmo após a anestesia ter começado a fazer efeito e de ela estar a dormir. A parte inferior das suas costas está despida para a longa agulha que vai penetrar na sua fossa ilíaca para recolher medula. Quando voltam cuidadosamente o rosto de Kate para o outro lado, a toalha de papel debaixo da sua face está molhada. Aprendi com a minha própria filha que não precisamos de estar acordados para chorar. Quando estamos no carro a caminho de casa, sou surpreendida pelo súbito pensamento de que o mundo é insuflável - árvores, e erva, e casas prontas a cair com uma única picada de alfinete. Tenho a sensação de que se guinar o carro para a esquerda, e se A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 29 embater contra a vedação de estacas e o parque infantil, eles vão fazer-nos ressaltar para trás como um pára-choques de borracha. Passamos por um camião. Batchelder Casket Company, está escrito num dos lados. Conduza com Segurança. Isso não será um conflito de interesses? A Kate está sentada na sua cadeira para transporte de crianças no automóvel, a comer bolachas com a forma de animais. — Brinca - manda ela. No espelho retrovisor, o seu rosto está luminoso. Os objectos estão mais próximos do que aparentam. Observo-a a agarrar na primeira bolacha. — Como faz o tigre? - consigo eu dizer. — Grrrr- ela arranca a cabeça dele com uma dentada e depois agita outra bolacha. — Como faz o elefante? A Kate dá risadinhas e depois faz um ruído de trompeta pelo nariz. Interrogo-me se irá acontecer durante o sono. Ou se ela chorará. Se alguma enfermeira bondosa irá dar-lhe algo para as dores. Imagino a minha filha a morrer, enquanto está feliz e a rir meio metro atrás de mim. — Faz a girafa? - pergunta a Kate. - Girafa? A sua voz, está tão cheia do futuro. — As girafas não dizem nada - respondo eu. — Porquê? - Porque nasceram assim - digo-lhe eu, e depois a minha garganta fecha-se com um nó. O telefone toca mesmo quando estou a chegar de casa da vizinha, tendo combinado com ela que tomaria conta do Jesse enquanto nós tomamos conta da Kate. Não temos protocolo para esta situação. As nossas únicas baby-sitters ainda estão no liceu; todos os quatro avós já faleceram; nunca lidámos com creches - tomar conta das crianças é a minha função. Quando entro na cozinha, o Brian já está a conversar com o autor do telefonema. O fio do telefone está enrolado em volta dos seus joelhos, um cordão umbilical. — Pois - diz ele -, é difícil de acreditar. Não consegui ir a um único jogo desta época... não vale a pena, já o trocaram. - Os seus olhos encontram os meus enquanto ponho uma chaleira ao lume para fazer chá. - Oh, a Sara está óptima. E os miúdos, hmm, A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 30 estão bem. Certo. Mande cumprimentos à Lucy. Obrigado por telefonar,Don - desliga. - Era o Don Thurman - explica ele, - Da academia de bombeiros, lembras-te? É um tipo simpático. Enquanto olha para mim, o sorriso amável desaparece do seu rosto. A chaleira começa a assobiar, mas nenhum de nós faz um movimento para a tirar do lume. Olho para o Brian, de braços cruzados. — Não fui capaz - diz ele suavemente. - Sara, não fui capaz. Na cama, nessa noite, o Brian é um obelisco, uma outra forma que interrompe a escuridão. Embora já não falemos há horas, eu sei que ele está tão acordado como eu. Isto está a acontecer-nos porque eu gritei com o Jesse na semana passada, ontem, há momentos. Isto está a acontecer porque eu não comprei à Kate os M&Ms que ela queria na mercearia. Isto está a acontecer porque uma vez, por uma fracção de segundo, imaginei como seria a minha vida se nunca tivesse tido filhos. Isto está a acontecer porque não me apercebi do bem que tinha. — Achas que fomos nós que lhe causámos isto? - pergunta o Brian. — Que lhe causámos isto? - volto-me para ele. - Como? - Por exemplo, através dos nossos genes. Tu sabes. Não respondo. — O Providence Hospital não é de confiança - diz ele agressivamente. - Lembras- te de quando o filho do chefe partiu o braço esquerdo, e eles puseram gesso no direito? Olho fixamente para o tecto de novo. — É só para saberes - digo eu, mais alto do que pretendia -. não vou deixar que a Kate morra. Ouve-se um som horrível ao meu lado - um animal ferido, um arquejo de quem se está a afogar. Então o Brian encosta o rosto ao meu ombro, soluça contra a minha pele. Põe os braços à minha volta e segura-se como se estivesse a perder o equilíbrio. — Não vou - repito eu, mas, mesmo para mim própria, parece que estou a esforçar-me de mais. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 31 Brian Por cada sete graus de aumento da temperatura de combustão de um incêndio, este duplica de tamanho. É nisto que penso enquanto observo as faúlhas a saírem da chaminé do incinerador, um milhar de novas estrelas. O decano da faculdade de medicina da Universidade de Brown torce as mãos ao meu lado. com o meu casaco grosso vestido, estou a suar. Trouxemos um veículo de combate a incêndios, uma escada e um veículo de salvamento. Avaliámos os quatro lados do edifício. Confirmámos que não se encontra ninguém lá dentro. bom, excepto o corpo que ficou preso no incinerador, provocando esta situação. — Ele era um homem corpulento - diz o decano. - É isto que fazemos sempre aos objectos de estudo quando terminam as aulas de anatomia. — Hei, Capitão - grita o Paulie. Hoje ele é o meu operador principal da bomba. - O Recl já equipou a boca-de-incêndio. Queres que eu encha uma mangueira? Ainda não sei ao certo se hei-de levar uma mangueira lá para cima. Esta fornalha foi projectada para consumir restos mortais a 700 graus Celsius. Há chamas por cima e por debaixo do corpo. — Então? - diz o decano - Não vai fazer nada? É o maior erro que os novatos cometem: a presunção de que combater um incêndio significa ir a correr com rios de água. Por vezes, isso agrava a situação. Neste caso, espalharia desperdícios tóxicos por todo o lado. Estou a pensar que devemos manter a fornalha fechada, e assegurarmo-nos de que as chamas não saiam pela chaminé. Um fogo não pode arder para sèmpre. Acabará por se consumir. — Sim - digo-lhe eu -, vou esperar para ver o que acontece. Quando faço o turno da noite, janto duas vezes. A primeira refeição é cedo, um compromisso estabelecido pela minha família para que todos possamos estar sentados à mesa juntos. Esta noite, a Sara fez carne assada. Está em cima da mesa como um bebê adormecido enquanto ela nos chama para ir jantar. A Kate é a primeira a ocupar o seu lugar. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 32 — Olá, querida - digo eu, apertando a mão dela. Quando ela sorri para mim, o sorriso não chega aos seus olhos. - O que tens andado a fazer? Ela empurra os feijões para a beira do prato. — A salvar países do terceiro mundo, a desintegrar alguns átomos e a terminar a Epopéia Americana. No intervalo, fiz diálise, claro. — Claro. A Sara volta-se para nós, brandindo uma faca. — O que quer que fosse que eu tenha feito - digo eu, encolhendo-me -, peço perdão. Ela ignora-me. — Trincha a carne, está bem? Agarro nos utensílios de trinchar e começo a cortar a carne assada mesmo na altura em que o Jesse se arrasta para dentro da cozinha. Nós permitimos-lhe que viva por cima da garagem, mas ele tem de comer connosco; faz parte do acordo. Os seus olhos estão diabolicamente vermelhos; as suas roupas estão entranhadas de fumo adocicado. — Olha para aquilo - suspira a Sara, mas, quando eu me volto, ela está a olhar para a carne. - Está demasiado mal passada. Ela levanta o tabuleiro com as mãos nuas, como se a sua pele estivesse coberta de amianto. Enfia a carne de novo no forno. O Jesse agarra numa taça de purê de batata e começa a colocar um monte no seu prato. Uma, outra e mais outra vez. — Tresandas - diz a Kate, abanando a mão em frente ao rosto. O Jesse ignora-a, metendo uma garfada do seu purê de batata na boca. Imagino o que isso quererá dizer a meu respeito, que fico de facto entusiasmado por conseguir identificar a erva a circular no seu organismo, ao contrário de outras drogas - ecstasy, heroína e Deus sabe que mais - que deixam menos sinais. — Nem todos nós apreciamos cada Pedrada - diz a Kate por entre dentes. — Nem todos nós conseguimos receber as nossas drogas através de um cateter de punção venosa - responde o Jesse. A Sara levanta as mãos. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 33 — Por favor. Podemos simplesmente... evitar? - Onde está a Anna? - pergunta a Kate. — Ela não estava no vosso quarto? - Só esteve de manhã. A Sara enfia a cabeça pela porta da cozinha. — Anna! Jantar! - Vejam o que eu comprei hoje - diz a Kate, puxando a sua T-shirt. Foi atada e tingida, de forma psicadélica, e tem um caranguejo na frente com a palavra Câncer. - Percebem? - Tu és Leão - a Sara parece estar à beira das lágrimas. — Como é que está essa carne assada? - pergunto, para a distrair. Mesmo nessa altura, a Anna entra na cozinha. Atira-se para cima da sua cadeira e baixa a cabeça. — Onde estiveste? - diz a Kate. — Por aí. A Anna olha para o seu prato, mas não faz nenhum movimento para se servir. Nem parece a Anna. Estou habituado a discutir com o Jesse, a carregar o fardo da Kate; mas a Anna é a constante da nossa família. A Anna chega com um sorriso. A Anna conta-nos que encontrou um pisco com uma asa partida, com face rosada; ou sobre a mãe que ela tinha visto no Wal-Mart não apenas com um mas com dois pares de gêmeos. A Anna marca um ritmo de fundo, e, ao vê-la ali sentada sem reacção, apercebo-me de que o silêncio tem um som. — Aconteceu alguma coisa hoje? - pergunto eu. Ela olha para cima, para a Kate, presumindo que a pergunta tinha sido feita à sua irmã, e depois estremece quando se apercebe de que estou a falar com ela. — Não. — Sentes-te bem? De novo, Anna hesita; esta é uma pergunta que normalmente reservamos para a Kate. — Sinto. — Porque, sabes, não estás a comer. A Anna olha para o seu prato, repara que está vazio, e, em seguida enche-o de comida. Enfia feijões verdes na boca, duas garfadas. Sem mais nem menos, lembro-me de quando os miúdos eram pequenos, amontoados na parte de trás do carro como charutos apertados dentro de uma caixa, e de A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 34 como cantava para eles. Anna anna bo banna, banana fanna fo fanna, me my mo manna... Anna. (- A do Chuck - gritava o Jesse -, canta a do Chuck! ) - Olha - aKate aponta para o pescoço da Anna. - O teu medalhão desapareceu. É o que eu lhe dei, há tantos anos. A mão de Ana ergue-se até à clavícula. — Perdeste-o? - pergunto. Ela encolhe os ombros. — Talvez não me apeteça usá-lo. Ela nunca o tirou, tanto quanto sei. A Sara retira a carne assada do forno e coloca- a em cima da mesa. Quando agarra na faca para a trinchar, olha para a Kate. — Falando de coisas que não nos apetece usar - diz ela -, vai vestir outra camisola. — Porquê? - Porque eu disse. — Isso não é uma razão. A Sara espeta a carne com a faca. - Porque acho que essa é ofensiva à mesa de jantar. — Não é mais ofensiva do que as camisolas de heavy metal do Jesse. Qual era a que tinhas ontem? Era dos Alabama Thunder Pussy? O Jesse olha para ela e revira os olhos. É uma expressão que eu já tinha visto antes: a do cavalo num western spaghetti, que tinha ficado coxo, no momento em que recebe o tiro de misericórdia. A Sara corta a carne. O que tinha sido cor-de-rosa é agora um tronco demasiado cozinhado. — Vejam só - diz ela. - Está estragada. — Está óptima - tiro o pedaço que ela conseguiu dissecar do resto e corto um pedaço mais pequeno. Era a mesma coisa que mastigar cabedal. - Deliciosa. vou só passar pelo quartel para ir buscar o maçarico para podermos servir o resto das pessoas. A Sara pestaneja, e depois solta uma gargalhada. A Kate dá risadinhas. Até o Jesse esboça um sorriso. É quando me apercebo de que a Anna já saiu da mesa e, o mais importante de tudo, ninguém reparou. De volta ao quartel, estamos os quatro lá em cima, na cozinha. O Red está a preparar um molho qualquer no fogão; o Paulie lê a Projo, e o Caesar está a escrever uma carta ao seu objecto de desejo desta semana. Ao observá-lo, Red abana a cabeça. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 35 — Devias ter isso guardado no computador e imprimir várias cópias de cada vez. Caesar é apenas uma alcunha. O Paulie inventou-a há alguns anos, porque está sempre a deambular. — Bem, esta é diferente - diz o Caesar. — Pois. Durou dois dias inteiros. - O Red deita a massa no coador que está no lava-loiça, com o vapor a erguer-se em volta do seu rosto. - Fitz, dá alguns conselhos ao rapaz, está bem? - Porquê eu? O Paulie olha por cima do jornal. — Por defeito - diz ele, e é verdade. A mulher do Paulie deixou-o há dois anos por causa de um violoncelista que tinha passado por Providence numa tournée sinfônica; o Red é um solteirão confirmado que não saberia reconhecer uma senhora mesmo que ela chegasse ao pé dele e lhe mordesse. Por outro lado, a Sara e eu somos casados há vinte anos. O Red coloca um prato à minha frente na altura em que começo a falar. — Uma mulher - digo eu - não é assim tão diferente de uma fogueira. O Paulie põe de lado o jornal e queixa-se. — Lá vamos nós: o Tau do Capitão Fitzgerald. Ignoro-o. — Uma fogueira é algo de belo, certo? Algo de que não conseguimos tirar os olhos enquanto arde. Se a mantivermos sob controlo, dá-nos luz e calor. Só quando se descontrola é que temos de atacar. — O que o Capitão está a tentar dizer-te - diz o Paulie - é que tens de manter a tua namorada longe das correntes de ar. Hei. Red, tens Parmesão? Sentamo-nos para comer o meu segundo jantar, o que normalmente significa que a campainha vai soar dentro de minutos. O combate aos incêndios é um mundo regido pela Lei de Murphy; é quando estamos menos preparados para enfrentar uma crise que ela surge. — Hei, Fitz, lembras-te do último tipo morto que ficou preso? pergunta o Paulie - Quando ainda éramos voluntários? Se me lembro. Um tipo que pesava nem mais nem menos do que duzentos e vinte e cinco quilos, e que tinha morrido de ataque cardíaco no seu leito. A agência funerária tinha chamado os bombeiros naquele caso por não conseguirem tirar de lá o corpo. — Cordas e roldanas - relembro em voz alta. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 36 — E ele devia ser cremado, mas era demasiado corpulento... Paulie sorri. - Juro por Deus, e pela minha mãe que está no Céu, tiveram de o levar para um veterinário. O Caesar olha para ele e pestaneja. — Para quê? - Como achas que se vêem livres de um cavalo morto, Einstein? Juntando dois e dois, os olhos do Caesar abrem-se mais. - Estás a brincar - diz ele e, pensando melhor, afasta o esparguete à bolonhesa do Red. — Quem é que acham que vão chamar para limpar a chaminé da faculdade de medicina? - diz o Red. — Os desgraçados dos tipos da OSHA - responde o Paulie. — Aposto dez dólares em como vão telefonar para aqui e dizer que nos compete a nós fazer isso. — Não vai haver nenhum telefonema - digo eu -, porque não vai sobrar nada para limpar. A temperatura do fogo era demasiado elevada. — Bem, ao menos sabemos que não se tratou de fogo posto diz o Paulie por entre dentes. No mês passado, registámos uma série de fogos intencionais. Conseguimos sempre distinguir - há sempre padrões que denunciam o verter de líquidos inflamáveis, ou focos múltiplos de origem, ou fumo negro, ou uma invulgar concentração do incêndio num local. Quem anda a fazer isto também é esperto - em várias estruturas os combustíveis foram colocados debaixo das escadas, para nos impossibilitar o acesso às chamas. Os fogos postos são perigosos porque não seguem as regras científicas que utilizamos para os combater. As estruturas afectadas por fogos postos têm uma maior probabilidade de ruir à nossa volta enquanto nos encontramos no seu interior, a combatê- los. O Caesar funga. — Talvez se tivesse tratado. Talvez o gordo fosse na realidade um incendiário suicida. Trepou para dentro da chaminé e pegou fogo a si próprio. — Talvez estivesse apenas desesperado por perder peso acrescenta o Paulie, e os outros desatam a rir. — Já chega - digo eu. A guardiã da minha irmã – Jodi Picoult 37 — Oh, Fitz, tens de admitir que teve bastante graça... — Para os pais desse homem não teve. Nem para a sua família. Fez-se aquele silêncio desconfortável enquanto os homens remoíam as palavras. Por fim, o Paulie, que me conhece há mais tempo, fala. — Passa-se outra vez alguma coisa com a Kate, Fitz? Passa-se sempre alguma coisa com a minha filha mais velha; o problema é que parece não ter fim. Levanto-me da mesa e levo o meu prato para o lava-loiça. — vou para o telhado. Todos nós temos os nossos passatempos - o Caesar tem as suas namoradas, o Paulie as suas gaitas-de-foles, o Red os seus cozinhados, e eu, eu tenho o meu telescópio. Montei-o há alguns anos no telhado do quartel dos bombeiros, de onde consigo ter a melhor perspectiva do céu nocturno. Se eu não fosse bombeiro, seria astrônomo. Requer demasiada matemática para o meu cérebro, mas o mapeamento das estrelas sempre teve algo que me atrai. Num céu verdadeiramente escuro, conseguimos ver entre 1.000 e 1.500 estrelas, e há milhões que ainda não foram descobertas. É tão fácil pensar que o mundo gira à nossa volta, mas basta que olhemos para o céu para nos apercebermos deH que isso não é verdade. O verdadeiro nome da Anna é Andromeda. Está na sua certidão de nascimento, juro por Deus. A constelação de onde vem o seu nome conta a história de uma princesa, que foi acorrentada a uma rocha para ser sacrificada a um monstro marinho - de castigo por a sua mãe, Cassiopeia, se ter gabado da sua beleza a Posídon. Perseu, passando por lá a voar, ficou apaixonado por Andromeda e salvou-a. No céu, ela aparece com os braços esticados e de mãos acorrentadas. Do meu ponto de vista, a história tem um final feliz. Quem não desejaria isso a uma criança? Quando a Kate nasceu, costumava imaginar como estaria linda no dia do seu casamento. No dia em que
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