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OS SABERES DOCENTES3 TÓPICO Alessandra Bizerra Suzana Ursi 3.1 Questionamentos iniciais 3.2 O que seria um saber? 3.3 Os saberes docentes 3.3.1 Definição 3.3.2 Determinação dos Saberes 3.3.3 Grandes tipos de saberes 3.3.3.1 Saberes Pedagógicos 3.3.3.2 Saberes Disciplinares 3.3.3.3 Saberes Curriculares 3.3.3.4 Saberes Experienciais 3.4 A relação dos professores com esses saberes 3.5 Características dos saberes docentes 3.6 Formação e saberes docentes 3.7 Para saber mais Licenciatura em ciências · USP/ Univesp 28 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp Apresentação do Tópico O tópico anterior abordou o histórico das ideias pedagógicas, permitindo a reflexão sobre a in- fluência das principais correntes de pensamento na prática educacional que vivenciamos atualmente. Notamos que o papel do professor se alterou ao longo do tempo, passando de uma posição mais centralizadora para, em uma visão recente, ocupar papel ainda central, porém, com abor- dagem mais mediadora. Uma coisa é certa: em todas as correntes pedagógicas o papel do professor é fundamental no processo de ensino-aprendizagem! O presente tópico foca justamente o professor e sua formação. Tem como objetivo princi- palreconhecer a pluralidade dos saberes docentes e refletir criticamente sobre aspectos introdu- tórios relacionados a tais saberes. Utilizaremos como principal referencial teórico para nossas abordagens o trabalho do estudioso da educação . Entretanto, considerações sobre outros estudiosos do assunto também farão parte do nosso trabalho neste tópico. Nossa principal intenção é permitir que, desde o inicio de sua formação, você reflita sobre os processos nela envolvidos, inclusive alguns que podem passar despercebidos. Imaginamos que, dessa forma, as ações realizadas ao longo de seu curso de graduação ganhem um sentido maior, propiciando um envolvimento e protagonismo crescentes em seu próprio processo de formação docente. 3.1 Questionamentos iniciais Ao optar por participar do vestibular para ingressar no presente curso, você certamente apresentava uma série de motivações, bem como um conjunto de ideias sobre “o que” seria apresentado e “como” os conteúdos seriam abordados. Vamos fazer um exercício recordando algumas dessas lem- branças! Elas serão úteis no encaminhamento do presente tópico. Figura 3.1 / Fonte: Thinckstock Agora é a sua vez... Acesse o ambiente virtual e realize a atividade 3.1. 29 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp Quando refletimos sobre “o que” incluir em um curso de formação de professores, como este, estamos também nos referindo aos chamados “saberes docentes” e seu papel na formação do professor. No presente tópico, iremos abordar justamente os saberes que são próprios do ofício de pro- fessor. Podemos afirmar que os professores sabem alguma coisa que é própria de sua profissão, mas o que exatamente eles sabem? Iniciamos nosso estudo levantando diversos questionamentos a cerca deste conhecimento específico do professor. Posteriormente, aprenderemos um pouco sobre as características e pro- priedades desse mesmo conhecimento. Afinal, que saber é esse? Professores seriam apenas transmissores de saberes produzidos por um outro grupo, ou eles mesmos produzem os saberes que ensinam? Qual é o papel do professor na seleção e definição dos saberes que serão ensinados dentro da escola? Será que esta definição é feita apenas institucionalmente? Essas perguntas já indicam a existência de uma relação de questionamento entre os profes- sores e os saberes, não é mesmo? Por esse motivo, nosso principal objetivo no decorrer deste tópico é apresentar um esboço dessa relação estabelecida dentro e fora da sala de aula. Pretendemos que, após a leitura dos textos desta semana, você pense em sua formação tendo como base os aspectos nele apresentados. Assim, poderá construir de forma consciente seu repertório de conhecimentos, tornando-se protagonista do processo de formação. 3.2 O que seria um saber? Todas as atividades humanas estão impregnadas de saberes que, na maioria das vezes, não são formalizados. Por exemplo, uma pessoa que bebe água porque sente sede, não necessaria- mente sabe formalmente que este elemento tem papel fun- damental em seu metabolismo. Ela simplesmente responde a uma necessidade corporal. Algumas vezes, ela pode reconhecer a importância da hidratação, mas não o papel da água em sua vida. O mesmo ato, beber água, pode ter uma multiplicidade de significados, dependendo do Figura 3.2 / Fonte: Thinckstock 30 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp conhecimento agregado a ele. E as modificações que este ato pode sofrer também dependem dos conhecimentos a ele associados. Podemos dizer que cada tipo de profissão mobiliza um conjunto de saberes que não são compartilhados por pessoas que não a praticam. Um médico, por exemplo, possui conhe- cimentos acerca do funcionamento do corpo humano. Um engenheiro ou um músico não compartilham desses saberes com o médico. O ato de beber água, como no exemplo anterior, é praticado pelos três, porém, terá significados de natureza completamente diferente agregados a ele. O ato de beber a água e os conhecimentos agregados a ele podem ser chamados, conjun- tamente, de “saber”. Portanto, podemos dizer que um saber consiste em um repertório de conhecimen- tos, práticas, competências e habilidades que são mobilizadas para a resolução das tarefas enfrentadas diariamente por uma pessoa. Esse repertório, como veremos adiante, pode ser proveniente dos mais diferentes processos. Pode ser obtido formalmente, em uma ou mais instituições de ensino, pode ser obtido através da experiência durante a prática profissional específica, pode ser construído e desenvolvido ao longo dos anos e sob a ação de influências diversas. Conclusivamente, o conceito de saber não se encerra em si mesmo, ele envolve ainda uma diversidade de outros conceitos que realizam influência uns sobre os outros, continuamente. É importante notar também a dinamicidade dessa definição, que nos permite afirmar que os saberes não são engessados, que a todo tempo são passíveis de modificações. O que nos interessa neste ponto, então, é compreender quais seriam os principais saberes que fazem parte do ofício do professor, para podermos responder satisfatoriamente aos questiona- mentos propostos anteriormente neste mesmo tópico. E podemos afirmar de antemão que essa não será uma tarefa fácil, justamente por tentar compreender e identificar as nuances de um conceito que possui tantas variáveis. Será que esses saberes específicos poderiam nos fornecer informações importantes sobre a formação e atuação do profissional professor? É o que abordaremos a seguir. 31 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp 3.3 Os saberes docentes 3.3.1 Definição Como vimos, quando falamos de saberes, referimo-nos não só a um repertório de conheci- mentos, mas devemos também levar em consideração as experiências, habilidades, competências etc. No caso dos saberes docentes, a referência é feita a um repertório sobre o ensino, que abarca também os juízos e os discursos necessários ao exercício da tarefa docente. Esses conhecimentos não são explícitos. Por esse motivo, não raramente, os conhe- cimentos acerca do ofício de professor resultam em um con- junto de ideias pré-concebidas que contribuem para manter a atividade docente em um “limbo conceitual”. Ao contrário do que muitos acreditam, a relação dos docentes com seus saberes não se restringe apenas à função de transmissão de conhecimentosjá definidos. A prática do- cente integra variados saberes, com os quais os professores mantêm diferentes relações. Nesse sentido, podemos definir o saber docente, como um repertório específico, porém, plural, que tem suas raízes em saberes provenientes da formação profissional e saberes curriculares, disciplinares e experienciais. Em suma, podemos dizer que os saberes que servem de base para o ensino não se limitam a conteúdos com limites bem definidos que dependem de um conhecimento especializado. Esses saberes podem abranger uma grande diversidade de problemas, questões e objetos que, em conjunto, fazem parte do trabalho docente. Veremos isso com mais detalhes nos próximos itens deste tópico. Figura 3.3 / Fonte: Thinckstock 32 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp 3.3.2 Determinação dos Saberes Depois de compreendermos o termo saber docen- te, é importante realizar uma reflexão a respeito dos fatores que o determinam. Para tanto, é preciso tomar cuidado ao considerarmos que este saber é determina- do exclusivamente de uma forma ou de outra. A princípio, isso pode parecer confuso, mas não é raro encontrarmos argumentos que consideram o saber docente como algo determinado indivi- dualmente, o que Tardifchama de “mentalismo”. Considerar que os saberes são apenas individualmente construídos consiste em reduzi-los a processos mentais cujo único suporte é a atividade cognitiva do professor. Isso significa consi- derar esse saber como algo subjetivado pelas atividades mentais do indivíduo. Entretanto, devemos levar em consideração que os saberes docentes são também de caráter social. Por exemplo, ele é partilhado por um grupo amplo de agentes como os professores que estão inseridos em um contexto específico de trabalho, no qual há uma definição das matérias a serem ensinadas e das regras a serem seguidas, além da relação com outros profissionais. Portanto, as práticas e representações de um determinado professor só ganham sentido quando as colocamos em destaque em relação à situação coletiva de trabalho. Além disso, esse saber é legitimado por todo um sistema institucional que pode ser represen- tado por uma universidade, um ministério, um grupo científico etc. Assim, podemos notar que o que um professor deve ensinar não constitui simplesmente um problema epistemológico ou cognitivo, mas também deve ser considerada a questão social. É neste momento que devemos tomar cuidado para não sermos seduzidos pelo que Tardifchama de “sociologismo”, pois ao darmos importância em demasia a essa perspectiva, tendemos a eliminar totalmente a contribuição dos atores na construção concreta do saber, privando-os da capacidade de transformação de sua própria situação e ação. É importante, a partir dessa reflexão, procurarmos situar o saber do professor na interface entre o individual e o social, entre o professor (ator) e o sistema do qual ele faz parte. Figura 3.4 / Fonte: Thinckstock 33 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp 3.3.3 Grandes tipos de saberes Estudaremos os saberes docentes divididos em quatro grandes linhas, para depois verificar- mos as relações que os docentes estabelecem com esses saberes. Atenção, nesse ponto é muito importante destacar que essa é uma divisão de caráter muito mais pragmático do que poten- cialmente real. Ela apenas nos ajuda a estudar as partes de um todo. Tais partes são totalmente interligadas e assim devem ser encaradas. Nossas grandes linhas de abordagem serão: 1. Formação Pedagógica (referente à formação profissional) 2. Saberes Disciplinares 3. Saberes Curriculares 4. Saberes Experienciais 3.3.3.1 Saberes Pedagógicos Podemos nos referir aos saberes pedagógicos como aqueles pro- venientes das instituições de formação de professores (faculdades de pedagogia, licenciatura e as antigas escolas normais). As ciências da educação procuram incorporar as pesquisas feitas no âmbito educativo (aquelas que têm o ofício do professor como objeto de estudo) às praticas docentes. Nesse sentido, podemos afirmar que esses conhecimentos aca- dêmicos promovem modificações à erudição dos professores. Além disso, a articulação entre esses conhecimentos e a prática pedagógica se estabelece através da formação inicial ou contínua dos professo- res, pois é no decorrer de sua formação que o professor entra em contato com as ciências da educação, como você está fazendo neste momento. A prática docente, contudo, não é apenas objeto de estudo, ela também pode ser definida como uma atividade que mobiliza igualmente saberes pedagógicos. Estes saberes pedagógicos consistem em doutrinas ou concepções sobre a prática educativa. Como exemplo, temos as ideias pedagógicas centradas na ideologia da escola nova, como vimos no tópico 2 História das ideias pedagógicas. Figura 3.5 / Fonte: Thinckstock 34 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp Essas ideias são incorporadas à formação profissional dos docentes, fornecendo, não somente um esqueleto ideológico à profissão, mas também um saber-fazer que possibilita um conjunto de técnicas que podem ser utilizadas por este profissional. 3.3.3.2 Saberes Disciplinares Os saberes disciplinares podem ser definidos como aque- les estabelecidos socialmente e nas instituições universitá- rias. São aqueles saberes relativos às disciplinas universitárias, que correspondem a diversos campos do conhecimento, no nosso caso, as ciências. Os saberes disciplinares são transmiti- dos nas universidades independentemente das faculdades de educação, referem-se, portanto, a um conteúdo específico sobre o qual o professor versará. Esses saberes são definidos pela tradição cultural da sociedade na qual o professor está inserido. Vale ressaltar que, muitas vezes, o pensamento de senso comum aponta serem esses os únicos ou os mais importantes saberes necessários ao professor. Aqui lembramosdaquela velha ideia de que “Se a pessoa sabe o conteúdo, saberá ensiná-lo”. Um dos principais intuitos do presente tópico é justamente desconstruir tal ideia. �uitos de nós já passamos pela experi-ico é justamente desconstruir tal ideia. �uitos de nós já passamos pela experi-co é justamente desconstruir tal ideia. �uitos de nós já passamos pela experi- ência de ter um professor daqueles que são considerados como “sabe-tudo”, que percebemos entender muito de sua disciplina. No entanto, também pode ser aquele que “não se faz entender”. Esse caso típico exemplifica como os saberes docentes formam um conjunto muito bem interligado. Dessa forma, podemos afirmar com bastante segurança que não basta ter um amplo conhecimento dos saberes disciplinares para exercer satisfatoriamente a função docente. �as, atenção: se ele não é condição única necessária, certamente é uma das impor- tantes condições que fazem parte do conjunto! Figura 3.6 / Fonte: Thinckstock 35 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp 3.3.3.3 Saberes Curriculares Os saberes curriculares correspondem a um conjunto de conhecimentos, metodologias, recursos e práticas discursi- vas que são selecionados pela instituição na qual o docente leciona. Essa instituição define os saberes sociais inseridos no projeto de erudição do aluno. Consiste basicamente nos programas escolares que os professores devem não somente apreender, mas também aplicar. 3.3.3.4 Saberes Experienciais Finalmente, podemos também levar em consideração os saberes desenvolvidos pelos professores ao longo de sua prática docente. Esses saberes são construídos e validados na própria prática pedagógica e seincorporam à experiência individual e coletiva, sob a forma de hábitos e habilidades. Podemos chamá-los também de saberes práticos. Devemos, entretanto, tomar cuidado para não confundir o saber experiencial, que podemos chamar de um “saber prático”, com um “saber da prática”. Os saberes práticos (ex- perienciais) não se superpõem à prática para conhecê-la melhor, mas integram-se a ela e, em conjunto, constituem a prática docente. Eles representam, em suma, a cultura docente em ação. Raramente veremos um docente atuando sozinho, ele quase sempre se encontra em in- teração com outras pessoas, a começar pelos alunos. É da natureza da profissão docente a interação com outras pessoas. E, neste contexto, o elemento humano é determinante, pois a interação só se realiza a partir da utilização de símbolos, sentimentos, atitudes e valores que são interpretados constantemente. A mediação dessas interações ocorre através de diversos canais: comportamento, discurso etc. O professor precisa estar ciente de sua capacidade de atuar como sujeito, e não objeto, deste processo. Essa capacidade é geradora de crenças particulares a respeito da própria prática, o que terá importante influência sobre a eficácia do trabalho do docente. Figura 3.7 / Fonte: Thinckstock Figura 3.8 / Fonte: Thinckstock 36 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp Podemos dizer que um professor ideal, segundo Tardif, é aquele que “(...) deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia, e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos”. Podemos inclusive dizer que os professores constituem um grupo social e profissional que precisa fazer múltiplas articulações entre a prática docente e os saberes. Esses professores pre- cisam, acima de tudo, ter a capacidade de dominar, integrar e mobilizar tais saberes, por serem condicionais para sua prática. Tardif define, então, ao menos três “objetos” dos saberes experienciais que constituem a própria prática e que só se revelam através dela: 1. Relações e interações que os professores estabelecem e desenvolvem com os demais atores do campo de sua prática. 2. As diversas obrigações e normas às quais seu trabalho deve submeter-se. 3. A instituição enquanto meio organizado e composto de funções diversificadas. E três condições muito importantes decorrem desses “objetos”: A. É justamente através do estabelecimento desses objetos que uma defasagem se instala, distanciando de forma crítica os saberes experienciais, daqueles saberes adquiridos duran- te a formação. Alguns professores podem sofrer um choque nos primeiros momentos de ensino ao descobrirem os verdadeiros limites de seus saberes pedagógicos. E os cami- nhos a serem seguidos por esses novos professores podem ser: o caminho da rejeição do conhecimento pedagógico obtido na formação, o caminho de uma reavaliação fazendo com que este profissional selecione de seu repertório obtido na formação aquilo que lhe será verdadeiramente útil ou, por último, o caminho da relativização de qual seria a ver- dadeira função dos conhecimentos, que foram adquiridos como úteis a outros aspectos de sua profissão, que seriam relacionados indiretamente às situações de ensino. B. Na medida em que o novo docente se assegura de sua prática, ele adquire hábitos que determinam sua personalidade profissional, o que servirá para distingui-lo dos outros profissionais. Agora, este profissional utiliza uma maneira própria de ensinar e deve provar a si mesmo que é capaz de realizar esta tarefa de forma eficaz. C. Também é importante considerar que os “objetos” não terão o mesmo valor aos profis- sionais. Por exemplo, saber reger uma sala de aula não tem o mesmo valor para o docente que o conhecimento dos mecanismos de funcionamento da secretaria de ensino, embora 37 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp ambos constituam o seu saber experiencial. Os objetos obedecem, portanto, a uma hie- rarquia que obedece às dificuldades que o profissional encontra durante sua prática. 3.4 A relação dos professores com esses saberes Podemos considerar que os professores ocupam uma posição estratégica em relação aos saberes, porém, ao mesmo tempo, esta posição é socialmente desvalorizada. É fato que os saberes de formação profissional, disciplinares e curriculares dos docentes são incorporados efetivamente durante a prática docente, portanto, parecem sempre ser de se-, parecem sempre ser de se- gunda mão. Em verdade, o problema é que a relação que os professores estabelecem com estes saberes é a de meros “transmissores”, “portadores”, podendo até mesmo correr o risco de serem encarados apenas como “objetos” de saber. Infelizmente, o professor não demonstra-se “produtor” de um saber. Nessa perspectiva, poderíamos comparar os professores a técnicos que têm a função de executar a tarefa de transmitir conhecimentos a seus alunos. Como os saberes profissionais, curriculares e disciplinares são determinados pelas instituições de formação, a relação que o professor mantém com os saberes é de exterioridade, ou seja, uma tendência a desvalorizar sua própria formação profissional. E como poderíamos superar isso? Reflexão... Antes de prosseguirmos com nosso estudo, reflita sobre a seguinte questão: “pensando-se nos quatro tipos de saberes docentes estudados no presente capítulo (pedagógicos, disciplinares, curriculares e experienciais), podemos dizer que todos possuem a mesma importância na atuação de um professor ou, por outro lado, existe uma escala de valor entre eles?” A resposta não está fechada. No entanto, podemos dizer que não existe uma subordinação real entre os diferentes tipos de saberes. Todos eles são importantes na formação e atuação do professor, complementando-se mutuamente. 38 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp 3.5 Características dos saberes docentes Uma das características para a qual Tardif chama mais a aten- ção é o fato de que o saber se manifesta através de relações entre o professor e seus estudantes, por isso não pode ser considerado uma substância ou um conteúdo que se encerra em si mesmo. Para o autor, o professor aprende a ensinar fazendo o seu trabalho. Ele deixa claro que, enquanto em uma disciplina comum: aprender é conhecer, em uma prática: aprender fazer é conhecer fazendo. E no modelo aplicacionista de formação de professores, que encontramos em vigência na maioria das instituições de ensino, este conhecer e este fazer são dissociados. Podemos intuir, através desta discussão, que o saber docente não consiste em um conjunto de conteúdos cognitivos definidos, mas ele se constrói no decorrer de uma carreira profissional na qual o professor aprende a dominar seu ambiente de trabalho de forma progressiva. Segundo diversas pesquisas realizadas por Tardif e outros pesquisadores da área, como , os saberes docentes caracterizam-se por serem plurais, temporais, heterogêneos, personalizados e situados, além de carregar marcas do ser humano. Essas características ganham importância por trazerem à tona conhecimentos e manifestações de um saber-fazer bastante diversificado e advindo de fontes igualmente diversificadas. Vários autores tentaram classificar essa diversidade dos saberes docentes, gerando as mais diversas tipologias. Entretanto, essas tipologias, por muitas vezes, apresentaram-se confusas. Como exemplo, o fato de não definirem o “saber” de forma clara, ou simplesmente por se basearem em elementos que são incomparáveis entre si, como fenômenos sociais e princípios epistemológicos.Uma tentativa muito fortuita foi a de tentar criar um modelo de análise com base na origem social de todo este pluralismo epistemológico. O resultado encontra-se no quadro a seguir. Figura 3.9 / Fonte: Thinckstock 39 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp Saberes dos professores Fonte social de aquisição Modos de integração no trabalho docente Saberes pessoais dos professores A família, o ambiente de vida, a educação no sentido lato etc. Pela história de vida e pela socialização primaria Saberes provenientes de formação escolar anterior As escolas primária e secundária, os estudos pós-secundários não especializados etc. Pela formação e pela socialização pré-profissionais Saberes provenientes da formação profissional para o magistério Os estabelecimentos de formação dos professores, os estágios, os cursos de reciclagem etc. Pela formação e socialização profissionais nas instituições de formação de professores Saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no trabalho A utilização das “ferramentas” dos professores: programas, livros didáticos, cadernos de exercícios, fichas etc. Pela utilização das “ferramentas” de trabalho, sua adaptação às tarefas Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola A prática do ofício na escola e na sala de aula, a experiência dos pares etc. Pela prática do trabalho e pela socialização profissional Notamos que o saber docente resulta da confluência entre diversas fontes de saberes pro- venientes da história de vida individual, da sociedade, do lugar de formação, dos outros atores educativos, da instituição escolar etc. Como estes fatores estão todos misturados na prática docente, é muito difícil identificar a origem desses saberes de forma imediata. Cabe, então, dizer que os saberes docentes são caracterizados por um sincretismo. �as o que isso quer dizer? Isso significa que seria uma tarefa sem sentido procurar uma unidade teórica para um conjunto de conhecimentos tão fluido. Apesar de ser interessante a classificação que vimos na tabela, não podemos esquecer que, ao mesmo tempo, ela é simplificadora, pois dá a impressão de que estes saberes são estáticos e não possuem um componente temporal! Por este motivo, veremos a seguir algumas das diversas dimensões que podemos consi- derar quando estudamos os saberes docentes. Você pode se perguntar o porquê de estudar essas dimensões específicas! Escolhemo-las porque assim como o autor define, elas são divisões didáticas que permitem um estudo mais direcionado. Contudo, é importante lembrar que elas são apenas recortes de um todo muito maior. Vejamos como cada uma dessas dimensões características do saber se articulam. Consideramos aqui as dimensões que tomam os saberes docentes como saberes que podem ser plurais, tempo- rais, heterogêneos, personalizados e situados. Os saberes, então, são: 40 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp Temporais Podemos afirmar que os saberes docentessão temporais por serem construídos ao longo do tempo. E ossão em três diferentes sentidos: 1. Boa parte do que os professores conhecem sobre ensino advém de sua própria história de vida, principalmente de sua própria experiência escolar. Diferentemente da maioria das profissões, os professores ficam em contato com seu futuro campo de trabalho durante pelo menos 16 anos. Isso traz um conjunto de crenças e representações que podem ser difíceis de romper durante sua formação acadêmica. 2. Os primeiros anos da prática profissional são considerados decisivos na construção de um sentimento de competência diante das tarefas que ele precisa realizar como educador. 3. Eles podem ser também considerados temporais porque se desenvolvem através da uti- lização no decorrer de toda uma carreira, ou seja, de um processo de vida profissional de longa duração. Plurais e Heterogêneos Assim como a dimensão temporal, podemos afirmar que os saberes são plurais e heterogêneos em três diferentes sentidos: 1. Eles advêm de variadas fontes. Durante a prática docen- te, o professor pode usar como referência sua cultura pessoal, sua cultura escolar anterior, da cultura univer- sitária, e assim sucessivamente. Ou seja, ele se apoia nos diferentes tipos de saberes que estudamos anteriormente. 2. Estes saberes também são plurais e heterogêneos porque não se restringem a uma disciplina, ao contrário, são altamente ecléticos e sincréticos (sistema filosófico que combina os princípios de várias doutrinas). 3. Estes saberes também são plurais e heterogêneos porque, durante a prática docente, o professor procura atingir variados objetivos. E ao ter como meta diferentes objetivos, o professor não precisa mobilizar exatamente os mesmos tipos de conhecimentos, mesmo que o tema a ser ensinado seja o mesmo. Podemos usar como exemplo um Figura 3.10 / Fonte: Thinckstock Figura 3.11 / Fonte: Thinckstock 41 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp professor tentando ensinar o processo reprodutivo dos vegetais. Ao mesmo tempo que ele está tentando ensinar o conteúdo (objetivo 1), ele também tenta controlar a sala (objetivo 2), motivar seus alunos (objetivo 3) etc. Personalizados e Situados Como os saberes docentes são personalizados e situados, seria incongruente estudá-los apenas com base nos processos cognitivos ou do pensamento dos professores. O que as pesquisas sobre os saberes dos professores têm de- monstrado é que esses saberes raramente são formalizados, ou seja, são altamente personalizados por terem sido apropriados, incorporados e subjetivados. Tal processo é tão característico, que fica difícil desvincular os saberes docentes das pessoas que os constroem. Além de personalizados, são também situados, pois são construídos e utilizados em uma situação particular de trabalho, que demanda a mobilização de diferentes conhecimentos pelo professor. Podemos dizer que nesta visão, os saberes docentes são contextualizados. Possuem a Marca do Ser Humano Podemos dizer que os saberes dos professores trazem marcas de seu objeto de trabalho. Como o objeto do traba- lho do professor são os seres humanos, os saberes docentes trazem características como a individualidade de seus alunos e a necessidade de manutenção da motivação para a ocorrência efetiva da aprendizagem. Em ambos os casos, precisamos da sensibilidade do pro- fissional para conseguir, dentro de um grupo extremamente heterogêneo, captar as nuances da individualidade de cada um de seus alunos, para traçar estratégias eficazes de aprendiza- gem. O professor até pode manter o aluno na sala de aula, porém, não é possível obrigá-lo a aprender. Para tanto, o professor precisa fazer com que os alunos aceitem entrar em processo de aprendizagem. Estes alunos precisam ser motivados. �otivar é uma tarefa que exige mediações complexas para que os alunos se envolvam em determinada tarefa, como exemplo a sedução, a autoridade, as punições etc. Figura 3.12 / Fonte: Thinckstock Figura 3.13 / Fonte: Thinckstock 42 OS SABERES DOCENTES 3 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp 3.6 Formação e saberes docentes O conhecimento dos saberes que norteiam a profissão docente permite-nos repensar a formação deste profissional. Vejamos algumas características da formação de professores de um ponto de vista crítico: A formação docente atual é idealizada a partir de um modelo aplicacionista do conhecimento, ou seja, o aluno passa alguns anos cursando disciplinas com conteúdos específicos de sua área e, ao fimdo curso, o aluno realiza um estágio, onde deverá “aplicar” os conhecimentos obtidos nos anos anteriores. Após completar sua formação, este novo professor começa a trabalhar sozinho, aprendendo na prática que os conhecimentos que recebeu durante o curso não se aplicam bem a seu cotidiano. Esse modelo possui diversos problemas. O primeiro deles consiste no fato de não ser ide- alizado segundo uma lógica profissional, e sim disciplinar. Em uma disciplina “aprender é co- nhecer”, mas em uma prática “aprender é fazer e conhecer fazendo”. Portanto, neste modelo, o conhecer está separado do fazer. O segundo problema consiste em considerar o aluno como uma tabula rasa, sem levar em consideração, durante sua formação, suas crenças e representações anteriores. Este modelo se limita a transmitir as informações do conteúdo. Ao tecer essas críticas, um promissor campo de pesquisa se revela: A reconstrução epistemo- lógica da profissão. Como assim? É simples: os professores universitários, com base no estudo dos saberes docentes, poderão elaborar um repertório completamente novo de conhecimentos para o ensino. Repertório baseado nos conhecimentos profissionais dos professores em sua prá- tica, utilizando e mobilizando conhecimentos que sejam realmente próprios da prática docente. Através dessa perspectiva, poder-se-á construir um projeto de formação docente realmente eficaz e útil, o qual o professor formado seja capaz de utilizar nos mais diversos contextos, de forma pertinente e satisfatória. Figura 3.14 / Fonte: Thinckstock Agora é a sua vez... Acesse o ambiente virtual e realize a atividade 3.2. 43 VIDA E MEIO AMBIENTE Introdução aos Estudos da Educação Licenciatura em Ciências · USP/Univesp 3.7 Para saber mais Devido a sua importância, existe uma vasta literatura sobre o tema abordado no presente tópico. Selecionamos alguns materiais disponíveis na internet para que você possa aprofundar seus estudos. Um panorama sobre as pesquisas brasileiras sobre saberes docentes e formação de professores http://www.scielo.br/pdf/%0D/es/v22n74/a03v2274.pdf http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n13/n13a02.pdf Bibliografia Cunha,E.R. Práticas avaliativas bem-sucedidas de professoras dos ciclos de formação da Escola Cabana de Belém. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2003. JoRdão, R.S. Tutoria e pesquisa-ação no estágio supervisionado: contribuição para a formação de professores de Biologia. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. São Paulo: sn, 2005. PoRlán, R.a.; RivERo, a.G. & MaRtín, R.d.P. Conocimiento profesional y epistemologia de los profesores I: teoría, métodos e instrumentos. Enseñanza de Las Ciencias, v. 15, nº 2, p. 155-171, 1997. PoRlán, R.a.; RivERo, a.G & MaRtín, R.d.P. Conocimiento profesional y epistemologia de los profesores II: teoría, métodos e instrumentos. Enseñanza de Las Ciencias, v. 16, nº 2, p. 271-288, 1998. taRdif, M. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários – elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, ANPED, São Paulo, n. 13, jan./abr, 2000. taRdif, M.; RayMonf, d. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade, ano XXI, nº 73, 2000. taRdif, M. Saberes docentes e formação profissional. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. 3.1 Questionamentos iniciais 3.2 O que seria um saber? 3.3 Os saberes docentes 3.3.1 Definição 3.3.2 Determinação dos Saberes 3.3.3 Grandes tipos de saberes 3.3.3.1 Saberes Pedagógicos 3.3.3.2 Saberes Disciplinares 3.3.3.3 Saberes Curriculares 3.3.3.4 Saberes Experienciais 3.4 A relação dos professores com esses saberes 3.5 Características dos saberes docentes 3.6 Formação e saberes docentes 3.7 Para saber mais
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