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Licenciatura em ciências · USP/ Univesp 1.1 Introdução 1.2 A Escola Nova 1.3 O Tecnicismo Educacional 1.4 A Pedagogia Crítica 1.5 A Pedagogia das Competências 1.6 Pedagogias em conflito Referências Bibliográficas In tr od uç ão a o Es tu do s da E du ca çã o II Marcos Garcia Neira A INfluêNCIA dAs TRANsfORMAçõEs sOCIAIs NAs CORRENTEs PEdAGóGICAs1 O material desta disciplina foi produzido pelo Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada (CEPA) do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) para o projeto Licenciatura em Ciências (USP/Univesp). Créditos Coordenação de Produção: Beatriz Borges Casaro. Revisão de Texto: Marcia Azevedo Coelho, Marina Keiko Tokumaru e Paulo Barroso. Design Instrucional: Fernanda Diniz Junqueira Franco, Gezilda Balbino Pereira, Juliana Moraes Marques Giordano, Marcelo Alves da Silva, Maria Angélica S. Barrios, Michelle Carvalho e Vani Kenski. Projeto Gráfico: Daniella de Romero Pecora, Leandro de Oliveira, Priscila Pesce Lopes de Oliveira e Rafael de Queiroz Oliveira. Diagramação: Daniella de Romero Pecora, Leandro de Oliveira e Priscila Pesce Lopes de Oliveira. Ilustração: Alexandre Rocha, Aline Antunes, Benson Chin, Camila Torrano, Celso Roberto Lourenço, João Costa, Lidia Yoshino, Mauricio Rheinlander Klein e Thiago A. M. S. Fotografia: Jairo Gonçalves. 3Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II Objetivos Compreender o paralelo entre as transformações sociais e seus reflexos na ação pedagógica. 1.1 Introdução Há algum consenso em torno da configuração atual da escola como um sistema complexo fre- quentado por pessoas oriundas de culturas diversas. Diante dos efeitos desse encontro, a instituição educativa se organiza de modo que tanto o controle quanto a regulação tendam a ser inevitáveis. A educação enfrenta o problema prático de como intervir para provocar determinada forma de ser, aprender, sentir e agir, ou seja, como fazer para formar o cidadão projetado. Se o que se propõe é a liberdade do indivíduo como pretensão básica da prática educativa, é razoável afirmar que esse desejo contradiz as intenções de uma sociedade cada vez mais homogênea. A normatização didática que busca a formação para uma cidadania livre e crítica se encontra carregada de uma radical indetermi- nação: quanto mais eficaz e rico for o processo de intervenção, mais imprevisíveis serão seus resultados. Figura 1.1: As transformações sociais e seus reflexos na ação pedagógica. 4 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas Sem a pretensão de aprofundar a trajetória histórica da escolarização, neste texto, procurou-se traçar um paralelo entre as transformações sociais e seus reflexos na ação pedagógica. Cabe destacar que a abordagem eleita se refere à construção da sociedade moderna europeia, cujos efeitos estão fortemente enraizados no modo ocidental de pensar e fazer a educação escolar. Parte-se do pressuposto de que uma determinada concepção didática surge e se estabelece em meio à fertilidade proporcionada pelo contexto histórico, pelas relações sociais e pela produção científica disponível, sendo essa conjunção de fatores o elemento desencadeante da configuração de práticas pedagógicas distintas, influenciando os diversos componentes curriculares. 1.2 A Escola Nova Na transição do século XIX para o XX, a sociedade brasileira assumiu um novo desenho ao incorporar a população negra pós-abolição e as diversas etnias imigrantes que desembarcavam em número crescente. Em consonância com as transformações sociais, o sistema educacional praticamente ine- xistente vinculou-se às ideias propaladas pela elite republicana que pretendia projetar o Brasil como nação desenvolvida. A modernização do país e sua consequente urbanização inclinaram os objetivos educacionais para a formação de uma geração capaz de participar do processo crescente de industrialização. Nesse contexto, o ensino oscilava entre dois modos de interpretar a relação didática: a ênfase no sujeito – que seria induzido, talvez “seduzido” a aprender pelo caminho com curiosidade e motivação – e a ênfase no método como caminho que conduz do não-saber ao saber, caminho formal descoberto pela razão humana. A disseminação de explicações psicológicas acerca da natureza infantil no final do século XIX suscitou uma atenção maior aos aspectos interno e subjetivo do processo didático. Uma postura ativa do aprendiz passou a ser defendida pelos setores que conferiam à escola o poder de Saiba mais sobre a imigração Assista ao vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=iPzcjR647JQ http://www.youtube.com/watch?v=iPzcjR647JQ 5Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II equacionar os problemas sociais decorrentes do sistema capitalista. Foram introduzidos procedi- mentos didáticos que compreendiam as diferenças individuais como ponto de partida para que a escola adaptasse os indivíduos marginalizados pela sociedade (Neira, 2010a). Tal movimento doutrinário e ideológico caracterizou-se por sua denominação mais comum: Escola Nova, também Renovada, Ativa ou Progressista, conforme as vertentes de sua atuação. Contrapõe-se, pois, a concepções consideradas antigas, tradicionais, voltadas para o passado. (LibâNeo, 1991) A característica mais marcante do escolanovismo foi a valorização da criança, vista como ser dotado de poderes individuais, cuja liberdade, iniciativa, autonomia e interesses deveriam ser respeitados. O movimento escolanovista preconizava a solução de problemas educacionais em uma perspectiva interna da escola, sem considerar a realidade brasileira nos seus aspectos polí- tico, econômico e social. O problema educacional passou a ser uma questão escolar e técnica. A ênfase recaiu no ensinar bem, mesmo que a uma minoria. Devido à predominância desses princípios na legislação educacional e nos cursos de formação, os docentes absorveram o seu ideário. Como era de se esperar, a prática pedagógica também foi influenciada, acentuando o caráter pragmático do processo ensino-aprendizagem, no qual teoria e prática foram justapostas. Entre os métodos e técnicas mais difundidos pela educação renova- da, destacam-se os centros de interesse, estudo dirigido, unidades didáticas, método dos projetos, fichas didáticas, jogos pedagógicos, contrato de ensino etc. (CaNdau, 1999). Como decorrência, a educação foi entendida como um conjunto de ações e métodos, privilegiando a dimensão técnica do processo, fundamentada nos pressupostos psicológicos, e expe- rimentais, cientificamente validados na experiência e constituídos por teorias que ignoravam o contexto sociopolítico e histórico. As novas posições abandonaram a racionalidade e passaram No Brasil, o período situado entre 1930 e 1945 foi marcado pelo equilíbrio entre as influências da concepção humanista tradicional (representada pelos católicos) e humanista moderna (representada pelos pioneiros). Para Saviani (1983), a concepção humanista moderna se baseava em uma visão de homem centrada na existência, na vida, na atividade, havendo um predomínio do aspecto psicológico sobre o lógico. O escolanovismo projetava um novo tipo de homem, que defendia princípios democráticos, isto é, todos teriam direitos ao desenvolvimento próprio. No entanto, isto seria feito em uma sociedade dividida em classes, com diferenças evidentes. 6 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas a ser mediadas pela ciência psicológica, inspiradas nos ares da vida moderna e do novo cidadão industrial e tecnológico, ou seja, os pressupostos que fundavam a função escolar correspondiam plenamente à lógica capitalista e à busca pelo desenvolvimento. O movimento escolanovista objetivava a superação do caráter discriminatório da escola de então, na qualo aluno que não acompanhasse o ensino era desqualificado, evidenciando um caráter essencialista de incapacidade mental. Defendia também a edu- cação obrigatória, laica, gratuita, a coeducação dos sexos e atribuição de Estado. Entre as suas preocupações, descreve Aranha (2006), constava a necessidade de valorizar as crianças, compreendendo seus comportamentos por meio da Biologia, Psicologia Social, Psicologia Evolutiva, Sociologia e da Filosofia. O mundo ocidental estava no caminho do que se convencionou chamar de Estado representativo, seja na forma de monarquia consti- tucional seja na de república. O pressuposto era a igualdade entre os homens e a educação política do povo só seria permitida mediante princípios liberais. Quanto ao modelo socialista que se desenvolveria a partir do primeiro quarto do século XX, sua própria necessidade de reorganização política impunha um esforço educacional, o que suscitou desconfianças do escolanovismo. Não é mera coincidência que a era do liberalismo e do capitalismo, da industrialização e urbanização tenha exigido novos rumos à prática escolar. Na burguesia dominante e enriquecida, a Escola Nova encontrou ressonância com seus ideais de liberdade e atividade. É preciso considerar, no entanto, que já se iniciavam as novas doutrinas socialistas que ao final do século seriam progressivamente dominadas pelo marxismo. Na prática, o século XX presenciou o despontar dos poderes públicos com relação à escola popular e os debates entre a escola laica e a confessional. A partir daí, desenvolveram-se lutas ideológicas em torno da oposição entre defensores da escola privada e da escola pública. A disseminação das ideias renovadoras ganhou força com a metodologia elaborada por Maria Montessori nas escolas católicas, a criação dos Ginásios Pluricurriculares e Vocacionais e a importação, através de acordos internacionais, de recursos tecnológicos educacionais (Neira, 2010). Figura 1.2: Teórico importante na concepção escolanovista, John Dewey considerava que a educação é o único meio efetivo para a construção de uma sociedade democrática. 7Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II As inovações passaram a produzir sensibilidades e ritmos na sociedade, os quais faziam entrever, por exemplo, modalidades inéditas na intervenção disciplinar. Ao professor cabia “guiar a liberdade” dos estudantes com a intenção de garantir que o “máximo de frutos” fosse obtido com um mínimo de esforço e tempo, o que resulta em eficiência. Desse modo, disciplinar não era mais prevenir, e sim moldar. O ensino nesta fase também se inspirava no liberalismo e no pragmatismo, acentuando a predominância dos processos meto- dológicos em detrimento da própria aquisição de conhecimentos. A prática escolar prosseguia sem considerar o contexto político-social, acentuando, dessa forma, o enfoque renovador tecnicista na esteira do movimento escolanovista. 1.3 O Tecnicismo Educacional As lutas sindicais no início do século passado, dirigidas contra o taylorismo1, coincidiram com as iniciativas de democratização da sociedade e uma reestruturação tanto da função social da escola quanto da prática educativa. Os pressupostos tayloristas acentuavam a divisão social e técnica do trabalho, separando o labor manual do intelectual. Seus princípios organizacionais proporcionaram a ampliação do sistema de produção, possibilitando um maior acúmulo e concentração de capital e dos meios de produção. Entre seus métodos, destacava-se o barateamento da mão de obra e, concomitantemente, a desapropriação dos conhecimentos dos trabalhadores. O trabalho era realizado em linhas de produção decompostas em operações automáticas de fácil manuseio. Esses procedimentos foram acompanhados da centralização de decisões, afastando qualquer possibilidade de participação do operariado tanto na gestão quanto nas decisões e controle empresarial. Nessa lógica, adverte Torres Santomé (1998), as pessoas deveriam ser preparadas para ocupar o seu lugar em um dos dois grupos: os que pensam e decidem e os que obedecem e executam. Figura 1.3: Maria Montessori: segundo a visão pedagógica da pesquisadora italiana, o potencial de aprender está em cada um de nós. 1 Termo decorrente do nome do seu criador - Frederick Wislow Taylor. 8 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas Na onda do desenvolvimento, Henry Ford criou a organização e distribuição de tarefas em uma esteira trans- portadora, efetivando a linha de montagem2 na indústria automobilística. As consequências dos modelos de administração e produção recém-inventados contribuíram ainda mais para a desqualificação e desvalorização da classe trabalhadora e a mecani- zação homogeneizante do trabalho. Com as esteiras, o operariado não precisava sair do lugar, pois o mecanismo aproximava as peças, obtendo-se a redução do tempo para a realização das tarefas. Essa lógica favoreceu a divisão social e técnica do trabalho, pois entender os princípios e etapas da produção era atributo exclusivo dos poucos especialistas. O desenvolvimento cada vez maior de novas tecnologias reduziu gradativamente a ação trabalhadora às atividades mais simples e rotineiras. Com a organização das formas de trabalho pré-estabelecidas por um grupo reduzido de mandatários, além da desapropriação do conhecimento da classe operária e a sua crescente substituição pela tecnologia, os trabalhadores foram definitivamente afastados da organização e gestão do processo industrial. Sem a necessidade de uma formação especializada, qualquer pessoa poderia ocupar um posto na linha de montagem. O operário visto como improdutivo ou “incômodo” poderia ser substituído sem prejuízo dos resultados. Consequentemente, os interesses do capital ancoraram-se na desqualificação do trabalhador. Figura 1.4: Ilustração do processo Taylorista / Fonte: http://estavasim.blogspot. com/2011/04/maneiras-bem- humoradas-de-se-pensar-o.html 2 Decorre daí o termo “fordismo”, empregado para nomear esse sistema de trabalho. http://estavasim.blogspot.com/2011/04/maneiras-bem-humoradas-de-se-pensar-o.html http://estavasim.blogspot.com/2011/04/maneiras-bem-humoradas-de-se-pensar-o.html http://estavasim.blogspot.com/2011/04/maneiras-bem-humoradas-de-se-pensar-o.html 9Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II Na primeira metade do século XX, a escola foi chamada a contribuir com a sociedade produ- tivista, ocasião em que o processo de atomização gerado na esfera trabalhista foi reproduzido no âmbito escolar. À época, o currículo sofreu influências das concepções de Bobbitt, cuja obra basilar The Curriculum (1918) se referenciava nas teorias da eficiência social, do livro de Ralph Tyler, Princípios Básicos do Currículo e Ensino (1949), e, finalmente, do movimento de estruturação das disciplinas, desenvolvido mais intensamente após o lançamento do Sputnik pelos russos em 1957 (Moreira; SiLva, 2005). A taylorização no processo de escolarização impedia que docentes e estudantes refletissem criticamente sobre a realidade. A educação pareceu atender apenas às tarefas que conduziam ao aprendizado da obediência e da submissão ao sistema aos patamares hierárquicos superiores. Os meios utilizados baseavam-se, por exemplo, no isolamento das disciplinas escolares e na descontextualização e distanciamento dos seus conteúdos da realidade, impossibilitando aos estudantes qualquer análise do seu mundo experiencial. À medida que avançavam na escolarização, cada vez mais eram criados obstáculos que impediam a compreensão dos significados dos processos de ensino e aprendizagem, reproduzindo na escola a mesma fragmentação e distorção que caracterizavam as linhas fabris de produção. Como na indústria, poucas pessoas necessitavam compreender a educaçãono seu conjunto e nas suas intenções. Os especialistas eram responsáveis pelo processo, elaboravam as diretrizes curriculares, os livros e os manuais didáticos. Aos estudantes e docentes cabia tão somente cumprir as orientações sem, no entanto, compreendê-las, nem sequer o que as motivava. A taylorização do ensino promoveu alterações na finalidade da escolarização e da educação. Naquele contexto, os docentes preocupavam-se em garantir o controle e a obediência do alunado, enquanto os discentes elaboravam estratégias para sobreviver aos ditames educacionais: memorizavam, caprichavam na aparência dos exercícios, mantinham-se em filas etc. Naquele contexto, as notas escolares que funcionavam tal e qual o salário do operariado. O ideal de vincular objetivos educacionais de aprendizagem à prática cotidiana permaneceu no discurso. Figura 1.5: Os ditames educacionais: memorizar, caprichar na aparência dos exercícios, manter-se em filas. 10 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas Esse momento histórico fez frutificar a concepção pedagógica tecnicista, centrada nos métodos e técnicas para ensinar com o máximo de eficácia possível (SaviaNi, 1983). Fortemente influenciada pelo tecnicismo, a escola voltou-se para a formação de indivíduos aptos a alimentar os postos de trabalho da sociedade industrial por meio da lógica social distributiva, econômica e política (durkheiM, 2011). Na lógica distributiva, o lugar do indivíduo no mundo do trabalho seria determinado pela sua experiência na escolarização (tempo de presença nos bancos escolares, nível de ensino, curso realizado etc.). Na econômica, a experiência escolar determinaria o ganho finan- ceiro (quanto mais elevada fosse a formação, maior a remuneração). A lógica política referia-se ao fato de o currículo contribuir para a aprendizagem do funcionamento da sociedade. Nessa visão, a convivência por um longo período da vida na escola, diante de certa forma organizativa, tinha por meta fazer com que os sujeitos da educação assimilassem a estrutura social mais ampla. No fim das contas, inculcava-se a noção de que aqueles que não estavam em acordo com o sistema eram os responsáveis por qualquer disfunção e perturbação da ordem vigente. O modelo tecnicista de ensino ganhou força no Brasil com as ideias desenvolvimentistas propagadas no Pós-Guerra, mediante uma renovação no pensamento educacional, onde o professor não mais detinha a iniciativa como elemento principal do processo (Pedagogia Tradicional), nem tampouco o aluno era o centro (Escola Nova), mas os objetivos e a “organização racional dos meios” passariam a direcionar o processo, colocando os professores na posição de meros executores de um projeto educacional mecanizado e concebido por especialistas capacitados e imparciais. A educação escolar modificou-se à mercê dos conceitos de organização e desenvolvimento característicos da industrialização sob os auspícios da melhoria da produtividade. Os objetivos educacionais deveriam ser claramente defi- nidos, estabelecidos e formulados em termos de comportamentos explícitos. Uma formulação precisa, detalhada e comporta- mental permitiria programar atividades de ensino, selecionando adequadamente os conteúdos, tempos, métodos, estratégias e formas de avaliação da aprendizagem. Esse modelo de escolarização estava em consonância com o fordismo e o seu projeto Figura 1.6: Visão tecnicista de formação em massa de trabalhadores aptos à reprodução do sistema social mais amplo. 11Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II de produção em massa e neutralização das forças populares. O tecnicismo mostrava sintonia com as novas necessidades sociais. O currículo sob a influência tecnicista também objetivava formar pessoas com iniciativa e criatividade para a construção de um ideal de nação, sem que, no entanto, fosse necessário compreender a dinâmica social. Para isso, requeria-se à escola a realização de atividades com essas finalidades. Com o término da Segunda Grande Guerra e a polarização política que marcou esse momento histórico, o desenvolvimento econômico das nações foi impulsionado. O novo contexto requeria homens de iniciativa, vivos, criativos e criteriosos. Para tanto, seria necessário alinhar os objetivos educacionais a esses propósitos e empregar atividades que desenvolvessem as qualidades exigidas pela tecnologia crescente. Os programas educativos procuraram corres- ponder aos objetivos desenvolvimentistas, o que possibilitou a definição clara de conteúdos, métodos e instrumentos de avaliação em função da sua utilidade no mundo do trabalho. Tal qual a sociedade, a educação escolar também se inspirava no liberalismo e no pragma- tismo, acentuando a predominância dos processos metodológicos em detrimento da aquisição de conhecimentos e visando à construção de um posicionamento crítico ante a desigualdade que o currículo fazia reproduzir (hábeis se opondo aos inábeis / fortes se opondo aos fracos / líderes em oposição aos comandados). Com a implantação do regime militar, o modelo político radicalizou o projeto desenvolvi- mentista tencionando acelerar o crescimento socioeconômico do país. A educação desempenha- va um papel estratégico na preparação adequada dos recursos humanos necessários ao alcance desse objetivo, em íntimo acordo com uma concepção economicista dos serviços educacionais. O currículo, sob promessas da Pedagogia Tecnicista, procurava desenvolver uma alternativa não psicológica, situando-se no âmbito da tecnologia educacional e tendo como preocupação básica a eficácia e a eficiência de um processo verificável por meio da aferição de resultados. O pano de fundo do tecnicismo educacional era uma perspectiva ingênua de neutralidade científica (CaStro, 2003). O processo definia o que professores e alunos deveriam fazer, quando e como o fariam. Na perspectiva da Pedagogia Tecnicista, o professor tornou-se mero executor de objetivos instrucionais, de estratégias de ensino e avaliação, bastando-lhe operacionalizar a ação didática de forma mecânica. Acentuou-se o formalismo didático por meio dos planos elaborados segundo normas pré-fixadas. 12 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas O planejamento educacional propunha uma forma de organização que evitava ao máximo qualquer interferência subjetiva que viesse a desestabilizar o processo. Os indivíduos eventual- mente apontados como perigosos ao êxito dessa maquinaria eram reprimidos ou excluídos do processo, fossem alunos ou docentes. Nas décadas posteriores, uma série de eventos alimentaria o questionamento acerca dos “benefícios” da Pedagogia Tecnicista. A crise mundial do petróleo, os movimentos estu- dantis, a consolidação da descolonização dos países da África e Ásia, a Guerra do Vietnã, a abertura democrática no Brasil, entre outros acontecimentos, anunciaram novas mudanças no cenário mundial. Em virtude do seu anacronismo, o tecnicismo educacional foi amplamente combatido à medida que os educadores verificavam a não concretização das antigas promessas desenvolvimentistas. Seus métodos sofreram represálias ante o alto índice de fracasso escolar. Buscando alternativas para contornar as dificuldades, o tecnicismo foi revigorado com base na teorização advinda da psicologia cognitivista, propondo novos métodos de aprendizagem sem, no entanto, modificar a essência dos conteúdos. Com o apoio de Silva (1996), é possível afirmar que a incorporação inconteste da concepção construtivista da aprendizagem pelos sistemas de educação manteve a análise sociológica do processo educacional a uma distância “segura” da comunidade escolar, dando continuidade aos serviços prestados pela instituição educativa numa sociedade pseudodemocrática. 1.4A Pedagogia Crítica As mudanças geopolíticas da década de 1960 fizeram fervilhar movimentos sociais de contestação. No Brasil, após treze anos de discussões e debates no Congresso Nacional, em 1961 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que garantia a libe- ração de verbas para o ensino público e privado, ampliando a desigualdade entre os modelos de ensino. Vale ressaltar que esta lei fora pensada no período inicial do desenvolvimentismo nacional e promulgada, tempos depois, diante de novas necessidades educacionais. À época, despontavam na Europa e nos Estados Unidos teorias empenhadas em criticar a educação dominante, evidenciando as funções reais da política educacional acobertada pelo discurso político-pedagógico hegemônico (bourdieu & PaSSeroN, 1975; aLthuSSer, 1983, bowLeS & GiNtiS, 1977; e baudeLot & StabLet, 1980). Tais discussões frutificaram nas 13Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II denominadas teorias crítico-reprodutivistas, pois, apesar de considerar a educação pelos seus aspectos sociais, concluíram que sua função primordial era a transmissão do conhecimento acumulado pela humanidade às novas gerações e a reprodução das condições sociais vigentes. Em resumo, denunciaram o caráter reprodutor da escola. O movimento ressaltou a predomi- nância dos aspectos políticos da educação, amparando-se nas categorias de cultura, poder e ideologia, enquanto as questões didáticas, como planejamento, métodos, estratégias de ensino e instrumentos de avaliação, foram minimizadas (SiLva, 2007). Em consequência, o debate pedagógico influenciado por esta vertente contagiou-se pelo discurso crítico da reprodução social e passou a denunciar o caráter ideológico dos conteúdos e o seu papel nas lutas por hegemonia. Se, por um lado, a teorização crítico-reprodutivista alertou o professorado quanto aos efeitos sociais de sua prática pedagógica, muitas vezes antagônicos às intenções projetadas, por outro, relegou para o segundo plano a especificidade da educação escolar (CaStro, 2003). Alguns setores educacionais incorporaram o discurso reprodutivista e passaram a problematizar a ideologia que impregnava os conteúdos anteriormente considerados neutros. Para Candau (1988), a pedagogia assumiu um papel sociológico, filosófico e histórico, colocando em segundo plano a sua dimensão técnica e comprometendo, de certa forma, a sua identidade, acentuando uma certa desconfiança em relação às contribuições da educação escolar para a transformação social. No Brasil, com a abertura democrática efetivada nos anos 1980, a luta operária ganhou força, passando a generalizar-se por outras categorias profissionais, entre elas, o magistério. Nessa década, os profissionais da educação se empenharam na conquista do direito e dever de participar na definição da política educacional e na luta pela valorização da escola pública. Entre as diversas conquistas, alinham-se o aumento ou, em muitos casos, a criação da carga horária para a realização de reuniões pedagógicas, estabelecimento de colegiados nas escolas e gestão democrática, entre outras. Uma análise distanciada desse período permite inferir que não somente as concepções crítico-reprodutivistas contribuíram para acentuar uma postura pessimista em relação às esperanças do papel da escola na transformação social, como também influenciaram a exigência da adoção de uma atitude crítica por parte dos estudantes. Este fato levou uma parcela dos docentes a rever sua própria prática pedagógica, a fim de torná-la mais coerente com as questões políticas e sociais. 14 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas Nos rastros das teorias reprodutivistas, vieram as teorias emancipatórias que, além de enfa- tizar o caráter reprodutor da escola, realçavam suas possibilidades de contestação e resistência contra-hegemônica. Com um enfoque popular bastante forte, cresceu o movimento libertador na pedagogia (Freire, 2000), afirmando que a educação não estava centrada no professor ou no aluno, mas na formação do homem. Nessa perspectiva, a educação voltava-se para o ser humano e suas realizações na sociedade. No bojo de uma pedagogia crítica, a educação deveria identificar-se com o próprio processo de humanização, o que levava a escola a se organizar como espaço de negação da dominação e não como mero instrumento para reproduzir a estrutura social vigente. Atuar pedagogicamente significaria contribuir para a transformação da própria sociedade. A educação, de acordo com tais pressupostos, extrapolava a questão dos objetivos, conteúdos, métodos, técnicas e avaliação, e procurava associar escola-sociedade, teoria-prática, conteúdo-forma, técnico-político, ensino-pesquisa, professor-aluno. Ao professor cabia buscar o máximo de coerência entre as questões didático-pedagógicas e a realidade da comunidade escolar e buscar nos conhe- cimentos instrumentos adequados para reagir à cultura massificante. Apesar das várias vertentes assumidas pela Pedagogia Crítica, seus objetivos eram comuns e se voltavam para o fortalecimento do sujeito historicamente silenciado e oprimido na sociedade, algo possível mediante a análise das contradições entre o que se interpretava do mundo e o que era o cotidiano da sala de aula, sem esquecer que a escola se encontrava influenciada por um ideário pedagógico calcado nos princípios da teoria liberal, arraigado na prática de professores e alunos. (Neira, 2010b) Figura 1.7: A luta operária ganhou força, passando a generalizar-se por outras categorias profissionais entre elas, o magistério. Nessa década, os profissionais da educação se empenharam na conquista do direito e dever de participar na definição da política educacional e na luta pela valorização da escola pública. 15Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II Atuando no processo de politização do docente e do discente, de modo que pudessem perceber a ideologia que inspirou a natureza dos conhecimentos, a educação deveria superar o intelectualismo formal de enfoque tradicional, evitar os efeitos do espontaneísmo escolanovista, combater a orientação desmobilizadora do tecnicismo e recuperar as tarefas especificamente pedagógicas, desprestigiadas a partir do discurso crítico-reprodutivista e buscar uma maior compreensão e análise da realidade social na qual estava inserida. A concretização dessas intenções dependia de uma pedagogia que propusesse mudanças no modo de pensar e agir no ambiente educativo e que tivesse presente a necessidade de demo- cratização das relações. Hoje, parece evidente que a escolarização, por si só, não era condição suficiente para a formação de pessoas críticas. Não resta dúvida, entretanto, que a tomada de consciência e o desvelamento das contradições que permeavam a dinâmica da sala de aula se transformavam em pontos de partida para a construção de uma pedagogia crítica, contextuali- zada e socialmente comprometida com a formação do professor. 1.5 A Pedagogia das Competências O final do século XX assistiu ao nascimento de uma nova “pedagogia” - a Pedagogia das Competências, da qualidade total ou pedagogia neoliberal nos dizeres de Silva (1996), produto, como as demais, das inter-relações entre as transformações sociais e as funções atribuídas à educação escolar. Nestes tempos, as diversas instituições que compõem a sociedade subordinam-se às investidas poderosas do neoliberalismo, consequência do recrudescimento do discurso liberal que atribui à intervenção do Estado e à esfera pública todos os males sociais e econômicos do atual quadro social e, à livre iniciativa, todas as virtudes que podem conduzir à regeneração e recuperação da democracia, da economia e da sociedade. Como alerta Giroux (2003), à medida que as corporações crescem, adquirem mais podere elaboram novas estratégias de convencimento. Nas suas palavras, a cultura democrática corre o risco de se tornar a cultura empresarial, ou seja, meios de controle e produção de trabalhadores submissos, consumidores despolitizados e cidadãos passivos, apenas interessados no seu próprio ganho material a fim de realizar seus desejos, que - diga-se de passagem - são produzidos pela própria cultura empresarial. 16 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas A reestruturação social buscada pelos seus ideólogos pretende atrelar a educação institucio- nalizada à preparação para o trabalho. Trata-se de fazer com que as escolas preparem melhor os seus alunos para a competitividade do mercado. Para tanto, é fundamental abortar qualquer modelo de pedagogia e aprendizagem que invista na discussão de questões sociais e políticas, para concentrar esforços na eficiência, eficácia, aquisição e desenvolvimento de conhecimentos com potencial de aplicabilidade. Ademais, a escola neoliberal deve reforçar os discursos do individualismo e da afirmação de uma identidade baseada no mercado, convertendo a produção cultural em mercadoria de consumo. Outra faceta do projeto neoliberal consiste em utilizar a educação como veículo de trans- missão de ideias que proclamam a excelência do livre mercado e da livre iniciativa como condições essenciais para a garantia do funcionamento estável da sociedade do século XXI. Trata-se de um esforço de alteração da função da escola não apenas com o objetivo de dirigi-la para uma capacitação estreita de mão de obra, mas também, preparar os estudantes para o aceite daquilo que postula o credo neoliberal. Ante a agressividade dessa intenção, a encampação empresarial do setor público mina os discursos de responsabilidade social e democratização dos recursos e benefícios, levando a crer que a única saída para os problemas atuais é a assunção das rédeas do processo pelo mercado. A pedagogia neoliberal ensina aos estudantes que as formas de desregulação da economia e as contribuições tecnológicas, científicas e culturais em circulação consistem nas melhores alternativas para a sociedade global. É em meio a esse contexto que a base epistemológica oriunda da psicologia cognitivista, herdada das reformas do ensino na Europa, e toda a terminologia específica e convergente com os pressupostos do cidadão empreendedor almejado pelo neoliberalismo foi revigorada. Expressões como “desenvolvimento de competências” e “orientação para o mundo do trabalho” vieram acompanhadas de uma cisão no planejamento de ensino. Propõe-se o alcance dos objetivos educacionais por meio da aprendizagem de conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. No projeto neoliberal, a educação assume um papel estratégico com vistas a servir aos propósitos empresariais e industriais. As avaliações padronizadas de alunos e professores, a comparação de desempenho das escolas, a remuneração por resultados e implantação de currículos centralizados são as marcas mais visíveis do processo de submissão da instituição educativa aos ditames capitalistas. 17Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II Com esse enfoque, os docentes têm sido instados a organizar suas intervenções no formato de sequências didáticas baseadas na resolução de situações-problema. As ações pedagógicas decor- rentes, embora disfarçadas com roupagem democrática, em muito se assemelham às anteriores preocupações com a aquisição de determinados conhecimentos universais e aplicáveis, estipu- lados verticalmente, fato que permite identificar na Pedagogia das Competências a ressurreição do tecnicismo, ou seja, o que se vê é o neotecnicismo. Por último, mas não menos importante, Silva (1996) propaga que o projeto neoliberal tem ao seu lado um poderoso instrumento para conquista da hegemonia, qual seja, a utilização dos meios de comunicação de massa a seu favor, artimanha que se traduz não apenas no controle desses meios, mas também na transformação da população escolar em mercado-alvo para os produtos veiculados pela cultura de massa, e na sua utilização como canal de transmissão da doutrina neoliberal. A lógica neoliberal do livre mercado arrasa qualquer tentativa de regulação e rompe não apenas as barreiras (artificiais) econômicas ou continentais, mas também as formas de organi- zação política e social de distintas comunidades, restringindo o ser ao ter. Do mesmo modo, desmobiliza, por meio de seus discursos de benefício do capital, qualquer ação política que conteste o inevitável aumento da instabilidade no emprego, a precariedade dos serviços públicos e até o desapego às questões político-partidárias, associacionistas e sindicais, ou seja, desqualificam-se todas as formas de contestação aos seus princípios. 1.6 Pedagogias em conflito Apesar da incessante repetição de que fora do projeto neoliberal de educação não há salvação, existem outras formas de conceber uma “boa” educação, outras formas de conceber o sujeito social (SiLva, 2003). O que se reafirma é o ideal de uma sociedade que considere como prio- ridade o cumprimento do direito que todos os seres humanos têm de ter uma vida em que sejam plenamente satisfeitas suas necessidades vitais, sociais, históricas. Opondo-se frontalmente aos ditames hegemônicos, os significados, nesta vertente, são: igualdade, direitos sociais, justiça social, cidadania e espaço público. Nesse cenário, a educação está estreitamente vinculada à construção de uma sociedade em que riqueza, recursos materiais e simbólicos sejam mais bem 18 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas distribuídos. A escola deve ser concebida como a instituição que promova essa possibilidade e forme identidades sociais democráticas. Na Europa, como decorrência da herança de uma sociedade pós-colonial, já se visualizam múltiplas etnias alusivas às ondas migratórias das últimas décadas. Nos países da América do Norte, algo semelhante ocorre em função da imigração e da constituição heterogênea do seu povo, enquanto na América Latina a explicação é a sua histórica constituição cultural e socialmente diversificada. Assim, a problemática da diversidade cultural e do multiculturalismo constitui um dos grandes temas abertos ao debate na atualidade. Vários movimentos sociais e políticas em vigor se sustentam a partir do paradigma da diferença e do desenvolvimento de políticas de identidade, refletindo o incentivo à igualdade de oportunidades ou ações afirmativas focadas nas minorias. Os marcos referenciais da diversi- dade cultural a partir da construção de identidades coletivas diferentes, e às vezes contestadas, converteram-se em um dos eixos das dinâmicas sociopolíticas do mundo na atualidade. Os significados das diferenças culturais se constroem conforme as circunstâncias políticas e sociais. Com impactos desiguais em função do marco da cultura e história de cada sociedade, as diferenças se constituíram a partir dos eixos de Estado-nação, religião e etnia. O grupo pode ser expandido para todos aqueles que, em determinados espaços sociais, são vistos como minorias ou grupos subjugados, pois se encontram desprovidos de poder. Em todos os casos, as representações culturais sobre o outro incorporam essa dinâmica de construção da identidade a partir da inclusão e exclusão da comunidade imaginária que sustenta a identidade assumida (aNderSoN, 1993). A imagem do outro se consolida a partir da representação, mediante múltiplos dispositivos simbólicos cujos registros não somente enunciam como também reafirmam as diferenças, embora o senso comum insista em apresentar as identidades como fruto da construção dos próprios grupos de migrantes, mulheres, homossexuais, afrodescendentes etc. A descolonização e os processosculturais que emergiram no seu interior questionam, há décadas, a primazia do modelo hegemônico ocidental do homem branco, macho, europeu, O terceiro milênio encontrou o mundo convertido em um cenário de expressões plurais, onde complexas realidades multiculturais se inserem e se entrecruzam em uma ampla diversidade de tradições políticas, étnicas, sociais, religiosas e de gênero. 19Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II heterossexual e cristão como o sujeito único e universal. Ao questionar a autoridade do pensamento ocidental, os movimentos sociais dos direitos civis, as feministas, os ambientalistas, os sem-terra, os sem-teto, o poder negro, a comunidade gay, os movimentos pró-minorias de maneira geral, além de outras forças sociais, destacam a complexidade das relações hierárquicas de poder que podem sustentar-se na suposta pluralidade das diferenças. Nessa perspectiva, Sousa Santos (1997) convida a refletir sobre o exercício dos direitos humanos universais no mundo globalizado e a implicação do conceito de cidadania em socie- dades nas quais atuam poderosos mecanismos excludentes, movidos por setores cada vez maiores e que vitimam parcelas populacionais subtraídas nos seus direitos mais fundamentais. O ponto a ser ressaltado no presente momento é o da visibilidade crescente de diferentes identi- dades naqueles contextos que até pouco tempo atrás procuravam preservar-se da mistura, como é o caso da escola. O reconhecimento da diversidade existente e a atuação de forma plural a partir da constatação das diferenças de classe social, etnia, idade, local de moradia, gênero, religião ou tempo de escolarização permitem abordar a complexidade social e cultural da sociedade atual. Quando se evitam os pressupostos universalistas da experiência humana, abrem-se horizontes às identidades sociais e culturais particulares. O embate com a falsa ideia de homogeneização elaborada pelo mercado facilita a identificação, em cada momento e contexto concreto, das iniciativas de subjetividade coletiva que surgem a partir do reconhecimento de identidades específicas. Nesse sentido, a eclosão de propostas que levam em conta a necessidade de construção de sociedades mais plurais e democráticas, “corrigindo injustiças” contra identidades específicas, tem gerado modificações nas políticas educacionais. A institucionalização do discurso do direito à igualdade de oportunidades de acesso à escola, ao O desafio do século XXI é o pleno exercício da cidadania com a garantia do princípio da igualdade a partir do reconhecimento da diversidade, ou seja, a equidade. Figura 1.8: Diversidade de classe social, etnia, idade, local de moradia, gênero, religião ou tempo de escolarização permitem abordar a complexidade social e cultural da sociedade atual. / Fonte Thinkstock www.thinkstock.com 20 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas lado de outras políticas públicas, pretende responder positivamente ao multiculturalismo crescente. Muito embora a expansão do atendimento à população seja um aspecto louvável, a progressão geométrica do número de vagas representou tão somente a reprodução do mesmo ensino para todos indistintamente. Na óptica de García Canclini (2009), esse processo decorre do utópico projeto da modernidade, obviamente não realizado, que pretendia garantir que as manifestações julgadas mais valiosas fossem conhecidas e compreendidas por todas as sociedades e todos os setores. A nova demanda social repercutiu sobre a população escolar, fazendo avolumar-se a contra- dição já existente entre a cultura historicamente privilegiada pelo currículo e as culturas dos alunos. A situação ganhou maior visibilidade a partir do ingresso, na escola, dos filhos dos grupos até então dela excluídos. É fácil constatar que o aumento do número de alunos tem sido acompanhado de um acréscimo da diversidade. Públicos antes não escolarizados, de distintas origens sociais e culturais, começam progressivamente a constituir-se como uma parcela importante do corpo discente. A ampliação da heterogeneidade da população escolar desencadeou um problema concretizado no constante enfrentamento com o outro. “O outro é o outro gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente” (SiLva, 2000, p. 97). Enfim, o outro, agora, está ao lado. Procurando minimizar o problema, ao menos em caráter oficial, a política educacional brasi- leira vem atentando às questões da diversidade cultural. Para além da produção de documentos norteadores, a legislação reivindicou alterações curriculares significativas, tendo em vista o reconhecimento do patrimônio cultural de grupos minoritários (BRASIL, 2007); e um amplo conjunto de iniciativas, seja na esfera municipal, estadual ou federal, gradativamente vem sendo posto em prática. O estopim dessas medidas pode ser atribuído ao confronto entre a realidade desajustada das propostas pedagógicas monoculturais das escolas e os efeitos do progressivo multiculturalismo da sociedade. O desajuste, aliado aos ideais democráticos que passaram a orientar as políticas educativas e que assumiram o princípio da “escola para todos”, evidenciou a necessidade de analisar as ações pedagógicas em curso e nelas intervir diante das condições que apresentam aos novos estudantes. De fato, quando a educação escolar é considerada um bem público, justifica-se a exigência de que todos sejam seus beneficiários e, se não forem todos, que se questione a razão de tal improcedência. 21Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 Introdução ao Estudos da Educação II Garantir a permanência significa dizer que o projeto de manutenção das condições sociais que caracterizou a escola desde o seu surgimento, por meio da exclusividade de seus serviços a determinados grupos, precisa urgentemente ser substituído (SiLva, 2007). Diante dessa demanda, a escola parece pouco à vontade. O desconforto pode ser atribuído à tentativa de reproduzir os objetivos e práticas de uma escola para poucos à escola para todos. Leite (2001) suspeita que, na maioria das vezes, o discurso da igualdade é traduzido pela oferta de um só currículo, justamente aquele em que predominam os significados culturais dos grupos favorecidos. Pragmaticamente, é a visão que parece predominar. Se considerarmos que a experiência escolar privilegia a cultura dominante, as pessoas pertencentes aos setores economicamente privilegiados da população encontram na escola condições familiares que lhes proporcionam uma trajetória mais suave. Esse mesmo ensino faz com que os estudantes de origem desprivilegiada saiam em desvantagem ou pressionem por espaços para que seus conhecimentos sejam reconhecidos como legítimos. Isso demonstra que a alentada igualdade na escola está focada no sentido de uniformização e jamais numa igualdade no sentido crítico. Candau (2002) pondera que tratamento igual não significa tratamento que uniformiza, desres- peita, padroniza e apaga as diferenças. O que se deseja é uma igualdade pautada no diálogo entre os diferentes, que explore a riqueza oriunda da pluralidade de tradições e culturas. Enquanto a diversidade cultural for um obstáculo para o êxito escolar, não haverá respeito às diferenças, mas produção e reprodução das desigualdades. Se o aumento da demanda não inspirou, de imediato, uma reconfiguração dos currículos visando a incluir as experiências de vida dos novos alunos, nestes tempos em que os princípios neoliberais se instalaram também no interior da escola, é ilusório aguardar que o reconhecimento Caracterizando a situação do ponto de vista das práticas educativas dese- jadas, pode-se dizer que a ideologia democrática começou a apontar para a necessidade de se desenvolversituações pedagógicas que, em substituição à cultura do silêncio, façam ecoar as vozes das minorias. Ao mesmo tempo, o princípio da igualdade de oportunidades veiculado em termos não só de acesso à educação escolar, mas também de sucesso, tornou evidente que já não basta matricular na escola as crianças, jovens e adultos provenientes de grupos sociais, culturais e econômicos diversos; é necessário agir de modo a democratizar as condições para que todos possam nela permanecer. 22 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 3 1 A Influência das Transformações sociais nas Correntes Pedagógicas e a valorização das variadas formas pelas quais os diferentes grupos manifestam sua cultura sejam tranquilamente assumidos como princípios pedagógicos. Para que isso ocorra, McLaren (2000) defende uma “pedagogia do dissenso”, por Candau (2008) denominada “pedagogia do conflito”, cujo objetivo é o diálogo entre posicionamentos de origens diversas, fazendo do professor um mediador na construção de relações interculturais positivas e ficando a seu cargo a promoção de situações didáticas que viabilizem o contato e o convívio com a diferença, além da consciência dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais. Afinal, conforme ensina Torres Santomé (2001), é possível resistir às ideologias neoliberais a partir da própria escola, ao estreitar sua colaboração com todos os coletivos sociais que tentam frear o avanço do pensamento único. Enfim, como se nota, neste princípio de século, as teorias pedagógicas oscilam e não há um paradigma, mas talvez, paradigmas em conflito. Tal quadro pode ser atribuído a uma certa confusão epistemológica. A pedagogia é bastante diversificada em termos de tendências doutrinárias: as concepções existentes privilegiam determinadas inflexões (sociológicas, psicológicas, filosóficas, organizativas, políticas etc.), que comumente se distanciam. A educação escolar, com seus objetivos, meios e finalidades, é interpretada de muitos modos e com diferenças bastante significativas entre posições teóricas e diretrizes metodológicas. Não há como pensar em misturá-las para que se extraia de cada uma o que possui de melhor. Por trás de cada vertente, camuflam-se projetos distintos de homem, mulher e sociedade. Se o que está em jogo na atualidade é justamente qual cidadão formar, é no interior de cada escola que professores, pais, alunos e representantes da comunidade devem decidir democraticamente as trilhas que pretendem seguir. Referências Bibliográficas aNderSoN, B. Las comunidades imaginarias. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. araNha, M.L.A. História de educação: Geral e Brasil. 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