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SYLVIA EWEL LENZ FRANCESCO GUICCIARDIN: O RENASCIMENTO DA HISTÓRIA EDUEL 2004 PREFÁCIO FRANCESCO GUICCIARDINI E A HISTÓRIA DA ITÁLIA – UMA LEITURA BRASILEIRA A Professora Sylvia Ewel Lenz, Mestre e Doutora em História, escreveu o trabalho Francesco Guicciardini e o Renascimento da História, inicialmente como dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seus estudos inseriram-se à época, na linha de pesquisa Epistemologia histórica e análise da produção historiográfica, sob minha coordenação. Embora a linha fosse normalmente voltada para a aplicação das questões teórico-metodológicas à historiografia brasileira, não vi inconveniente em aceitar os argumentos da aluna, que se propunha a trabalhar com o século XVI europeu, pois possuía bom domínio de línguas e tinha acesso às fontes. Por que Francesco Guicciardini? Escolher um autor florentino do século XVI, no Brasil no final do século XX, pode produzir estranheza semelhante à registrada por Shakespeare, quando fez em Hamlet a célebre indagação: “o que é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, que o faz chorar por ela”? Guicciardini foi um homem do Renascimento italiano. Colocava-se, assim, na confluência de dois mundos, o medieval que se extinguia e o moderno que surgia, com velhas fórmulas e soluções, sendo desafiados por novos acontecimentos nos mais diferentes campos, e somente por isso já teria algo em comum com nossa própria época. Teve uma agitada vida política como embaixador, conselheiro papal e governante e também encontrou tempo e condições para meditar sobre sua experiência e sobre as relações humanas. Alguns especialistas pretenderam compará-lo a Maquiavel, outra expressão dessa época tão rica como a Florença pós Lourenço, o Magnífico. O resultado é sugestivo, tanto em termos de ideias políticas, como de concepção da história. Enquanto Maquiavel aspirava por uma Itália unida e forte, sob um governo central, Guicciardini preferia a coabitação de unidades políticas heterogéneas, “como sempre existira”. A história, em Maquiavel, representava cera mole na qual o filósofo moldava a forma de suas convicções, como aparece na História de Florença e sobretudo no discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. Em Guicciardini, ao contrário, havia que retirar dos dados algum tipo de interpretação. Esse fato o torna particularmente interessante para o conhecimento histórico, revelando-o mesmo como uma espécie de precursor. Desde Petrarca a cultura italiana enfrentara com sucesso a questão da história, no sentido de distinguir claramente entre a sua própria época e outras épocas, como a Antiguidade. O relativismo petrarquista expraiou-se e contribuiu para neutralizar os anacronismos, melhor na Itália do que em outras regiões da Europa do século XV. Guicciardini encontrou, assim, um terreno preparado sob esse aspecto crucial. Entretanto, havia outra herança em matéria de conhecimento histórico, que ele rejeitou: a da dupla tradição de cronistas e de historiadores. Os primeiros eram os narradores por excelência que, na Idade Média, apegavam- se à cronologia estrita e descreviam os acontecimentos de que participavam ou dos quais tinham notícia por testemunhos. Estavam ligados a reis, grandes senhores ou instituições eclesiásticas e a informação que deles deriva é, quase sempre, relacionada àquilo que hoje em dia tendemos a considerar como a espuma do mar – acontecimentos superficiais que nos recuperam as forças profundas que refletem. Ainda assim, deve ser feita justiça a vários deles que, por suas qualidades pessoais de percepção e cultura, conseguiram legar-nos elementos preciosos sobre a época. Quanto aos historiadores – na Itália houve vários nas gerações que precederam a Guicciardini – que normalmente faziam literatura histórica, com preocupações estéticas, morais ou pedagógicas, mas sempre longe de explicar a época a que se referiam, antes refletindo os interesses do seu tempo. Os cronistas ainda hoje são usados pelos historiadores, os “historiadores” são meros registros nas histórias da literatura italiana. O mérito de Guicciardini está em ter reunido crônica e história, forjando um novo tipo de historiografia, também distinto, por sua vez, da filosofia da história de Maquiavel. Essa nova maneira de fazer história, que aliava a força informativa da crônica ao discurso interpretativo do autor, sem cair na pura ficção, foi reconhecida como uma novidade pelos contemporâneos e pósteros. Não deixava, entretanto, de ser um procedimento subjetivo e como tal seria duramente combatido por Ranke no célebre apêndice de 1824 – Zur Kritik neuerer Geschichtscreiber – criticando simultaneamente a atitude do autor e a de seus sucessores, que passaram muitas vezes a desprezar as fontes e os cronistas, fiando-se apenas no próprio Guicciardini. Foram várias as suas obras, desde a juventude, uma História de Florença escrita em 1508-1509, até o opus magnum da maturidade, a História da Itália, cuja primeira edição, de 1561, o autor não alcançou. De permeio, escreveu reflexões sobre a natureza humana e a história, os Ricordi; sobre política e arte de governar, o Diálogo sobre o governo de Florença e sobre questões da evolução histórica de Florença, as Cose fiorentini. A autora trabalhou basicamente, embora não de modo exclusivo, com sua obra mais importante. Os elementos de que Guicciardini se vale para aproximar-se da história são diversos. Em primeiro lugar, o uso criterioso das fontes, a partir das quais construiu suas inferências, alimentadas pela concepção de mundo e da história que expressou nos Ricordi. Utilizou-se, para isso, dos recursos empregados pela erudição humanista de sua época, especialmente a crítica filológica de textos, na qual Lourenço Valia, quase cem anos antes, dera contribuição tão significativa, desmistificando a “Doação de Constantino”. Em segundo lugar, o interesse na psicologia dos principais atores envolvidos nos acontecimentos que narra, de modo a explicar-lhes as ações e reações. Finalmente, a preocupação com as causas dos acontecimentos, fossem os comportamentos individuais, fossem os grandes movimentos históricos, como a questão de Savonarola, a intervenção francesa na Itália ou as relações do Papado com o Imperador. Observe-se que Guicciardini, como seus modelos gregos Heródoto, Tucídides ou Xenofonte e seu póstero Voltaire, fez história contemporânea estudando acontecimentos e questões que vivenciou e sobre as quais conseguiu emitir juízos analíticos ou valorativos, que pairaram acima da trivialidade e dos lugares comuns que as avaliações coetâneas frequentemente provocam. A interpretação é sempre rica e sofisticada e foi este o ponto forte de sua sobrevivência por tantos séculos. Alguns exemplos justificam esta observação. Os perfis psicológicos traçados pelo autor revelam a preocupação não apenas de descrever atitudes individuais, como a de inseri-las no quadro maior de sua época e dos desafios que enfrentou. Seus retratos e análises do comportamento político de Lourenço, o Magnífico, dos reis Luís XII, Francisco I e Henrique VIII, do Imperador Carlos V e dos papas Júlio II, Adriano VI e Clemente VII constituem, em muitos dos seus traços, as visões que sobre eles temos ainda agora, não obstante o espírito revisionista da historiografia dos séculos XIX e XX. O papel das guerras italianas, no contexto dessa primeira modernidade, foi ressaltado por Guicciardini, quando, a partir do quarto Livro (sobre vinte) passou a estudá-las tendo como referência a intervenção francesa na Península. Seu livro estende-se do fim da época de Lourenço,o Magnífico, que constituía, na sua expressão, a “balança da Itália” – uma Itália que poderíamos chamar culturalmente cosmopolita e politicamente provinciana – até 1534, data da ascensão ao papado de Paulo III, quando ela já era o epicentro das disputas entre Francisco I e Carlos V. Isto é, o centro nervoso da grande política europeia. Ranke desenvolveria esta ideia na sua famosa “teoria dos círculos concêntricos” das relações internacionais, que se inicia, justamente, com as guerras italianas. O problema das formas de governo foi, na História da Itália, tratado com percuciência na análise do papel de Savonarola em Florença, ao considerar, no Livro II, o conflito entre o modelo aristocrático e o popular. A permanente crise italiana no período que estudou – 1490 a 1534 – foi o objeto não só de narrativa, como de busca de explicação, procurando o autor florentino encontrar suas causas e identificar a melhor solução para que fosse atingida a paz, que passaria, segundo ele, pela adoção do modelo político de auto-equilíbrio de pequenos estados regionais. A percepção do equilíbrio europeu encontra-se claramente delineada ao longo da obra, mas alcança seu ponto alto no Livro XIX, que trata do significado dos tratados de Barcelona e de Cambray para o conjunto do continente, considerando-os os primeiros grandes acordos relativos aos negócios estatais. Se atualmente esta é uma constatação usual nos manuais de história do século XVI ou nos de história das relações internacionais, ela foi pioneira na historiografia do tema e, ademais, foi expressa in statu nascendi, já que o autor a formulou provavelmente em 1539 ou 1540, quando morreu. Outro aspecto geralmente pouco mencionado no texto de Guicciardini foi sua constatação de que os descobrimentos portugueses e a descoberta da América tiveram inúmeras consequências para a Europa. As mais importantes, segundo ele, foram constatar os erros dos autores clássicos, em relação à geografia do planeta e à habitabilidade da zona equatorial, bem como o risco que o descobrimento de novos povos representavam para a interpretação católica tradicional das Escrituras, já que estas afirmavam ter sido a palavra de Deus ouvida em todos os cantos do mundo, sem exceção. Francesco Guicciardini: o Renascimento da História, de Sylvia Ewel Lenz, é, portanto, uma obra que se debruça sobre um autor geralmente pouco conhecido, mesmo nos círculos especializados de estudiosos da história e quase sempre lembrado num verbete que o associa ao conjunto de eruditos humanistas que preparou a modernidade. O trabalho da autora tem ainda outros méritos. Valoriza os escassíssimos estudos brasileiros sobre a história moderna, de que constituem outros exemplos de qualidade, as teses de Cecília Westphalen sobre Carlos V e de Fernando Sgarbi de Lima sobre a questão do capitalismo na modernidade. Valoriza os estudos brasileiros de historiografia, considerando um autor chave para a evolução do conhecimento histórico a partir do Renascimento. A autora recorre aos procedimentos hermenêuticos derivados de Dilthey e Gadamer, num tipo de análise infrequente nos jovens historiadores brasileiros, mais influenciados pelas várias vagas dos Annales ou pelo marxismo. Francesco Guicciardini: o Renascimento da História enriquece a bibliografia renascentista e historiográfica brasileira. Arno Wehling. INTRODUÇÃO [Pág. 1] Tem-se que admitir plenamente que o procedimento hermenêutico – precisamente porque não se conforma em querer apreender somente o que se diz ou está dado, mas remonta a nosso interesse e perguntas condutoras – tem uma segurança muito menor que a obtida pelos métodos das ciências naturais. Porém, aceita-se o caráter aventureiro da compreensão, precisamente porque oferece oportunidades especiais. Pode contribuir para ampliar de maneira especial nossas experiências humanas, nosso auto-conhecimento e nosso horizonte de mundo. (Hans-Georg Gadamer 1983) A escrita da história, um antigo saber iniciado na Grécia antiga, tem sofrido profundas alterações formais, filosóficas, metodológicas e teóricas ao longo dos últimos séculos. Estas transformações refletem as diferentes relações entre o sujeito conhecedor e o objeto pesquisado. Segundo Lucien Febvre, a produção historiográfica deve ser entendida não só como conhecimento histórico, mas também como um reflexo do quadro mental de uma sociedade, representação daquela época. Antecedendo o período renascentista, no medievo, a historiografia se encontrava subordinada aos limites dos muros palacianos e citadinos, restrita às crônicas locais, glorificadora dos senhores feudais e príncipes urbanos. Narrar uma história, naquela cristandade, significava ficar subordinado aos dogmas da teologia católica, e, portanto, do providencialismo medieval cristão, dos [Pág. 2] ditames da Vulgata, a Bíblia editada por São Jerônimo, excluindo textos inconvenientes à Igreja, os apócrifos. Também poderia ser uma obra encomendada pela vontade de algum senhor feudal ou patrício citadino restrita às fronteiras locais. Nesse sentido, o político Francesco Guicciardini (1483-1540), contemporâneo do conselheiro Nicolau Maquiavel, parente do neoplatônico Marcílio Ficino, destacou-se como historiador, e viveu em um momento de transição entre a medievalidade, regida por desígnios divinos e transformações da época moderna. Estudamos este historiador e suas obras que, embora seguisse a forma da narrativa humanista, tinha visão dos fatos coevos e das repercussões das políticas externas sobre seu país. Caracteriza-se como historiador político que também esteve voltado para as questões da natureza humana. Abordou temas inovadores tais como as categorias históricas, as relações de poder, as formas de governo, a arte da diplomacia e assuntos coevos relacionados ao indivíduo, às ambições, às fraquezas, aos vícios e às virtudes humanas. Manteve resquícios medievais como a fatalidade e a crença nos desígnios de Deus, manifestados através da natureza, além de se referir à expansão marítima e suas descobertas. Guicciardini defende que confrontamos situações diversas e embaraçosas, lidamos com indivíduos diferentes e imprevisíveis. Nesse sentido, é moderno, aberto ao vir a ser, portanto, à complexidade da natureza humana e à mutabilidade do seu comportamento. Teme por este turbilhão mental, antevendo inúmeros distúrbios religiosos, políticos e sócio-econômicos, deslanchados por este homem novo indivíduo. [Pág. 3] Notamos ações e pensamentos paradoxais, tanto em sua trajetória profissional quanto nos seus escritos, o que nos levou a escolher esta tendência como vetor deste trabalho. Deparamo-nos com um pensamento não linear em suas recordações acerca da política de seu tempo, refletidas em sua obra magna. Também legou-nos inquietações pessoais, confirmando os caminhos tortuosos do autor. Desse modo, selecionamos as obras de modo a melhor atender às reflexões deste trabalho. Sendo Guicciardini um historiador praticamente inédito no Brasil, preferimos nos ater à Storia d’ Itália pela importância e abrangência historiográfica; à suma dos pensamentos de Guicciardini, Ricordi politici e civili, e às obras menores, consideradas reflexões de foro íntimo. Cotejada com a Storia d’ Itália na edição de V. Caprariis, a tradução The History of Italy possibilitou-nos uma leitura ampla da obra magna de Guicciardini, mais completa que a edição italiana disponível. Outras obras, citadas por M. Phillips como sendo as mais importantes depois do Storia d’ Itália, tais como Cose Florentine, já foram estudadas no que tange às inovações metodológicas do autor. Storia Florentina foi objeto de estudo e cotejada à obra homônima de Maquiavel por Considerazione intorno al discorsi del Machiavelli sopra la prima deca di TitoLivio, rica em considerações de cunho ético, que também serviu aos estudos comparativos, de Felix Gilbert acerca dos valores em Guicciardini e em Maquiavel. Em geral, traduzimos as citações em inglês, após cotejo com o idioma italiano, outras foram deixadas no original pela força do tom que tais palavras expressam. [Pág. 4] Pressupomos ser Guicciardini um dos precursores a elaborar o conhecimento histórico desvinculado do saber escolástico. Partindo do pressuposto de que o conhecimento não sofre rupturas, mas acréscimos ao longo de sua construção, demonstramos alguns aspectos remanescentes, tais como a narrativa e a inclusão de manifestações sobrenaturais, que teriam mudado o rumo de alguns eventos. A ética humanista se reflete nas considerações em torno da virtude e do vício, contrapostos à vontade divina e à do indivíduo emergente. Esse apresenta ambições desenfreadas e paixões descontroladas que levaram, segundo Guicciardini, aos males políticos da Itália e à impossibilidade da sua unificação sob a forma de um Estado moderno. Desse personagem, passamos para a sua religiosidade, apesar de suas críticas à instituição da Igreja. Seguindo a proposta de uma abordagem historiográfica, situamos este tema na história social das ideias, posto que consideramos as obras do autor como um produto do seu tempo, realizadas com uma intenção. Em termos de método, recorremos à compreensão e à interpretação do texto, segundo a hermenêutica proposta por Hans-Georg Gadamer. Específica das ciências humanas, essa também foi aplicada, também na leitura e tradução de textos antigos e da Bíblia, que, na época de Guicciardini, promoveu as reformas religiosas. O tema do Renascimento italiano, apresentado no primeiro capítulo, enfatiza a sua transitoriedade, as tensões políticas e religiosas, as profundas reflexões humanistas e suas contradições inerentes: permanências e rupturas, tradições e inovações. Nos inúmeros estudos sobre esse período, a ênfase costuma recair no [Pág. 5] desenvolvimento do capitalismo comercial, na filosofia política de Maquiavel e Bodin, no humanismo de Morus e Erasmo, nas Reformas de Lutero e Calvino, porém, raramente no conhecimento histórico em si. A seguir, apresentamos uma revisão historiográfica sobre as obras de Guicciardini, começando com Jacob Burckhardt, no século XIX, até Mark Phillips, estudioso contemporâneo daquele autor. No segundo capítulo, resumimos a biografia de Francesco apontando, também, para a motivação que o levou a escrever sobre o seu tempo e as suas preocupações sobre a inevitabilidade da ambição nos homens, motivo principal dos fracassos na política e nos rumos da história italiana. Tratamos das circunstâncias da vida profissional de Guicciardini, na condição de político e diplomata italiano. Como pano de fundo, a conjuntura do século XVI: a formação da política moderna manifestada nos Estados europeus sob a forma de monarquias; as descobertas de novos mundos e conquistas de povos não cristianizados; o impacto das propostas reformistas de Lutero e dos movimentos protestantes, baseados em novas leituras das Sagradas Escrituras. Ciente das mudanças de sua época, ele soube ir para além das crônicas locais, das hagiografias medievais, dos dogmas eclesiásticos. Elaborou, então, uma ampla história da política italiana, inserida tanto em desavenças intestinas como em conflitos externos entre o Papado e o Império, acrescidas das ambições beligerantes dos monarcas emergentes. No capítulo terceiro, elaboramos um estudo historiográfico de sua obra principal, a Storia d’ ltalia, cuja editio princeps data de 1561, junto com alguns de seus pensamentos e obras menos vultosas. [Pág. 6] Interpretamos essas obras não só com a intenção de apresentar esse historiador italiano, desconhecido entre nós, como também, para contribuir para a historiografia moderna, pouco traduzida e raramente estudada no meio acadêmico brasileiro. Compartilhamos, também, do pensamento antinômico desse historiador renascentista, desvinculado de formas rígidas e de conteúdos dogmáticos. Afinal, ora o autor tendia a ser favorável ao reformador Martinho Lutero, ora contra o movimento de reforma religiosa desencadeada por ele, que poderia incitar revoltas e descontroles sociais. Noutras vezes, o historiador italiano defendia as forças convergentes do papismo; mas, eticamente, posta-se contra o comportamento imoral dos Papas. Finalmente, também prezava a italianità de seu país, embora se posicione contra a sua unificação sob forma de monarquia. Tece, à também, críticas às ações desmensuradas dos detentores do poder, embora procure justificar seus fracassos, que seriam causados por fenômenos naturais ou mesmo sobrenaturais. No último capítulo, partimos para uma verificação do processo da história, incluindo o poder exercido através das diferentes formas de governo. Entretanto, os poderes se manifestam não só nas intrigas políticas como também em ambições individuais, do clero ao homem comum. Dessa forma, embora fosse a favor de Lutero pela reforma da Igreja Católica, temia pela ameaça que o luteranismo desencadearia tanto contra poderes papais como locais. O autor apresentou um balanço sobre formas de governo, refletindo sobre esta arte e defendendo o seu ponto de vista, pois, como bom e velho patrício era favorável à república conduzida pela elite da cidade. E, mais importante, avaliou os acordos diplomáticos que antecederiam os tratados firmados após a consolidação dos Estados. [Pág. 7] Encerramos este estudo com a arte de escrever uma história tão complexa como a de seu país. Afinal, navegar pelo pensamento de Guicciardini é como realizar uma viagem desconhecida a bordo de um veleiro frágil em “...uno mare concitato da’venti”. RENASCIMENTO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA [Pág. 9] Citação em latim [vide original] (Francesco Guicciardini) A RENASCENÇA ITALIANA Renascença, Renascimento, duas versões para o mesmo período, caracterizado pelas suas contradições, indefinições, complexidades, enfim, pela transitoriedade entre o medievo e a modernidade. Uma época em que se davam as querelas entre o antigo e o moderno, lembrando que o conceito “risorggimento” era corrente entre os humanistas, quando se referiam ao renascer das artes e da literatura antiga. Nos idos dos anos de 1440, o historiador humanista Flávio Biondo desenvolveu a ideia de que o passado poderia ser dividido em três períodos: a Antiguidade, até 400 d.C.; a Idade Média e o Renascimento, após o ano de 1400. (SKINNER, 1996, p. 130-133). [Pág. 10] No século XVI, ainda eram muitas as querelas entre antigos e modernos, demonstrando um período em que o saber, ainda não sistematizado, sofria as tensões entre aqueles que defendiam a tradição da cultura antiga, e os novos que desejavam a aplicação do conhecimento para transformar a natureza em benefício do homem (RODRIGUES, 2000). Burckhardt enfatizou, no seu ensaio sobre o Renascimento italiano, a valorização da retomada dos saberes antigos em detrimento do longo período da “idade das trevas”, termo recorrente entre os próprios humanistas: Na Idade Média, as duas faces da consciência, a objetiva e a subjetiva, estavam, de certo modo, veladas; a vida intelectual assemelhava-se a um sonho. O véu que encobria os espíritos era um tecido de fé e de preconceitos, de ignorância e de ilusões; fazia com que o mundo e a história aparecessem sob cores estranhas; quanto ao homem, só se conhecia enquanto raça, povo, partido, corporação, família, ou sob qualquer outra forma geral e coletiva. (BURCKHARDT, 1855) Exaltou, nessa obra, o desabrochar de uma florescente cultura na Itália Renascentista, destacando a invenção do indivíduo e o apoio dos mecenas às artes plásticas. O Renascimento era uma característica específica dos italianos,com suas criações artísticas e literárias, numa época áurea para a Península. Em meados do século XIX, em plena crença na ideia de progresso material e científico, Burckhardt se destacou pela sua abordagem cultural da história; uma postura contrária à historiografia dominante, então voltada para as narrativas políticas e para a exaltação nacional de seus Estados, fermentado pelas instituições académicas. [Pág. 11] Em 1850, o historiador francês Jules Michelet, já compreendera essa transição do medievo, período que, como seu colega suíço, menosprezava, para a época moderna, como uma fase histórica, com uma especificidade própria, a qual denominou de “Renascença”: A Renascença de Michelet é a Renascença do homem integral, porque a sua história é a história do homem integral, do homem em toda a ação das suas diversas faculdades. Assim, Michelet não criou uma palavra, mas uma noção histórica; a noção de uma fase, a compreender e a definir, da história humana do Ocidente. (FEBVRE, 1994, p. 46) Novas organizações políticas – os Estados Modernos – foram sendo gradualmente consolidadas nos países atlânticos da Cristandade, ao longo dos séculos XV, XVI e XVII, enquanto no Sacro Império Romano Germânico, Estados principescos e cidades hanseáticas mantinham a fragmentação feudal. Na Itália, os governantes das ricas cidades-repúblicas careceram de uma estratégia de defesa contra as intervenções dos estados vizinhos, como a França de Carlos VIII, o Papado e a Espanha de Castela e Aragão. Desde o século XI, a política italiana encontrava-se imersa num tipo de tirania levando à total instabilidade dos governantes no poder. Assim, começaram as primeiras propostas em prol da unidade peninsular, como a de Dante Alighieri que teorizou e defendeu o sistema monárquico, baseando-se em Aristóteles e em Santo Agostinho. Posteriormente, Maquiavel escreveu suas obras preocupado em analisar as diversas formas de governo dos romanos: a aristocracia, a república, a democracia e a tirania. [Pág. 12] Ao se reportar aos antigos, Maquiavel procurou demonstrar como as melhores lições e exemplos do passado poderiam ser assimilados e aplicados pelos dirigentes na condução da política interna italiana. Ao todo, cinco domínios, conflitantes entre si, disputavam a Península: o Reino de Nápoles, regido pelos Aragoneses; os Estados Pontifícios, sob o governo papal; a cidade-república de Florença, sob uma oligarquia republicana governada pela família Médici; o Ducado de Milão, liderado pela família Sforza e a República Senatorial de Veneza. Os principados menores ora pendiam para um, ora para outro dos domínios maiores (LAURIVALLE, 1988). Em meados do século XV, surgia na Península itálica a doutrina do equilíbrio de poder em termos de política externa, ou seja, nas artes da diplomacia. Não que esta já não existisse antes, mas sob outra forma, posto que, internamente, aquele continente esteve unido pela Cristandade sob domínio temporal do Papado e, mundano, pelo Imperador eleito por príncipes romano-germânicos. Isto significava que, ao haver desavenças entre reinos e/ou feudos, mensageiros deveriam ser enviados de ambas as partes com o intuito de solucionar as contendas. O longo processo de consolidação dos listados modernos, com a respectiva intensificação do comércio transcontinental, dependia, por sua vez, do reconhecimento mútuo dos mesmos (GIDDENS, 2002). Portanto, a regulamentação das relações interestatais após de longas negociações, foi sendo firmada nos Tratados de Vestfália, em 1648 e de Utrecht, em 1712. Este sistema sui generis, superando a preponderância papal e imperial, viabilizou [Pág. 13] a ordem política europeia e a otimização de sua economia externa, pelo mercantilismo, e interna pela industrialização (BOBBIT, 2003). Lourenço, o Magnífico, bem antes da ordenação desse sistema europeu, defendera equilíbrio de poder, por ter entendido que somente a prática tradicional do envio de embaixadores, em momentos de crises políticas, não bastava mais para negociar as relações com os domínios vizinhos. Entreviu a necessidade de ter representantes diplomáticos residentes no estrangeiro, de maneira a agilizar as tomadas de decisão. Portanto, foi com a sua reconhecida capacidade diplomática que conseguiu manter um relativo equilíbrio dentro da Itália. Com a sua morte, em 1492, a política italiana perdera o seu maior mediador, iniciando querelas intermináveis entre os reinos e estados pontifícios. Discórdias e crises políticas fragilizaram a Península, culminando com a dominação estrangeira, que viria a perdurar por dois séculos. (LAURIVALLE, 1988) Guicciardini vivenciou parte desse período turbulento na história da Península itálica. Em sua cidade natal, Florença, a expulsão dos Médici de seu governo, em 1494, deixara a política citadina sem rumo, assim como desestabilizara o equilíbrio com e entre as demais regiões do norte. Posteriormente, a eleição, em Roma, de um Papa estrangeiro – Alexandre VI, da Espanha, revelou que as ambições políticas desse não conheciam limites. Afinal, ele foi o mentor do Tratado de Tordesilhas, dividindo o mundo além-mar, segundo interesses ibéricos, e não italianos. Nosso autor manteve uma postura ambígua, ainda livre das censuras da Contrarreforma, frente a Lutero, a quem admirava [Pág. 14] por sua cruzada moralizante contra o Papado. Não obstante, condenava o luteranismo, um movimento religioso herético, desencadeando cisões religiosas que, ao minarem a hierarquia eclesiástica, abriam as portas para as multidões se rebelarem. Eram os primórdios do século XVI, com a máquina da Inquisição, formada por uma burocracia informacional e repressiva, rondando e controlando ideias heterodoxas, ou mesmo as menores críticas à Igreja de Roma (BAIGENT, 2001). Finalmente, a retomada das disputas entre o Ducado de Milão e o Reino de Nápoles condenou a Península a várias guerras intestinas. Esses seriam alguns dos vários elementos que minaram o país, submetendo-o ao domínio de monarquias superiores, cm termos bélicos e políticos, tais como a espanhola e francesa. Assim, nem todo sentimento de italianeidade e aversão aos estrangeiros hispânicos e “bárbaros vindos do norte”, foram suficientes para centralizá-lo politicamente sob uma organização estatal. Os governantes locais preferiram manter seus poderes provincianos, em vez de renunciá-los em favor da aliança com um poder soberano e centralizante. A população esquecida pelos governantes era sumariamente reprimida, em caso se sublevações. Líderes ambiciosos e inescrupulosos como Lodovico Sforza, o duque de Milão, que se unira ao monarca francês Carlos VIII, aliavam-se a dirigentes estrangeiros fortes de modo a subjugar rebeliões em seu país, indiferentes à italianeidade, que deveria uni-los não só cultural, mas também, politicamente. (History of ltaly, XXXIX). A Itália passou por momentos conturbados, dentro e fora de seu país, e apesar das propostas de equilíbrio e fusão na política interna, foram as práticas descentralizadoras que venceram [Pág. 15] baseadas em interesses locais, ou mesmo, pessoais (BURCKHARDT, 1867). Entretanto, fora da Itália, a política monárquica enfrentava poderes imperiais, papais e feudais, consolidando Estados dinásticos nos países atlânticos da Europa Moderna - Portugal, I Espanha, Inglaterra e França. Tanto conflitos internos como invasões bélicas externas além dos problemas climáticos comuns a toda época, levavam a períodos de escassez alimentícia, como reportado por Braudel: Em 1528, a fome desencadeava horrores na Toscana: Florença teve de encerrar suas portas aos camponeses esfomeados do seu território. ... as fomes urbanas (...) repetem-se com elevada frequência no século XVI. (BRAUDEL, 1984) Culturalmente, o homem renascentista vivia entreos preceitos morais da Igreja cristã e o pensamento neoplatônico mais intensamente divulgado pela produção de livros impressos. A imprensa possibilitou um fluxo material da difusão de ideias, como foram os panfletos dos movimentos protestantes, ao mesmo tempo em que o acesso e a leitura destas obras possibilitavam mesclar tradições orais e populares às sabedorias antigas, assim como às novas descobertas (BURKE, 1989). [Pág. 16] TEMPO, ESPAÇO E ARES MODERNOS Desde os humanistas, já pairavam no ar debates filosóficos desencadeados pelos humanistas toscanos Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio, continuado por Marcílio Ficino no seu movimento neoplatônico, além das reflexões políticas de Nicolau Maquiavel. Entre eles, havia uma ideia secular do tempo que se amparava nos estudos de pensadores e historiadores da Antiguidade, cujas obras podiam datar de mais de mil anos. Uma afronta ao tempo sagrado da Igreja Católica, linear, de preparação para a vida após a morte, através de ritos diários ditados pelo toar dos sinos e, posteriormente, pelos relógios a marcarem as horas, situadas, também, no alto dos templos. A própria escatologia bíblica – nascimento, morte, ressurreição e ascensão de Cristo e a expectativa de seu retorno para redenção dos pecados, aclamava os homens a se prepararem para o futuro, rogando pela salvação de suas almas. Entretanto, a ideia do tempo circular, entre os antigos, permanecia no homem comum, diante da noção do tempo natural, presente no cotidiano através dos ciclos da natureza – os dias e as noites, as estações do ano, nascimentos e mortes. Mesmo assim, a noção temporal era mais acessível do que a representação abstrata dos espaços. Apesar da expansão comercial e marítima, a conscientização geográfica da existência de outros lugares, tão longínquos, era algo que exigia uma representação visual, difícil numa época em que mapas eram feitos por [Pág. 17] encomenda, sendo caros e raramente acessíveis, mesmo entre os letrados (HALE, 1971). Durante o medievo, venezianos e genoveses empreenderam viagens e negócios no Mar Mediterrâneo, com seus entrepostos comerciais no norte da África e no Império Otomano. Assim, fomentaram a circulação não só de pessoas e moedas, bens e mercadorias, como de ideias e saberes entre povos distintos. Desta forma, segundo Fernand Braudel, formaram a primeira economia-mundo ao sul da Europa, um ensaio do capitalismo comercial, viabilizado pela incrementação de técnicas marítimas e contábeis. Mas esta foi superada, com a ampliação de novas rotas comerciais abertas por espanhóis e portugueses, durante o século XVI. Já os critérios foram ultrapassados pela hegemonia das Províncias Unidas com a sua rede de companhias mercantis, a singrar os mares Atlântico e Índico durante o século XVII, superadas pela hegemonia britânica nos séculos vindouros. Assim, Guicciardini vivenciou uma época marcada pela conquista marítima de novos espaços, pelo contato com outros povos e terras, pela difusão mais dinâmica dos saberes pela técnica de impressão e das inovações nos transportes. Academias laicas apontavam para a ciência moderna, rompendo com os dogmas do saber escolástico, presente nas universidades medievais. O movimento das reformas protestantes abalou, mas não destruiu as estruturas da Igreja Católica, levando à sua reformulação ao longo do Concílio de Trento. A Itália, incapaz de se consolidar no sistema estatal, esfacelava-se frente à potência militar dos países vizinhos, recém-consolidados sob Estados dinásticos. A liberdade de interpretação das escrituras; a expansão do comércio marítimo, [Pág. 18] possibilitando o contato com novas culturas e troca de ideias e produtos; a astronomia aristotélico-ptolomaica, questionada pela nova astronomia de Copérnico, revolucionaram o quadro mental durante a Renascença. O ideal humanista de exaltação aos antigos foi, por sua vez, contraposto pelas descobertas marítimas e derrubaram três pressupostos da Antiguidade. Primeiro, de que não se poderia ultrapassar a linha do equinócio, então, a impossibilidade de se viver em uma zona, abaixo do equador, considerada tórrida; por último, de que não se sobreviveria ao clima gélido da região polar no extremo sul. Já os dogmas da Igreja Católica afirmavam que o, Evangelho de Cristo fora propagado pelos Doze Apóstolos pelos quatro cantos do mundo. Wilhelm Dilthey remonta à descoberta de “novos Adões”, quando das navegações marítimas além-mar: além do bíblico “Adão branco”, o europeu passara a conhecer um “Adão negro”, um “Adão vermelho” e um “Adão amarelo” (DILTHEY, 1933). Assim, as descobertas de outras terras para além do mar oceânico, de povos e raças diferentes e não cristianizadas, levou o homem do mundo ocidental a ver seus limites materiais e mentais serem cada vez mais questionados e, portanto, expandidos para novas concepções de mundo (SOARES, 1999). Junto com as contestações dos reformadores frente à Igreja Católica, cujos dirigentes haviam relegado questões espirituais em prol da luta pelo poder secular, a realidade das descobertas marítimas contradiziam o dogma da sua evangelização. Finalmente, a abertura as múltiplas interpretações das Escrituras desencadeadas [Pág. 19] pelos protestantes, negando a legitimidade dos Concílios, acarretavam dúvidas e pensamentos ambíguos. Permanências e rupturas caracterizam uma época permeada por transformações econômicas, políticas e culturais e cuja obra, Storia d’ Itália, manifesta estas antinomias. O outono renascentista, apresenta, enfim, um processo de releitura do pensamento antigo mesclado a elementos cristãos do medievo, construída com as inovações da modernidade. Assim, a religiosidade cristã foi sendo aprofundada tanto pelos protestantes, com ênfase na leitura da Bíblia e em práticas domésticas, como pelos católicos, em missas, procissões e peregrinações, além dos trabalhos missionários (GARIN, 1993). A ESCRITA DA STORIA D’ ITALIA: ANTECEDENTES, MOTIVAÇÃO, FINAUDADE E FONTES A historiografia medieval pouco extrapolou o âmbito da história regional, apologética ou religiosa. Narrativas dos eventos humanos, devido aos aspectos peculiares de então, também se diferiam da historiografia antiga. Os primeiros cronistas medievais apresentavam aspectos da vida política, religiosa e social. Ao limitarem-se ao local, seus autores não abarcavam uma visão maior dos acontecimentos e de suas implicações, atribuindo a intervenção divina o rumo da vida [Pág. 20] humana. Além das crônicas, havia as gestas, os anais monásticos, as biografias de santos e bispos, as escritas métricas escritas em latim e em vernáculo (J. W. THOMPSON, 1942). Após o século XI, os cronistas ousaram elaborar uma pretensa história universal, entendida como a própria história da Cristandade. Já os autores dos extensos anais, primavam pela arte de narrar, inclusive na língua materna, e não mais em latim, cujas obras tornaram-se, então, representativas do vernáculo. Os primeiros humanistas, em movimento contrário à tradição dos cronistas medievais, escolásticas, basearam-se no estilo dos historiadores antigos, principalmente os latinos, para elaborar a as suas obras. Entretanto, permaneciam restritos; em geral, seus autores sequer pretendiam romper os vínculos com a herança cultural cristã. Lourenzo Valia (1407-1457), quiçá seu melhor representante, destacara-se pelo método na investigação erudita em relação a controvérsias jurisdicionais e interpretativas. (HADDOCK, 1989). Traduções adequadas e fidedignas eram uma necessidade premente. Assim, a linguagem, com sua multiplicidade e suas variáveis tornou-se o ponto de encontro entre os homens e a modernidade A pluralidade dos planos experimentais e a possibilidade de encontrar uma sistematização única, uma nova lógica da experiência,estavam em jogo. Afinal, todas as questões convergiam para os problemas de linguagem. A cada conquista do saber lógico, histórico e filológico adequavam-se uma compreensão moral da vida, assim como uma interpretação jurídica e uma precisão gramatical (GARIN, 1989). [Pág. 21] O movimento humanista, dos séculos XIV a XVI, impôs-se como fator cultural na Península itálica, estendendo-se para a ibérica e para o norte da Europa. Afinal, recorreu-se ao vasto uso de material histórico arqueológico, de pesquisa e de crítica às fontes, além de cuidadosa investigação filológica das mesmas, divulgando a literatura em língua vulgar, exceto pelos gruppi intellettuali comunali, como o toscano. Seus maiores representantes, embora escrevessem obras em latim clássico, também contribuíram para a consolidação do italiano florentino, a língua mater e oficial da Itália até a atualidade. Dante Alighieri (1265-1321), considerado o pai da poesia italiana, ainda que produzindo muitas obras em latim, tornou-se conhecido pela sua obra magna Divina Comédia, escrita em italiano. Francesco Petrarca (1304-1374), historiador, arqueólogo e pesquisador de manuscritos antigos, foi um humanista que, com seu prestígio de escritor e poeta, influenciara sobremodo os gruppi intellettuali comunali da Toscana. Mostrava-lhes como a valorização da cultura antiga era benéfica ao patrimônio espiritual e literário. As criações das gerações anteriores passavam a ser incorporadas no modo de vida, nos costumes e nas formas de civilidade italianas. Completando o quadro dos grandes humanistas, Giovanni Boccaccio (1313-1375), considerado o primeiro prosador da Itália, autor do Decameron, uma coleção de novelas em que descreve a vida dos burgueses florentinos, apaixonados pela cultura e pelos prazeres do mundo (REALE e ANTISERI, 1983). Mas o que afinal teria motivado Guicciardini a escrever uma história tão densa e detalhada como a sua obra magna? Mark Phillips considera que a motivação teria sido de ordem pessoal, a [Pág. 22] fim de se justificar como político perante a nação italiana. Devemos ter sempre em conta que Guicciardini, antes de ser historiador, fora uma importante peça no jogo de poder tendo que decidir grandes questões, nem todas com o sucesso esperado. No caso do saque a Roma, Guicciardini fez uma acusação de foro íntimo: Por tua causa, Roma foi saqueada com tanta crueldade, para a ruína universal e particular de tantos de nossos citadinos; por ti, os heréticos dominaram os lugares santos; por ti, jogaram a relíquias aos cães. (Accusatoria) Guicciardini unira o seu fervor jurídico à capacidade argumentativa; a apreciação intelectual pela análise ao amor de um burocrata sobre os fatos que o cercavam. Ao fazer a retrospectiva de sua vida, inserindo-a na história de seu país, conciliara todas essas faculdades numa só. Na prática, acrescenta Phillips, não havia mais como reparar a trágica história italiana daqueles últimos cinquenta anos. Guicciardini não intencionava, como os humanistas, apresentar a história como uma lição política, nem reforçar a visão trágica de Maquiavel, para quem o tempo histórico ocorria de modo cíclico. (PHILLIPS, 1992). No entanto, ao escrever a história que testemunhara, conseguiu reunir os fatos numa trama europeia, dando-lhe forma, analisando-a e, principalmente, procurando explicá-la. O fracasso de seus conselhos, que acarretaram no saque a Roma, quando fora governador da Romagna, era indicativo de uma série de falhas cometidas pelos políticos italianos. Era hora de reconhecer que haviam abusado das tradições políticas italianas cuja vitalidade fora sendo lentamente minada, levando ao desfecho inevitável: o cenário composto pela [Pág. 23] capital da cristandade saqueada e por uma Itália subjugada a estrangeiros diversos. (History of Italy, III). Como homem público, doutor em Direito, Guicciardini sentia-se réu dos italianos devido às atuações e equivocados na política. Tendo a nação italiana como júri, ele empreendeu a obra Storia d’ Itália como quem redige a sua defesa. Além do aspecto jurídico, entendemos haver a contribuição de uma forte herança cultural, traduzida na ética da culpabilidade judaico-cristã. Paul Ricouer considerou que, decorrente das crises, surge um dos sentimento básicos do homem: a culpabilidade. Das relações de poder imerge a trilogia das paixões: o orgulho, o ódio e o temor. Esta trilogia atesta o perigo de que, onde estiver a grandeza desmedida do homem, também estará o seu pecado. A cupidez dos dirigentes, leva à ruína de um potentado, assim, a sua queda também poderia ser interpretada como castigo. Notamos a vontade do autor de redimir-se perante a sua nação, quando, no primeiro parágrafo da Storia d’ Itália, Guicciardini lamenta os sofrimentos pelos quais os italianos vinham passando desde a invasão das tropas francesas, decorrentes tanto da ira divina como da impiedade e cupidez de outros homens (History of Italy, I). Lembramos que, na tradição literária renascentista, a natureza humana fora inventariada tanto segundo virtudes e ações benignas, como também, vícios, comportamentos vis e sentimentos mesquinhos. Os cronistas e historiadores da época moderna incorporavam tal perspectiva em suas considerações. Ele escreveu aos seus concidadãos, optando por se expressar no vernáculo, posto que, em italiano, melhor se faria entender. [Pág. 24] Elaborou a Storia d’ Itália buscando encontrar explicações para tantas crises italianas, considerando que as rivalidades entre as cidades- Estado, os reinados, os governos tirânicos e o Estado Pontifício; as guerras contra a França, a interferência política em benefício do enfraquecimento da nação italiana, acabaram deixando a nação nas mãos de países estrangeiros. Guicciardini, minimizando seus erros, repreendia os dirigentes, a quem fora concedido o poder para governar, em benefício do bem comum. Afinal, quão perniciosos haviam sido tais dirigentes, quase sempre consigo, mas também, sempre contra as outras pessoas, agindo tão somente a partir do que viam perante seus olhos. Assim provocaram, por imprudência ou por ambição excessiva, novas turbulências políticas, contribuindo para o declínio da Itália. (History of Italy, I). Se não pretendia apresentar uma lição de moral nos moldes humanistas, ao menos chamava a atenção para que os detentores do poder se tornassem mais responsáveis e atentos às obrigações para com a sua população. Entendemos que esta fora a intenção explícita do autor ao escrever a Storia d’ Itália. Entretanto, Guicciardini é levado pela crença na Fortuna, ao afirmar que a experiência e a razão pouco determinariam o futuro, estando, portanto, o Homem sujeito à boa ou má sorte do Destino. ( , LXXII). Ritratti É um grande erro falar das coisas indiferente e absolutamente, e digamos assim, por regra; pois em quase tudo há diferenças e exceções, devido à variedade das circunstâncias, sem poder se chegar a um acordo comum: não se encontram estas divergências nos livros – a necessidade ensina ser discreto. (Ricordi, VI). Essas lembranças indicam o caminho guicciardiniano de pensar, aplicado na redação da Storia d’ Itália, cuja leitura é [Pág. 25] complexa, por vezes pesada e mesmo incoerente. Ainda que Guicciardini tente ser imparcial em certas partes, o autor deixou-se tomar pelo caos reinante em seu país, após a efetiva dominação deste, por franceses e espanhóis. Pensamentos fluem, cientes da variedade das circunstâncias e da instabilidade no comportamento humano, em meio à credulidade do homem comum. Guicciardini, leigo, não é contido pelos fundamentos da teologia cristã, com suas origens e fins determinados pela história bíblica, cujo mito da criação é ignorada. E certo que narrou uma história do seu tempo, mas sequer pretendeu inserir a sua história dentroda perspectiva cristã, voltada para a redenção humana. Para ele, Deus somente se manifestava em alguns fenômenos naturais, mas antes como um castigo, um infortúnio, do que como milagre. Em Guicciardini, o curso da história era conduzido pelas vontades individuais, diferenças, exceções e casos peculiares cujos personagens travavam um embate em torno de lutas pelo poder num país caótico. Homem experiente, prático e desiludido dos rumos de seu país, não via sentido na História em si, como foi posteriormente, enfatizado nas concepções historicistas do século XIX: [...] os indivíduos e as nações são significativos somente na medida em que contribuem para o fim teleológico que o filósofo descortina. O curso da razão na história identifica-se com a descoberta do plano racional de Deus para a humanidade. Aqui, Hegel apresentou uma visão religiosa do mundo nos termos peculiares de sua lógica. (...) O materialismo histórico (argumentava Marx) pusera a descoberto leis de desenvolvimento que funcionam na história tão precisamente como as leis da natureza funcionam na física (HADDOCK, 1989). [Pág. 26] A história guicciardiniana é um espelho biográfico do autor. As reflexões extraídas durante a sua carreira política, parcialmente expressas nos Ricordi, foram transferidas para a Storia d’ Itália, a partir de suas preocupações práticas com os dirigentes que deveriam se voltar para o bem comum e para a manutenção de uma Itália unificada e livre. Enfim, sem pretender oferecer fórmulas, acima de tudo, o autor apontou para os problemas de seu tempo, oriundos na obscuridade da natureza humana. Seria ele um homem trágico conformado com as imperfeições da humanidade? Não obstante, na Storia d’ Itália, o autor procurar explicar o caos reinante em seu país como decorrente das ambições pessoais de seus dirigentes, das vicissitudes do destino, da fortuna, da natureza e, quiçá, da vontade divina. Formalmente, seguiu a linearidade temporal dos humanistas, descrevendo, ano após ano, os fatos históricos. No conteúdo, entretanto, inseriu breves relatos que serviriam de pano de fundo para explicar, indiretamente, eventos de maior envergadura sem, entretanto, pretender apresentar um sistema ordenador (PHILLIPS, 1992). Segundo Phillipps, o recurso às fontes, por Guicciardini, em sua obra magna foi documentado numa edição da Storia d’ Itália organizada por Silvana Seidel Menchi; publicada em Turim pela editora Einaudi, no ano de 1971 (PHILLIPS, 1992). A tradução de Alexander, como as demais edições publicadas até então, manteve excluídas as referências às fontes. Acrescentemos que, ao longo de sua vida, Guicciardini fizera, a partir de suas observações e vivências, anotações acerca de certos fatos, assim como registrara suas reflexões. [Pág. 27] Também, podemos confirmá-lo como precursor da historiografia moderna, não só porque seguiu a prática humanista, mas porque consultava documentos oficiais separando e analisando-os com mais zelo do que seus antecessores; também, pelo fato de não os copiar pura e simplesmente, mas impregná-los com uma interpretação pessoal. Dessa feita, combinou os diversos elementos retirados das fontes de maneira tão hábil que acabou por realizar algo inédito para o seu tempo (FUETER, 1953). Storie Fiorentine, segundo Phillips, representa, junto com Memorie di famiglia, ambas escritas em 1508, os primeiros passos de Guicciardini como cronista e memorialista. em Fe Cose Fiorentine elaborou a história de Florença, a sua cidade natal, a partir dos arquivos da família, mantendo resquícios do estilo das crônicas familiares, típicas da época, além de realizar uma história local, com a qual estava por demais envolvido (PHILLIPS, 1992). De 1527 a 1531, Guicciardini empreendeu a sua segunda tentativa de escrever a história de Florença, cobrindo o período de 1375 até o século XV, deixando a Cose Fiorentine inacabada, mas marcando os seus primeiros passos como historiador. Guicciardini abandonou a espontaneidade, fixando um padrão de escrita; ficando claro que ele questiona a história, pois examinava os documentos de modo a produzir uma nova concepção. O editio princeps, publicado quatrocentos anos depois, com o título dado pelo editor Ridolfi, ressalta o uso de fontes além de preservar esta evidência no texto impresso. Rejeitando o trabalho anterior, ainda que seguindo o esquema da tradição humanista, Guicciardini consultou as histórias de Bruni e Poggio, as crônicas de Villani, Stefani e Buonigni, além de arquivos locais. [Pág. 28] Meticulosamente, comparou uma fonte à outra, além de cuidadosamente averiguar a sua confiabilidade. Mas é nos Ricordi e Considerazione que Guicciardini examinara a natureza do saber histórico e abandonara parte do estilo humanista tradicional de escrever a história. O tom frio e analítico, além do zelo com a linguagem, aponta para um novo e maior senso crítico histórico (PHILLIPS, 1992). O seu talento como historiador foi revelado na elaboração do Storia d’ Itália, na qual fez uso da vasta experiência como político, diplomata também da habilidade adquirida a partir de seus escritos anteriores. Narrou uma história contemporânea, na condição de testemunha ocular, atuando in loco; e, personagem histórico, quando fora governador de Modena e Reggio e na rebelião do governo florentino, em que: “... o luogotenente Guicciardini atuara com grande prudência” (History of Italy, XV). Com essa obra magna, o autor se ateve ao propósito implícito de narrar uma história italiana prejudicada pelas imprudências dos detentores do poder, pelas surpresas da Fortuna, pelas interferências políticas do Papa e pelos acontecimentos europeus que repercutiram na Itália, fossem eles bélicos, comerciais ou políticos. Nesse sentido, permaneceu imbuído de uma certa fatalidade medieval, ao assumir que certas vicissitudes do Destino interferiam na história. Elas se manifestavam em vários sinais: a morte inesperada de uma eminência pública, surtos epidêmicos, intempéries e outras forças da natureza e mesmo do além. Guicciardini ficou, assim, incapaz de apresentar uma explicação racional para tais acontecimentos: somente restaram-lhe uma perplexidade desconcertante ou, acanhadamente, a breve [Pág. 29] aceitação da ingerência divina nos assuntos humanos, conforme procurou justificar ao longo de sua narrativa. Interpretamos as obras deste historiador florentino em decorrência de sua trajetória profissional, inserida naquele espaço geográfico e momento histórico, visando apresentá-la aos interessados em história e política renascentista. Destacamos as ideias norteadoras do pensamento guicciardiniano – vício e virtude, fortuna e vontade individual, ambição e poder – na elaboração desse conhecimento histórico, uma composição renascentista repleta de elementos humanistas, entremeadas por crenças medievais e considerações modernas sobre o indivíduo. Através dessa narrativa, procuramos compreender o período vivenciado por Guicciardini, cientes de sua condição como testemunho da sua história. Dos seus escritos pessoais podemos destacar as suas reflexões acerca do homem e extrair categorias históricas empregadas na compreensão de sua época; entender suas ideias políticas e a de seus contemporâneos; finalmente, apreender em suas reflexões o sentido que o autor deu à História. Ter conhecimento sobre a trajetória profissional do autor citado elucidou os motivos e as intenções do mesmo decidir narrar uma história coeva. A partir de questões confirmatórias ou discordantes dos comentaristas anteriores, resumimos as ideias principais escritas sobre o historiador florentino, procuramos responder às nossas indagações sobre a sua escrita e pretendemos desvendar seu pensamento implícito, indicando ideias que, na vida pública, o autor evitava revelar. Assim, trabalhamos asfontes referidas cientes [Pág. 30] da concomitante limitação e infinitude deste trabalho. Limitação, uma vez que as obras refletem o pensamento de só uma pessoa; infinitude, pois seus escritos estão sujeitos a serem constantemente lidos e reinterpretados. Permanecem dúvidas que nos inquietam e nos deixam alertas contra quaisquer dogmas ideológicos, religiosos e políticos. Em termos metodológicos, o eterno sentido da dúvida estimula a nossa preocupação. Afinal, são as incertezas que abrem um leque de perspectivas sobre a história, através da correção de uma leitura por outra, de maneira que não temos como dizer a última palavra. A crise dos paradigmas no campo das ciências exatas e humanas leva- nos antes ao caráter aberto da compreensão, que pode contribuir para ampliar as experiências de vida, o auto-conhecimento e nossa visão de mundo, sintonizando nossos anseios às possibilidades da hermenêutica moderna. Nesse sentido, procuramos nos transpor através dos escritos de um autor renascentista, aos dilemas, inquietações e reflexões do seu tempo: das insensatas ações humanas aos absurdos dos detentores políticos. Sintonizamos com as inquietações comuns de um autor com seus anseios e expectativas, suas dúvidas, angústias atemporais e quiçá, universais, uma vez que giram em torno da natureza humana. Guicciardini partia da concepção de um saber histórico secular, posto que o desvincula do providencialismo medieval cristão e concentra os fatos às ações desenfreadas dos indivíduos. A história seria um produto dos agentes humanos, resultado de vários pensamentos e sentimentos ambiciosos, empreendidos principalmente através de ações individuais e egoístas. No entanto, defende raggione de stato, entendendo que deveria haver sensatez [Pág. 31] entre os dirigentes, responsáveis pelo bem de todos. Assim, temos, por um lado, um desespero dionisíaco, assumindo que a humanidade é antes levada pelas emoções do que pela razão; por outro, uma direção apolínea em que o autor, cônscio do seu papel político e histórico, exortava os detentores do poder a terem maior consideração pelos quais se tornaram responsáveis. BREVE REVISÃO HISTORlOGRÁFICA O estudo crítico moderno sobre Guicciardini começou em 1824 com a publicação de Leopold von Ranke, Zur Kritik neuerer Geschichtsschreiber, embora muitas das obras de nosso autor só viessem a ser conhecidas quando da publicação da Opere inedite, no período de 1857 a 1867. (J. W. THOMPSON). Ranke descobriu, após décadas de pesquisas nos empoeirados arquivos públicos italianos, alguns dos seus escritos. Considerou que o florentino enfatizava demais os eventos políticos, além de exagerar na sua atuação como agente e, portanto, personagem histórico. Entretanto, Ranke relevou as obras de Guicciardini como patamares da historiografia moderna, que versam sobre a cultura romano-germânica dos séculos XVI e XVII. Mas não deixa de criticado por uma seleção inadequada de fontes e por empregar termos de cunho religioso, tais como io credo nos quatro últimos livros do Storia d’ Itália. Afinal, Ranke defendia a Kultur sendo o ponto de interseção entre os povos e as nações e também censurou o historiador florentino, posto que só [Pág. 32] narrara fatos políticos, ignorando quaisquer aspectos culturais, afinal, Ranke partira da premissa de que somente após o Iluminismo, e não antes, o saber passara a ser secular, livre de heranças de natureza religiosa e do providencialismo medieval cristão. (RANKE, 1979). No ensaio A Cultura no Renascimento Italiano, Jacob Burckhardt aponta para o fato dos historiadores florentinos, do início do século XVI, escreverem em língua italiana, e não mais em latim, idioma do clero, dos letrados, usado na teologia e na diplomacia. Guicciardini, junto com alguns escritores do cinquecento italiano, preferira registrar as observações sobre o curso dos fatos na língua materna, uma vez que tais impressões são de foro íntimo. Lembramos que os escritores renascentistas italianos, com todas as suas especificidades de linguagem e estilo, foram influenciados pela herança político-cultural da Antiguidade. Afinal, superaram o humanismo do século anterior ao apreenderem o espírito dos antigos mais do que os próprios latinistas, seus antecessores. Consideravam-se cidadãos que escreviam para os seus concidadãos, seguindo a tradição dos letrados greco-romanos. (BURCKHARDT, 1855). O historiógrafo Eduard Fueter considerou Guicciardini o primeiro historiador a romper com a escrita regional, a partir do momento em que tratava de um tema que ia além de suas fronteiras – a história de uma unidade cultural e geográfica entendida por Cristandade. O diplomata seria o primeiro a libertá-la dos compromissos com os governantes locais, posto que não só relacionou os eventos italianos, como os atrelou a questões externas. Como pano de tundo, incluiu as questões políticas do [Pág. 33] Papado, do Império Habsburgo, dos Estados emergentes, das invasões turcas e até da expansão além-mar. Essa consciência rumo a uma história quase totalizante fora possível, não só pela sua prática na vida política como jurista, governador e embaixador, mas também, porque não se conformava com os limites do dados fornecidos pela literatura e arquivos locais. A inter-relação mútua dos Estados, a conexão entre política interna e externa, a interdependência das operações militares e dos assuntos políticos são temas de história política desenvolvidos na Storia d’ Italia. Entretanto, quanto ao aspecto formal, Fueter ressalta como Guicciardini mantivera o estilo humanista. O autor ordenara a história na forma de anais, embora não interrompesse os relatos a cada fim de ano, para informar sobre assuntos diversos, como era comum nas narrativas humanistas, fazendo assim, um encadeamento geral dos fatos. Entre 1537 e 1540, Guicciardini formatou a Storia d’ Itália, em vinte livros, abarcando um período de quarenta e quatro anos, e embora mantivesse uma ordem cronológica (1490 a 1534), distribuiu alguns anos em dois livros. Guicciardini manteve a forma canônica da narrativa antiga, apresentando grandes quadros de batalhas, enfatizando os relatos das intrigas diplomáticas. Mas, atento aos detalhes das inovações nas técnicas bélicas, explicou o funcionamento das modernas armas usadas pelos franceses. Tal como Tucídides inovou ao inserir discurso no intuito de servirem como indicativo ao leitor, e não como texto ornamental, uma vez que menosprezava a função da retórica. Dessa forma, partindo de sua experiência como político prático e objetivo, posicionou se como juiz na sua narrativa [Pág. 34] histórica. Para tanto, o pesquisador consultou não só fontes literárias, como também documentos nos arquivos, com um zelo metodológico inédito aos seus antecessores (FUETER, 1936). James Westphal Thompson, no capítulo Historiam of the Italian Renaissance, ressalta o meio urbano e humanista no qual brotaram a consciência cívica pelo bem comum, nada parecido com o ambiente feudal do restante do Sacro Império. Tal como seu antecessor Fueter, comparou as escritas de Guicciardini, Storie Fiorentine e Storia d’ Itália, cuja metodologia pouco se alterara. O historiador renascentista conservara certa imparcialidade política, continuara a enfatizar as motivações egoístas dos governantes e manteve, igualmente, aversão a teorias políticas. Permanecendo com uma postura cínica frente ao poder, realizara a mesma estimativa primorosa sobre as consequências políticas dos atos de seus personagens, movidos pelo egoísmo intrínseco ao ser humano. No entanto, em sua primeira obra, o florentino tendera a narrar uma história local, uma memória urbana, em prol de sua comunidade. Já na obra magna, o diplomata demonstrou uma maior maturidade historiográfica, posto que ampliara seu saber para uma história não só daItália, como da Cristandade, com as suas cisões internas e ameaças externas. Nota que Guicciardini não se dera ao trabalho de explicar os antecedentes, mas parte de uma justificativa pessoal para o início da obra, em 1494, quando das incursões do Rei Francês no norte da Península italiana. Alerta-nos para o peso desta escrita, em frases longas e ciceroneanas, apesar do texto não ser prolixo, já que o autor não se repete. Os elementos tornaram- se mais complexos, a abertura de fronteiras para uma história ampla levara [Pág. 35] a caminhos difíceis e tortuosos. Mas tal amplitude é compensada pela ousadia e visão política, entrelaçando os fios dos poderes papais, imperiais e régios; pelas novas linguagens diplomáticas e bélicas; pelas inquietações humanas e rebeliões populares. (J. W. THOMPSON, 1942). Mark Phillips contribui para os comentários iniciais de Felix Gilbert, que atribui a Guicciardini a criação do conhecimento histórico, a partir da incessante mutabilidade dos assuntos humanos, assim como a sua elaboração desvinculada da fundamentação teológica cristã. No seu entender, a Storia d’ Itália seria a última grande narrativa histórica escrita, segundo as regras do humanismo clássico; outrossim, a primeira representativa da historiografia moderna. Phillips ampliou esses estudos realizando uma pesquisa historiográfica da Storia d’ Itália e de algumas das obras menores. Na apresentação, explica que a sua principal preocupação é com o “criticismo prático da escrita histórica”. Visa, primordialmente, guiar o estudioso a navegar nesses escritos de difícil compreensão, tanto pela sua densidade como pela sua aparente fragmentação, confundindo ou desanimando-o num primeiro momento. Mais completa e recente, Phillips oferece diretrizes para a leitura dos livros de Guicciardini, entendendo que este, ao redigir o seu último trabalho, tentaria redimir-se de suas falhas, explicando como toda política italiana levara a Itália à subjugação aos países estrangeiros. Phillips nos apresenta um quadro do autor e do personagem histórico Francesco, agente da história italiana, mas também, processado pelos seus atos na vida pública. Ao concatenar os eventos italianos aos europeus e inserir elementos sobrenaturais em sua narrativa, Guicciardini quis redimir-se dessa culpa, [Pág. 36] minimizando as faltas perante os seus correligionários (PHILLIPS, 1977). O historiador inglês B. A. Haddock remonta às origens da historiografia moderna na renascença italiana, especificamente, em Guicciardini. Segundo ele, o político e diplomata italiano inovou metodologicamente ao pesquisar, criticar e citar as fontes. Diferencia as reflexões históricas em Guicciardini e em Maquiavel; este supunha que o homem público defronta-se com alternativas claras; para aquele, uma situação histórica compreenderia elementos tão diversos, que somente uma descrição exaustiva do equilíbrio de forças poderia elucidar as tomadas de decisão. Lourenzo Valla havia inovado na crítica às fontes, Guicciardini as iluminara com a sua capacidade de interpretá-las. Desse modo, explorara e ampliara o realismo da tradição histórica florentina cuja visão prática do homem é comum nas obras do quattrocento, em oposição à utópica, a tendência oposta, presente no pensamento moderno. Assim, a crítica contra seu ceticismo e visão prática da vida política residiria antes no seu fracasso profissional, e não na falta de ética. Segundo Haddock, Guicciardini teria conseguido obter uma compreensão histórica, na qual recorrera, tão somente, aos próprios eventos do seu tempo, devidamente relacionados entre si. (HADDOCK, 1989). Finalizando, ainda nos reportamos ao filósofo político inglês Quentin Skinner, que também oferece amplo embasamento no campo da história das ideologias modernas, incluindo o movimento renascentista do norte da Europa. Skinner, historiciza as categorias do pensamento político moderno, ao relacionar o humanismo cívico, a renascença, as reformas religiosas, [Pág. 37] culminando na consolidação da monarquia absolutista. Enfatiza o papel dos humanistas cívicos de Florença, entre eles, Maquiavel e Guicciardini, expoentes dos valores republicanos, em Florença. Nesse sentido, considera Guicciardini um político urbano e cético, defensor da liberdade política, contra os poderes na mãos do Príncipe (SKINNER, 1978). Resumindo, temos, por um lado, Ranke, Gilbert e Haddock, considerando Guicciardini como precursor da historiografia moderna, liberto das regras do providencialismo medieval cristão. Thompson, Fueter e Phillips, por sua vez, apontaram para a inovação interpretativa do método, além de destacar o aspecto psicológico em abordagem histórica. Esperamos que a presente revisão historiográfica contribua para orientar tanto em meio aos paradoxos do autor, como do próprio período em que viveu – a Renascença italiana. A sua vida profissional, conduzida por interesses pessoais e ambições políticas, colaborou para que elaborasse uma história em que o indivíduo, apesar da herança cultural cristã, continuasse movido por valores antagónicos, como virtude e vício, tendo em vista e fé no Deus cristão, bastante abalada pelas interferências, frequentemente, trágicas, das ações do destino e da fortuna. GUICCIARDINI E O CINQUECENTO ITALIANO [Pág. 39] Citação em latim [vide original] GUICCIARDINI - A VIDA PÚBLICA Francesco Guicciardini nasceu em Florença, aos seis dias do mês de março de 1483 e faleceu em 1540. Seu pai, Piero Guicciardini, negociante de seda, foi um patrício no governo florentino; apoiou a República dos Médici até a sua expulsão pelo governo popular em 1494, mas favorável a seu líder, o carismático Savonarola, deposto e queimado em praça pública, em 1498. Proporcionou ao filho uma formação jurídica, entretanto, desde cedo, o jovem Guicciardini ambicionara seguir a carreira política e, mais tarde, no outono de sua vida, ainda empreendeu uma obra de envergadura historiográfica: [Pág. 40] Francesco Guicciardini, Doutor em Direito, aquele que escreveu esta história; naquele tempo era tão jovem que, segundo as leis de seu país, não podia exercer cargo oficial (...). Uma vez que a política exterior era subordinada à Jurisdição dos Dez, Guicciardini recebeu as suas instruções do secretário geral, o então, Nicolau Maquiavel (History of Italy, X). Com muita vontade de vencer, tecendo metas definidas para cumprir, logo seguiu uma vida profissional digna de um homem maduro, renunciando até mesmo aos entretenimentos próprios da juventude. Seu sentido político fora forte e pragmático: com espírito livre de dogmatismos, aberto às lições que a experiência lhe oferecia, percebia as conexões das forças políticas, a mutabilidade das situações, o jogo de interesses entre os homens e as suas facções. (CHABOD, 1967). Tanto ambicionara ser o primeiro, o melhor de todos! Opondo-se ao pensamento de Nicolau Maquiavel, seu contemporâneo, não considerava que a ambição fosse necessariamente um vício, desde que exercida pelas pessoas certas como ele, por exemplo. Segundo Phillips, as pretensões do autor refletiram-se em sua carreira política, quando atuara, ainda jovem, como embaixador de Florença na Espanha e, posteriormente, a serviço do Papado, como governador da Romagna. Na vida literária, desafiou a si mesmo a escrever uma história da Itália, sua última e maior obra, ainda que interrompida pela sua morte. Guicciardini a teria elaborado no intuito de oferecer uma explicação plausível para a falência do sistema governamental italiano, formado por vários principados, além das cidades-Estados, [Pág. 41] incapazes de reagir eficazmente contra a Espanha hegemónica de então. Apresentar uma explicação maior, de forma a minimizar sua culpa no vergonhoso saque dos franceses a Roma, implicava escrever detalhadamentesobre a história da Itália quinhentista. Esta fora uma meta intelectual de grande porte, representante de uma das muitas ambições do florentino (PHILLIPS, 1977). O caráter peculiar de Guicciardini são as antinomias de seus pensamentos, de suas ações, enfim, em sua maneira contraditória de conduzir a vida. Se por um lado servira aos Médici, por outro lado não poupou críticas às atitudes dos Papas e de considerou a sede da Igreja, em Roma, como um dos fatores decisivos para o caos da política italiana. Embora professasse o catolicismo, criticava as atuações seculares dos papas renascentistas e do cardinalato em Roma, ainda que se opusesse ao cisma luterano, temendo pelas consequências sociais. A vontade de atuação no poder era tal que Guicciardini se arrependera de não ter tido uma vida mais sociável na juventude: menos por ter-se abstido de tais prazeres em sociedade, mas antes porque, tais atividades sociais ter-lhe-iam sido bastante úteis na vida política (CHABOD, 1967). Para Guicciardini, a ambição deveria ser exercida apenas pelas pessoas certas, detentoras de cargos públicos laicos, podendo vir mesmo a ser considerada uma forma de virtù; entende que a cobiça passa a ser um vízio, quando exercida por devotos cujas funções deveriam ser restritas ao serviço para Deus. O florentino justificou a sua aspiração imoderada, posto que não havia optado, tal como o clero, pelo compromisso público com Deus. Ele separava claramente a vida leiga e mundana da religiosa e [Pág. 42] contemplativa, condenando aqueles que, como representantes de Deus no mundo, ambicionavam o poder secular. Manteve tal postura, mesmo a serviço dos Papas, quando paradoxalmente defendeu que o Sumo Pontífice exercia, de fato e de direito, um papel político, enquanto só oportunamente assumiria a representação divina sobre a Cristandade. Outrossim, na função de jurista, consciente dos direitos e deveres civis, depôs contra o individualismo exacerbado dos governantes, julgando-os como também fora setenciado na vida pública. Não obstante, compreendia as tramas da história como poucos, indo além das disputas dinásticas e da descrição de batalhas. Desta feita, embora o eixo principal de sua obra ser a ação política, o exercício do poder, outros elementos, alguns novos, interferiam no curso da história: cisões religiosas, descoberta de novos mundos, raios e trovões como manifestações da natureza, sinais enviados por Deus, golpes fatais da Fortuna, mortes inesperadas. Entretanto, como buscou manter uma observação racional, também recorreu, meticulosamente, a documentos de arquivos municipais, chegando a escrever o mesmo texto sete vezes, e não somente por questões de estilo. Contemporâneo à expansão marítima, também relatou as viagens dos portugueses ao longo da costa da África explicando como os navegantes orientavam-se pelos astros. Também apresenta a divisão abstrata do globo feita pelos cosmógrafos de então – uma rede de linhas perpendiculares e paralelas a do equinócio dos astrólogos, com os graus precisos das latitudes. Guicciardini, portanto reconhecia a superioridade de seus [Pág. 43] conterrâneos quanto à remanescente sabedoria dos antigos: ele assumia que a sua época não representava o simples retorno à Antiguidade, mas sim a superação desta. Tal postura justifica o seu embate contra Maquiavel quanto ao papel do passado histórico – afinal para este o papel da história política romana era servir de espelho para os príncipes coevos. Guicciardini discordou dessas lições do passado, por estar ciente de que a sua época histórica diferia da antiga (History of ltaly, I). Somente remeteu-se às descobertas marítimas quando narrou os fatos do ano de 1504, por relacioná-las ao declínio do comércio de especiarias de Veneza com Alexandria, que passou ao monopólio de Portugal. Como tudo que acontecia com Veneza, então a cidade hegemônica da Itália, tivesse ligação com os acontecimentos italianos, o historiador se reportou brevemente ao domínio do Mar Oceano – o Atlântico. Destacou o papel de Colombo, um genovês, que, a partir de suas observações sobre o vento e após muitos estudos, arriscou a sua vida numa viagem de trinta e três dias, quando finalmente chegou a “algumas ilhas”. Depois, o florentino Vespucci e muitos outros mais descobriram ilhas e grandes partes de terra firme, que indicavam a existência de um novo continente. Finalmente, os portugueses realizaram a circum-navegação, comprovando, assim, a curvatura da Terra. Ambas as descobertas eram contrárias aos dogmas eclesiásticos baseados nas Sagradas Escrituras. (History of Italy, I). Guicciardini celebrou portugueses, espanhóis e, em especial, Cristóvão Colombo pelas descobertas marítimas, ainda que condenasse os objetivos de tais façanhas. Considerava que, ao [Pág. 44] invés da ganância pelo ouro e pelas riquezas dele provenientes, os homens deveriam ser movidos pelo desejo de adquirir mais conhecimento para si mesmos; em prol do bem comum, ou pela singela vontade de propagar a fé cristã. Afirma que esta até estava sendo empreendida, mas antes como decorrência e não como objetivo primordial das descobertas. (History of Italy, I). Ora, essa perspectiva de um saber voltado para o aprimoramento de si mesmo é tipicamente humanista, sendo uma decorrência das ideias neoplatônicas. Nesse sentido, ciente das fraquezas do caráter humano, o narrador mostrou-se favorável à prática cristã levada a termo através da evangelização da fé e do conhecimento. De certo modo, um credo para quem convivera em meio ao fogo cruzado das paixões humanas e às nefastas consequências da cupidez, da ganância e da desenfreada ambição política de seu tempo. Digno de citação é o último parágrafo sobre as descobertas, omisso em todas edições do Storia d’ Itália até o ano de 1774, em que se evidencia o abalo sofrido pelos dogmas eclesiásticos, decorrente das expansões marítimas e das descobertas de novas terras e de novos homens: Uma interpretação contrária à verdade, uma vez que, até então, nenhum conhecimento sobre essas terras fora trazida à luz; nem sinais ou relíquias de nossa fé haviam sido encontradas por lá. É indigno acreditar que a fé em Cristo havia existido lá antes destes tempos, ou que uma parte tão grande do mundo nunca dantes tivesse sido descoberta ou encontrada por homens de nosso hemisfério. (History of Italy, I) Tais eventos concretos, as descobertas de novas terras onde moravam outros Adões não evangelizados, contrapunham-se a uma afirmativa até então inconteste das Sagradas Escrituras. Esta [Pág. 45] reflexão do autor também justifica as vias tortuosas de seu pensamento antinômico; Guicciardini vivera e estava ciente dos abalos morais, políticos e religiosos pelos quais a cristandade passava; mas como cristão manifestou perplexidade diante dos novos eventos. Percebia os novos Adões diferentemente dos colonizadores portugueses e espanhóis. Além do mais, os habitantes das novas terras, não sendo atormentados pela ambição e cobiça, prescindiam da natureza guerreira e bélica dos europeus, tornando-se facilmente domináveis. Para ele, a ambição também era determinada pelas hostilidades do meio ambiente; pois os rigores do inverno europeu demandavam uma agricultura planejada com a devida armazenagem de alimentos, além de roupas quentes e estoques de lenha para cozinhar e aquecer as residências. Não obstante, achava que tais povos tornavam-se ainda mais infelizes por carecerem de uma religião e não conhecerem o ofício de um aprendizado. Além disso, eram incapazes de negociar, de possuir armas, de dominar a arte de guerrear, ter noção de técnica e experiência para o que fosse de útil. Desse modo, assemelhavam-se a animais mansos, e o que lhe é pior, presas fáceis de serem dominadas por europeus bélicos, sedentos de riquezas. Nessa
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