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2 Primeiras ampliações teóricas Os primeiros anos de M. Klein em Londres (desde 1926) foram relativamente tranqüilos. Houve boa aceitação de seu trabalho, ense- jando criatividade mais fecunda. Um artigo publicado em 1928, "Os estágios primitivos do complexo de Édipo", extremamente rico em propostas originais sobre o desenvolvimento da mente infantil, encon- trou muita dificuldade em ser compreendido. Se, atualmente, com todas as contribuições posteriores, e com todo o empenho em aceitar elocubrações kleinianas, não é fácil digeri-Io, imagine-se na época de sua divulgação. Por que é tão difícil o entendimento desse texto? (Como de resto da maior parte da obra kleiniana.) Penso que, primeiramente, pela própria complexidade do tema: o Édipo precoce. Todo aquele que tenta escrever sobre Psicanálise, procurando fazer ilações teóricas da expe- riência clínica, sabe disso. Em segundo, porque, ao desenvolver suas concepções e ir fazendo descobertas, Klein chocava-se com posições estabelecidas por S. Freud, autoridade suprema, ainda vivo à época, e, apesar de idoso, em plena atividade crítica e criativa. Chocava-se também com K. Abraham, que havia morrido há três anos, e de quem tanto tinha recebido e admirava. Em terceiro lugar, porque, apesar de corajosa, Klein era ainda relativamente iniciante (fazia nove anos que era membro da Sociedade de Psicanálise) e não estava suficientemente segura para enfrentar o conjunto de discordâncias teóricas, afetivas e também políticas (Sociedade Britânica de Psicanálise) em tão pouco tempo. Mas em quarto lugar, e principalmente, porque tinha a propen- são para dizer as coisas muito diretamente e sem rodeios. Isso angustia 22 o leitor cujo próprio Édipo precoce tem de ser fortemente reprimido. Lembro-me do sentimento de perplexidade, repulsa e até indignação quando, há mais de vinte anos, tomei contato com frases assim: "Não parece claro por que uma criança de, digamos, quatro anos de idade deveria estabelecer em sua mente uma imagem irreal e fantástica de pais que devoram, cortam e mordem. Mas é claro por que numa criança de cerca de um ano de idade a ansiedade causada pelo começo do conflito edipiano assume a forma do medo de ser devorada e destruída" ("Os estágios primitivos do complexo de Édipo", 1928. In: Klein, 1950, p.203). Klein está tranqüilamente considerando nessa citação a necessidade de explicar um problema evolutivo. Aos quatro anos de idade a criança deveria estar na chamada "fase fálica". Portanto, o Édipo deveria estar associado a relações genitais entre o sujeito e seus objetos internalizados. Mas, se aparecem relações orais, de morder, cortar etc., então é porque esse Édipo se instalou na fase oral, isto é, no decurso do primeiro ano de vida. Então o Édipo começou em época anterior à fase fálica (de três a cinco anos) proposta por Freud. O intuito de Klein no texto citado é obviamente discutir duas concepções de evolução mental, comparando os achados clínicos. Mas, para o leitor que ainda se está iniciando, essa controvérsia não tem muito sentido. O que faz sentido é a angústia que sente ao ser confrontado com suas próprias resistências inconscientes ao sadismo oral. E sua reação ao texto kleiniano, em vez de intelectual, é emocional: choque e repulsa. Por outro lado, o desenvolvimento posterior da própria teoria de M. Klein, com as noções de posição depressiva, e, mais ainda, da posição esquizo-paranóide, colocando o início das relações sádicas de objeto em período evolutivo ainda mais precoce, fez com que os estudiosos se descuidassem um pouco dessas descobertas entre 1928 e 1933. É uma pena, porque o enriquecimento clínico (mais além do teórico) que se pode obter com estes trabalhos é grande. Tentarei dar ênfase ao que me parece mais relevante. 2.1. O Édipo precoce Um conceito fundamental, que Klein já mencionara de passagem ("Simpósio sobre análise de crianças", 1927), o de "objeto interno", vai adquirindo uma importância cada vez maior. Na seqüência da citação que fiz imediatamente acima, página 203, vem a primeira referência ao objeto internalizado: "A própria criança deseja destruir o objeto libidinoso mordendo, devorando e cortando-o, o que leva à ansiedade, visto que o despertar das tendências edipianas é seguido pela introjeção do objeto, o qual depois se torna aquele de quem a punição é 23 esperada. A criança então teme uma punição correspondente à ofensa: o superego torna-se algo que morde, devora e corta". Ferenczi introduzira o conceito de introjeção em 1909; Freud o utilizara em 1917 para descrever a incorporação, dentro do ego, do objeto amado perdido no "Luto e melancolia", como um fenômeno ainda patológico. Já em "Psicologia de grupo e análise do ego" (1921) e "O ego e o id" (1923) Freud considera a introjeção do objeto externo dentro do ego um fenômeno normal. Klein vai muito além, recorrendo à noção de uma assembléia interna por introjeção de objetos, que vão estabelecendo relações com o sujeito e de objeto a objeto, compondo um complexo mundo interior. Os primeiros objetos introjetados no ego são ao mesmo tempo objetos internos e funcionam como superego, como veremos adiante. Falar de superego, portanto, é falar de um objeto interno. É chamado superego precoce, por M. Klein, porque tem componentes orais e anais, enquanto o superego clássico, freudia- no, tem componentes preponderantemente genitais. A função do superego é regular as ações do sujeito: proporcionando aprovação e estima quando obedecido; e brandindo desaprovação que gera sentimento de culpa quando desobedecido. O sentimento de culpa só surge quando se causa mal a um objeto amado'. O amor aos pais é o complexo de Edipo: o amor aos pais nas fases de evolução oral e anal da libido geraria o Édipo precoce. Os sentimentos de culpa precoces são motivados por ataques sádicos (orais e anais) aos pais amados que se tornaram figuras superegóicas como resultado da introjeção. Isso explica a extrema severidade e extrema indulgência coexistindo lado a lado no superego precoce. Diante de um superego tão severo, a reação do ego ainda fraco só pode ser de forte repressão. Lembrando a relação que existe entre repressão e fixação, então, quanto maior a repressão dos impulsos orais e anais sádicos, maior a fixação desses mesmos impulsos no id e mais impregnado dessas características fica o superego (porque ele é fruto da introjeção de uma relação de objetos que, devido à fixação, fica matizada de impulsos orais e anais sádicos). Ao lado da inovação do conceito de Édipo precoce, e dos compo- nentes orais e anais sádicos de ódio e culpa dirigidos à figura materna pelas frustrações do desmame e controle esfincteriano que ela impõe à 'Neste trabalho de 1928 sobre o Édipo precoce, Klein ainda não havia feito a distinção entre ansiedade persecutória e ansiedade depressiva, e seu conceito de culpa ainda confunde medo de castigo com remorso. Isso se pode ver no texto: "Outra razão pela qual a conexão direta entre a fase pré-genital do desenvolvimento e o sentimento de culpa é tão importante deve-se a que as frustrações orais e anais, que são os protótipos de todas as frustrações posteriores na vida, ao mesmo tempo significam punição e dão origem à insiedade " (Contributions to Psycho-Analysis, 1950, p. 203 e 204; grifo da autora). 24 cria?~a.' out~~ conceito de suma relevância é proposto: a "fase de feminilidade . E um constructo teórico que ajuda a entender a homos- exualidade masculina e a impotência, bem como a homossexualidade feminina e a frigidez. Vejamos os subsídios para a compreensão da fase de feminilidade. ~s ~ovlme.ntos da, ~ase de ~eminilidade têm três pontos de partida: o InStl?to epistemofílico, o Impulso de apropriação anal-sádico e o sentlmen!o de culpa do superego precoce. O instinto epistemofílico (do grego: episteme=conhecer, e filo sgostar) refere-se ao impulso da crian- ça. de satisfazer sua curiosidade penetrandono objeto. O objeto da criança, no~ primeiros anos, é o corpo da mãe. Os impulsos anais- s~dlcos, umdos aos de penetração (epistemofílico), visam à apropria- çao dos conteúdos do interior do corpo materno. Devido ao estágio ana! da libido, as fezes são muito valorizadas e desejadas. Pela mesma raz~o, as feze~, por equação simbólica, igualam-se a bebês e pênis. Entao, a relaçao da cnança com a mãe, na fase de feminilidade tem por objetivo a penetração no corpo da mãe e o roubo de seus conteú- d~s internos (fezes-ebebêepênis paterno). Essa avidez e inveja que a cnan~a te~. pel~ corp~ materno (seja menina ou menino) a impele para uma identtficação muito precoce com a mãe, que não era reconhecida pelos an~listas da época. E levou à descoberta, por Melanie Klein, da ~,~lste?CIa no, h?~em de uma "inveja da feminilidade", equivalente à Inveja do pems na mulher, descrita por S..Freud. ~o z:tenino, .a inveja da feminilidade consiste no desejo de possuir os orgaos gerutais e reprodutores da mulher, os bebês e o pênis paterno, que na fantasia da criança estão no interior da mãe. As diferenças anatômicas sexuais levam a uma evolução distinta da fase de feminilidade no menino e na menina. F.a~~ de ~~minili~ade .no menino. Dá origem a um "complexo de feminilidade ,que e eqUlv~lente ao "complexo de castração" 2, desco- be~to por S. Freud. DepOIS que o menino, impelido pelas tendências episternofflicas e anais-sádicas, através da fantasia penetra e rouba o interior da mãe, esta é incorporada mentalmente. Ocorre uma identifi- cação com a mãe e o menino passa a desejar o pai como objeto sexual. Sucedem-se então algumas complicações. A mãe internalizada com a qual não se identifica, passa a se constituir num superego materno terrível, que, tendo sido mutilado, agora revida mutilando o menino o que equivale à castração. O pai, representado por seu pênis no interior 2 O '.'complexo de castração" na mulher refere-se a um conjunto de reações da menina motivada pe.la f~lta de u~ pênis, que ela descobre não possuir e que nunca virá a ter. Leva.a uma Inveja excessiva do homem, hostilidade contra ele e competição permanen- -. DlfIcult~ ~ .estabelecimento de relações amorosas e sexuais com o homem e com a propna feminilidade. 25 da mãe também se torna aterrorizante e castrador, constituindo-se num superego ameaçador. "Assim, a fase de feminilidade é caracteri- zada pela angústia relacionada ao útero da mãe e ao pênis do pai, e essa angústia submete o menino à tirania de um superego .que devor~, esquarteja e castra e é formado pela imagem de um par e uma mae juntos" (op. cit., p. 206). . As angústias provocadas pelo superego precoce l.eva~ ? memno a abandonar sua identificação com a mãe e a procurar Identificar-se com o pai. Mas uma identificação masculina apenas co~ .base n~ angústia pela identificação feminina não tem sohdez. 0_ ódio e a I?~eJa da mulher, intensos e subjacentes, sempre perturbarao a mascuhmdade e a relação heterossexual. A evolução sexual do menino para a normali- dade vai depender da intensidade relativa dos impulsos oral e anal sádicos e dos impulsos genitais. Na concepção de Klein, os impulsos orais e anais são dominados pelo componente sádico, inveja e ódio, ao passo que os impulsos genitais são mais .ligados a .relações ~ositivas, construtivas, ao amor. Assim, quanto mais predommarem os Impulsos genitais, mais amistosas as relações objetais da criança. , Segundo Freud, a libido evolui por fases. Uma fase_segue.a .outra. E um conceito mais biológico que psicológico. A evoluçao da libido pode estacionar (fixação) ou retroceder a uma fase anterior (regressão). Melanie Klein adota a teoria da evolução da libido de Freud, mas introduz um complicador, o conceito de "posição". A posição consiste numa constelação de atitudes, ações e reações características. Nesse- sentido é mais psicológica que biológica. As posições instalam-se por necessidade do indivíduo dentro de uma situação e não automatica- mente, por maturação biológica, como as fases. Assim, exi~t:m tan~as posições quantas são as fases, e pode instalar-se uma posiçao gemtal dentro da fase oral, ou dentro da fase anal-sádica. A posição genital masculina corresponderia ao desejo de penetrar com o pênis no corpo da mãe, fazer filhos com ela ~ amá-Ia e proteger os bebês. A posição genital feminina corresponderia ao de~eJo de. ser penetrada pelo pênis, ter bebês, a~ar o.~arc~Iro e os be~es, e cuidar deles'. Assim, diz Klein: "Se (... ) a identificação com a mae e baseada numa posição genital mais seguramente estabelecida, sua relaçã~ com a mulher, por um lado, terá caráter positivo, e, por outro, o desejo p.?r. uma criança e o componente feminino, que exerce uma parte tao essencial no trabalho do homem, encontrará oportunidades mais favo- ráveis para sublimação" (op. cito p. 207). J o conceito de posição sofre transformações em obras poste~iores de Melanie Klein. Posição obsessiva, posição depressiva, posição esquizo-paranóide etc. Voltaremos a ele quando for o momento. 26 É interessante notar que a genitalidade, existindo desde o corncç , porém de forma incipiente, é amalgamada e interferida pelas tendên- cias pré-genitais. Destas tendências pré-genitais que se misturam com a genitalidade do menino, propõe Klein que quanto maior a preponde- rência das fixações orais e anais sádicas, no período de identificação com a mãe, mais serão esperadas no futuro atitudes de rivalidade contra a mulher, impulsionadas pelos componentes de ódio e inveja da feminilidade. Porque, devido ao frustrado desejo de ter um bebê, o menino se sente em desvantagem e inferiorizado com relação à mãe. Fase de feminilidade na menina. A identificação precoce com a mãe, na menina, tem semelhança com a do menino no que se refere aos impulsos epistemofílicos, orais e anais sádicos (apossar-se dos conteú- dos internos da mãe) e o sentimento de culpa. As peculiaridades se devem às diferenças anatômicas. A identificação com a mãe resulta diretamente dos impulsos edipianos: a receptividade pelo genital mas- culino, sem as complicações da angústia de castração do menino. Klein admite que a menina tem uma noção inconsciente da vagina e sensa- ções nesse órgão e no resto do aparelho sexual, as quais são intensifi- cadas quando o Édipo precoce se inicia'. Se a identificação com a mãe é acompanhada de excessivas tendências orais e anais sádicas, origina- rão um superego materno muito atemorizante, que provocará repres- são e fixação nessas fases, dificultando a evolução da fase genital da menina. Aqui também, como foi visto no menino, o temor de uma mãe interna muito destrutiva leva a menina a abandonar a identificação com a mãe e a identificar-se com o pai. Assim, a mãe passa a ser o objeto sexual da menina. Os sentimentos de culpa por tê-Ia atacado forçam uma supercompensação, fazendo com que seu amor pela mãe seja ainda maior. Todavia, a falta de um pênis (percebida l'ela intensificação do impulso epistemofílico devida ao complexo de Edipo), o ódio pela mãe nas fases de desmame e controle esfincteriano, aliados à rivalidade, fazem com que a menina abandone a identificação com o pai e volte a tomá-lo como objeto de seu amor. Se a nova tomada do pai como objeto de amor for influenciada por excessivo ódio e inveja contra a mãe, as futuras relações com o homem serão prejudicadas. Porém, se a relação da menina com a mãe for estabelecida em bases mais positivas, a partir da posição genital, então sua feminilidade estará mais livre de sentimentos de culpa. A futura mulher não sentirá angústia excessiva na relação com seus filhos; seu amor pelo marido será aumentado com • Segundo Freud, a menina não tem sensações vaginais, apenas clitorianas, que se deslocam para a vagina na fase genital posterior. 27 a chegada dos filhos, porque o marido dará aquilo que a menina queria da mãe: o pênis e os bebês tão desejados. Enfim, Klein conclui que seusachados não contradizem o complexo de Édipo descrito por S. Freud; apenas, o Édipo precoce antecede a fase genital infantil. As fases pré-genitaís da libido misturam-se mais do que se supunha. As influências do Édipo precoce são muito importantes para a evolução posterior do complexo de Édipo freudia- no. Os sentimentos de culpa originados em etapas pré-genitais, e, principalmente, .sobre a formação do superego e da estrutura do caráter, a sexualidade etc., tudo isso adquire nova luz e maior acessibi- lidade terapêutica com as novas concepções kleinianas sobre os está- gios primitivos do complexo de Édipo. Em outros dois trabalhos publicados no ano seguinte, 1929, Klein elaborou conceitos que foram depois ampliados e muito aplicados em obras posteriores. Sua leitura é útil, sobretudo porque revela os passos iniciais de algumas concepções básicas. Refiro-me a "Personificação no brincar da criança", em que os conceitos de cisão (splitting), projeção e introjeção são abordados com vagar, baseados em observa- ções clínicas do brinquedo de seus pacientes. Ao personificar, isto é, representar papéis, seja no brinquedo ou no intercâmbio com o analis- ta, a criança revela a existência de objetos em seu mundo interno que foram formados pelos mecanismos mentais de cisão, introjeção e projeção. Ao personificar, a criança pretende uma realização de dese- jos, como no sonho. Apenas para ilustrar, e por sua simplicidade, é interessante mencio- nar o brinquedo de Rita, uma menina de dois anos e oitomeses, que sofria de neurose obsessiva. Em seu brinquedo, um elefante impedia uma boneca (que era colocada bem presa pelas cobertas em seu leito) de se levantar e ir até o quarto dos pais perturbá-los, O elefante representava uma imago paterna; a boneca, os impulsos da menina, que queria atacar os pais unidos, roubar os bebês. Assim, o brinquedo permitia inferir uma cisão dentro da mente, em que uma parte - o elefante - era o superego paterno; outra parte - a boneca - o id com seus intuitos destrutivos. A realização do desejo era a derrota do id, pelo superego. Ao executar o brinquedo da boneca e do elefante, Rita mostrava reações de raiva e de angústia. E isso personificava dois papéis: a autoridade punitiva (raiva) e a criança castigada (angústia). Todavia, se há excessiva severidade do superego, a vida de fantasia mental fica bloqueada. Isso impede o brincar de personificar. A criança com psicose esquizofrênica não brinca de personificar. Suas ações são monótonas e visam à realização do desejo de negar a realidade e inibir a fantasia. No brinquedo de Rita, o pai severo corresponde à cisão da personalidade da menina que contém o id destrutivo. Esse id é projetado sobre o pai. O pai fica destrutivo e temido. Ao ser incorporado na mente, por introjeção, o pai passa a ser um objeto interno, superego, perseguidor. Melanie Klein enriqueceu essas noções de cisão, projeção e identificação, apresentando, dezes- sete anos mais tarde, o conceito de "identificação projetiva", na publicação de 1946, "Notas sobre alguns mecanismos esquizóides". Outro trabalho do mesmo ano, 1929, "Situações da angústia infantil refletidas num trabalho de arte", tem como interesse os primórdios da concepção de "reparação", como forma de elaborar a culpa e reconci- liar-se com os objetos atacados na fantasia e introjetados. O uso da criatividade através da obra de arte seria uma forma de reconstruir, reparar o dano causado pelo ódio ao objeto amado. Essas idéias serão retomadas e ampliadas na obra publicada em 1935: "Sobre a psicogê- nese dos estados maníaco-depressivos ". 2.2. Formação de símbolos Outro trabalho de muito valor para esclarecimento do desenvolvi- mento do ego nas funções de simbolizaçâo, criatividade, fantasia e relação de objetos e suas perturbações na psicose da criança e do adulto é "A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego", publicado em 1930. Klein baseou-se na observação de vários pacientes, mas foi principalmente inspirada na análise de um menino de quatro anos, Dick, diagnosticado como psicótico de tipo esquizofrê- nico. Seu desenvolvimento intelectual podia comparar-se ao de uma criança de quinze ou dezoito meses. Tinha reações emocionais e adaptação à realidade quase ausentes. Não apresentava reações de angústia a não ser raramente. Geralmente emitia sons sem sentido e repetia ruídos constantes (estereotipia). Quando falava, usava um vocabulário pobre e incorreto. Klein supunha que ele não queria se fazer entender. Com a mãe fazia às vezes o oposto do que era esperado (negativismo). Outras vezes, quando dizia uma palavra correta, repe- tia-a mecanicamente, inúmeras vezes, até enjoar o interlocutor (obe- diência automática). Diferentemente da criança neurótica, a oposição de Dick era feita sem afeto e entendimento. Quando se machucava, apresentava insensibilidade à dor e não demonstrava desejo de ser confortado e acariciado. Era feio e desajeitado. A impressão que Dick deixou em Melanie Klein após a primeira entrevista foi a de uma criança com conduta muito diferente da criança neurótica. Separou-se da pajem sem manifestar emoção. Seguiu Klein com completa indiferença. Na sala de consulta corria em qualquer direção sem sentido. Às vezes corria em torno de Melanie, mas sem interesse, como se ela fizesse parte do mobiliário. A expressão de seus olhos e face era fixa, distante, sem ligação. 28 29 4 Psicanálise da Criança (1932): concepções teóricas A segunda parte desta fundamental obra de Melanie Klein foi sendo escrita com vagar, entre 1927 e 1932. Contém, além das contribuições provenientes da análise de crianças, observações feitas a partir de maior familiaridade com a análise de adultos. De tal modo, as concep- ções teóricas podem ser consideradas não apenas como achados específicos a respeito da mente infantil, mas de fato concepções teóricas sobre o funcionamento mental humano nas suas primeiras etapas, e suas repercussões sobre toda a vida posterior. Como expliquei no início do capítulo anterior, considero esta obra de Klein o filão principal de uma mina, que, depois, foi mais ampla e sistematicamente explorada pela própria autora e seus seguidores. Coloco-a esclarecendo este ponto, citando a passagem final de seu prefácio à terceira edição de Psicanálise da Criança, datado de maio de 1948 (quando já havia enunciado a concepção da "posição depressiva" (1935) e "posição esquizo-paranóide" (1946): "Há certas afirmações, nestas páginas, que eu gostaria de formular tendo .ern conta meus trabalhos destes dezesseis últimos anos. As idéias aqui enunciadas, porém, não seriam no fundo modificadas, porque, tal como está, esta obra representa meu pensamento atual. Mais ainda, foi a partir das hipóteses que aqui lancei que foram construídas minhas teorias mais recentes sobre os processos de projeção e introjeção, agindo desde o nascimento; sobre os objetos interiorizados, constituindo o ponto de partida de toda a formação do superego; sobre a interação, bem precoce e preponderante, das relações de objetos tanto exteriores quanto interiores, e, por sua vez, das relações objetais e do desenvolvimento do superego; sobre o começo precoce do complexo de Édipo; e sobre a filiação dos pontos de fixação das psicoses às angústias infantis de natureza psicótica. Enfim, a técnica da análise pelo brinqu • 117 do, que já estava pronta entre 1922-1923e expus nesta obra, permaneceu fundarnen- talmente a mesma, ainda que se desenvolvendo em conseqüência de meus traba- lhos. " o que mostra também um certo distanciamento entre a primeira parte e a seg~nd~ da Psicanálise da Criança é que, nesta última, Klein tenta pela pnmeira v.ez usar clinicamente os conceitos metapsicológi- cos de mstmtos de vida e de morte, que não foram utilizados anterior- mente e passarão a sê-lo cada vez mais nos trabalhos subseqüentes. 4.1. Os primeiros estágios do conflito edipiano ea formação do superego ES,te tema correspon~e ao capítulo VIII da Psicanálise da Criança. Contem uma reelaboraçâo dos trabalhos de 1928, "Estágios primitivos d,ocomplexo de Edípo ", e de 1930, "A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego". Só que, como já foi dito há uma preocupação metapsico!~gica de atingir um grau de abstração e generalização mais amplo, utilizando os conceitos de instinto de vida e de ,m?rte de Freud (S. Freud, 1920). A força da fixação do bebê ao estágio oral. de. sucção ~raduziria a força da libido (apego ao peito nutndor - mstmto de VIda), enquanto a aparição de um sadismo oral precoce e violento indica a potência dos componentes destrutivos (destruição do peito nutridor - instinto de morte). Grifei a expre~são "pr~co~e e viol,ento" para chamar a atenção para o fato de que aqur M. Klem amda esta apegada às concepções de Freud e Abra?~m sobre as etapas de evolução da libido. Essa teoria propõe que a libido começa pela etapa oral de sucção, e não há relação com o ?bjeto externo. A etapa oral-sádica viria ao redor dos seis meses de Idad:. E aqui que K.lein situava a fase de sadismo máximo, em que as pulsões sádicas ?raIS e anais se somavam. Ao propor o complexo con.ceIto .?e posição esquizo-paranóide, em 1946 (Klein, 1946), o s~dIsmo ja coincidia com o nascimento, pela difusão dos instintos de VIda e de morte. ~ d~scriç~o q~e ~irá a seguir, das relações sádicas de objeto, com projeçoes e mtrojeções acompanhadas de intensa angústia e destrutivi- dade, deverá ser entendida como operando desde o nascimento e não ao redor dos seis meses de vida do bebê. De acordo com a teoria da "posição depressiva", a ser divulgada dois anos depois (1934, Lucer- na, XIII Congr. Int. de Psicanálise) e ampliada no trabalho de 1935 "C~ntribui~ão à psicogênese dos estados maníaco-depressivos": Klem contmua a manter a metade do primeiro ano de vida como o momento da aparição do complexo de Édipo. Todavia, como ela abandona o conceito da fase de sadismo máximo ao redor de seis . meses de vida do bebê, o Édipo precoce, que se instala nesse momen- 48 to, passa a conter sentimentos de ambivalência, uma mistura de amor e de ódio pelo pai. Assim, o Édipo e a posição depressiva coincidem. A formação do superego fica desligada do complexo de Édipo. O supere- go já é admitido como existindo desde a primeira introjeção do objeto. Então o superego irá influenciar todas as relações objetais, incluindo o complexo de Édipo precoce. É preciso marcar bem a diferença entre o superego de Freud e de Klein. O superego de Freud se forma durante a fase fálica, provocado pela angústia de castração do menino (ou perda de amor da menina) e, sendo uma introjeção das proibições paternas, tem por fim a liquidação do complexo de Edipo (S. Freud, 1923, 1924). O superego freudiano colabora com o ego na repressão da sexualidade infantil e, após instalado, sobrevém a fase de latência. Assim, o superego seria o herdeiro do complexo de Édipo. ' Eu diria que Klein inverte a paternidade: o complexo de Édipo é que passa a ser o herdeiro do superego. Isso porque o superego, situado no começo da vida, desde a primeira incorporação objetal, é que vai moldar, pelo interjogo dos processos de projeção e introjeção, o estilo das relações objetais. Se predominam os instintos destrutivos nas projeções superegóicas sobre os objetos, o pai (ou seu pênis) será predominantemente terrorífico, e os primeiros relacionamentos no complexo de Édipo serão muito aterrorizantes. Se predominam instin- tos de vida, o pai, resultante da projeção de uma imago superegóica amistosa, será benévolo e protetor, apesar de rival no complexo de Édipo. Mas um rival que se pode enfrentar, fazer acordos e, eventual- mente, identificar. O superego freudiano não é revogado por Klein, mas constitui o complemento do superego primitivo. Neste mesmo capítulo VIII da Psicanálise da Criança, Klein apre- senta sua primeira teoria metapsicológica da angústia. Parte do pressu- posto da fusão dos instintos de vida e de morte no interior do organismo, e de que a tensão resultante das necessidades frustradas do bebê reforça seus instintos sádicos. "Nós sabemos que o instinto de destruição é dirigido contra o próprio organismo, e deve portanto ser considerado como um perigo pelo ego. A meu ver, é esse perigo que o indivíduo sente sob forma de angústia. Portanto, a angústia nasceria da agressividade" (Klein, 1932, p.140). Ao lado dos mecanismos que Freud propõe como defesa em relação ao instinto de morte voltado contra o organismo - uso da libido narcísica para projetar os impulsos de morte no exterior, e ligação desses impulsos dentro do organismo através da excitação sexual, originando o masoquismo erógeno ("O problema econômico do maso- quismo", 1924) -, Klein propõe outro meio para controle das tendências destrutivas que permanecem no interior do organismo. O 49 11 11101 11,11 lima parte das tendências destrutivas contra as restantes. "O III soír 'rá então uma divisão que me parece ser o prelúdio da forma tio da inibições instintivas e do superego, e que bem poderia .oincidir com a repressão primária" (Klein, 1932, p. 141). Freud, em "I nibição, sintoma e angústia" (1926), fica incerto em atribuir a repressão primária ao aparecimento do superego. Klein sugere que a formação do superego se faz quase em seguida ao ego, e que; ao usar uma parte das forças destrutivas para dividir o id, começam as inibi- ções instintivas - de morte contra o sujeito - e se estabelece a repressão primária, junto com o início da formação do superego. 1 Não pretendo sobrecarregar o principiante com colocações teóricas muito complicadas. Mas apenas dar uma idéia dos problemas com que se defronta o psicanalista ao tentar conceber os primórdios da forma- ção das estruturas da mente. Por outro lado, uma sólida formação teórica é necessária para dar fundamento e coerência ao trabalho prático do psicanalista. As posições teóricas influem na sua abordagem do processo analítico. E quanto mais clareza possua a respeito de suas . postulações, ficará um pouco menos inseguro e perdido nos meandros do relacionamerito psicanalítico com o analisando. O que é importante ressaltar sobre este assunto é que a formação do superego é um processo que se realiza no momento em que operam as pulsões pré-genitais e os objetos são introjetados no estágio sado-oral. São portanto os primeiros investimentos objetais e as primeiras identi- ficações que constituem o superego primitivo. As primeiras identifica- ções da criança resultam em imagens irreais e deformadas dos objetos. Nesse estágio em que o sadismo é intenso, as angústias são elevadas e as defesas contra elas são violeritas. O ego usa mecanismos de expulsão: expulsa os objetos internos, que são assimilados a excre- mentos ameaçadores; expulsa também o superego aterrorizante; e expulsa ainda o próprio id sádico (ou seja, as pulsões destrutivas) por imposição do superego. Essas defesas primitivas é que irão caracteri- zar os distúrbios psicóticos (mais tarde integrarão os chamados' 'meca- nismos esquizóides "). A formação do superego e a formação das relações objetais influen- ciam-se reciprocamente. "Quando a pequena criança começa a.introje- tar seus objetos, que ela não conhece senão vagamente, sob a forma de órgãos separados, o medo desses objetos desencadeia, como vimos, I A "repressão primária", segundo o artigo metapsicológico de Freud ("Repressão", 1915), seria a primeira fase da repressão, que consiste no impedimento de o representan- te psíquico do instinto entrar na consciência. Os derivados do representante psíquico do instinto podem alcançar a consciência, e, nesse caso, são evitados pela "repressão secundária", que significa a repressão propriamente dita, usualmente empregada sem adjetivos. 50 mecanismos de expulsão e de projeção; resulta uma interação dos dois mecanismos de projeção ede introjeção que parece ter uma importân- cia fundamental não somente para a formação do ego, mas para a relação com as pessoas e para a adaptação à realidade." (op. cit., p. 156). A projeção do terrorífico deforma a percepção do objeto externo; mas se os objetos se comportam desmentindo o perigo, sendo benévo- los, reforçam a crença na existência de objetos confiáveis e o contato com o mundo exterior. A libido também faz sentir sua presença, aliada às boas experiências com os objetos, contrabalançando o medo dos inimigos internos e externos. A fé na existência de personagens benfazejos e protetores, devido à ação eficaz da libido, permite aos objetos reais se imporem com mais força e aos objetos fantásticos passarem a segundo plano. 4.2. As relações entre a neurose obsessiva e os primeiros estágios da formação do superego As situações ansiogênicas são modificadas pela ação da libido e dos objetos reais. O círculo vicioso dominado pelo instinto de morte - agressão gerando angústia e angústia gerando mais agressão - é quebrado pela libido quando essa adquire força suficiente. Pela equiva- lência seio-pênis, a introjeção da mãe benévola contribui para a imago paterna também benévola (superego amistoso). As manifestações obsessivas apresentam-se naturalmente com evi- dência no início do segundo estágio anal. No decurso do crescimento, aumentam as pulsões libidinais e diminuem as sádicas. O ego procura entendimento com o superego, em vez de submissão ou destruição. Do mesmo modo, em vez de expulsar o id, o ego usa o mecanismo mais brando da repressão. A relação com os objetos externos se vê menos carregada de ódio, de vez que este era em grande parte o reflexo do sadismo do superego e do idoA modificação na relação com os objetos externos (aproximação ou afastamento) depende da clivagem das imagos em benévolas ou malévolas. A ambivalência é sinal de progres- so e é necessária para redução do temor ao superego. À medida que o estágio genital se aproxima', as imagos adquirem benevolência, abranda-se o superego e suas ameaças são agora expres- sadas sob a forma de desaprovações ou críticas (e não de ser devorado, cortado, pulverizado, como nos estágios primitivos). E, o que é muito importante: o superego pode ser apaziguado com reparações e forma- , Lembrem que Klein segue a concepção de que a fase genital da libido é dominada pelo amor, a consideração pelo objeto, enquanto nas fases pré-genitais os afetos predominantes são de ódio e as pulsões sádicas. 51 ções reativas 3. As sublimações podem instalar-se movidas por tendên- cias reparatórias. A precondição para a instalação dos mecanismos de reparação, formações reativas e sublimações é a atenuação da pressão do superego. Quando o superego não é mais um carrasco que estraça- lha o desobediente, a tensão do ego e superego causada pela discordân- cia se transforma em culpa. A linha de separação entre psicose e neurose passa pela fixação entre a divisão dos dois períodos do estágio anal. A fixação em determinado estágio da evolução da libido determina as características do distúrbio mental correspondente. Isso porque a fixação vai dar o estilo de relação objetal: se predomina o sadismo (estágio sado-oral e sado-anal), corresponderão angústias e defesas drásticas, levando a um quadro psicótico. Se predominam fixações onde a maior carga é libidinal (segundo estágio anal e genital infantil), haverá relações objetais menos violentas, gerando angústias e defesas menos destruti- vas e acarretando quadro neurótico. Os objetos ansiogênicos transformam-se pela ação da segunda fase anal. A neurose obsessiva visaria curar o estado psicológico prévio. Assim, quando no período prévio a equivalência sádica dos excremen- tos e substâncias destrutivas dinamizadas pelas fantasias agressivas quanto a seu uso leva a criança a temer ser atacada pelos mesmos meios externa e internamente, surge o terror pelos excrementos e pela sujeira. Estes são os causadores da angústia e culpa ligadas à falta de higiene. São estas emoções que determinam as formações reativas que conduzem a pessoa a sentir asco, amor à ordem e desejar a limpeza. Muitos sintomas da neurose obsessiva têm sua origem nas angústias provenientes das primeiras situações de perigo infantis que têm sido aqui examinadas. Fato notável para a compreensão dos sintomas obsessivos é a descoberta de M. Klein de que sua determinação está ligada às angústias referentes a ferimentos e destruição no interior do próprio corpo e dos objetos. Sendo o interior do corpo inacessível, a reparação nunca traz uma certeza sobre a retificação do dano causado em fantasia. Um dos sintomas diretamente ligados a essa inacessibili- dade do interior do corpo é a angústia e a obsessão pelo desejo de saber. Ou então essa angústia pode ser controlada pela meticulosidade, e também pelo apego excessivo à realidade exterior. A dúvida, devido à incerteza sobre o estado interno, influi no caráter obsessivo e assim surgem tendências à precisão, ordem, cum- primento de regras, rituais. Tudo isso visando à obtenção de sinais que ) As formações reativas são renúncias à satisfação direta dos instintos (por exemplo, limpeza, ordem, obediência, em lugar de sujeira, desordem e rebeldia), visando a obter aprovação dos objetos. 52 tranqüilizariam quanto à restauração dos danos internos. Outro aspec- to importante para a compreensão dos sintomas e traços obsessivos é a exigência do superego de que cada restauração concorde no mínimo detalhe com a fantasia sádica correspondente e que originou o prejuí- zo. Por exemplo: o que foi sujado, deve ser limpo; o que foi fragmenta- do deve ser recolocado; o que foi enfeiado deve ser embelezado. E isso em cada detalhe. As pessoas próximas ao obsessivo geralmente são vítimas das compulsões. Isso porque os objetos externos, por projeção, tornam-se equivalentes do id ou superego projetado. Pelas compulsões, o sujeito maltrata e tiraniza o objeto, satisfazendo seu sadismo primário. Ao mesmo tempo fica colocado no exterior o seu medo de ser atacado pelo objeto interno. E ainda pode exercer controle sobre as imagos projeta- das. Isso leva à explicação da relação da paranóia (cujo ponto de fixação se situa no primeiro estágio anal) com a neurose obsessiva (fixação do libido na segunda etapa anal). Enquanto o perigo está projetado no objeto, e os controles obsessivos neutralizam as ameaças do objeto externo, há relativa segurança. A neurose obsessiva grave defende contra a paranóia; quando os mecanismos falham, a paranóia, com seus sintomas de perseguição por inimigos externos, aparece. A compulsão de acumular objetos e se desfazer deles é ligada à culpa e angústia relativas à troca no nível anal. Referem-se a tudo o que a criança tirou do interior da mãe. Estas compulsões, por sua vez, dão origem a outra angústia: surge o conflito entre reparar demais (dar demais) e esvaziar-se; ou acumular demais e esvaziar o objeto, o que provoca novo acesso de culpa. Na ludoterapia surge o brincar de passar de uma caixa a outra' as peças de brinquedo, lápis, até pedaços de papel, fósforos, pedaços de barbante, cubos de construção etc. Representam tudo o que na fanta- sia a criança retirou do interior de sua mãe: o pênis do pai, os bebês, as fezes, a urina, o leite etc. Na análise de adultos encontra-se o sintoma de acumular dinheiro ou bens para fazer face a algum imprevisto. A análise mostra que no inconsciente estão se precavendo contra a cobrança da mãe roubada, exigindo-lhe a devolução do que lhe foi tirado. Outro sintoma é o da prisão de ventre por necessidade de acumular fezes valiosas, guardando-as para nunca correr o risco de esvaziar-se. No período do Édipo precoce a criança é muito narcisista, atribui a suas funções intestinais todo poder, que se estende aos pensamentos. Por causa disso se culpa dos ataques imaginários contra 4 Uma caixa representa o interior do corpo da criança;outra caixa representa o interior do corpo da mãe. 53 / os pais. Essa é uma das razões pelas quais na neurose obsessiva existem tantos rituais (mágicas) e crença na onipotência. A crença na onipotência reparadora precisa ser mantida a fim de restaurar os danos produzidos pela onipotência destrutiva. E aqui surge um outro fator que ajuda a entender por que as compulsões nunca terminam. Os ataques ocorrem na etapa sado-anal. Neste perío- do a crença na onipotência é forte e o desenvolvimento do ego é pequeno, dando todo crédito ao poder de destruição da fantasia. As reparações ocorrem mais tarde, na etapa anal seguinte, quando o ego mais evoluído não acredita tanto em sua onipotência. Daí decorre que a confiança na força reparadora seja menor do que na destrutiva. O conserto nunca desfaz o dano e por isso as reparações compulsivas não cessam nunca. Klein cita uma contribuição verbal de M. N. Searl durante uma discussão sobre esse tema: ela "salientou que a tendência reparatória da criança é inibida por suas primeiras experiências que lhe ensinam como é fácil quebrar as coisas, mas como é difícil repará-Ias" (op. cit., nota à p. 187). Outro dado sobre as primeiras angústias e a obsessividade é ainda referente ao medo da extensão do estrago que a criança provocou no interior do corpo da mãe e no seu próprio: surge a compulsão à curiosidade. O conhecimento se torna um meio de dominar a angústia. Como em outras funções do ego, a angústia até certo ponto estimula as tendências epistemofílicas, promove o aumento do saber, ou, quando excessiva, inibe-os. A perturbação do desejo de saber transforma-se na necessidade de saber sobre o estado do objeto atacado no incons- ciente, e daí surgem as compulsões de medir, adicionar, enumerar, que parecem tão irracionais quanto tolas, e assim adquirem seu verdadeiro sentido. Enfim, com o reforço da libido e a atenuação da destrutividade acarretada pela maturação do sujeito, apresenta-se uma mudança qualitativa do superego, havendo menos angústia envolvida nos meca- nismos de reparação. A reparação é menos caracterizada pela obsessi- vidade, e, dirigida pelo ego mais evoluído, mais eficaz. A chegada da fase genital representa o triunfo dos elementos positivos nas interações entre projeção e introjeção, nas relações objetais e na formação do superego que agora se aproxima daquele descrito por Freud. 4.3. O papel das primeiras situações ansiogênicas na formação do ego A angústia e suas modificações constituem um dos problemas essenciais da Psicanálise. As várias perturbações psiconeuróticas po- 54 dcm er encaradas como método mais ou menos fracassado na luta .ontra a angústia. O objetivo deste tópico será o de estudar os meios normais de modificar a angústia e avaliar sua importância na formação do ego. Como foi visto no começo deste capítulo, o instinto de destruição defletido para o exterior desloca a angústia para fora e isso acentua a importância dos objetos: primeiro como fonte de perigo (mas os benévolos serão aliados contra a angústia). Quando os perigos tornam- se reais e externos, o ego, para conhecer-Ihes a natureza e modos de dominá-Ia, é estimulado a desenvolver suas tendências epistemofílicas e reparatórias. Pela interação dos mecanismos de introjeção e projeção (correspon- dentes à interação da formação do superego e das relações objetais), a criança encontra no mundo externo uma refutação de seus temores. E na introjeção de seus "bons" objetos reais, um alívio da angústia. O medo dos perigos internos reforça a fixação na mãe (por necessidade de amor e proteção).' "A um estágio um pouco mais avançado do desenvolvimento, acrescenta-se a esse medo do objeto um medo pelo objeto; a criança teme perder sua mãe ao longo dos ataques imaginá- rios dos quais ela é vítima e de ser abandonada, por sua morte, à solidão e à impotência" (op. cit., p. 194; grifos de Klein).É fácil ver aqui aquilo que num primeiro momento de seu trabalho de 1935 Klein chamará de a angústia básica da "posição depressiva": o temor pela perda do objeto "bom". Quanto mais intensa se torna a relação com a realidade, mais o ego a usará para proteger-se do medo do superego e das suas pulsões destrutivas nas relações objetais. Isso estimulará sua maior participação no mundo externo, aumentará as sublimações, resultando em melhor adaptação à realidade e.desenvolvimento do ego. Resumidamente ressalto de que modo as primeiras situações ansio- gênicas influem na formação do ego na primeira infância: o ego é frágil, não sendo capaz de estabelecer equilíbrio entre superego e ido Assim, usa atividades lúdicas para vencer perigos internos e externos. Através do brincar, põe em comunicação imaginação e realidade. Por exemplo, quando a menina brinca de boneca, não está simplesmente realizando uma satisfação de desejo. Suas primeiras situações ansiogê- nicas influem nas suas paixões pelas bonecas. Há aqui um desejo de ser consolada e ser reassegurada contra a ameaça da mãe "malvada". A posse das bonecas garante-lhe que a mãe não tomou seus bebês nem destruiu seu corpo. Amamentando e vestindo suas bonecas a menina 'Por isso que, habitualmente, quando a criança se sente em perigo, o primeiro objeto que lhe ocorre chamar é a mãe. 55 mo que se identifica: prova que tem uma mãe afetiva e não precisa temer o abandono. Quando os meninos usam carros, cavalos ou trens para brincar estão executando simbolicamente uma penetração no interior do corpo da mãe. Os brinquedos de competição, tão variados, significam combates com o pai no interior da mãe. Com astúcia, nos brinquedos de guerra, garantem a vitória sobre o pai castrador (o que diminui seu temor da perda do pênis) e reasseguram que conservaram, além de seu pênis, a potência viril. No brincar, a realização de desejos e a diminuição da angústia não são funções separadas. O brinquedo traz alívio, porém limitado à angústia latente, e daí o desejo interminável de brincar. Todavia, se a angústia se torna manifesta, a criança cessa a brincadeira. No começo da latência, a organização libidinal e a formação do superego chegam a seu termo. O ego mais vigoroso coloca-se de acordo com o superego para dominar o id e lidar com as exigências do mundo exterior e objetos reais. O "ideal do ego "6 é a criança "boazi- nha", que dá satisfação aos pais e professores. Os brinquedos do latente perdem conteúdo imaginativo e cedem gradualmente lugar aos trabalhos escolares: letras, mímicas, desenhos. Para a menina, um belo caderno, bem cuidado, é como uma bela casa, simboliza seu corpo sadio e intacto. Para o menino, a escrita represen- ta inconscientemente sua virilidade. (Para os interessados em mais detalhes, vide Psychanalyse des Enfants, p. 198 e seguintes; e, ainda, da mesma autora, "O papel da escola no desenvolvimento libidinal da criança", Klein, 1923.) O cuidado escolar na latência permite obter aprovação dos mais velhos, minimizando as situações de perigo. A maturação do ego conduz a uma afirmação do superego, sem que este sofra mudança qualitativa. "A estabilização psíquica que sobrevém no período de latência não se realiza, a meu ver, por uma metamorfose do superego, mas graças a fins idênticos perseguidos pelo ego e superego, na sua busca de uma adaptação ao meio e na sua escolha de um ideal do ego proveniente desse meio." (op. cit., p. 197). t. "Ideal do ego " foi o nome que Freud deu ao recurso que a criança utiliza para não ler de renunciar ao narcisismo quando percebe, pela experiência, que não é onipotente, O ideal do ego seria então os pais tornados onipotentes (S, Freud, 1914). No "Ego e o id" (S, Freud, 1923), quando introduziu o conceito de "superego ", Freud usava ideal do ego como seu equivalente, Em obras posteriores, Freud e seguidores foram preferindo, cada vez mais, o termo "superego" para indicar essa instância psíquica, De certo modo foi tacitamente adotado para ideal do egoo significado da parte mais consciente do superego, aquela que é portadora dos valores explícitos dos pais e do ambiente, 56 A criança precisa receber proibições externas, que reforçam a I r ibição de seu superego e ajudam no controle do id e da angústia. A irnnsição para a latência não será bem feita se a criança não encontra m suas relações objetais e adaptação real armas (restrições disciplina- res) que a ajudem contra a angústia. Na puberdade, o equilíbrio da latência se rompe. O despertar da libido reforça as exigências do id, aumentando, portanto, também as exigências do superego. Os impulsos instintivos não podem ser refrea- dos e contidos como na latência. O ego experimenta mais angústia devido a maiores possibilidades de realização de desejos instintivos e mais graves conseqüências daí resultantes. Em acordo com seu supere- go, o ego procura livrar-se de seus primeiros objetos de amor. Depois desliga-se mais das pessoas, substituindo-as por objetos menos pes- soais e mais abstratos, como os ideais e princípios. No rapaz formam-se novas imagos paternas, novos princípios, distanciando-se dos objetos primitivos. Através destes retorna ou acentua indiretamente a ligação ao pai amado e admirado. Por cliva- gem, outra imago paterna - geralmente o pai verdadeiro ou substitu- tos - atrai o ódio intenso dessa fase. Na relação com a imago admirada, recebe apoio do pai implícito, identifica-se, reforça a con- fiança em sua capacidade construtiva e virilidade. Com os representan- tes da imago detestada é agressivo, acha-se em plano de igualdade, não teme represália. Nas atividades físicas e intelectuais que exigem cora- gem, força, iniciativa; resistência, mostra não estar impotente, ser mais criativo. Satisfaz suas tendências reativas e acalma sua culpa, sem falar do prazer em si proporcionado por todas essas atividades. A mocinha normalmente é mais submissa que o rapaz, continuando a orientação da latência para eliminar a angústia (quando não adota métodos masculinos). Fixa novos valores e ideais, porém mais subjeti- vos, sem dar muito peso aos valores abstratos. O desejo de agradar a seus objetos estende-se às ocupações e realizações intelectuais. A beleza física, a perfeição do trabalho desmentem o temor da mãe que destrói o interior e leva os bebês. Para redução da angústia, a aprova- ção e o amor dos homens têm muita importância. Quanto à influência das situações ansiogênicas primitivas na forma- ção do ego do adulto, o equilíbrio psíquico só se estabiliza definitiva- mente após a puberdade. Ego e superego entram em acordo para criar normas adultas. O indivíduo adapta-se a um universo mais amplo, reconhece os direitos, mas como expressão de seus próprios valores internos. Os perigos representando as exigências excessivas do id e superego contribuem para reforçar o ego. "A influência inibidora desta situação ameaçadora se vê na limitação nova, geralmente definitiva, da 57 personalidade que se produz ao fim da puberdade; simultaneamente, a expansão da vida imaginativa, que acompanha o despertar da sexuali- dade, é seriamente entravada, embora em grau menor que na infância. E eis o adulto normal" (op. cit., p. 196). O processo normal que leva à liquidação da angústia depende de vários fatores, cujos métodos por sua vez dependem do fator quantita- tivo: o sadismo, a angústia, o grau de tolerância do ego com relação à angústia.' A ação conjugada desses fatores pode levar à modificação considerável da angústia, desenvolver adequadamente o ego e permitir a saúde mental. Embora o indivíduo normal consiga afastar as situa- ções ansiogênicas, jamais ele as exclui definitivamente. Certas tensões excessivas de origem interna ou externa (doença ou fracasso) podem reavivar situações ansiogênicas relegadas a grande profundidade. "Se todo sujeito sadio pode tornar-se vítima de uma neurose, é que necessariamente suas antigas situações ansiogênicas jamais foram totalmente resolvidas" (grifos do autor, op. cit., p. 207). É curioso que Klein não mais falou sobre isso desde essa obra de 1932. No entanto, em seu último trabalho teórico, quase trinta anos depois - "Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental" (Klein, 1958) -, volta a reapresentar essa noção, para perplexidade de seus discípulos. Retor- narei a isso adiante. 4.4. A repercussão das primeiras situações ansiogênicas sobre o desenvol- vimento sexual da menina Seria importante encontrar na menina o equivalente da angústia de castração do menino para compreender melhor seu desenvolvimento sexual e melhorar a terapia dos distúrbios sexuais femininos. Klein admite que o equivalente da angústia de castração do menino é, na menina, a situação ansiogênica primitiva, de ter o interior de seu corpo destruído por represália da mãe invejada, rica (pelo pênis paterno) e odiada (pelas frustrações orais). Esta situação já foi descrita no 7 O grau de tolerância do ego (ainda não estruturado) com relação à angústia é um conceito que Klein começa a desenvolver neste trabalho (vide nota 3, p. 138, de La Psychana/yse des Enjants). Esse conceito irá assumindo cada vez maior importância em trabalhos posteriores. Isso porque, se a capacidade de tolerância do ego à angústia é pequena, ele não suportará as tensões de culpa e reparação, mantendo-se fixado a defesas muito primitivas de expulsão e destruição dos objetos ansiogênicos. A capacida- de de tolerância do ego à angústia será necessária para a passagem da "posição esquizo- paranóide" para a "depressiva ", e posteriormente para ultrapassar a "posição depressi- va", escapando assim de fixações psicóticas. W. R. Bion também utilizou muito esse conceito, para compreensão do funcionamento do ego na esquizofrenia, com a conota- ção de capacidade do ego para tolerar frustração. 58 segundo capítulo, quando me referi ao artigo de 1928, "Os estágios primitivos do complexo de Édipo". A grande idealização que a menina faz do pênis paterno se deve a dois fatores principais: 1) porque a busca do pênis paterno é feita em decorrência da frustração ao peito, pelo desmame; algo que deve compensá-Ia pela primeira frustração oral deve ser grandioso; 2) porque o momento da procura do pênis paterno coincide com a exacerbação das pulsões sádicas (orais, anais e uretrais -leite =urina), que lhe conferem enorme vigor e poder. Por isso também é temido: pênis "mau". Preponderando o sadismo oral, o pênis é detestado, invejado e destruído. Sendo intenso, o sadismo desloca a angústia fundamental do temor pela mãe para o pênis paterno, e assim a evolução para a feminilidade fica gravemente perturbada. Na menina é mais forte (do que no menino) a introjeção e retenção do pênis paterno porque a genitalidade coincide com a oralidade: ambas têm um fim receptivo. Por isso que na menina é maior a submissão ao superego, que por sua vez provém, em parte, da introje- ção do pênis do pai. A formação do superego e a evolução da sexualidade na mulher vão depender do predomínio das fantasias de "bom" ou "mau" pênis. Para combater o "mau" pênis interno a menina é impelida à introjeção continuada do "bom" pênis através de atos sexuais. Isso serve de estímulo às relações sexuais da infância e posteriormente para os desejos libidinosos centrados no pênis. . Normalmente o ato sexual exprime uma prova pela realidade: o parceiro é igual ao pênis "bom" e pode acalmar a angústia; e o prazer abre caminho para uma relação amorosa duradoura. Em casos desfa- voráveis, predomina o temor do pênis "mau" interno e a prova pela realidade se fará com um "mau" pênis externo. Pode ocorrer: a) busca de parceiro sádico porque o exterior, por pior que seja, sempre é menos assustador que o inimigo interno; b) busca do pênis sádico para destruir o pênis "mau" interno; c) se há oscilação entre fé no "bom" e no "mau" pênis, nesse caso, encontra-se: - busca de um companheiro sádico para tentar convertê-lo, ou hesitação entredois objetos externos: um protetor e outro ameaçador; - ansiedade compulsiva de renovar os atos sexuais ou os parceiros amorosos; - frigidez: o ato é temido pelo dano que lhe pode causar ou ser causado ao pênis (equivalente a um mecanismo fóbico que evita situação de angústia); - o masoquismo é convertido em sadismo: o pênis interno temido é projetado no exterior; o ato sexual funciona como prova pela realidade 59 às avessas: supera o medo do pênis por fantasias de que o pênis é que deve temê-Ia, porque imagina que sua vagina destrói o parceiro, a felação serve para cortar e retalhar o pênis. Complexo de castração na menina. O peito frustrador leva a menina a renunciá-lo e a se voltar para o pênis paterno. Nesse momento a menina se identifica com a mãe. Novamente frustrada (desta vez pelo pai, que lhe recusa o pênis), a menina se identifica com o pai, porque imagina que ele recebe da mãe tudo o que ela deseja e inveja. Ao identificar-se com o pai a menina imagina que lhe rouba o pênis. Também concorre para isso a "identificação com o agressor " (pênis "mau"). A posse do pênis roubado ao pai redobra a fé que a menina tem no poder de seus excrementos (armas secretas e poderosas, principal arsenal feminino, enquanto o principal armamento masculino é o pênis). Usa-os contra a mãe e para vingar-se do pai também frustrador. A posse de um pênis externo convence-a do poder sádico sobre os pais, ao mesmo tempo que triunfa sobre os inimigos introjeta- dos controlando a angústia (preservando seu corpo da destruição). A culpa também pode levá-Ia a desejar o pênis com fins reparatórios em relação à mãe (restituir o pênis roubado). Lembrando o já visto no tópico sobre a neurose obsessiva, os mesmos instrumentos que fize- ram o mal devem servir para repará-los. Os ataques à mãe que a menina realizou através de seu pênis "mau" e sua urina "má" durante a posição masculina requerem que ela possua o "bom" pênis e a "boa" urina para consertar os danos. Quando a identificação com o pai sádico é muito acentuada, a menina precisa de um pênis benéfico para restaurar a mãe e isso reforça sua orientação homossexual. "Na medida em que ela acredita ter tornado seu pai incapaz de reparar, seja por tê-lo castrado ou eliminado, seja por ter feito de seu órgão um pênis excessivamente 'mau', ela deve renunciar à esperança de resta- belecer a intregridade de seu pai, para assumir seu papel, e, portanto, uma posição homossexual" (op. cit., p. 229). Se sua homossexualidade só aparecer de uma forma sublimada, ela protegerá e cuidará de outras mulheres (de sua própria mãe também), adotando uma atitude de marido, com pouco interesse pelo sexo masculino. A posição masculina é abalada pelo sentimento de inferioridade ao convencer-se da ausência do pênis. Concorrem também para o abando- no da posição masculina a angústia e a culpa: em relação à mãe, pelo roubo do marido; em relação ao pai, pelo roubo de seu pênis e da mulher. Após o estágio fálico, a menina entra no estágio "pós-Iálico ", em que ela escolhe entre conservar ou abandonar sua posição femini- na. Seus fundamentos estabelecem-se no começo da latência, com caracteres passivo e maternal e a participação de funções vaginais ou seus equivalentes psicológicos (receptiva, maternal). As transforma- 60 ções biológicas da puberdade, a experiência do ato sexual dão à vagina funções que sustentam o desenvolvimento psicológico da menina, transformando-a em mulher na acepção plena do termo. Tendências reparatórias e sexualidade. Com o aumento das pulsões .genitais, o ego responde com menos angústia e mais culpa às exigên- cias do superego. Por serem os primeiros ataques sádicos realizados contra o coito dos pais, o ato sexual torna-se o meio principal de reparação dos objetos lesados. As fantasias se modificam: o pai restaura a mãe com seu pênis vivificante e a mãe com sua vagina repara e cura o pênis paterno. Isso permite identificação com a mãe boa, que encontra no parceiro um "bom" pênis. . Surge um complicado jogo de interdependências entre ego, supere- go, id e objetos, que traduz a luta contra a angústia. Alguns compro- missos sustentam a menina em seu papel feminino atual e futuro: 1) o pênis do pai deve satisfazer à mãe e à filha; 2) ou mãe e filha repartem igualmente os filhos; 3) ou a mãe fica com mais filhos; ou 4) a filha incorpora o pênis paterno e a mãe fica com a totalidade dos bebês etc. Fatores externos. Desde o começo as situações ansiogênicas deslo- cadas para o exterior confirmam ou desmentem os perigos. Se a menina não conta com a bondade e o amor do pai que confirmam o "bom" pênis introjetado, reforçará sua atitude masoquista, só poden- do amar um pai sádico. Ou haverá tanto ódio e angústia pelo pênis que se tornará frígida ou abandonará o papel feminino. É importante para a criança contar com outras pessoas "proteto- ras" no ambiente, além dos pais, para ter um suporte na realidade contra seus temores fantasiosos. Quando a intensidade da angústia ou as condições reais impedem a formação de "boas" imagos a partir dos pais, outros membros do ambiente (pajem, irmão, avó) podem substi- tuir a "boa" mãe ou o "bom" pai. Com elas a criança reparte experiências amorosas inibidas pelo excesso de temor de seus progeni- teres." Relações sexuais entre crianças são comuns, principalmente entre irmãos. São motivadas pelos desejos libidinais edipianos frustrados e angústias primitivas. Têm bom efeito quando o parceiro é vivido como "protetor". Relações sexuais entre irmãos mostram haver realmente um "bom" pênis, reforçam fé no introjetado, combatem os "maus" objetos internos. Sendo cúmplices, repartem a culpa, que se torna mais suportável. A experiência é prejudicial quando há excesso de sadismo, próprio ou do parceiro (meninas seduzidas ou violentadas por adultos). 8 Até mesmo animais de estimação, ou ainda brinquedos preferidos, funcionam como "objetos propícios", aliviam a angústia e protegem durante o sono. 61 Puberdade e desenvolvimento. A menstruação tem um efeito patóge- no pela confirmação que traz ao conjunto de situações de angústias femininas que aí são revividas. Como já foram examinadas anterior- mente, é suficiente resumi-Ias: 1. A criança associa sangue a ferimentos; a realidade confirma o temor de prejuízo corporal pelos excrementos. 2. a) Atacada pela mãe vingativa para recuperar pênis e bebês; b) atacada pelo pai interno para recuperar o pênis; ou pelo coito sádico com ele (o cIitóris é então visto como uma cicatriz da ferida resultante da castração); c) pais introjetados em coito sádico se autodestroem e ameaçam o interior da menina (confirma os temores hipocondríacos provocados pelas sensações somáticas desencadeadas pelas regras e amplificadas pela angústia). 3. O sangue confirma que seus bebês estão mortos e destruídos. Às vezes só o parto desmente o medo da esterilidade causado pela primeira menstruação. Há rejeição consciente ou inconsciente da gravidez. 4. Prova a ocorrência da castração e nesse sentido dificulta a sustentação da posição masculina. 5. Sinal de maturação sexual, reabre as angústias relacionadas ao sadismo das atividades sexuais. A menstruação explica em parte a maior inibição sexual da mocinha e recrudescência dos distúrbios neuróticos. Na moça normal, as regras reavivam as angústias primitivas, mas também provam sua maturidade sexual, dando-lhe esperança de satis- fação sexual e fecundidade. A menstruação contrapõe-se a suas angús- tias desde que sua posição feminina tenha sido fortemente estabelecida nos primeiros anos. Relação mãe-filha. Foi postergado o estudo dos desejos maternais para abordar em conjunto a relação da criança com os bebês da fantasia e da mulher adulta em gestação. A natureza da relação da menina com o pênis do pai determinará a que terá com seus bebês imaginários e depois verdadeiros. Quando há equivalência bebê = fezes, a relação dobebê é de tipo narcísico. Isto é, menos dependente do homem, porque as fezes provêm do próprio corpo da mulher e confirmam a onipotência dos excrementos. Quando há equivalência bebê =pênis, a relação materna será igual à que a filha tinha com o pai ou seu pênis (por exemplo, a mãe acha os filhos maravilhosos, descui- da do marido para se dedicar aos filhos). Pela equivalência dos excrementos = bebê, a crença nos "maus" excrementos leva ao temor de possuir um bebê "mau", "monstruo- so". Conduz à sublimação de ter "belos" bebês (no inconsciente belo = bom). O mesmo quanto a "belo" corpo e "belo" homem: o belo externo protege do mau interno. Conforme o sexo do bebê, a mãe repetirá aproximadamente as relações afetivas da primeira infância: se menino, a que havia entre ela e seu pai, irmãos e tios; se menina, igual à que havia entre ela e sua mãe, irmãs e tias. Fatos que fortalecem os laços afetivos da mãe pelo bebê: o nasci- mento desmente as crenças oriundas das fantasias sádicas (seu interior e os bebês estão intactos do mesmo modo que o de sua mãe, irmãos e o pênis paterno). Amamentando o bebê, põe fim às agressões contra o primeiro objeto - o peito materno (também prova que a urina = leite não era perigosa). Dando amor e cuidados ao bebê, identifica-se com ele, sente que tem mãe boa, revive sua primeira relação filial e o ódio pela mãe cede lugar ao amor. Quando o bebê tem deficiências, e principalmente deformações, torna-se um inimigo, perseguidor, e compromete o equi- líbrio psíquico da mãe. 4.5. A repercussão das primeiras situações ansiogênicas sobre o desenvol- vimento sexual do menino A fase feminina, como foi visto no segundo capítulo, é comum aos dois sexos: caracteriza-se pela fixação oral de sucção ao pênis do pai." Como o desejo pelo pênis do pai se dá de um modo oral, receptivo, coloca o menino em rivalidade com a mãe, fundamentando o complexo de feminilidade no homem. Passa a temer represálias da mãe rival, tanto mais quanto maior o sadismo. Quando o interior da mãe, seus órgãos genitais, tornam-se objeto sexual do menino, sob modos genitais, orais e anais, e este ataca por todos os meios sádicos o pênis do pai no interior da mãe, temos os primeiros estágios do conflito edipiano, também já visto no segundo capítulo. Geralmente o ódio do menino pelo pênis do pai é maior que o da menina. Por isso no menino o pênis se torna o objeto ansiogênico principal. Primeiras situações ansiogênicas. Devido ao medo da mãe como rival, do pênis terrorífico (além das pulsões genitais crescentes), o menino abandona a posição feminina e desenvolve a heterossexualida- de. A vida psíquica do menino é dominada pelo medo dos pais unidos no coito, formando uma unidade indissolúvel e hostil (figura combina- 9 Klein vê aqui a origem da verdadeira homossexualidade, concordando com o trabalho "Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci" (8. Freud, 1910). 62 63 da). O excesso desta angústia impede a tomada de qualquer posição e leva à impotência: 1) por medo do pênis paterno interno castrador ("maus" genitores aliados); 2) por medo de o pênis ficar aprisionado no corpo "perigoso" da mãe, sem saída (fator de claustrofobia, para Klein). Onipotência sádica do pênis. Há reais modificações externas e fisiológicas do pênis (ereção, ejaculação, micção por jorros) que dão confirmação da onipotência fálica. Pênis e onipotência ficam intima- mente ligados, tendo repercussões profundas sobre a atividade do homem. Na análise de crianças aparece o pênis = "vara mágica"; masturbação = ato mágico; ereção e ejaculação aumentam muito o poder sádico do pênis. As fantasias de posse da mãe pelo coito serão o modelo maior de domínio da angústia e da realidade. A concentração da onipotência sádica no pênis é fundamental para a posição masculina, para opor-se ao pai e seu pênis. E também para que o ego possa tolerar as angústias provenientes das pulsões genitais mais vigorosas. Se no momento da supremacia genital houver forte e súbita defesa do ego contra a destrutividade, esta defesa pode impedir a concentração fálica do sadismo, perturbando a potência viril. Estágios ulteriores do conflito edipiano. Se, além da figura combina- da, houver imagens isoladas de pai e mãe - principalmente "boa" mãe (peito) - eficazes, o pênis interno será menos ameaçador. Haverá desenvolvimento das relações objetais e maior adaptação à realidade. O menino sentirá ódio atenuado pelo objeto real. Cindir-se-á mais claramente a figura combinada: a mãe será objeto da libido, o pai será alvo do ódio e da arigústia (ou seu pênis). Ou então haverá uma boa relação com o pai, e surgirá a fobia de animais, sendo o animal o substituto do pai odiado e temido. O menino entra em nova fase: dominam tendências edipianas e medo da castração pelo pai. Isso indica sucesso na separação da figura combinada. A angústia psicótica primitiva modifica-se em angústia neurótica. O menino manter-se-á heterossexual. A angústia inerente ao ato sexual funcionará como estímulo para aumentar a satisfação. O reforço da genitalidade e controle sádico faz com que a reparação se dirija para outras fantasias. A mãe continua o principal objeto de reparação (a reparação da mãe é idêntica à reparação de si mesmo). Na ludoterapia predominam brinquedos construtivos (casas, cidades, guarda de trânsito evitando acidentes). A qualidades "boas ". do pênis estendem-se às do pai. Se pode modificar a destrutividade contra o pai, e se o "bom" pênis paterno inspira confiança, fica mais exeqüível conciliar a identificação e a rivalidade paternas, o que torna possível a posição heterossexual. Papel da fase feminina na heterossexualidade. Se o menino consegue vivenciar normalmente e consegue ultrapassar a posição feminina (rivalidade, ódio e temor da mãe), a angústia e culpa pelos ataques à mãe são atenuados e favorecem fantasias de reparação e propiciam um conhecimento intuitivo da alma feminina. As fantasias e desejos do menino pelo pênis do pai como objeto de amor (se há boa relação com a mãe) ajudam a compreender a necessidade da mulher introjetar e conservar o objeto do amor. O desejo do menino de ter bebês com seu pai pode levá-Io a ver na mulher uma criança, e irá tratá-Ia como se ele fosse uma mãe generosa. Klein lembra o trabalho de Reich, de 1927, A função do orgasmo, no qual apresenta a idéia do pênis = peito da mãe, e o esperma = leite. Distúrbios do desenvolvimento sexual. Se na fase feminina o menino tem muito ódio e inveja da mãe, fortes pulsões sado-orais o levarão a detestar e temer demasiado o pênis interiorizado do pai. As primitivas atitudes com a mãe influenciam as atitudes com o pai. O interior da mãe fica repleto de enormes e "maus" pênis paternos. Ela não só é a "mulher com pênis", mas o receptáculo do pênis do pai e dos terríveis excrementos que lhe são assimilados. Uma parte do ódio e da angústia pelo pênis do pai é deslocado para a mãe e perturba a relação com a mulher. (Do mesmo modo que, como foi visto no tópico anterior, o excessivo ódio da menina pela mãe é deslocado para o pênis do pai e perturba a relação com o homem.) Do sadismo oral muito intenso e prematuro resulta duplo efeito: a) maior ataque à figura combinada (essa imago fica mais aterrorizante); b) incapacidade para construir boa imago materna, indispensável ao controle das primeiras situações ansiogênicas, para formação do bom superego figurado por imagens protetoras e para escolha definitiva da posição heterossexual. O excesso de sadismo na fase feminina conduz à introjeção mais forte de enorme e "mau" pênis paterno, ficando ameaçado por dentro à semelhança da mãe nessas mesmas condições, como foi visto pouco acima. Igual destino tem a figura combinada introjetada. De ambas resulta o dobro de angústia sobre seu interior, levando a graves distúrbios psíquicos e sexuais. Descrê de seu "bom" pênis e potência sexual. Tudo isso o leva a se afastar damulher como objeto de amor. Conforme suas primeiras experiências sexuais, poderá tornar-se homossexual, ou, se adotar a posição heterossexual, terá sua potência viril gravemente perturbada. Em casos extremos, sua libido será in- capaz de manter posição homo ou heterossexual. Escolha da homossexualidade. Há dois processos que levam à verdadeira homossexualidade: 1) deslocar para o interior da mulher. o 64 65 terrível pênis paterno; 2) atribuir poder ao pênis de outro indivíduo do mesmo sexo (escolha narcisista). Desmente o pavor do pênis interiori- zado pelo sujeito, bem como de seu próprio interior arruinado. A defesa egóica do homossexual, que o leva a fugir do interior, leva à negação do inconsciente; controla-o acentuando a importância do mundo externo, que se liga à consciência. As relações homossexuais da primeira infância diminuem o temor pelo pênis do pai e aumentam a confiança no "bom" pênis do parceiro, tornando-se o modelo das relações homossexuais posteriores. As relações homossexuais trazem os seguintes reasseguramentos: 1) o pênis real é confirmado como inofensivo; 2) portanto seu próprio pênis também é inofensivo; 3) não há conseqüências desastrosas dessa relação; 4) equivale a uma relação fraterna secreta. (O parceiro pode significar: pai aliado contra a mãe, isto é, a mãe detestada na posição feminina; ou o irmão aliado contra o pênis do pai -pênis do pai no interior do sujeito ou no interior da mãe,' com a qual se identifica.) Faltando "boa" imago materna, sob forte temor dos perigos prove- nientes do corpo da mãe, a aliança secreta descrita no item 4 orientará o homem para a atitude homossexual. Quando prevalece angústia paranóide (pênis e fezes com papel perseguidor), o objeto amado homossexual representa um aliado con- tra os perseguidores. O desejo libidinoso pelo "bom" pênis é super- compensado e disfarça hostilidade e temor do "mau" pênis. Quando a compensação não se sustenta, surge medo e ódio do objeto amado, e, por inversão paranóide, este se transforma em perseguidor. Estes mecanismos paranóicos, quando não estão em primeiro plano, man- têm-se atenuados, mas sempre presentes, em todo comportamento homossexual. A orientação homossexual pode esconder um fim heterossexual: afastar o pai da mãe, castrá-lo, apossar-se de seu pênis e esperma para poder satisfazê-Ia. O desejo epistemofílico também pode favorecer a heterossexualidade: as relações homossexuais dão ocasião para saber em que o pênis do pai se distingue do seu e como se tornar mais hábil e potente nas relações sexuais com a mãe. 4.6. Limites e alcance da análise de crianças Objetivos. No adulto, a análise tem por objetivo reorientar o desen- volvimento para haver acordo entre id e superego, permitindo ao ego revigorado melhor inserção na realidade. Na criança, a análise, liqui- dando as fixações sádicas infantis, modera o rigor do superego, a intensidade da angústia e as necessidades instintivas. Amadurecendo sexualidade e superego, o ego se expande, adapta-se à exigência do 66 superego e realidade, novas sublimações surgem e se consolidam, enquanto as antigas sublimações tornam-se menos esporádicas ou obsessivas. Limites da análise. A libido pré-genital transforma-se só parcial- mente; o superego primitivo não desaparece; o efeito das primeiras situações ansiogênicas não cessa totalmente. Portanto, não há garantias contra recaídas. Pode haver apenas proteção relativa quanto a tensões futuras. Mas acontecimentos externos traumáticos podem confirmar as antigas situações ansiogênicas, mobilizando excesso de angústia intolerável para o ego. Circunstâncias externas decepcionantes (ou internas, doenças físicas) abalam a confiança nas imagos protetoras e nas capacidades construtivas do ego. Essas experiências isoladas ou em conjunto funcionam como fatores precipitantes de recaídas, mes- mo quando a análise foi bem sucedida. Duração da análise. Em casos graves de crianças, Klein, por ocasião da Psicanálise da Criança, em 1932, estimava que a duração seria de um e meio a três anos. Para adultos graves, a duração seria maior. Em casos leves de crianças, de oito a dez meses. Prevenção. Psicoses, traços psicóticos, distúrbios caracterológicos, comportamento associal, neuroses obsessivas graves, inibições do desenvolvimento que no adulto são parcial ou totalmente inacessíveis à análise são curáveis se tratados bem cedo na infância. "Se toda criança que apresenta distúrbio ainda que pouco importante ~osse analisada enquanto há tempo, um grande número de infelizes que povoa os asilos e prisões, ou que fracassam lamentavelmente, escapariam a esse destino e chegariam a conhecer uma vida normal. Se a análise de crianças puder cumprir uma tal obra, e numerosos são os indícios que apontam nesse sentido, ela preencheria, além dos serviços individuais que presta, uma função inestimável para o bem da sociedade" (Klein (1932), La Psychanalyse des Enfants, 1959,290,291). 67
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