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1 I - A AVENTURA WEGENERIANA (1910 - 1930) Terra e mar, continentes e oceanos: desde as primeiras cosmologias sumárias até à exploração sistemática dos planetas na era espacial, este contraste, que hoje em dia se sabe ser muito específico da superfície terrestre, tem sido entendido como uma divisão fundamental do nosso mundo. Só recentemente, no entanto, se compreendeu toda a importância geológica desta dualidade, que ultrapassa em muito o âmbito de uma simples topologia de superfície, ocultando, na sua simplicidade deslumbrante, uma realidade profunda da estrutura e, mais ainda, da atividade e da história do nosso planeta. Com efeito, o fundo dos oceanos, o "chão", que comporta uma fina película de sedimentos e ao qual se sobrepõe uma espessa camada de água, é de natureza radicalmente diferente da dos continentes. Enquanto estes, para lá da aparente diversidade das rochas, tal como podem ser observadas através da exploração geológica ou por intermédio das perfurações, são essencialmente constituídos por material rico em sílica clara, que designamos por granito, é o basalto, rocha vulcânica escura, que constitui o fundo dos oceanos. Desde os anos setenta que se sabe, além disso, que a história destas unidades estruturais do Globo - a história no sentido geológico do termo, que se estende por milhões ou até mesmo milhares de milhões de anos - é fundamentalmente 2 diferente. O chão oceânico forma-se continuamente ao longo das grandes fissuras submarinas que percorrem os oceanos e a que chamamos dorsais ou cristas oceânicas. Essas fissuras, situadas no centro de amplas superfícies convexas, sob mais de 1000 m de água, são fonte de matéria quente que emana das profundidades da Terra e se espalha permanentemente pelo fundo do oceano, fabricando, assim, novas porções de chão oceânico, que, uma vez formado, se afasta para ambos os lados das cristas e dá a impressão de se alastrar, o que deu azo à designação de sea-floor spreading atribuída a este fenômeno. O mecanismo de formação do fundo oceânico é, por vezes, visível ao ar livre, quando, como é o caso na Islândia, as cristas oceânicas afloram à superfície, em que podem ver-se fissuras e seqüelas espetaculares do vulcanismo basáltico e é possível, a partir desta realidade, observar e conceber ainda melhor este mecanismo. Em geral, no entanto, o fenômeno ocorre nos mares, a milhares de metros de profundidade, revestindo-se de caráter muito mais discreto do que o das erupções islandesas. Ao longo da rede de 60.000 km constituída pelas cristas oceânicas produz-se uma atividade intensa, a bem dizer, geologicamente falando, ininterrupta. A criação contínua de chão oceânico corresponde a um acréscimo da superfície terrestre ao nível das cristas, compensado por um fenômeno, dito de subducção, que destrói continuamente uma quantidade igual do mesmo, o qual torna-a mergulhar no manto ao nível das fossas oceânicas que orlam os grandes oceanos do Globo, como o Pacífico, e que, como as que se estendem das Curilas às Marianas, passando pelo Japão, ou que vão das costas do México às da Terra do Fogo , testemunham esta absorção pelas entranhas da Terra. Assim, este amplo e duplo movimento, de criação nas cristas oceânicas e de extinção nas fossas, assegura-lhe uma eterna juventude, sendo constantemente destruído e renovado. O índice de renovação é de 2 cm a 10 cm por ano, podendo, portanto, concluir-se que os mais antigos fundos oceânicos têm uma idade máxima de 200 milhões de anos. Saídos do manto, voltam a ser por ele reabsorvidos inexoravelmente, cumprindo um ciclo imutável, que prossegue há milhares de milhões de anos. Os continentes são resultado de uma história muito diferente. Constituídos por materiais leves, não podem ser absorvidos pelo manto, mantendo-se assim, à superfície da Terra. Extraídos, sem dúvida, das profundidades terrestres por mecanismos mais complexos do que os presidem à formação da crusta oceânica, os pedaços de continentes constituem jangadas que “flutuam” à superfície. Como o fundo dos oceanos se encontra sujeito a movimentos constantes, os continentes são por eles afectados, deslocando-se assim, permanentemente à superfície. É o que se chama a deriva dos continentes. Deste modo, a África e a América do Sul, que se encontravam ligadas há 250 milhões de anos, afastaram-se a partir dessa altura, passando a ter entre si o imenso oceano Atlântico Sul, com a sua crista central. Sacudidos, transportados, quebrados, os continentes assemelham-se a jangadas indestrutíveis que flutuam à superfície da Terra. De fato, alguns - ou, mais precisamente, certas partes de alguns destes continentes - formaram-se há mais de 3000 milhões de anos e sobreviveram. À juventude constantemente renovada dos fundos oceânicos opõe os continentes a sua respeitável antigüidade. Esta perenidade permite-lhes serem os arquivos da história da Terra. As suas rochas, as suas estruturas, comportam em si mesmas o testemunho dos acontecimentos que se foram sucedendo. Os oceanos não têm memória anterior a 200 milhões de anos; em contrapartida, os continentes conservam a memória da Terra desde há cerca de 4000 milhões de anos. Esta oposição oceano-continente, juventude- perenidade, esta mobilidade dos continentes associada à expansão dos fundos oceânicos, esta dinâmica da superfície terrestre, constituem o enquadramento obrigatório de toda a 3 geologia. No entanto, esta lógica só foi compreendida há vinte anos e as diferentes teorias que se lhe encontram associadas só conseguiram impor-se a partir de discussões, disputas, debates extremamente acesos, difíceis e, por vezes, violentos. Todas sofreram vicissitudes, que, a pouco e pouco, modificaram, remodelaram, aperfeiçoaram as idéias iniciais, tornando-se o conjunto que hoje conhecemos e se transforma e enriquece dia após dia. A idéia de recortar os continentes, seguindo as costas, de procurar reagrupá-los, reconstituindo, assim, um puzzle continental único, é uma operação tentada, sem dúvida, com maior ou menor êxito, por milhares de crianças ou de amadores curiosos. Certamente que um grande número verificou que era fácil ajustar as costas da África e da América do Sul, fazendo desaparecer, simultaneamente, o Atlântico Sul. No entanto, esta idéia elementar, trivial, como diriam os matemáticos, necessitou de mais de cinqüenta anos para se impor na comunidade geológica! Por que motivo deparou com tanta resistência e ceticismo? Encontra-se aqui uma ilustração do que na metodologia científica constitui a diferença entre intuição e um conjunto de provas rigorosas, entre a conjetura e a demonstração. É este percurso que tentaremos descrever. A teoria da mobilidade continental teve, com efeito, uma aparição assinalável em 1912 com Alfred Wegener (Die Entstehung der Kontinente, Petermans Mitterlungen, 1912) meteorologista alemão, que, intrigado pela similitude das formas das costas da África e da América do Sul, propôs a teoria da deriva dos continentes: a África e a América outrora teriam sido um único e mesmo bloco, que teria se fragmentado pelo centro, seguindo-se o afastamento das duas partes e o preenchimento pelas águas do hiato entre elas. Através da deriva dos dois continentes Ter-se-ia, assim, formado o oceano Atlântico. Segundo parece, a idéia original não terá sido do próprio Wegener, pois foi enunciada em 1868 por AntonioSnider-Pellegrini em a Criação do Mundo e os Seus Mistérios Desvendados. Posteriormente, diversos autores, entre os quais Elysée Reclus, mas sobretudo o americano Taylor, retomaram e desenvolveram um pouco esta idéia, embora sem grande ressonância no mundo dos "sábios". O mérito de Wegener consiste em ter conferido a esta hipótese argumentos científicos capazes de abalar o ceticismo que acolhe qualquer idéia nova. Transformou uma hipótese de trabalho num corpo de doutrina compacto, coerente e sintético, abarcando, numa visão global, aspectos extremamente diversos da história da Terra. Defendeu a teoria com firmeza, mas sem excessiva pugnacidade, até ao seu último dia. Assim, deve ser considerado o pai da teoria da deriva dos continentes. Como afirma claramente Georges Duby1, em matéria de referência e de anterioridade torna-se necessário adaptar a uma regra simples: a que distingue com nitidez entre uma opinião emitida, entre outras, de maneira mais ou menos fortuita e uma obra estruturada, baseada em argumentos, desenvolvida em torno de uma idéia. "A referência a uma é anedótica, à outra é essencial e imprescindível." Prosseguiremos esta linha de orientação. A isostasia Na época de Wegener o grande geólogo austríaco Suess, numa obra gigantesca intitulada A Face da Terra, tinha divulgado a idéia de que os continentes terrestres, feitos de materiais graníticos, leves (densidade: 2,8), "flutuam" sobre materiais basálticos subjacentes, mais densos e mais pastosos (densidade: 3,3), que formam o fundo dos oceanos. Visto que as rochas graníticas, ditas ácidas, são ricas em sílica e alumínio, Suess chama a esta camada SIAL, por oposição à camada basáltica, rica em sílica e magnésio, a que chama SIMA. Deste modo, tal como icebergues na água, os 1 Les trois ordres ou l'imaginaire du féodalisme, Gallimard, 1980. 4 continentes siálicos encontram-se sobre o SIMA em equilíbrio de tipo hidrostático (diz-se, neste caso, litostático), que lhes permite sofrer a influência de movimentos verticais resultantes da aplicação do princípio de Arquimedes. Quando a erosão leva ao desaparecimento da camada superficial de um continente, este tem tendência a subir, como acontece com um barco que é descarregado. Esta teoria, desenvolvida por Pratt, Dutton e Airy, é conhecida pela designação de isostasia. Dispomos de provas em diversas áreas. Em primeiro lugar no gráfico hipsométrico, que traduz globalmente o relevo terrestre e no qual se encontram marcadas as percentagens das superfícies correspondentes a cada nível de altitude ou profundidade, a curva apresenta dois máximos, correspondentes ao nível e equilíbrio de cada um dos materiais: um a +100 m, o outro abaixo do nível do mar, a -4500 m. É o continente que desempenha o papel de icebergue mais leve. Seguidamente, temos as provas derivadas das observações feitas por numerosos geólogos, nomeadamente o sueco De Geer, sobre a elevação do escudo escandinavo, que se encontrava coberto por uma calota gelada no Quaternário. Posteriormente, devido a razões climáticas, a calota glacial retirou-se progressivamente para norte, aliviando, assim, o escudo, que tem vindo a elevar-se pouco a pouco, visto que a altitude de indicadores fixos situados no escudo aumenta com 5 o tempo. Esta elevação evoca a imagem do barco flutuante anteriormente referida. Aliviado pela fusão dos gelos, o escudo retoma a altitude inicial. Por fim, um estudo mais complexo da variação da força da gravidade à superfície mostra que, tal como os icebergues, as cadeias de montanhas têm, em profundidade, raízes, que "compensam" o seu relevo acentuado. Também aqui se comprovam as suas analogias hidrostáticas. Wegener situa, pois, a sua teoria no âmbito da isostasia ao formular explicitamente a pergunta: se é possível a existência de movimentos verticais no que respeita aos continentes, por que motivos não hão de ser possíveis deslocações horizontais? Por que é que a América do Sul e a África não se haveriam de Ter afastado progressivamente uma da outra? Os icebergues na água não se encontram fixos uns em relação aos outros! Por que restringir a deriva continental à zona do Atlântico Sul? Wegener propõe, assim, a aplicação do conceito de deriva continental a toda a Terra. As circunstâncias da deriva No final do Carbônico2, isto é, há 270 milhões de anos3, data que Wegener ignorava, mas que hoje em dia conhecemos, existia um único continente, Pangéia, que se fragmentou, afastando-se os pedaços uns dos outros, de tal modo que no Eoceno, há 50 milhões de anos, era possível distinguir claramente um continente euro-asiático ligado pela Escandinávia e pela Groenlândia à América do Norte, assim se individualizando um supercontinente norte, a Laurásia, e, a sul, uma série de blocos separados, compreendendo a América do Sul, a Antártida, a Austrália e a África, que, embora ligada à Ásia, dela se separa pelo Mediterrâneo, propondo Wegener o termo "Gondvana" para este conjunto continental. Mais recentemente, a Eurásia ter-se-ia afastado nitidamente da África. Os oceanos Atlântico, Índico e Ártico são o resultado destas derivas continentais. 2 V. No "Léxico" uma escala pormenorizada dos tempos geológicos. 3 Passaremos a referir os milhões de anos por MA e para situarmos convenientemente os acontecimentos geológicos no passado colocaremos o sinal de menos antes das datas. É possível ainda recorrer à estampa a cores no 1 para todas as informações respeitantes à nomenclatura das etapas geológicas fossilíferas. 6 Mas para Wegener estes movimentos continentais não são simplesmente a destruição de uma estrutura geométrica, constituem os motores fundamentais dos grandes fenômenos geológicos. Esta deriva de jangadas continentais manifesta-se geologicamente por aquilo a que chama efeitos de popa e de proa. Na parte dianteira do continente em deriva formam-se rugas gigantescas: são as cadeias de montanhas. Assim, o contato da América em deriva para o ocidente com o SIMA pacífico dá origem à cordilheira dos Andes e às Montanhas Rochosas; por seu turno, a Austrália, a derivar para leste, dá lugar à formação de suas cadeias costeiras orientais. Contudo, estas dobras na parte dianteira têm também importantes repercussões internas, do que resultam as atividades vulcânicas e magnéticas intensas destas regiões. Na popa os fenômenos não são menos espetaculares. Os continentes derivantes deixam na sua esteira alguns fragmentos dos bordos, dando origem às grinaldas de ilhas. A América, na sua deriva para oeste, deixa atrás de si as Antilhas; mais espetacular ainda é a deriva da Ásia para noroeste, com a grinalda das ilhas da Sonda, do Japão e das Curilas, etc. Também aqui se criam redemoinhos no SIMA, suscitando vulcanismo e ascensão de magma. É esta, em breves palavras, a teoria de Wegener. Examiná-la-emos, utilizando os argumentos que no decurso da sua vida ele próprio e os seus discípulos acumularam e que reuniu na sua última comunicação, em 1928. Não 7 respeitaremos a ordem e a hierarquia que lhes conferiu, pois o tempo realçou alguns e apagou outros. A argumentação de Wegener não é de tipo logístico, com uma poderosa lógica dedutiva e sistemática. Como é sempre o caso em ciências naturais, trata-se de um modelo, de um paradigma, que propõe uma explicação unitária para numerosos fatos de observação acumulados no decorrer dos anos- de natureza muito diversa e de importância variável. A paleontologia e as pontes intercontinentais Em 1912, a paleontologia debatia-se já, desde há muito, com o problema dos contatos intercontinentais. Certas espécies vivas apareceram na Terra numa época definida e os seus restos encontram-se hoje em pontos separados por oceanos inteiros. Ou admitimos que a aparição das novas espécies se faz simultaneamente em diversos locais (é a teoria da hologênese de Naegli), ou então temos de considerar que a espécie aparece num determinado ponto do Globo, efetuando depois rapidamente a sua migração até cobrir o conjunto da sua área de repartição geográfica. Os paleontólogos cedo optaram pela Segunda hipótese. Mas então como explicar que os estegocéfalos, répteis anfíbios do Carbônico (-280 MA) e do Pérmico (-210 MA), animais pouco móveis, que viviam junto dos rios, tenham estado simultaneamente na Europa, na América (Texas), na Índia e na África do Sul? Tais exemplos poder-se-iam multiplicar, citando um certo número de espécies terrestres, como os caracóis, as minhocas ou os insetos, que, aparecidos numa determinada época num ponto do Globo, depressa invadiram o conjunto dos continentes, o que conduz a idéia de ligações entre os continentes, necessárias para possibilitar as migrações de faunas e floras. Todavia, longe de proporem a idéia da deriva continental, os paleontólogos formularam primeiro a das pontes intercontinentais, línguas de terras emersas que ligavam os continentes, submergindo num ponto em determinada época, renascendo noutro local noutra, traçando, assim, uma vasta rede de telecomunicações intercontinentais à escala da Terra inteira. Wegener contesta esta teoria das pontes intercontinentais. Como geofísico, nota que a assimilação do SIAL pelo SIMA é fisicamente impossível. O SIAL é mais leve, flutua, nenhum princípio físico pode faze-lo mergulhar espontaneamente. Mais: se esse mergulho ocorresse, deixaria marcas no campo da gravidade. Ora, os gravimetristas não detectam nada de semelhante nas medições que efetuam no mar. A deriva continental surge então aos olhos de Wegener como a síntese da idéia da ligação intercontinental, defendida pelos biólogos, e da permanência das superfícies respectivas continentes-oceanos, defendida por numerosos geólogos e pelos adeptos da teoria da isostasia. Admitindo a hipótese da deriva continental, a paleontologia torna-se um instrumento de grande importância para a reconstituição das suas modalidades. Com efeito, sabe- 8 se que as espécies vegetais e animais evoluem e se modificam com o decurso do tempo. Para cada uma delas os paleontólogos determinaram uma "redução de vida geológica". A sucessão das faunas e das floras permite definir a escala das eras e das épocas geológicas4. A cartografia da área de influência de uma dada espécie e a sua sobreposição no mapa da deriva dos continentes permitem, assim, determinar uma idade geológica para esta ou aquela etapa dos movimentos dos continentes. Estes mapas paleobiogeográficos constituem ainda um utensílio que permite estudar as zonas onde a reconstituição de Wegener não é precisa. Deste modo, a planta denominada Glossopteris é característica do Gondvana no Triásico. Em contrapartida, é desconhecida na Laurásia. A sua descoberta num fragmento continental identifica este último como tendo estado unido ao Gondvana no Triásico. Assim, o réptil fóssil Mesossaurus encontra-se limitado a duas zonas restritas situadas na América e na África do Sul, o que permite inferir uma ligação entre estas duas zonas na Era Secundária. Através deste método de paleontologia estratigráfica, elaborado pelos geólogos do século XIX à custa de longo e fastidioso esforço, Wegener estabelece a cronologia da ruptura e, depois, a deriva dos continentes saídos da Pangéia e verifica a coerência das suas restituições. A cartografia das duas costas do Atlântico A geologia regional, baseada na cartografia das formações geológicas, permite que trace fronteiras entre elas. Deste modo, quando grandes extensões de terrenos sedimentares cobrem um soco formado de terrenos enrugados e rígidos, cartografa-se cuidadosamente o limite destas duas formações, designado por limite soco-cobertura. Feita na África Ocidental, esta cartografia levanta um problema quando se atinge a costa atlântica. Alguns destes limites são, com 4 V. As ilustrações na parte central do livro. efeito, quase perpendiculares ao oceano. Como continuam no mar? Como é possível que lhes seja posto termo de forma tão brutal? Quando se reconstitui o puzzle do Atlântico Sul com o auxílio das formas da costa, verifica-se que os limites soco- cobertura se ajustam sem dificuldade. Todavia, este ajustamento é ainda mais preciso do que parece. Como acabamos de dizer, as camadas geológicas sedimentares 9 apresentam-se em seqüências sucessivas e estes estratos podem ser datados graças aos restos fósseis que contêm. Utilizando as descrições feitas de um lado e do outro do Atlântico Sul, pode- se notar que as camadas anteriores ao Triásico (isto é, anteriores a 200 milhões de anos) são idênticas em cada uma das idades. Esta identidade é tão perfeita que, alguns anos mais tarde, em 1927, o geólogo sul-africano Du Toit, que fez uma viagem à América do Sul para comparar as formações geológicas brasileiras com as que conhecia em África, escreveu: "É freqüente notar-se uma diferença maior entre as fácies de uma mesma série observadas em dois pontos situados no mesmo continente do que entre dois pontos homólogos situados na costa de cada lado do Atlântico. Em contrapartida, após o Triásico a natureza litológica das idades diversifica-se me cada continente5." Esta comparação entre as diversas formações geológicas que existem de um e de outro lado do Atlântico e que se ajustam entre si foi efetuada com extremo cuidado por Du Toit para todo o continente de Gondvana. Émile Argand, estudioso da tectônica mais interessado nas cadeias de montanhas dobradas, analisou a distribuição destas por todo o Globo, tendo concluído que o modelo de Wegener dá a imagem mais coerente desta distribuição e que, de qualquer modo, nada se lhe opõe nas observações tectônicas e cartográficas. Os climas antigos Era normal que Wegener, meteorologista de profissão, desse atenção particular aos climas antigos. Com efeito, existe nas formações geológicas um certo número de indícios que permitem a sua reconstituição. Deste modo, a existência de corais fósseis implica águas quentes e bem arejadas, floras 5 A Geological Comparison of South America with South Africa, Carnegie Institution of Washington, pub. No 381, Washington, 1927. fósseis abundantes, com folhas gigantes, condições tropicais. Igualmente específicos são os seixos estriados, muito abundantes, cuja acumulação, denominada tilite, atesta a presença de glaciares. Estudando, assim, a distribuição dos indícios glaciares. Wegener observa que no Carbônico a América do Sul, a África Setentrional, a Índia e a Austrália se encontravam cobertas por uma calota glacial. Como explicar tal extensão a um islandês? Seria o clima geral do Globo mais frio? Mas a presença de fauna e flora tropicais nas regiões do atual Mediterrâneo contradiz esta hipótese. A solução que consiste em reunificar os continentes e admitir uma deslocação do pólo - o qual se encontraria no oceano Índico nessa altura - permitiaresponder à pergunta. No quadro desta hipótese, uma só observação, isolada, basta para se chegar a conclusões: ao largo da Austrália existe a ilha de Timor; ora, no Carbônico, enquanto a Austrália estava coberta por uma calota glacial, em Timor desenvolviam-se os corais. A única interpretação que permite explicar a existência simultânea de dois climas antigos e antinômicos assenta na evidência de que estes dois pedaços de continentes se encontravam muito afastados um do outro no 10 Carbônico e que a partir de então tem vindo a aproximar-se. É fácil imaginar que o meteorologista Wegener se tenha apaixonado pela paleoclimatologia e que, levando a sua análise bastante mais longe, e constatando esta deslocação das zonas climáticas, sugira a migração dos pólos no decurso dos tempos geológicos. Esta idéia ressurgirá mais tarde na literatura geológica. As cadeias de montanhas O século XIX tinha sido para a geologia o século da estratigrafia, com as famosas discussões de Lyell, Cuvier, Sedgwick e Brongiart. O século XX é o da tectônica. A estratigrafia, ciência dos estratos sucessivos, tinha por objetivo decifrar a história das bacias sedimentares, em que as camadas geológicas são depositadas segundo uma ordem lógica, ficando as mais antigas em baixo, onde o temo é registrado por uma seqüência de mensagens simples que indicam as condições de depósito das rochas. A tectônica procura compreender a mensagem contida nas cadeias de montanhas constituídas por feixes de dobras. A que se devem estas dobras? Como é que a partir de sedimentos depositados no fundo do mar se formam montanhas tão importantes como os Alpes ou os Himalaias? O estudo destas montanhas implica uma atitude mental muito diferente da que preside à abordagem estratigráfica tradicional. Por outro lado, é preciso ter vontade de se embrenhar no estudo das estruturas sobre as quais, a priori, se poderia pensar que possuem uma complexidade tal que desafia qualquer hipótese de descodificação. Por outro lado, a análise das estruturas tectônicas exige uma visão a três dimensões, imposta pelos consideráveis relevos proporcionados pelas montanhas. Mais ainda: decifrar estruturas complexas formadas por dobras, falhas e suas combinações, numa infinidade de variações, conduz imediatamente a uma interpretação dinâmica. As estruturas das cadeias de montanhas só adquirem significado para os tectônicos se permitirem a reconstituição dos movimentos que lhes deram origem. E é neste contexto que convém enquadrar a teoria de Wegener. Para explicar a formação das montanhas, a teoria em moda no início do século é a do arrefecimento do Globo, mais familiarmente conhecida pela designação de teoria da maçã cozida, que se ficou a dever ao francês Élie de Beaumont. Quando se assa uma maçã, esta perde água e contrai-se, do que resulta uma superfície fendida, enrugada, dobrada. Um olhar atento e um pouco imaginativo poderá vislumbrar o equivalente das cadeias de montanhas, dos vales e dos mares. Pensa-se que, de um modo semelhante, o Globo quente dos primeiros dias se contraiu com o decorrer dos tempos. Esta teoria, adotada por Suess, terá os seus adeptos até os anos setenta! No entanto, no início da década de 1870, os geólogos alpinos Bertrand, Schart, Lugeon e, sobretudo, K. Staub e F. Kossmat, põem em causa esta teoria da formação das cadeias montanhosas por contração do Globo, notando a existência de encurtamentos consideráveis. Por exemplo, se "desdobrarem- se" os Alpes, a sua superfície aumenta quatro a cinco vezes. Estes encurtamentos indispensáveis implicam uma mobilidade lateral, pois não se pode conceber um mecanismo físico que através de uma contração interna produza tais efeitos. Kossmat escreve: "A formação das montanhas deve ser explicada por grandes movimentos tangenciais da crosta, e isto não pode integrar-se na teoria da contração6 [...]". É o suíço Émile Argand que vai estabelecer a ligação entre este "pensamento tangencial" dos tectônicos e a deriva dos continentes. Argand executa primeiro uma obra cartográfica considerável, o mapa tectônico da Eurásia, que apresenta ao Congresso Geológico de Liège em 1924. Como é hábito, o comentário deste mapa dá-lhe azo a que exponha a 6 "Erörterungen", in A. Wegener, Théorie der Continental verschiebungen, Zeitschrift der Gesellschaft für Zrdkunde, zu Berlin, 1921. 11 sua visão interpretativa. Numa linguagem bem típica da época e plena de imagens surpreendentes, expõe a idéia de que as cadeias alpinas, desde os Himalaias até os Alpes franco-suíços, são o resultado de movimentos laterais consideráveis, que tinham levado aos cavalgamentos da crosta, responsáveis pelos importantes relevos que as caracterizam. Efetivamente, introduz no interior dos próprios blocos siálicos de Wegener uma certa plasticidade, localizada em zonas de fragilidade, que lhes permite dobrarem-se e dar origem a cavalgamentos importantes. Assim, a África, no seu movimento da deriva no sentido da Europa, deu origem aos Alpes e à Índia, se bem que solidária com a Laurásia7, continuou o seu movimento de deriva para norte, dando o "choque" entre os escudos indiano e asiático, origem à cadeia himalaiana. Deste modo, na Laurásia há blocos rígidos indeformáveis e zonas onde os encurtamentos são possíveis. De fato, a noção que Argand desenvolve é a de cadeias de colisão, que concebe como cadeias intracontinentais, comparando-as com as peripacíficas, que, como a cordilheira dos Andes ou as cadeias japonesas, se situam na fronteira oceano-continente, e verificando que estas mostram encurtamentos muito menos importantes, sendo, portanto, de natureza diferente. Tal distinção continuará a ser um dos fundamentos da tectônica moderna e será retomada no âmbito da geologia das placas. A embriogenia da tectônica global Wegener compreende rapidamente o partido que pode tirar do trabalho de Argand; adapta-o, mas vai mais longe e estende as conseqüências tectônicas do mobilismo ao que podemos chamar hoje as premissas de uma tectônica global. Começa por estabelecer a associação entre o movimento global e o estilo tectônico regional e observa que, no âmbito de uma 7 Só muito mais tarde será demonstrada pelos paleomagnetólogos a independência da Índia em relação à Laurásia. tectônica mobilista, se verifica uma compressão num local do Globo, deve haver uma zona em extensão noutro local. Partindo desta base, analisa corretamente os três tipos de zonas tectônicas: As zonas em que existe uma compressão e que se caracterizam por dobras e falhas com cavalgamento, ditas inversas em linguagem geológica. Nestas zonas, a superfície terrestre diminui. Trata-se das cadeias de montanhas já mencionadas; As zonas caracterizadas por um alongamento, nas quais são falhas ditas normais que dominam e onde a superfície aumenta. Neste contexto, estuda prolongadamente a zona dos grandes lagos africanos que recobrem a África Oriental de norte a sul, desde o lago Tanganica até à região de Afar, perto de Jibuti, sugerindo que esta zona representa, quer o estágio precoce da fraturação de um continente (neste caso, a África Oriental separar-se-á do continente africano dentro de alguns milhões de anos), quer, pelo contrário, um estágio abortado. Os fenômenos que ocorrem nesta zona deverão ser considerados como o reflexo do que deve ter acontecido no vale central, no momento da separação da América do Sul e da África; Por fim, uma terceira categoria de zonas tectônicas é aquela em que os movimentos dos continentes são paralelos às falhas e onde, por conseqüência,, as deslocações laterais relativas são consideráveis. Neste contexto, apercebe-se do papel fulcral desempenhado pelos grandes desprendimentos, como, por exemplo, o da falha de Santo André, na Califórnia, que se encontra na origem de grandes tremores de terra, nomeadamente do célebre sismo de 18 de abril de 1906 em São Francisco. Como se compreenderá mais adiante, a associação entre estas grandes deslocações e a sismicidade é desenvolvida de acordo com uma visão muito futurista. 12 Foi, pois, este o modo como Wegener concebeu o papel desempenhado pelas grandes falhas e a sua distribuição nas diversas condições da dinâmica do Globo, bem como a ligação entre estas libertações brutais de energia, que são os sismos, e as deslocações laterais que afetam a superfície terrestre. As ilhas oceânicas tinham retido por inteiro a sua atenção, em primeiro lugar, como testemunhas da deriva, ao notar, muito corretamente, que as ilhas Seychelles, no centro do oceano Índico, eram de natureza granítica, portanto, de origem continental, sendo necessário explicar esta presença de um pedaço de continente a meio do oceano Índico. Procedeu, porém, a uma generalização um pouco apressada ao concluir que as ilhas do Atlântico, como os Açores e as Canárias, constituíam também fragmentos de continentes, idéia que atualmente já não é aceita. A forma de grinaldas de ilhas, como as que se encontram entre a Terra do Fogo e o Antártico, constituindo as ilhas Sanduíche, ou as que se estendem em torno da Nova Guiné e da Nova Irlanda, em Bougainville, sugeria a Wegener volutas traçadas por um líquido quando encontra um obstáculo. Mais profética ainda foi a atenção que atribuiu ao surgimento dos arquipélagos "deixados" pela Ásia no decurso da deriva e para os quais propôs, assim, um mecanismo de gênese. Simultaneamente, explicava o aparecimento de mares, mais tarde chamados marginais, como os do Japão, de Okhotsk ou de Bering. A distribuição espacial do vulcanismo ativo parecia assim, para Wegener, traduzir a realidade da deriva. A popa e a proa das jangadas no seu movimento de deriva (Andes ou Indonésia) e as zonas em que os continentes se fraturam (grandes lagos africanos) surgem marcadas por um vulcanismo intenso, indício de importante atividade interna. Pode-se, pois, afirmar ter Wegener compreendido que a Terra comporta uma lógica unificada, a nível global, e que esta deve presidir a disciplinas muito variadas, freqüentemente distanciadas umas das outras: vulcanologia, paleontologia, tectônica, paleoclimatologia, geofísica. Quanto a este aspecto, é surpreendente constatar que o último capítulo do último manuscrito de Wegener é dedicado à oceanografia, disciplina que na sua época se encontrava ainda na primeira infância. Discute, neste âmbito, a topografia e a repartição das dorsais oceânicas, comenta as primeiras dragagens oceânicas que trazem basalto para a superfície, mas igualmente as primeiras medições de geofísica no mar. Será que pressentiu que destes estudos proviria, trinta anos mais tarde, a surpreendente confirmação de suas concepções? Uma nova leitura das páginas de Wegener mostra a lucidez profética deste meteorologista de Marburgo, que soube ser um tão grande geólogo! Como resistir à tentação de lhe atribuir este título, que todos os seus contemporâneos lhe recusaram? As causas da deriva Após ter proposto o modelo, Wegener foi solicitado a explicar o mecanismo que permitia o funcionamento da máquina. Que forças se encontravam em jogo, em movimentos de tal grandiosidade? O do naturalista era excelente. O do físico, para a época, era muito menos convincente. A própria noção de isostasia, elemento fulcral da explicação wegeneriana, era suspeita aos olhos dos físicos ortodoxos da época. O manto é um meio rochoso rígido, submetido a pressões muito altas. Como é possível compara-lo a um fluido e falar, no caso do SIAL e do SIMA, de icebergues flutuando na água? Para muitos tal imagem é fisicamente absurda. Wegener invoca então, na esteira de Suess, os fatores tempo e temperatura e recorda que o lacre quebra sob a ação de solicitações violentas, mas se deforma plasticamente se aplicar uma força por um período mais longo. Tal como Suess, também não consegue convencer os físicos da época, mais rigoristas do que rigorosos. 13 Dedica-se, pois, ao problema das forças suscetíveis de provocarem deslocações laterais das massas continentais, forças essas forçosamente consideráveis: quais as suas causas? Como meteorologista, interessa-se muito pela rotação da Terra, pela força de Coriolis, que se lhe encontra associada, pelas forças das marés ou pelas acelerações desta rotação. Infelizmente, quaisquer que tenham sido as tentativas no sentido de sustentar estas propostas através de argumentos quantitativos, revelar-se-ão completamente falsas. Nenhuma das forças nomeadas por Wegener pode explicar o movimento dos continentes. No entanto, na parte final da sua vida vislumbra o que viria a ser a solução admitida em todo o mundo trinta anos mais tarde: a convecção do manto. A radioatividade foi descoberta por Becquerel em 1896. Em 1920 é uma idéia ainda nova para as ciências da Terra (e assim continuará até 1950!). O irlandês Joly estabelece um paralelo entre o fato de o fenômeno de radioatividade dissipar calor e a presença de substâncias radioativas (urânio, tório, potássio) nas rochas terrestres para afirmar que ocorre uma importante libertação de calor no interior do Globo, que se propaga de forma tão uniforme, induzindo esta heterogeneidade fenômenos convectivos, isto é, deslocações de massa no interior do Globo análogas às correntes que se observam num recipiente com água em aquecimento. Estas correntes de convecção podem arrastar os continentes, que flutuam sobre o seu meio pastoso, sendo, assim, a causa da deriva. Esta idéia de convecção terrestre, cuja existência ninguém nega hoje em dia, foi combatida pelos geofísicos da época com energia extrema. Como é que um meio quase sólido se poderia comportar como um fluido? Contra-senso físico! E, no que respeita à radioatividade, como avaliar quantitativamente os seus efeitos se não se conhecem os teores nem a natureza dos materiais profundos?! Esta física do Globo, tão diferente da boa física de laboratório, parecia decididamente muito estranha para os físicos tradicionais. O debate Após termos instruído o processo, superabundante em matéria de fatos baseados em observações sólidas, mas pouco denso no que respeita a interpretações teóricas, torna-se necessário examinar o modo como esta teoria foi recebida pela comunidade científica. A primeira apresentação pública foi feita por Wegener em 1910, em Marburgo, e o primeiro escrito científico sobre o assunto apareceu no final desse mesmo ano. As reações iniciais dos geofísicos alemães foram muito favoráveis, em contraste com as dos geólogos, extremamente reservadas e até mesmo hostis. Só dez anos mais tarde, após a guerra, a teoria da deriva se expande para além da Alemanha, particularmente no mundo anglo-saxão, suscitando imediatamente tomadas de posição extremistas por parte das altas personalidades das ciências da Terra. As opiniões hostis à deriva vão aumentar e afirmar-se com o decorrer do tempo. Quando em 1929 Wegener morre durante uma das suas explorações na Groenlândia, que tanto o apaixonavam, existem ainda numerososdefensores desta teoria, os quais alguns anos mais tarde passam por um escasso número. Após uma breve fase de sedução, os geofísicos acabaram por seguir Harold Jeffreys na sua condenação sem apelo da deriva continental, e isto em nome do rigor e da matemática! Para resumir o debate contraditório que travou durante dez anos em torno da idéia de Wegener, tomemos como referência o simpósio organizado em 1928 em Nova Iorque pela Associação Americana dos Geólogos do Petróleo, em torno da deriva dos continentes. Neste colóquio, em catorze comunicações orais, sete opuseram-se violentamente a 14 Wegener, enquanto as outras sete lhe foram favoráveis (talvez o simpósio tivesse sido, aliás, montado para este efeito!). Já conhecemos os argumentos de Wegener. Quais são os seus detratores? Tentemos esquematizar os mais importantes: A geometria das reconstituições paleogeofísicas de Wegener é aproximativa. Se, no que respeita ao Atlântico Sul, tendo em conta a existência de um planalto continental parecem ajustar-se convenientemente, o mesmo não se passa com o Atlântico Norte. O que se coordenaria com a Terra Nova na Europa? Como é que as estruturas existentes de cada lado do Atlântico poderiam ajustar-se tão bem depois de tão longa viagem dos continentes, que, normalmente, deveria ter desorganizado estas estruturas? A existência da possibilidade de um bom ajuste dos continentes demonstra bem o imobilismo das estruturas! Este argumento, retomado por Jeffreys sob uma forma matemática mais "rigorosa", tornar-se-á um dos mais aniquiladores da teoria da deriva; Por que motivo a fragmentação continental só começou no Pérmico? Por que é que a Pangéia sobreviveu durante a maior parte da história da Terra? Esta mobilidade recente parece contrastar com a idéia geral que admite uma Terra antiga, muito mais "ativa" do que a de hoje, argumento que voltará a surgir bastante mais tarde; As duas últimas objeções já foram invocadas: uma diz respeito à ausência de "forças convincentes" suscetíveis de causarem a deriva dos continentes; a outra tem por alvo a bizarra física do interior. Ás críticas já feitas a esta física acrescentam-se as que têm por objetivo a idéia de cadeias de montanhas dobradas. Se a parte plástica do Globo é essencialmente constituída pelo manto, como é possível que, devido à ocorrência de determinados movimentos, seja a parte superficial continental que se dobre para dar origem às cadeias montanhosas? O presidente do simpósio, o holandês Van Watershoot van der Gracht, nas observações finais, apresenta uma conclusão bastante lúcida. Frisa que a teoria da deriva explica muitos fatos paleontológicos, estratigráficos, climatológicos, mas que nenhuma teoria física explica de forma satisfatória o fenômeno. A leitura das comunicações apresentadas durante o simpósio ainda hoje surpreende pela rudeza dos termos empregados para atacar Wegener. Fala-se da pseudociência, de abordagem superficial ou de manipulação de fatos objetivos! No entanto, a análise dos argumentos utilizados pelos opositores revela uma grande falta de consistência. Excluindo os que têm por alvo o caráter inadequado das explicações causais apresentadas por Wegener, nenhum ousa atacar diretamente os fundamentos da argumentação baseada em observações geológicas, paleontológicas ou tectônicas. Nenhum crítico propõe qualquer solução alternativa, quaisquer outras hipóteses de substituição. Destrói-se uma síntese para substituir apenas pelo caos! Reveste-se de certo interesse tentar saber por que motivo não se impôs no mundo científico uma teoria cuja apresentação sintética se confrontava violentamente com os dados dispersos e díspares das ciências da Terra da época, à qual não se opunha qualquer concorrente e que, como hoje em dia se sabe, era, na sua essência, exata. É difícil dar uma resposta, que só poderá ser encontrada no que se poderá chamar a história das mentalidades científicas. Uma análise de epistemologia histórica certamente induzirá a que, se Wegener, nessa época, tivesse apresentado a sua teoria na China, esta teria contado com um acolhimento bem melhor do que no ocidente. O pensamento científico chinês, impregnado de taoísmo, bastante mais preocupado com a hierarquização da 15 natureza, de acordo com uma classificação sintética baseada na observação objetiva, muito mais apegado à realidade, sem dúvida, teria prestado muito menos atenção à fragilidade dos argumentos físicos. O pensamento ocidental, pelo contrário, dominado pelo pensamento grego, nomeadamente pelo princípio das relações de causa e efeito, tem sempre muita dificuldade em entender um problema natural cujas causas não se encontram patentes. Admite com facilidade um mau conhecimento das causas, mas não a sua ausência, no que radica o culto ocidental, voltado ao teórico, que explica, por oposição ao observador, que descreve. Talvez um estado de espírito deste gênero se encontre na origem mais profunda de tal rejeição. Mas também é possível procurar outras razões no domínio da psicossociologia científica. Numa ciência anedótica e enciclopédica, como a geologia tradicional, os conhecimentos e a competência vão buscar a sua fonte sobretudo à memória e à experiência e pouco à inteligência dedutiva. Deste modo, apenas um experimentalista pode aceder gradualmente ao estatuto de "sábio" , termo que, conscientemente ou não, se confunde nas mentes com uma certa maturidade e longa prática. Como é que um neófito não geólogo poderia obt5er tão rapidamente a chave de problemas que os veteranos estudavam há tanto tempo? A teoria da deriva continental parecia excessivamente fácil numa altura em que tanto valor se dava ao trabalho e ao esforço! Talvez a idéia de que todos os continentes atuais derivam de um primitivo, têm uma só raiz, pareça excessivamente uniformista! Por transposição para as raças humanas, era possível ver em tudo isto como que uma ressurgência da idéia de evolução darwiniana na altura violentamente contestada. Trata- se, é claro, apenas de uma mera hipótese! A personalidade e a posição de Wegener desempenharam, sem dúvida, um papel importante. Era um meteorologista apaixonado pela exploração da Groenlândia. Expunha e defendia a sua teoria geológica, mas sem excessos, sem demasiado apego, sem trocas de cartas espalhafatosas, sem discussões do tipo das que opuseram Pasteur a Pouchet, sem manifestações espetaculares. Não fazia parte do establishment geológico da época, não ensinava geologia, não a praticava no sentido corrente do termo, não tinha sido formado nesse sentido. Era um solitário, exterior à disciplina, que se apresentava, pois, como um amador astucioso, mas pouco digno de crédito. É evidente que todos os parâmetros mencionados desempenharam o seu papel, mas, ao fim e ao cabo, não terá sido Wegener, mas simplesmente, vencido pelo medo de mudar, pela força do hábito, pela corrosão do ceticismo, que levou um participante no simpósio de Nova Iorque a perguntar: "Se Wegener tivesse razão, meus senhores, teríamos, simplesmente, de voltar aos bancos da escola!?..." Foi necessário esperar quarenta anos para que toda a comunidade geológica e geofísica consentisse voltar às idéias wegenerianas.
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