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XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 POR UMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (GERENCIAL OU NÃO) MAIS ACCOUNTABLE NO BRASIL: ENTRE OUTRAS COISAS, UMA QUESTÃO DE RESPEITO ÀS SALVAGUARDAS CONSTITUCIONAIS Elida Graziane Pinto _____________________________ Mención honorífica “Guardadas estas distinções [limitação supra-individual, às gerações presentes e futuras, sendo não só auto-limitação, mas também limitação às correntes vencidas no embate constituinte], a imagem de Ulisses atado ao mastro de sua embarcação, por vontade própria, com a finalidade de se autopreservar [em relação ao canto mortal das sereias], é paradigmática dos sistemas constitucionais democráticos, em que a sociedade, através de um instrumento constitucional rígido, restringe seu próprio poder de decisão, objetivando perpetuar sua liberdade de decidir. Sua autonomia. Nos dois casos a possibilidade de ação por parte do indivíduo ou do corpo político é bloqueada com o objetivo de auto-preservação.” Oscar Vilhena Vieira (1997, p. 55) “Como a apropriação, o controle e a transferência dos recursos públicos e a prerrogativa de concessão de estímulos, quotas e subsídios sempre consistem numa formidável fonte de poder, é a preocupação com risco de eventuais arbítrios que, nos períodos de transição e consolidação democrática, leva os juristas a se converterem nos profissionais dos procedimentos, dos prazos e das argumentações lógico-formais – numa palavra, nos guardiães da legalidade.” José Eduardo Faria (1993, p. 39) “... quem quiser reformas ou justiça social articuladas com a democracia terá de propô- las, articulá-las e, provavelmente, realizá-las, porque o sistema democrático não as realiza por si só, embora faça algo imprescindível, isto é, garanta o terreno onde elas podem se realizar.” José Álvaro Moisés (1989, p. 61) “Nada resolve o problema, nada é suficiente. A administração, seja pública ou privada, é um processo de aperfeiçoamento constante e de correção permanente de rumos. Eu sempre digo que administrar alguma coisa é consertar hoje o que foi desmanchado ontem. Porque não existe vôo de cruzeiro na administração pública. A burocracia pensa que existe, que você faz uma lei e ela significa um vôo de cruzeiro. Mas não existe.” Luiz Carlos Bresser Pereira (1998, p. 23), em resposta à pergunta sobre o preparo do alto escalão do governo para lidar com os “novos mecanismos” introduzidos pela EC n.º 19/98 e para resolver os problemas atuais da Administração Pública brasileira. Apresentação Perante o diagnóstico de uma Administração Pública constitucionalmente normatizada demais e tida como verdadeiro “retrocesso burocrático”1 pelos governantes que deveriam implementá-la, foram lançados, nesta última década, no Brasil, temas de reforma do Estado francamente controversos. 1 É este um dos principais argumentos do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE, 1995) para estimular e angariar apoio às propostas de emenda constitucional levadas a cabo na discussão sobre o modelo de administração estatal adotado no Brasil, até que, de fato, veio a Emenda Constitucional n.º 19/98, que, segundo Bresser Pereira (1998), “acabou representando a opção pela administração gerencial”. XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 Temas como a dispensa de servidores estáveis pela insuficiência de desempenho e pelo excesso de comprometimento da receita com folha de pagamento; a retirada do Estado da prestação de serviços sociais tidos, pela própria CR/88, como deveres dele; ou ainda a mera ênfase no controle de resultados de entes que gerem verbas públicas, vieram a mitigar, além da alcunha de “cidadã”2 da Constituição de 88, o próprio respeito à ordem constitucional estatuída, na medida em que frustraram um considerável número de direitos e garantias teoricamente intangíveis. Nesse sentido, em se repassando o muito que se disse no país sobre uma “crise de governabilidade” tão paralisante que demandava um Executivo cada vez mais forte e programas de reformulação impostos em bloco, de maneira cada vez mais incisiva (Diniz, 1997), há de se perceber na “reforma” do Estado brasileiro um claro caráter experimentalista3. Tal “experimentação” reformadora se deu testando medidas, por vezes, inconstitucionais para crises ad hoc, sem maiores contrapontos democráticos e, por isso, sem coerência política, já que faltava aqui uma necessária responsabilidade política estendida4. (Stark & Bruszt, 1998) Emergiram, então, programas econômicos, muitas das vezes, intocados sequer pela menor das tentativas de controle de constitucionalidade (Arantes, 1997). E, sem negociar pactos duradouros para grandes e imprevisíveis mudanças, só se fez pensar na espiral inflacionária em curtíssimo prazo, independentemente de garantias e valores constitucionais de referência democrática (Diniz, 1997). Uma vez controlada a problemática da inflação, voltaram-se os Executivos – então, legisladores inquestionáveis da crise5 – para o necessário redimensionamento da dívida pública e daí emergiu, com grande força, na agenda política nacional, a pauta da reforma dos mecanismos de gestão da coisa pública, do papel que o Estado deveria desempenhar e do tamanho que ele deveria ter. Ora, esteve-se e ainda se está lidando aqui com a premência do princípio da eficiência e a retirada massiva do Estado (mínimo?) de núcleos onde é imprescindível salvaguardar alguns dos mais caros princípios ao modelo de Estado democrático fundado na ordem constitucional vigente, como o da indisponibilidade do interesse público pela Administração, o da continuidade do serviço 2 Adjetivo deveras simbólico dado por Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, por ocasião da sua promulgação, em 5.10.1988, à Constituição da República hoje vigente. 3 Eli Diniz (1996, p. 10-11) tece uma crítica, sobre tal aspecto “voluntarista” das medidas reformadoras do governo, que aqui se mostra deveras pertinente: “... o vonlutarismo da elite estatal não afeta apenas a esfera parlamentar [gerando um comportamento irresponsável e populista do Congresso], senão que seus efeitos perversos atingem o próprio Governo, já que, a longo prazo, a credibilidade de seus atos tende a ser abalada. É preciso considerar que o excesso de poder discricionário abre o caminho para práticas de experimentação irrestrita, dada a inexistência de freios institucionais, favorecendo uma política errática, de avanços e recuos, ensaio e erro, mudanças bruscas nas regras do jogo, na tentativa de corrigir erros no percurso ou de reduzir resistências, sem os percalços da negociação.” 4 É importante explicar aqui a crucial dimensão de tal conceito a partir da própria pesquisa empírica realizada pelos citados sociólogos, em análise dos processos de reestruturação político-econômica ocorridos, durante a década de 90, na Alemanha, Hungria e República Tcheca. Ao defenderem a hipótese de que autoridade (capacidade de implementar medidas de governo) e responsabilidade (constrangimentos institucionais) não são incompatíveis, Stark & Bruszt chegam à inóspita, mas crucial conclusão de que “expondo as políticas a maior vigilância, a responsabilidade política estendida reduz as possibilidades de os executivos cometerem enormes erros de cálculo em políticas extremas e sem consideração para com outros atores.” (1998, p. 26) Daí a fundamental perspectiva de que “as deliberações estendidas não tornaram as políticas mais ‘fracas’: elas amenizaram as políticas, tornando-as mais duráveis por serem mais elásticas. A responsabilidade política estendida não comprometeu os políticos:tornou suas visões mais pragmáticas.” (p. 27) 5 Trata-se ainda hoje de uma das maiores rupturas com o Estado Democrático delineado na CR/88 o abuso das medidas provisórias, alçando o Executivo à condição de legislador por excelência. 2 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 público e o da estrita legalidade a que se encontra submetida a Administração Pública. Note-se que a estrita legalidade, por seu turno, encontra-se performada, na seara do direito administrativo, em institutos outros como o de licitação (que é um inafastável controle – burocrático – de processos) na contratação com verbas públicas; o de dispensa de servidores através do devido processo legal – seja por insuficiência de desempenho, seja por excesso da folha de pagamento como a EC n.º 19/98 previu –; o de contratação de pessoal mediante concurso público, entre outros. Todos esses institutos comungam de uma mesma importante diretriz, a de que há de haver uma submissão do Poder Público à estrita legalidade porque não cabe ao gestor da coisa pública dispor subjetiva e arbitrariamente do interesse público (Mello, 1999; 2000). Assim sendo, ao proclamar uma Administração mais autônoma e permeada pela discricionária lógica de mercado, na qual só os resultados bastam6, estaria a se prescindir de controles de um devido processo legal na gestão do interesse público. Em outras palavras, estaria se perdendo de vista mecanismos de controle de um Executivo cada vez mais forte (quiçá mais absoluto) para imprimir uma eficiência que, por si só, não dá conta das garantias constitucionais estatuídas na ordem político-jurídica instaurada em 88 e até os dias atuais (ainda) vigente. Daí é que se lança o risco incomensurável de que, a uma Administração Pública “gerencial”, não se possa contrapor uma estrita legalidade, sob pena de se estar “retrocendendo” ao modelo burocrático de gestão. E eis que, fora dos limites da legalidade, a preciosa autonomia gerencial não haverá de responder pela mais ancilar das garantias do Estado de Direito, porque, no limite, o risco é de que somente haja uma discricionária avaliação pessoal do administrador, a dizer sobre a “eficiência” das suas decisões e sobre um interesse público marcado unicamente pelo princípio de mercado. Para o tratamento de tal feixe de problemas, primeiramente será traçado um conjunto de ponderações gerais sobre o contexto em que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 emergiu tanto como ponto culminante no processo de redemocratização nacional, quanto como diretriz político-jurídica inafastável do desenho institucional de Estado que se quer. Em um segundo momento, cumpre tratar sobre como foi delineado, no Brasil, o diagnóstico da crise do Estado, quais as implicações desta no processo de consolidação democrático- constitucional em curso e como surgiram algumas das mais relevantes propostas de reformulação da atuação do Estado. Aqui, notadamente, há de ser retomada a discussão de como se deu a proposta de reforma introduzida pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) de 1995, no sentido de se questionar a premência de uma reforma para setores dentro do aparelho do Estado e não para todo ele, uma vez que os inúmeros jogos de redesenho institucional (Tsebelis, 1998) propostos não diziam da qualidade de Estado que se queria buscar, nem da conformação de mudanças na relação Estado-sociedade, mas tão somente do tamanho (mínimo?) que o tornaria mais eficiente... Já, em sede de avaliação específica sobre alguns dos principais pilares de mudança da dita “reforma administrativa” contemporânea, o foco da presente análise se voltará para a crítica da pretensa conformação de um “novo paradigma” (?) de gestão pública, qual seja, o da Administração Pública gerencial. Tal crítica cabe na medida em que, sob um tal modelo gerencial, vêm sendo negligenciadas, precisamente, garantias constitucionais que corroboravam a célebre alcunha de “cidadã” dada à CR/88, quando de sua promulgação. Também cabe referida crítica, uma vez que seguem sendo ultrapassadas impunemente salvaguardas primordiais da indisponibilidade do interesse público pela atuação da Administração. A partir dos elementos acima, cumpre concluir com o levantamento de alguns riscos na nova 6 Segundo Bresser Pereira, “o que acontece é que esses administradores públicos, no modelo burocrático, são obrigados a administrar o Estado de acordo com a norma legal estrita, seguindo procedimentos muito rígidos, sem nenhuma liberdade para tomar decisões. O que faz a reforma gerencial é dar autonomia aos administradores públicos e aumentar suas responsabilidades.” (1998, p. 21-22) 3 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 lógica de atuação da Administração Pública, cujos limites não mais se dariam “burocraticamente” até onde a Constituição e as leis assim estipulassem, mas até onde as metas de mercado discricionariamente conduzissem, quiçá até em arbitrário desrespeito à própria Constituição. Em última instância, o que se pretende é o resgate da CR/88 – em alguns dos seus imprescindíveis dispositivos burocratizantes – como uma garantia dos administrados de que se está sob um Estado de Direito, dentro do qual a Administração não pode fugir ao império das leis, por mais que a eficiência deva ser levada em conta. Em igual medida, está a se pretender no presente estudo também o resgate da Constituição como ordem política que deve produzir interdependências não mercantis com o democrático intuito de incentivar uma cidadania inclusiva, daí que qualidade e não só tamanho do Estado é que deve ser reformulado. 1. Introdução Não mais que dois anos foram necessários para que, sob os auspícios da pregação fatalística da crise do Estado a partir de 1990, a então extremamente recente Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 passasse a ser questionada, pelos próprios governantes do país, no mérito da sua (in)capacidade de fornecer instrumentais normativos para se gerenciar “eficientemente” o aparato estatal em prol do interesse público7. Se, em 5.10.1988, a interpretação político-ideológica do “interesse público” acabou resultando numa nova ordem jurídica fundamental, que era entregue à sociedade brasileira, como fruto último do árduo e sinuoso caminho de redemocratização, assim o foi porque o contexto nacional fora amadurecido para aquele momento por quase toda uma década, em amplas mobilizações político-sociais ao longo dos anos 80. Contra a memória do período ditatorial, surgia uma nova Constituição mais generosa em liberdades civis, em direitos dos cidadãos e em garantias sociais, cujo objetivo no médio prazo era consolidar a transição do Estado brasileiro, então ditatorial e intervencionista, rumo a um modelo de Estado Democrático de Direito. Contudo, em 88, para além da conquista formal de uma “Constituição Cidadã”, ficara o desafio do efetivo implemento da maior parte dos ganhos sociais por ela assegurados como direitos fundamentais. Como poderia o Estado brasileiro, no início dos anos 90, ter um horizonte de investimento em todas as áreas demandadas, se economicamente envolto em questões de instabilidade monetária e deficits públicos paralisadores, e administrativamente abandonado seja a interesses clientelistas, seja a trâmites onerosa e excessivamente burocráticos? Em face de um contexto de precário planejamento institucional de governos cada vez mais reféns de suas dívidas políticas e financeiras, restaria a culpa das incapacidades em cumprir a Constituição da República para ela mesma. A Constituição de 88, sob esse âmbito de análise, passou a ser tida como uma verdadeira fonte demais e mais burocracia e também de mais e mais ineficiência, assim como passou a figurar como causa crítica, independentemente da avaliação singularizada de governos passados e presentes, do acirramento de várias frentes de endividamento estatal (funcionalismo público, crescimento explosivo do número de municípios, maior controle por processos e não por resultados etc). Ora, segundo essa lógica e em unissonância com correntes econômicas (diz-se do ismo “neoliberal”) pela redução da intervenção e do tamanho do Estado, em 1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) lançou as bases do projeto governamental brasileiro de reestruturação do aparato estatal, não só enquanto “resposta à crise generalizada do Estado”, mas também, segundo o discurso político vigente, enquanto “forma de defendê-lo como ‘res publica’ ”, 7 Segundo Olavo Brasil Jr. (1998, p. 19), “um aspecto crucial no Plano Diretor é o reconhecimento de que as tentativas de reforma no início dos anos 80 foram inteiramente abortadas pelos constituintes, que produziram uma Constituição que ‘promoveu um surpreendente engessamento do aparelho estatal’. (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 27). É com base nisto que se pode entender o amplo programa de reformas constitucionais promovido pelo governo [Cardoso] desde os seus primeiros meses de atuação.” 4 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 o que determinou, segundo o próprio Plano Diretor, o caráter “imperativo” da reforma nos anos 90. (PDRAE, 1995:19) Mal saído da ditadura militar, o povo brasileiro, em um curto intervalo de tempo (não mais que sete anos), se viu diante da propagação da idéia de que o Estado se encontrava em tal profunda crise, que o único e preciso remédio seria justamente uma gradativa e densa reestruturação daquela Constituição “cidadã”, que, de tão “generosa”, se transformara em entrave ao desenvolvimento econômico do país. É justamente embalada no discurso de que a ordem constitucional brasileira e o aparato estatal precisavam de reformas profundas e urgentes que surgiu a noção de uma “Administração Pública gerencial”. Sob um rótulo de modelo de administração pública como esse, incentivou-se, por exemplo, a consecução de contratos de gestão, na exata medida do trade-off entre maior autonomia e a correspondente assunção de maior responsabilidade por metas e resultados, sem, contudo, garantir apropriadamente a objetividade e legalidade de um tal controle de resultados. Incentivou-se a participação de camadas da sociedade presumida e potencialmente mais organizadas e eficientes que o próprio Estado; além da progressiva cobrança, junto aos servidores, de desempenhos para além de satisfatórios, ainda que pendente uma devida delimitação de instrumentos objetivos de como se avaliaria tal desempenho. Nesse mesmo diapasão, na seara da organização administrativa, privatizou-se onde se acreditava que o Estado não deveria continuar e fez-se entender que o âmbito de atuação do Estado deveria, para ser “eficiente”, restringir-se ao seu “Aparelho”. No plano orçamentário, buscou-se racionalizar o comprometimento das receitas orçamentárias com a folha de pagamentos e, em igual medida, criaram-se mecanismos para que se pudesse responsabilizar, mais rigidamente, os administradores públicos pelo crescimento desordenado das despesas e das renúncias fiscais. Em contrapartida ao reposicionamento orçamentário proposto, tentou-se, na questão tributária, pensar mecanismos de ampliação das receitas e de redefinição das competências tributárias. Por outro lado, na abordagem da relação entre a Administração Pública e o administrado/ usuário de serviço público/ cidadão, mitificou-se a idéia do cidadão-cliente, justamente cliente da eficiente empresa na qual o Estado pretende se transformar. Assim como, no concernente aos servidores e empregados públicos, pregou-se o fim dos “privilégios”, a relativização da estabilidade e um menor comprometimento do sistema previdenciário especial junto ao Tesouro, além de se ter “enxugado” a máquina pública com a demissão de muitos servidores não-estáveis. Ao cabo de um elenco meramente exemplificativo e descritivo, fato é que, já no plano das práticas organizacionais de cunho eminentemente ideológico, tentou-se aplicar noções de qualidade total, de reengenharia e de gestão gerencial e empreendedora à uma Administração Pública teoricamente burocrática demais, que sequer ultrapassara algumas constantes práticas clientelistas... E reformou-se a Constituição da República, não uma, nem duas, nem uma dezena de vezes, mas outras tantas dezenas de vezes, em que o que menos se respeitou foi a alegação de que as reformas não poderiam ferir direitos adquiridos, uma vez que, de tão cidadã, a Constituição passara a ser observada como retrocesso burocrático: eis a perplexidade estrutural da presente proposta de trabalho. 2. A Conquista da Constituição da República de 1988 e a Meta de Construção do Estado Democrático de Direito brasileiro 2.1. Constituição e Defesa do Estado Democrático de Direito Embora surgida de uma necessidade emblemática de refutar o passado ditatorial; bem como tolhida pela dificuldade material de implementar reformas de cunho includente no curto prazo; além de francamente conciliadora de posições, por vezes, incompatíveis, a Constituição de 88 tentou instaurar uma institucionalidade democrática que carrega consigo as metas de democracia liberal e 5 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 de justiça social. E, para o cumprimento de tais metas, o Estado concorreria decisiva, ainda que não exclusivamente, haja vista a qualidade que a Constituição lhe imprimiu: Democrático de Direito. Por maiores que tenham sido e ainda sejam as críticas8, é ela (a Carta de 88) fruto de uma histórica expectativa de que seria possível, democraticamente, dar novos rumos para o país; daí a alcunha (utopia?) de “cidadã”; daí a inversão do seu curso em prol do homem e dos direitos deste; daí a necessidade de retomar o modelo dirigente, como se fosse possível conduzir normativamente uma reforma socializante das instituições brasileiras... Se se buscar uma fundamentação político-constitucionalista para tal papel fundante e reformador da Constituição da República de 88, será possível resgatar que constitucionalismo, no dizer de Andrew Arato, implica “elevar o patamar de aprendizado possível; ou seja, que não se tente aprender imediatamente frente às frustrações empíricas.“ (1997, p. 39) A Constituição, nesse sentido, seria um verdadeiro instrumento de “segurança” dos cidadãos sobre a regularidade democrática e a transformação social. (Faria, 1993, p. 40) Para além da garantia das “regras do jogo” (Bobbio, 1986), a Constituição brasileira trouxe consigo uma ideologia inafastável, que, se hoje a fragiliza em tempos de reforma minimalista do Estado, à época era um dos seus mais caros fundamentos de validade. Era a ideologia/tentativa de elevar o aprendizado da democracia liberal brasileira pré-64 para uma democracia substantiva e mais igualitária. Em se dando destaque a essa conotação da CR/88 de ordem reformadora para uma maior justiça social e regularidade democrática, não se pode perder de vista que, segundo Habermas (apud in Vieira, 1997, p. 61,78), as constituições, para serem válidas, devem se pautar por um fundamento que as legitime como ordem justa, devendo ser “intrinsecamente boas”, ou, em outras palavras, conter uma verdadeira “reserva de justiça”. Sob o referido marco teórico, trata-se, portanto, de elevar a exigência de que a constituição cumpra meramente determinada forma para uma outra exigênciamais densa, qual seja, a de que seu fundamento de validade ( = legitimidade) se dê por meio da dignidade de seu reconhecimento como ordem justa e por meio da convicção, por parte da coletividade, de sua “bondade intrínseca”. 8 Segundo Uadi Lammêgo Bulos (1999, p. 122-123): “Num esforço extraordinário, a grande meta era implantar um Estado Democrático, após vinte e cinco anos de regime militar e quase doze de abertura lenta e gradual. Enfeixaram num texto extenso, minudente, detalhista – apelidado de ‘constituição cidadã’ – uma considerável dose de utopismo, bem intencionado, porém delirante. Em contrapartida, teve a virtude de espelhar a reconquista das liberdades públicas, superando o vezo autoritário que se impusera ao País. (...) Nesse íterim, predominava: o corporativismo, dos grupos que manipulavam recursos; o ideal socialista, daqueles que queriam fazer justiça social sem liberdade econômica; o estatismo, dos que acreditavam que a sociedade não poderia prescindir de tutela; do paternalismo, daqueles que queriam que o governo tudo lhes prodigalizasse, sem a necessidade do trabalho e do esforço próprio; do assistencialismo, dos que supunham que a palavra escrita se converte, de um súbito, em benefícios imediatos; do fiscalismo, dos despreocupados com a sobrecarga tributária. Conseqüência disso: 1º) implantação de um texto constitucional xenófobo, arremedo mal formulado de ‘constituição dirigente’; 2º) hegemonia dos grupos de pressão de caráter proteiforme, dos lobbies e das classes corporativas; 3º) superposição de minúcias írritas, totalmente impróprias para um documento equilibrado e duradouro; 4º) as matérias foram prescritas de maneira reiterada, prestigiando-se uma sistematização pleonástica, desuniforme, confusa, com nítido predomínio de normas de eficácia contida e limitada, por princípio institutivo e por princípio programático. (...) Essa desconfiança com o legislador ordinário fez com que matérias de todo jaez fossem constitucionalizadas. Resultado: as constituições tornaram-se projetos inacabados, documentos pretenciosamente exaustivos, porém impossíveis de serem vividos na sua plenitude. E a única saída encontrada é apelar para o recurso instituído das reformas constitucionais, a fim de adequar o instrumento basilar superado aos influxos do fato social cambiante.” 6 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 (Canotilho, apud in Vieira, 1997, p. 61) Assim, a crítica de Habermas e Rawls, da qual emerge a necessidade de se pensar a Constituição pelas suas qualidades intrínsecas, é, na verdade, uma crítica ao processo de redução da normatividade e legitimidade do direito à sua própria força, por ter se revelado frustrada a proposição weberiana de que “o direito moderno seria o fruto de uma racionalização autônoma, moralmente neutra, e que constituiria a base de sua própria legitimidade”. (Vieira, 1997, p. 61, 78) Retomando já a própria Constituição de 88, há de parecer controverso o fato de que grande parte dos direitos fundamentais e dos valores de justiça social que a legitimam não sejam contrastáveis com a realidade, na medida em que somente representariam um programa a ser cumprido progressivamente9. Note-se que o embate entre o caráter programático da Constituição de 88 rumo a um Estado Democrático de Direito, na forma de um extenso rol de direitos e garantias cidadãs, e a dificuldade material de cumprir a pauta inclusiva ali estipulada é a principal matéria de sérios questionamentos e contrapontos sobre sua viabilidade: “grande parte da controvérsia que o texto constitucional suscitou proveio de ter ele criado, durante a sua redação, esperanças exageradas, que não poderiam ser satisfeitas pelo fiat legislativo. Não obstante, o novo texto é agora não só um documento altamente simbólico, mas também a alavanca para a implementação de uma ampla redistribuição dos recursos de poder no Brasil. Obviamente, não estamos afirmando que a estrutura do poder fica alterada imediatamente por causa disto, mas sim que mudanças nos critérios de legitimidade subjacentes a uma série de ações políticas, administrativas, judiciais e outras abrem caminho para a futura transformação das relações de poder. Vista sob este ângulo, a nova Constituição pode de fato ser considerada democrática.” (Souza & Lamounier, 1989, p. 33, grifos acrescidos ao original) Se o dito “constitucionalismo dirigente” ou o “reformismo social”, como Boaventura de Sousa Santos mesmo alerta (1998), passaram a ser tidos, a partir da década de 90, em franca derrocada como planilha de atuação de um Estado endividado e sem forças para seguir “organizando” (expressão cara a Przeworski) o capitalismo; como, então, tiveram sobrevida na Constituição de 88? Foi sonhando com o Estado de Bem-Estar, já em crise na Europa Ocidental, mas inexistente no modelo desenvolvimentista brasileiro, que a Assembléia Constituinte elevou à categoria de garantia fundamental um rol generoso de direitos sociais e trabalhistas, de participação inclusiva, de garantias públicas, entre os já tradicionais direitos de liberdade política e autonomia privada. Atrasado ou não, tal elenco de valores fundantes de justiça social na Constituição de 88 a estigmatiza como um verdadeiro desafio aos governos presentes e futuros no sentido de conseguir implementá-la. Por uma clara opção política oriunda das correlações de força e pactos possíveis ocorridos durante a Assembléia Constituinte – que, por si só, encerrara um verdadeiro jogo de múltiplas arenas (Tsebelis, 1998) para redefinir o desenho institucional da ordem política suprema –, é a Constituição de 1988, tomada por muitos como na contramão da história (Prado, 1994), uma “(...) das representantes mais típicas do constitucionalismo ‘dirigista’ ou de caráter social, que se iniciou com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Diferentemente das constituições liberais, que buscavam limitar o Estado assegurando o maior espaço de liberdade para o mercado, as constituições sociais organizam um Estado que visa promover o bem estar da sociedade, sendo, portanto, necessariamente mais amplas do que as constituições liberais clássicas.” (Vieira, 1997, p. 59) 9 Sobre a “ineficácia social” da Constituição de 88, Uadi L. Bulos (1999, p. 127) segue criticando: “Os dez anos de Texto Constitucional, do ponto de vista da efetividade, esbarrou-se [sic] na inação legislativa. Esse foi um dos principais fatores responsáveis pela ineficácia social de grande parte da manifestação constituinte originária de 1988, pois os constituintes eleitos em 1986 criaram, no papel, direitos constitucionais de primeiro mundo, porém não os definiu, tornando-os inoperantes.” 7 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 Muito embora a própria Constituição possa ser vista como objeto de um processo ainda não concluído (Vianna, 1999), instável e contingente10 (Barroso, 1998), dentre seus maiores méritos encontra-se a pretensão de conformação cidadã na exata linha de confronto com o momento de crise do Welfare State11. Daí que a maior fragilidade da nova Constituição talvez tenha sido depositar um vasto número de dispositivos – a serem realizados e/ou cumpridos como se em um programa político estivessem – nas mãos de uma sociedade detentora de uma cultura política ainda incipiente (daí também a falta, no contexto político nacional, da noção de responsabilidade política estendida de Stark & Bruszt, e de capital social de Putnam). Justamente sobre o risco de serem pouco factíveis tais dispositivos, sem um mínimo de comprometimento e participação social, é que Souza & Lamounier(1989, p. 35) alertam para o fato de que: “a mobilização social, num contexto de desigualdades gritantes, gera necessariamente um estado de tensão entre a democracia entendida apenas como arranjo político e a democracia enquanto programa substantivo, de medidas sociais ou econômicas concretas. Por isso, mesmo o sistema democrático definido na nova Constituição pressupõe (ou requer) avanços substanciais na politização, ou seja, na capacidade de reconhecer e lidar com a complexidade, de aceitar a existência e a ação de grupos cujos objetivos frequentemente colidem com os próprios e de conviver com problemas para os quais não existem soluções imediatas. Na ausência da politização, assim entendida, os novos arranjos e avanços constitucionais podem revelar-se bastante ilusórios.” (grifo acrescido ao original) Bem ou mal, correndo o risco de ser desacreditada e tida como ilusória (como o foi por vários autores e governantes), a Constituição de 88 incorporou, em seu núcleo de cláusulas pétreas – essa verdadeira reserva de justiça –, direitos individuais e garantias públicas imutáveis (art. 60, § 4º) que, embora muitas das quais estivessem por se realizar12, foram deliberadas como meta devida no pacto político que tornou possível o sistema de solidariedade (questão tomada a Pizzorno), no qual ela 10 Sobre o fenômeno da mutação constitucional constante, Barroso (1998, p. 24) chama a atenção para o fato de que: “A Carta de 1988 (...) não é a Constituição da nossa maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias. Transformada em um espaço de luta política, a constituinte de 1988 produziu um documento que sofre em demasia o impacto de certas modificações conjunturais. Ao lado disso, há no Brasil uma crônica compulsão dos governantes de modificar a Constituição para fazê-la à imagem e semelhança de seus governos. Uma espécie de narcisismo constitucional.” 11 Segundo Habermas (1987b, p. 97, grifo nosso), “o projeto do welfare state se tornou problemátco na consciência pública também na medida em que os meios burocráticos, mediante os quais o Estado intervencionista pretendia realizar a “domesticação social do capitalismo”, perderam sua ingenuidade. Já não é somente a monetarização da força de trabalho, mas também a burocratização do mundo da vida que é sentida como um perigo por amplos setores da população. O poder político-administrativo perdeu a aparência de neutralidade para a experiência cotidiana dos clientes das burocracias do welfare state. Estas novas atitudes são exploradas pleos neoconservadores, com o fim de vender a bem conhecida política de deslocamento dos problemas do Estado para o mercado, sob o manto das palavras de ordem “liberdade e democracia” – uma política que, sabe Deus, nada a tem a ver com democratização, que, ao contrário, promove uma crescente desvinculação da atividade do Estado da pressão legitimadora da esfera pública, e que entende por liberdade não a autonomia do mundo da vida, mas a liberdade de ação dos investidores privados.” 12 Severa é a crítica de Bulos (1999, p. 134) nesse ínterim, senão veja-se o teor de sua indagação: “Haverá razões que alimentem essa esperança [do resgate de nossa sociedade]? Por um lado, não. Em um País de significativa inflação legislativa e de reformas inoportunas e despropositadas, como o Brasil, onde tudo é nivelado por baixo e o respeito ao homem é quase inexistente, os nossos legisladores ainda estão no período da programaticidade dos comandos constitucionais positivados. Fazem promessas, propõem programas de ação futura, erigem normas de eficácia contida ou limitada, sem fornecerem aos Poderes Públicos as condições para as cumprirem plenamente.” 8 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 própria (Magna Carta) se funda. Em não se pondendo contar, no médio prazo, com bons governantes13 (em sua acepção cívico-republicana) e com uma sociedade politizada, para dar vazão ao projeto constitucional de construção de um Estado Democrático, tentou-se limitar os futuros legisladores com a preservação de um núcleo rígido, conformador da própria essência da nova ordem então estatuída. Assim o fez, de tal modo que: “Os princípios a serem protegidos do poder constituinte reformador, por intermédio de cláusulas super-constitucionais, devem constituir a reserva básica de justiça constitucional de um sistema: um núcleo básico que organize os procedimentos democráticos, como mecanismo de realização da igualdade política, e do qual possam ser derivadas as liberdades, garantias legais, inclusive institucionais, e direitos às condições materiais básicas. Mais do que isso, as cláusulas super-constitucionais seriam uma pretensiosa usurpação da autonomia de cada geração por aqueles que elaboraram o documento constitucional. Menos do que isso, essas cláusulas seriam insuficientes. Proteger as liberdades civis e políticas sem assegurar condições materiais é o mesmo que não defendê-las.” (Vieira, 1997, p. 83) Daí é que sobreleva, no presente estudo, a perspectiva de que representa, sim, uma verdadeira ruptura constitucional a ocorrência de emenda constitucional, ainda que regular, contra cláusulas pétreas14. (Rawls apud in Vieira, 1997, p. 69) Já que “ao retirar do âmbito de deliberação majoritária aqueles direitos, princípios e instituições que constituem a reserva de justiça da Constituição, as cláusulas super-rígidas se transformam em legítimo instrumento de preservação da democracia, paradoxalmente, ao limitá-la.” (Vieira, 1997, p. 61) 2.2. Transição Política e Consolidação Democrática Nenhuma contextualização político-social melhor definiria as circunstâncias donde emergiu a Constituição da República de 88 do que a expressiva noção de conquista a partir de “pactos políticos modelados por forças históricas poderosas”. (Souza & Lamounier, 1989, p. 18) Mesmo perante um lento e tumultuado processo de “abertura”, a retomada da democracia já vinha se mostrando inafastável, fruto de um “consenso básico de que chegara a hora de mudanças profundas”, o que, por si só, restou “implícito na própria convocação de uma assembléia constituinte”. (Souza & Lamounier, 1989, p. 21) Fugindo à facilidade de uma mera avaliação a posteriori, faz-se mister retomar o andamento de tal processo desde o seu advento. Assim, tem-se que a transição política – conformada pela transformação do regime autoritário, vigente no Brasil desde o golpe militar de 1964, em direção a uma ordem político-democrática – foi iniciada na presidência do General Geisel através de um processo de distensão lenta, gradual e de alcance limitado. (Diniz, [s.d.]) Segundo Eli Diniz, o caso brasileiro representou uma das mais longas transições ocorridas na História, em que o embate entre as forças de conservação e as de renovação assumiram um significado particular, sendo ora atenuado, ora exacerbado pelo movimento de liberalização controlado pela elite dirigente, a qual pretendia conter o ritmo das mudanças com a finalidade de preservação do regime e do status quo. São bastante diferenciadas as posições assumidas pelos mais diversos autores a respeito da “abertura” política no Brasil, sendo, em alguns casos, até mesmo contrárias. Em linhas gerais, pode- 13 É o governo das leis e não de homens falíveis a principal garantia estabelecida pelo surgimento do Estado de Direito, até hoje preservada por ser demasiado perigoso depositar nas mãos e na boa-fé de agentes públicos cívicos o destino de toda uma sociedade. As leis, de fato, aqui significam garantia e exercício de soberania (rousseuaniana) dos cidadãos. 14 Como há de ser visto que vem ocorrendo na implementação do dito “paradigma” da Administração Pública “gerencial”,através da precarização de direitos e garantias individuais, principalmente dos servidores públicos, bem como na “flexibilização” de salvaguardas de interesse público, como a dispensa indevida de licitação na celebração de contratos de gestão com as chamadas organizações sociais. 9 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 se agrupar as abordagens da transição política do país em três categorias básicas, de acordo com o tipo de explicação que propõem. A primeira interpretação enfatiza as pressões que emergem da sociedade - em decorrência principalmente de contradições econômicas - como o fator propulsor da mudança. No caso brasileiro, segundo Eli Diniz [s.d.], os fatores econômicos tiveram importância em diferentes momentos do processo de abertura, mas não foram determinantes, visto que a política de distensão teve início antes que os efeitos da crise econômica se tornassem completamente visíveis. Uma segunda corrente explicativa dá ênfase a autonomia do núcleo dirigente governamental e sua capacidade de iniciar as mudanças – antecipando-se às pressões da sociedade – como fonte dos impulsos transformadores. Neste sentido, conflitos e alianças no interior do próprio regime seriam os fatores determinantes do processo de liberalização. A abertura política brasileira refletiria, portanto, um ato de escolha das elites dirigentes do regime – fundamentalmente os militares – que formulariam a trajetória a ser seguida pelo processo. Há ainda uma terceira modalidade de interpretação – considerada mais adequada pela autora – em que a explicação do processo de abertura reside na integração (conciliadora) de duas dinâmicas básicas: uma de negociação e pacto conduzidas pelas elites e uma de pressões e demandas advindas da sociedade. O processo de abertura brasileiro deve ser entendido, segundo Eli Diniz, como um projeto de mudança política concebido pelos mentores do regime autoritário como uma maneira de recompor suas bases de apoio, desgastadas em sua legitimidade social pelas restrições políticas impostas ao país. Além disso, a estratégia distensionista não obedeceu a um programa previamente formulado, mas foi sendo gradualmente elaborada e redefinida em função das pressões e resistências sociais enfrentadas pelos governos responsáveis pela sua implementação. Dessa forma, o processo de abertura extrapolou as intenções do projeto de abertura da elite governamental. Disso resultou a não-linearidade de sua evolução, marcada por avanços, recuos e movimentos contraditórios nem sempre previsíveis. Apesar de o governo deter o controle das regras do jogo político, a distensão foi, em grande parte, uma resposta à oposição sistemática e contínua enfrentada pelo regime. O vai e vem estratégico do governo, que hora caminhava para a democratização, hora utilizava de práticas repressivas para não perder o controle do processo foi progressivamente minando a credibilidade de seu projeto de liberalização. Finalmente, chegou-se a um ponto em que a única solução para que este permanecesse no poder seria ou uma reedição da intervenção militar (que seria contra seus projetos de transformismo) ou então uma negociação com as forças oposicionistas que gerasse apoio popular. Com a eleição de um candidato oposicionista para presidente, tal dilema se encerrou, sendo necessário naquele momento somente uma consolidação (institucionalização) do processo democrático. O coroamento do referido processo veio com a CR/88, na medida em que: “Catorze anos depois de iniciada a chamada ‘abertura política’, ou seja, cerca de 2/3 do tempo total de duração do regime autoritário, o Brasil promulga uma nova Constituição. Para além do significado estritamente jurídico-formal do que deverá ser a 8ª Constituição do país (a 7ª Republicana), a nova Carta representa, mais uma vez na história, a tentativa de se criarem condições políticas e institucionais para que a sociedade possa ter ao alcande das mãos mecanismos efetivos para permitir que os distintos grupos que a compõem possam influir, através da competição eleitoral e das instituições da representação (partidos e parlamentos) na definição de seus rumos.” (Moisés, 1989, p. 65) É evidente que a dinâmica da redemocratização não se esgotaria com o advento da Carta Constitucional de 88, nem se formalizaria em sua totalidade com as eleições de 89. Tanto é assim que não raros foram os alertas de que “a estratégia de construção da democracia não é uma decorrência natural do fim do autoritarismo.” (Moisés, 1989, p. 47) Ou mais 10 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 ainda de que era necessário, além de garantir liberdades políticas, instrumentalizar minimamente garantias de igualdade social: “... longe de ser linear ou racional, tal processo [de transição democrática] não se esgota com a dissolução de um regime autoritário, mediante uma simples liberação do sistema político. A elaboração teórica dos processos de ‘abertura’, especificamente aquela produzida nos anos 80, afirma que eles só se consolidam efetivamente quando o regime recém-liberalizado, além de restaurar o pleno exercício do pluralismo, restituir os direitos políticos e as garantias públicas, restabelecer institutos jurídicos abolidos ou pervertidos durante o regime autoritário e definir regras democráticas para o jogo representativo, também institucionaliza os direitos sociais e econômicos e promove reformas e mudanças estruturais.” (Faria, 1993, p. 36) Uma vez que o advento da nova Carta alimentara o anseio de que a transição política pudesse instaurar um novo quadro de instituições formal e materialmente mais democráticas, o processo de negociação durante a Assembléia Constituinte foi inflado a um patamar de agenda de desejos programáticos, o que, mais tarde, deu causa à imensa maioria das críticas sobre sua inefetividade15. Veja-se que: “Formulada num ambiente democrático, sob a influência de uma participação social jamais vista na história legislativa e constitucional brasileira, a Constituição de 1988 foi também impregnada pelo corporativismo da política brasileira. Constituiu-se a partir de um compromisso entre os diversos setores da sociedade e do Estado que detinham poder naquele momento. Porém, ao invés de um compromisso em torno de regras fundamentais sobre os parâmetros sob os quais se deveria desenvolver o sistema político, deu-se um comopromisso maximizador, no qual cada setor organizado da sociedade, através de um largo processo de barganha, alcançou a constitucionalização de interesses e demandas substantivas. Assim, ao lado de uma atualizadíssima carta de direitos e de uma ambígua distribuição vertical e horizontal dos poderes, o legislador de 1988 constitucionalizou diversos temas que pertenciam tradicionalmente aos corpos constitucionais, mesmo que se tenha em mente constituições de Estados sociais.” (Vieira, 1997, p. 59) Aludida crítica sobre a natureza prolixa da Constituição e a dificuldade de consensos durante a Assembléia Constituinte encerra, na verdade, uma dificuldade histórica da transição política no Brasil, que se deu por continuidade, uma vez que a Nova República foi estruturada em “pactos de não-competição entre as elites políticas”. (Moisés, 1989, p. 63) Assim sendo, é de se considerar que, “no período de elaboração da nova Carta, a exigência de quorum qualificado permitiu a minorias na Constituinte obstacularizarem certas iniciativas constitucionais ou condicionarem sua aprovação a uma barganha: para que votassem favoravelmente a uma dada medida, diversas minorias parlamentares exigiam como contrapartida o apoio dos interessados na ocasião em que fosse votado um outro dispositivo, daquela feita de seu interesse. Em conjuntoà inexistência de um consenso inicial mínimo – que estivesse expresso num anteprojeto constitucional, capaz de propiciar um cerne inicial à nova Carta – este outro elemento explica o caráter prolixo da Constituição brasileira. Ela acabou por se tornar o desaguadouro de uma série de reivindicações contra as quais não houvesse uma oposição minimamente consistente. Ao mesmo tempo, medidas mais arrojadas [como a questão da reforma agrária] eram postas de lado por contarem com a resistência de minorias significativas.” (Couto, 1997, p. 43-44) Ora, como não poderia deixar de ser, tamanha discussão em torno do excesso de temas e em torno das possibilidades de implementação dos dispositivos (programas) constitucionais se deu em face de um contexto já acirrado pela complexificação da questão social e do endividamento estatal deixados pelo regime autoritário. Este, por seu turno, “não foi um mero parêntesis que, por exemplo, justificasse repetir formas 15 É esta a pauta de discussões do próximo capítulo, em que será reavaliada a própria consolidação democrática e o papel da Constituição de 88 na busca de soluções institucionais para a crise político- econômica do Estado no início dos anos 90. 11 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 de organização política e institucional próprias dos períodos históricos anteriores.” (Moisés, 1989, p. 49) Justamente porque “os regimes autoritários agravaram, até quase o paroxismo, velhos problemas estruturais dos países latino-americanos (questão social, questão nacional)” (Moisés, 1989, p. 49), é que houve tanto espaço para a ilusão/encantamento de que o retorno à mera democracia formal pudesse suplantar tais problemas. Fato é que as estratégias brasileiras de crescimento econômico privilegiaram, durante a ditadura, os recursos da autoridade (estatal), acima da competição do princípio do mercado. Tal opção conferiu ao Estado o duplo encargo de tutela tanto o mercado econômico como do mercado político-social. (Reis & Cheibub, [s.d.]) Descrita na literatura como “Corporativismo do Estado” ou “Modernização autoritária”, essa trajetória histórica evidenciava nítido viés conservador que restringia o significado da cidadania (acuando, até mesmo, o princípio da solidariedade)16 e ajudava a perpetuar os mais variados tipos de privilégios sociais. Entretanto, tal padrão histórico de incorporação política associado à desigualdade social pôde se sustentar ao longo da história brasileira, devido sobretudo às altas taxas de crescimento econômico experimentadas pelo país após a 2ª Guerra Mundial e, em especial, durante o regime militar, o que permitiu ainda a manutenção de um certo grau de esperança e otimismo quanto ao futuro do país. (Reis & Cheibub, [s.d.]) Infelizmente o período da redemocratização falhou em sua premissa básica de resgatar a “dívida social”, adquirida pelo Estado durante a ditadura militar. O período pós-ditadura se revelou extremamente difícil, com elevadas taxas de inflação e precário crescimento econômico, agravando, por conseguinte, tanto a crise de desigualdade social quanto a crise (fragilidade) da consolidação democrática, já que os índices de apatia e alienação política têm crescido assustadoramente, concomitantemente com o aumento da má distribuição de renda. (Reis & Cheibub, [s.d.]) Propõe-se hoje, como alternativa à crise do Estado de modo geral, a sobrevalorização do princípio do mercado, advogando competição, mercados livres e eficiência como as lógicas fundamentais de todas as atividades do país, não só das produtivas como também das de caráter público-estatais. Sabe-se porém, que o princípio do mercado pouco atende às necessidades de igualdade social e melhoria da qualidade de vida do povo. (Boaventura de Sousa Santos, 1998) É importante trazer para um primeiro plano a dimensão moral da sociedade, tendo em vista o atual contexto sócio-político do Brasil. Em outras palavras: faz-se necessário que o princípio da solidariedade se destaque em relação aos demais (o da autoridade e o do mercado) e que a preocupação primordial de todos os setores e classes do Brasil seja a de consolidar um (novo) padrão de cidadania e solidariedade, explorando de maneira adequada e original os recursos do mercado e da autoridade, para assim serem superados os desafios do presente. (Reis & Cheibub, [s.d.]) O Estado brasileiro hoje, dito em reforma, posicionado cada vez mais perante uma sociedade apática (apesar das “ondas” sucessivas de indignação instantânea em relação ao universo vasto de escândalos políticos) e perante um mercado cada vez mais selvagem atrás de eficiência estrita, “está entre a cruz e a espada” literalmente, já que seus dois maiores desafios são justamente reduzir sua esfera de atuação em termos de gastos e de influência direta, com o que estaria atendendo à lógica 16 Nesse sentido, é célebre a crítica habermasiana ao Estado do Bem-Estar Social (Habermas, 1987), na medida em que a emergência de um verdadeiro Estado Administrativo ofuscara a própria sociedade, tornando-a meramente dependente das prestações estatais, sem lhe conferir uma livre e real possibilidade de participação democrática. Os indivíduos, sindicalizados e conformados numa estrita fronteira de direitos de seguridade social, tornaram- se passivos perante o Estado, senão verdadeiros “cidadãos-clientes” daquele. Note-se que essa é uma relação de clientela diversa da proposta pelo modelo de Administração Pública gerencial, mas que merece igual crítica, na medida em que reduz a relação cidadão-Estado a um feixe mercantilizável de serviços ou valores. (Vianna, 1999) 12 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 do mercado e também conduzir efetivamente a realidade social brasileira a um contexto em que falar de consolidação democrática não seja um mero exercício de modificar os problemas pelo “condão” nem tão mágico assim das leis. O nexo entre crescimento econômico, democracia política e igualdade social vai ao encontro de um processo de consolidação democrática apenas iniciado na sociedade brasileira dos últimos vinte anos. Trata-se, a saber, de uma abertura que requer participação do conjunto da sociedade, seja em se tratando da prevalência necessária do princípio da solidariedade, seja porque a distensão só tomou os contornos que tomou na medida das pressões sociais. Para um Estado que atualmente se volta para um movimento de contração da sua atuação, o maior desafio e alternativa de solução primordial ao problema de conciliar mercado e solidariedade é proporcionar, na medida de um efetivo exercício da cidadania, uma base democrática consolidada. 3. O Diagnóstico da Crise do Estado perante a Constituição da República de 88 Contemporaneamente, não há como se falar em reforma do Estado e suas implicações, sem necessariamente se tratar da crise do Estado, mais propriamente da crise de um determinado tipo de Estado, qual seja, o que, em coerência com a perspectiva de que os mercados possuem falhas e geram grandes distorções sociais, seguia intervindo ali para promover não só uma maior eficiência mercadológica, mas também para processar intermediações não-mercantis includentes. (Boaventura de Sousa Santos, 1998; Maria da Conceição Tavares, 199-) Esse tipo de Estado – dito, em tantas acepções, social, fordista, keynesiano, reformista, do Bem-Estar, desenvolvimentista etc. – emergira sustentado pelo sentido político imprimido pelas revoluções oriundas dos movimentos operários internacionais no início do século XX e pela grande ruptura que houve no cerne do liberalismo econômico com a Crise de 29. Nesse sentido, pertinenteé a análise feita por Boaventura de Sousa Santos (1998) de que o reformismo da sociedade e do mercado (como paradigma moderno de transformação social) promovido pelo Estado tinha claras tendências socializantes, ao mesmo tempo em que promovia a legitimação do capitalismo, “organizando-o” de modo a minimizar a lógica deste de exclusão e desagregação social. Contudo, no auge dos anos 70 e 80 do século passado e já diante de um processo de globalização, desde então, visualizado como inevitável, os Estados nacionais, com um aparelho inflado e à merce dos fluxos intermitentes do capital internacional, se viram sob a premência de mudança para uma melhor gestão dos recursos de que dispunham. (Diniz, 1997) Assim sendo, a dita “crise de governabilidade” (Diniz, 1997) a demandar reformas profundas no Estado por todo o mundo emergiu com grande alarde, tão logo se constatou univocamente o enfraquecimento do antigo padrão fordista de industrialização e das políticas econômicas estatais, bem como quando se evidenciou a ruptura com o sustentáculo político-ideológico (Boaventura de Sousa Santos, 1998) que mantinha as bases do intervencionismo estatal nos moldes em que ele vinha sendo instrumentalizado. Sem como seguir processando as bases da acumulação capitalista com a lógica de inclusão promovida pelo Estado-Providência nos países centrais e pelo Estado Desenvolvimentista nos periféricos, caíra (?) por terra a crença de que o capitalismo organizado poderia, de fato, ser um caminho certo e progressivo em direção à democracia e à justiça social. O Estado, então, passara a ser questionado no mérito da sua capacidade de alocação (in)eficiente de recursos – recursos esses tomados à sociedade e ao mercado –, ainda mais se se considerar que, dado o crescimento da dívida pública e da extrema dificuldade de geri-la, ele sequer (?) continuaria sendo capaz de conformar maior inclusão cidadã, tão dispendiosa e inchada que se tornara a sua máquina. Assim, segundo Eli Diniz (1997), tal “crise de governabilidade”17 fora alçada à condição de 17 Segundo a autora citada, “apontando a ingovernabilidade do país como um dos principais desafios da atualidade brasileira, o diagnóstico dominante enfatiza os efeitos perversos advindos da democratização 13 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 uma espécie de “bomba-relógio” armada contra a própria democracia reformista. Em outras palavras, estar-se-ia diante de uma explosão de demandas (questão tomada a Samuel Huntington) incentivada por um Estado mais aberto à pluralidade de reivindicações, o que, por si só, colocaria em xeque a continuidade de tal sistema, na medida em que o Estado, diante de restrições orçamentárias e institucionais, não mais conseguiria processar e responder a todas elas. Que remédio, então, dar a esse Estado enfermo – e cambiante de pernas sociais não mais factíveis – que senão o do poderosíssimo princípio de eficiência? (Reis & Cheibub, [s.d.]; Boaventura Santos, 1998) E o receituário neoliberal, note-se, era de uma eficiência mercadológica porque os mecanismos do mercado seriam os únicos capazes de imprimir naturalmente e a menores custos um efetivo controle (de eficiência), sob a lógica da competição e do equilíbrio natural entre as forças da oferta e da demanda18. Nesse ínterim e com o retorno a todo vapor das teorias de que o mercado sempre (?)19 aloca mais eficientemente que o Estado, notadamente insculpidas nos marcos do Consenso de Washington (1981) e da derrocada do signo socialista (último contraponto ao capitalismo?), sobrelevaram programas que simplesmente tratavam o Estado como se irreformável fosse, por ser assim uma estrutura tão ineficiente e contrapoducente. Foi, portanto, o auge das pregações pelo Estado Mínimo e pela retirada da intervenção do Estado em todas as áreas quantas e onde fosse possível, por si só, a iniciativa privada. Eis o que Bursztyn chamara de “retorno ao fetichismo de mercado”. (1998) Paradoxal, porém, como muito pertinentemente Boaventura de Sousa Santos (1998) alerta, é que tal Estado Mínimo, fraco nas intervenções para consecução de políticas públicas includentes, haveria de ser erigirido cada vez mais forte – com Executivos dotados de “hiperatividade decisória” (Diniz, 1996) – para garantir a liberdade do mercado. Aqui se mostra um ponto de especial relevo no tocante à Reforma do Estado que se quis implementar no Brasil, que, de fato, é o objeto do presente estudo. Nesse sentido, note-se que tanto era necessário robustez na atuação do Estado que o que mais se fez, no Brasil, foi argumentar que, crescente da ordem social e política. (...) Nessa linha de raciocínio, a liberação das demandas reprimidas pelos vinte anos de regime autoritário e a exacerbação das expectativas por políticas sociais mais efetivas reforçariam as restrições do Governo acossado pela multiplicidade de pressões contraditórias, gerando paralisia decisória e perda de credibilidade”. (Diniz, 1996, p. 08-09) 18 Questionando essa assunção do princípio da eficiência mercadológica como único factível nos processos de Reforma do Estado, Marilena Chauí (1999) fala da intensa redução de significado que se dá com a transformação das universidades de instituições sociais em organizações: “uma organização difere de uma instituição por definir-se por uma outra prática social, qual seja, a de sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso, que para a instituição social universitária é crucial, é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde existe”. (Grifo sublinhado nosso) 19 Eis um contraponto fundamental: “O choque liberal por ele [pelo neoliberalismo] proclamado parte de um suposto engenhoso, mas falso: o de que, esgotados os modelos de enfretamento da crise pela via de intervenção estatal, teria chegado a hora do retorno à plena vigência do mercado, regulador ideal da economia capitalista. O que tal discurso desconsidera é que a projeção liberal clássica ficou sem sustentação histórica: em tempos de cartéis e monopólios, de drástica redução do número mesmo de agentes econômicos, o mercado tende a se concentrar cada vez mais e vê desaparecer no horizonte a velha competição, mecanismo pensado como perfeito que, historicamente, lhe havia até mesmo garantido a existência. O mercado plenamente desenvolvido conhece um novo tipo de competição, tem uma baixíssima capacidade de auto-regulação e só pode existir às custas do planejamento e da intervenção estatal.” (Nogueira, 1989/90, p.14-15) 14 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 para enfrentar tamanha crise de governabilidade, era necessário um Executivo forte, sem constrangimentos, capaz de responder rapidamente às imprevisíveis (e artimanhosas) pressões do mercado. (Diniz, 1997; Stark & Bruszt, 1998) Interessante é considerar a progressiva legitimação de um Executivo cada vez mais forte (absoluto?), inclusive legislando (!) costumeiramente mediante medidas provisórias,na proporção em que, simultaneamente, era colocada em xeque a própria necessidade das garantias estatuídas pela ordem constitucional vigente; essas, por seu turno, tidas como “engessadoras do aparelho estatal” (PDRAE, 1995, p. 27). Em tal contexto de crise, ao deslegitimar o texto constitucional de 88, o Executivo ganhava peso e capacidade para reformar20, sem um mínimo de coerência política e de definição de aonde se pretendia chegar, partes significativas (algumas até cláusulas pétreas) da Constituição, o que se deu em um jogo ardoroso de redesenho institucional21 (Tsebelis, 1998), em que a própria sociedade ficou de fora, já que as reformas foram impostas, na maioria das vezes, à custa de compras de votos dos parlamentares ou de jogos de interesses superpostos (“nested games” para tomar a preciosa lição de Tsebelis) ou, quando não, pela reedição sucessiva de medida provisórias. Ao longo de incessantes (e grande parte das vezes fracassadas) tentativas de estabilização econômica, todo o poder – dado pela imensa abrangência das medidas provisórias – foi disponibilizado aos Executivos nacionais (vide medidas do Governo Collor e recentemente do Governo Cardoso). É tal fenômeno de enclausuramento das decisões políticas na alta burocracia estatal, sem transparência e debate com a sociedade, que Eli Diniz segue criticando como uma continuidade absurda das premissas do regime ditatorial, já que “ao contrário do que ocorreu em alguns países, em que políticas de ajuste dos anos 80 apoiaram-se em pactos de ampla envergadura, a opção das elites estatais brasileiras privilegiou vias coercitivas de implementação, o que se traduziu pela preferência por instrumentos legais capazes de garantir a precedência do Executivo em face do Legislativo.” (1996, p. 09, grifo nosso) Tais Executivos imbuídos da “missão” de resolver a aludida crise de governabilidade, apesar de progressiva e inacreditalvemente mais fortes, somente faziam desacreditar a Constituição da República de 88 para não desacreditarem a si próprios. Nesse diapasão, também severa é a crítica de Eli Diniz: “a prioridade atribuída aos programas de estabilização econômica e o acirramento dos conflitos em torno da distribuição de recursos escassos terminaram por esvaziar importantes itens da agenda pública, sobretudo aqueles relacionados com as reformas sociais. Não só a definição de uma estratégia de crescimento econômico, como as perspectivas de atenuação das desigualdades sociais tornaram-se metas cada vez mais distantes. A urgência do controle da inflação se fez acompanhar do abandono dos projetos igualitários, tão enfatizados pela Aliança Democrática responsável pela instauração da Nova República, crescentemente avaliados sob o ângulo de sua extemporaneidade. De acordo com a nova orientação, em nome de um enfoque racional e não 20 Haveria, se estivéssemos em searas, de fato, democráticas, de causar indignação a perplexidade levantada por Barroso (1998, p. 24) de que “por paradoxal que possa parecer, a reiterada sucessão de emendas revela uma preocupação nova: a de não descumprir a Constituição, de não atropelá-la, como de nossa tradição, mas reformá-la na disputa política pelo quorum qualificado. É consolo pequeno. E é preciso reconhecer que, nesse particular, o ciclo do amadurecimento institucional brasileiro ainda não se completou.” 21 Acerca da intensa reformulação no desenho institucional da ordem político-jurídica brasileira, Celso Antônio Bandeira de Mello, em entrevista à Revista Caros Amigos, n.º 31, out/99, respondendo à pergunta sobre qual seria a maior característica do governo atual, dizia “teve uma obra para a qual não tem havido tanta atenção, foi uma obra normativa. Ele está desmontando aos poucos as linhas mestras da Constituição brasileira através das reformas. E está desmontando o sistema normativo infraconstitucional para ajustar o Estado brasileiro a uma concepção de Estado diferente daquela que estava na Constituição de 1988, e que ainda está na Constituição.” (Mello, 1999, p. 17) 15 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 populista da pauta de prioridades, a exigência de maior inflexibilidade na gestão dos recursos públicos viria a desaconselhar qualquer postura favorável ao aumento de gastos sociais. Em conseqüência, privilegiou-se uma agenda minimalista, em franco desacordo com a dinâmica democratizante, esta alargando a participação, diversificando as demandas e multiplicando os canais de vocalização à disposição dos diferentes segmentos da sociedade.” (1996, p. 08, grifos acrescidos ao original) Pela absoluta falta de responsabilidade política estendida (Stark & Bruszt, 1998) no contexto brasileiro, tais Executivos somente se preocuparam com a pretensa meta última de controle inflacionário e reformas econômicas de fundo, sem respeitar as salvaguardas constitucionais aos direitos individuais e garantias públicas. É este o mesmo alerta feito por José Eduardo Faria: “Esse bloqueio [da própria dinâmica do processo de pós-transição democrática] fica nítido quando o padrão de governabilidade imposto em nome da ‘salvação nacional’ requer uma separação autoritária entre a gestão ‘administrativa’ da economia e a formação política da ‘vontade geral’, a pretexto de neutralizar a explosão de reivindicações, e/ou exige uma ‘conciliação’ cooptadora entre diferentes setores sociais – o que perverte a transição e a consolidação democráticas ao convertê-las numa continuidade disfarçada do regime político anterior.” (1993, p. 37, grifo nosso) Como única e última baliza de controle, os brasileiros só tiveram o Judiciário para acorrer em defesa de seus direitos (Vianna, 1999), o que nem sempre foi a melhor defesa do marco constitucional democrático vigente perante as “reformas” de controle da ingovernabilidade, já que, até no STF, foi acolhida a premissa de que as MPs eram instrumentos imprescindíveis e a economia era mais nefasta que a regularidade democrática. (Arantes, 1997) Também aqui é ácida a crítica de Faria: “Por meio da ‘aplicação seletiva’ dessa ordem jurídica assimétrica e fragmentária, mediante a instrumentalização de normas numa direção distinta da que foi originariamente formulada e não- regulamentação de certos direitos para bloquear a implementação dos benefícios que eles asseguram, o Estado subsidiário do corporativismo ‘social’ revelar-se-ia capaz de gerar um ‘efeito de distanciamento’ em relação à ordem constitucional em vigor. (...) Em outras palavras, esse efeito permite que a contínua ruptura da legalidade formal do Estado, por causa da ‘aplicação seletiva’ da lei, não seja acompanhada automaticamente pela quebra da legitimidade desse mesmo Estado.” (1993, p. 64-65, grifo acrescido ao original) Se se retomar a questão em uma perspectiva histórica, ela se mostrará justamente mais problemática, quando se lembrar que a legitimidade do sistema de solidariedade (tema caro a Pizzorno) que estatuiu a ordem política consolidada na Constituição de 88 emergira de um contexto contraditório, mas plural de reconstrução democrática. Senão veja-se que, como bem alerta Canotilho (2001, p. 13), “as Constituições dependem muito das circunstâncias em que foram feitas. A Constituição portuguesa tem a revolução dentro dela e a brasileira tem as ‘Diretas Já’ e o ‘centrão’ lá dentro. Portanto, temos que interpretá-las à luz das circunstâncias em que foram realizadas.” Justamente por serem as propostas de reforma do Estado, no Brasil, carentes de uma imersão crítica no processo maior de consolidação democrática é que elas pecam tanto pelo desrespeito à Constituição/88 e seguem alimentando a própria crise de (in)governabilidade22. Ainda há pouco falava-se da univocidade da percepção sobre a crise doEstado e como esta repercutiu em processos de reforma míopes (ênfase em tamanho do aparato estatal), conquanto só se 22 Eli Diniz assevera que “com o advento da Nova República, tais problemas seriam agravados pelo estilo tecnocrático de gestão que se tornou dominante. Assim, a tensão entre as formas de alcançar os objetivos da nova agenda pública (estabilização econômica, reinserção internacional e institucionalização da democracia) tornou-se parte constitutiva da crise do Estado, já que os meios postos em prática para realizar as metas econômicas dificultariam o aprimoramento das instituições democráticas. Eficácia na administração da crise e consolidação democrática foram conduzidas como alvos contraditórios.” (1996, p. 11) 16 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 voltassem para o controle administrativo-financeiro da aludida crise. E é nessa linha de revaloração da situação crítica em que o país se encontra que se mostra necessário retomar a interface primordial entre a reforma do Estado e o tema da consolidação democrática, na medida em que: “tratada de maneira isolada, como ocorre com freqüência, ou exclusivamente em função dos seus aspectos administrativos, a reforma do Estado tende a ser conduzida de forma a acentuar tensões com os requisitos da institucionalização da democracia. Desta forma, o objetivo de reformar o Estado é parte intrínseca de um processo mais amplo de fortalecimento das condições de governabilidade democrática.” (Diniz, 1996, p. 05-06, grifo acrescido ao original) Ora, a dissociação entre o projeto de reforma do Estado e o fortalecimento das instituições democráticas se funda, em última instância, na própria incapacidade governamental de negociação e problematização do “processo de constituição dos fins, necessariamente múltiplos”. (Reis, apud in Diniz, 1996, p. 14) Assim, deslegitimado em sua basilar função de respeito e consolidação da “ordem justa” (Habermas, apud in Vieira, 1997), os governantes, ao se enviesarem meramente nas questões sobre estabilidade econômica, deixam de responder pelo interesse público conformado constitucionalmente, além de não conseguirem fazer valer suas deliberações normativas. É essa uma contraface perversa da crise que também assola a própria legitimidade dos Executivos. Segundo Diniz (1996, p.15-16), o ciclo de “rarefação do poder público” é gerado, desta forma, a partir da “lacuna deixada pela omissão do Estado no atendimento às necessidades fundamentais, bem como pela inexistência de políticas sociais efetivas”. Essa lacuna, por sua vez, “abre o espaço para a proliferação de práticas predatórias e a disseminação da insegurança generalizada”. E é neste contexto que “as áreas social e territorialmente periféricas criam sistemas paralelos de poder que tendem a alcançar níveis extremos de violência e arbitrariedade.” O alerta final de onde se pode chegar com uma tal crise do próprio Estado há de ser dado em face da “subversão cotidiana das normas e preceitos legais”, na medida em que, uma vez perdido o referencial último da democracia brasileira que a Constituição de 88 representa, não muito longe se estará de uma verdadeira situação de “hobbesianismo social”. (Diniz, 1996, p. 16) Daí porque é necessário ressaltar, uma vez mais, que a crise tem contornos mais graves do que a retórica governamental sobre a reforma do Estado faz crer... 4. Reformando a Constituição da República de 88 rumo à Administração Pública Gerencial É, neste capítulo, que será tratada propriamente a questão da reforma do Estado que foi proposta no Brasil, a partir da década de 90, para, desde já, contrastar seus principais pilares 23 (redimensionamento do aparelho estatal, controle de resultados, controle de endividamento e avaliação de desempenho) com o marco constitucional já analisado anteriormente. Tal contraste não visa meramente buscar classificar uma ou outra medida como constitucional ou não, mas antever, na promessa de uma “Administração Pública gerencial”, as possibilidades de melhoria e os riscos de precarização da atuação do Estado brasileiro – por si só, carecedor de um agregado mais amplo de reformas sérias e democratizantes. Embora a Constituição de 88 tenha deixado em aberto o próprio processo de consolidação democrática (Vianna, 1999), é importante se considerar que, com ela, fora instaurada uma 23 É o próprio Bresser Pereira – grande mentor da dita “reforma administrativa” da Constituição de 88, qual seja, a EC n.º 19/98 – quem destaca os “mais importantes pontos” da mesma. Para o aludido ex-ministro do antigo MARE, “todos sabem quais são os pontos mais importantes: a flexibilização da estabilidade, a demissão por excesso de quadros, a avaliação de desempenho, o fim do regime jurídico único, a adoção de um teto e de um subteto de remuneração, a exigência de projeto de lei para a concessão de aumento de salário, a retirada da palavra isonomia do texto constitucional. Mais do que as coisas concretas que a emenda efetivamente muda, ela tem um caráter emblemático. Nós podíamos optar ou não pela administração moderna e gerencial. E a aprovação da emenda constitucional acabou representando a opção pela administração gerencial.” (1998, p. 23) 17 XV Concurso de Ensayos del CLAD “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001 regularidade institucional, sob a qual, qualquer novo modelo de Administração Pública (mais ou menos “flexível”, não vem ao caso) deve respeitar e fazer respeitar os direitos e garantias ali constantes. O que importa, aqui, é a garantia de que, ao menos, seja mantido o mesmo patamar de salvaguardas constitucionais oriundo do processo de redemocratização. Para além disso, será a própria realidade cotidiana dos que virão a aderir ou não ao novo “modelo gerencial” (primordialmente, servidores e administrados) é que atestará o grau de mudança factível das promessas – elaboradas de cima para baixo – do Plano Diretor de 1995 e da EC n.º 19/98. 4.1. Redimensionamento da Atuação Estatal Introduzindo uma nova forma de trabalhar os questionamentos a respeito do papel e do tamanho do Estado, sob o diagnóstico de sua crise, foi lançado, em 1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE). A mudança na forma de tratamento da crise, da forma como é justificada no Plano Diretor, pressupõe a insuficiência ou inadaptação das posturas político-ideológicas anteriores, que, em grande medida, abriram espaço, segundo o plano, para agravá-la ainda mais. Fato é que o PDRAE tentou representar uma lógica diversa da “indiferença” pós-transição democrática quanto à existência e à dimensão da crise, bem como se propôs a refutar (algo discutível) a via neoliberal (ideologia do Estado Mínimo) colocada em voga no cerne das discussões políticas brasileiras a partir do início da década de 90. Ora, o discurso governamental, à época do lançamento do plano, era pensar a crise sob o foco do desafio de sua superação, donde a noção de que havia que se “reformar”, “reconstruir” o Estado, “de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas”. (PDRAE, 1995, p. 15) Relevante considerar o posicionamento governamental quanto a tal reforma: o Plano Diretor representa uma via de ação para o aparelho do Estado; distinguindo, nos níveis de dimensão e responsáveis, entre reforma do Estado e reforma do aparelho do Estado. O desafio da crise diante da necessidade de reformar o Estado é tarefa, segundo o Plano Diretor, para o conjunto de toda a sociedade, tratando-se de um “projeto amplo”, “enquanto que a reforma do aparelho do Estado tem um escopo mais restrito: está orientada para tornar
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