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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMILA FÁVARO LEME BASTOS A ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA NA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL FRANCA 2016 CAMILA FÁVARO LEME BASTOS A ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA NA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Daniel Damásio Borges FRANCA 2016 Bastos, Camila Fávaro Leme A Assistência Jurídica Gratuita na Cooperação Internacional / Camila Fávaro Leme Bastos. - Franca : [s.n.], 2016 70 f. Trabalho de conclusão (bacharelado - Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Daniel Damásio Borges 1. Assistência jurídica gratuita. 2. Cooperação jurídica internacional. 3. Acesso à justiça. I. Título. CDD - 342.3 CAMILA FÁVARO LEME BASTOS A ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA NA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Bacharel em Direito. BANCA EXAMINADORA Presidente:________________________________________________________ Prof. Dr. Daniel Damásio Borges 1º Examinador:_________________________________________________ 2º Examinador:_________________________________________________ Franca, 30 de novembro de 2016. Aos meus pais, pelo apoio incondicional e por sempre acreditarem em mim. BASTOS, Camila Fávaro Leme. A assistência jurídica gratuita na cooperação internacional. 2016. 70 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. RESUMO Com a facilidade de envolvimento em situações jurídicas transnacionais, ocasionada pela globalização, o Direito Internacional Privado está cada vez mais em voga. Entre as situações que este ramo do Direito se propõe a regular, a questão do litigante hipossuficiente em processos que apresentam elemento de estraneidade ganha destaque no contexto da internacionalização do cotidiano. A Constituição Federal e diversas leis dispõem acerca da proteção daquele que não pode litigar sem o prejuízo de seu próprio sustento e de sua família, oferecendo a este a assistência jurídica gratuita, mas esta abrange apenas os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. Os hipossuficientes estrangeiros que pretendem litigar no Brasil e os hipossuficientes brasileiros que pretendem litigar no exterior dependem da cooperação jurídica internacional para obterem alguma assistência. O presente trabalho se propõe a analisar a maneira pela qual se dá a concessão da assistência jurídica gratuita a estes sujeitos, bem como os instrumentos pelos quais se realiza. Para atingir este objetivo, são analisados relatórios de organizações internacionais, os principais tratados sobre o assunto e a bibliografia relacionada a este. Também é feita análise jurisprudencial com a finalidade de verificar como o Judiciário tem interpretado as normas internacionais e se as decisões estão de acordo com os objetivos buscados pelo Brasil e demais Estados ao firmarem a cooperação. Palavras-chave: assistência jurídica gratuita. cooperação jurídica internacional. acesso à justiça. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................7 CAPÍTULO 1 DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA.............................................10 1.1 Disposições Gerais.............................................................................................................10 1.2 Benesses da Assistência Jurídica Gratuita......................................................................17 1.2.1 Taxa Judiciária................................................................................................................18 1.2.2 Emolumentos....................................................................................................................18 1.2.3 Honorários.......................................................................................................................19 1.2.4 Caução.............................................................................................................................20 1.2.5 Ônus de Sucumbência......................................................................................................20 1.3 Requisitos...........................................................................................................................21 CAPÍTULO 2 DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL..............................26 2.1 Relevância do Estudo da Cooperação Jurídica Internacional......................................26 2.2 Disposições Gerais.............................................................................................................32 2.3 Instrumentos......................................................................................................................33 2.3.1 Cartas Rogatórias............................................................................................................33 2.3.2 Homologação de Sentenças Estrangeiras........................................................................37 2.3.3 Auxílio Direto...................................................................................................................38 2.4 A Assistência Jurídica Gratuita na Cooperação Internacional....................................39 2.4.1 O Acesso à Justiça no Âmbito Internacional...................................................................39 2.4.2 Os Tratados sobre Assistência Jurídica Gratuita............................................................43 2.4.3 Ausência de Tratado........................................................................................................49 2.4.4 A Convenção de Haia sobre o Acesso Internacional à Justiça.......................................50 CAPÍTULO 3 ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA A CONSOLIDAÇÃO DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA NA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL................................................................................................................54 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................66 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................68 7 INTRODUÇÃO Responsável por solucionar o conflito de leis, o Direito Internacional Privado “é a disciplina que cuida, por excelência, dos aspectos relativos à determinação do direito aplicável aos fatos, situações e relações jurídicas com conexão internacional”1. Tradicionalmente, era visto como um ramo do Direito reservado a uma minoria elitista, umavez que a possibilidade de envolvimento com situações além das fronteiras nacionais nem sempre esteve ao alcance da população em geral. O processo de globalização, entretanto, tem contribuído com a alteração deste quadro. Atualmente, é possível se envolver em uma situação jurídica transnacional sem sequer sair de casa, como se observa, por exemplo, nas compras em sites estrangeiros 2 . Desta forma, nota-se que “a sociedade atual é fortemente internacionalizada, e marcada pelo deslocamento das massas”3. Como consequência deste fenômeno, a preocupação dos Estados com relação ao Direito Internacional Privado se voltou para as questões de competência e jurisdição. Ambas estão relacionadas ao alcance do Poder Judiciário, matéria intimamente ligada à questão da soberania estatal. Assim, buscando uma maneira de resolver os conflitos surgidos destas relações internacionalmente conectadas que não ofendesse a soberania dos Estados, surgiu o instituto da cooperação jurídica internacional. Através deste mecanismo, um Estado pode requisitar a outro a prática de atos judiciais em seu território sem estender sua jurisdição a ele. As legislações internas e os tratados internacionais preveem diversos instrumentos que possibilitam a cooperação internacional, dos quais se destacam as cartas rogatórias, a homologação de sentenças e o auxílio direto. Embora sejam de suma importância para a tutela dos direitos pleiteados em demandas nas quais se manifesta o elemento de estraneidade, a tramitação dos pedidos de cooperação através destes instrumentos é onerosa, podendo comprometer o acesso à justiça para aqueles que possuem poucos recursos financeiros. A concepção de acesso à justiça utilizada na atualidade é recente. Até o final do século XIX, era garantido aos litigantes um direito de acesso meramente formal ao Judiciário, segundo o qual ninguém poderia ser privado da possibilidade de propor ou contestar ação 4 . 1 POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. Direito Processual Internacional e o Contencioso Internacional Privado. Curitiba: Juruá Editora, 2013 (Coleção Para Entender). 2 ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 34. 3 Ibidem. 4 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Nothfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 9. 8 Somente no século XX, com a Constituição Francesa e as reformas do welfare state, é que este direito começou a ganhar feições mais contemporâneas, com a imposição da atuação positiva do Estado para assegurar o exercício dos direitos sociais e busca de mecanismos para efetivar o direito de acesso à justiça 5 . Finalmente, entendeu-se que o acesso à justiça vai além do ingresso no judiciário, compreendendo também a resolução da demanda em tempo razoável, um julgamento imparcial, a inafastabilidade da jurisdição, o fornecimento de condições materiais para o litigante, entre outros fatores. Tamanha é a importância deste direito, que Mauro Cappelletti afirma que ele consiste no “ponto central da moderna processualística”6. O acesso à justiça é garantido de diversas maneiras no âmbito do Direito Processual Civil, seja por meio de princípios, seja por meio de outros instrumentos previstos em lei. Entre estas maneiras, merece destaque a assistência jurídica gratuita. Prevista no art. 5º, LXXIV da Constituição Federal (CF), é a forma que o Estado encontrou de equiparar materialmente os hipossuficientes aos demais litigantes, garantindo seu ingresso e permanência no Judiciário até o fim da demanda. Esta assistência - que envolve tanto a gratuidade judiciária como consultoria extrajudicial e representação em juízo gratuitos - é prestada pela Defensoria Pública e, além da previsão constitucional, encontra-se sacramentada na lei n. 1060/50. Todavia, cabe observar que a proteção do referido art. 5º, conforme disposto em seu caput, se estende somente aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. Já a questão da prestação de assistência jurídica gratuita tanto aos estrangeiros não residentes no Brasil que pretendem litigar aqui quanto aos brasileiros que pretendem litigar no exterior não encontra soluções tão simples quanto a do dispositivo constitucional. São situações que não podem ser resolvidas somente com a legislação interna brasileira, sendo necessário ao aplicador do Direito buscar apoio no Direito Internacional Privado. Entra em cena a questão da cooperação jurídica internacional. Se a assistência jurídica gratuita consiste em um tema adicionado há pouco tempo aos ordenamentos jurídicos, é evidente que a questão é ainda mais recente no âmbito internacional. Não obstante, verifica-se a existência de tratados internacionais sobre o assunto, 5 CAPPELLETTI, op. cit., p. 10-11. 6 Ibidem, p. 13. 9 além da existência de normas internas de Direito Internacional Privado que disciplinam a matéria. Apesar da relevância da assistência jurídica gratuita no âmbito internacional, são poucas as pesquisas acerca deste tema. Assim, este trabalho se propõe a realizar um estudo sobre a concessão desta assistência e os instrumentos de cooperação jurídica internacional que a tornam possível. O estudo se estrutura da seguinte forma: primeiramente, é traçado um panorama da assistência jurídica gratuita no ordenamento brasileiro, abordando-se suas principais características, seu alcance e os requisitos para sua concessão. Posteriormente, é apresentado o tema da cooperação jurídica internacional, apontando-se a importância do seu estudo, suas características gerais, seus instrumentos e analisando-se os principais tratados sobre assistência jurídica gratuita, bem como os roteiros de tramitação de pedidos de cooperação. Por fim, é analisada a atuação do Judiciário brasileiro com relação ao assunto por meio do estudo de algumas decisões judiciais, em especial aquelas que versam sobre a cooperação jurídica internacional passiva. 10 CAPÍTULO 1 DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA 1.1 Disposições Gerais A partir do momento em que o Estado tomou para si o poder de resolver conflitos de interesses dos cidadãos, retirando-lhes a possibilidade de exercer a autotutela, tornou-se responsável pela prestação da tutela jurisdicional 7 8 . Do latim juris e dicere, cujo significado é “dizer o direito”, jurisdição é: uma espécie de atividade privativa do Estado, prestada por órgão regularmente investido na função que, quando provocado, substitui a vontade das partes e, de forma heterônoma, põe fim às lides que lhes são submetidas de forma definitiva, tornando concreta a opção abstrata feita pelo legislador. 9 O art. 5º, XXXV da CF consagrou o princípio da inafastabilidade da jurisdição, garantindo a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a prestação desta tutela nos casos de ameaça ou lesão a direito. Com o art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, da qual o Brasil é signatário, a questão do acesso à justiça adquiriu, inclusive, o status de Direito Humano 10 . Para os autores que consideram a jurisdição uma figura mais próxima dos direitos fundamentais dos indivíduos do que de direitos ínsitos à soberania do Estado 11 , as partes em um processo “deixam de ser simplesmente jurisdicionados passivos, para integrarem a categoria de “titulares de direitos fundamentais de base jurisdicional””12. Embora a igualdade inerente ao direito ao acesso à justiça esteja previstaconstitucionalmente, é evidente o fato de que nem todos a quem ele é garantido possuem condições materiais de litigar. Conforme o art. 19, §1º do Código de Processo Civil (CPC) de 7 ASSIS, Araken de. Benefício da gratuidade. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. XXV, n. 73, p. 162-200, jul. 1998. p. 162. 8 Quanto a este poder de resolver conflitos de interesses, Azambuja ressalta que já se encontrava concentrado nas mãos de figuras políticas desde antes do surgimento dos Estados. Nas sociedades primitivas, por exemplo, os chefes desempenhavam a função de juízes, enquanto no período medieval, eram os príncipes que o faziam. Com o advento do Estado moderno, a função de julgar foi delegada ao Poder Judiciário, mas sem deixar de ser atribuição do Estado (AZAMBUJA, Darcy. Introdução à Ciência Política. 2. ed. São Paulo: Editora Globo, 2008. p. 206-209). 9 BARRETO JÚNIOR, Edvaldo Costa Barreto. Jurisdição. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho (org.). Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. p. 34-35. (Série Advocacia Pública). 10 Art. 8º: “1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”. 11 Cf. MILLS, Alex. Normative individualism and jurisdiction in public and private international law: toward a ‘cosmopolitan sovereignty’? Londres: 2012. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2055295>. Acesso em: 3 out. 2015. 12 POLIDO, op. cit., p. 42. 11 1973, todo ato do processo tem um custo, que deve ser suportado pela parte que o pratica. Assim, além do próprio custo do processo em geral, seria inviável àqueles com poucos recursos financeiros o próprio ingresso no sistema judiciário. Visando eliminar a possibilidade de cerceamento do acesso à justiça provocada pela desigualdade de condições econômicas e confirmando sua qualidade de garantidora do exercício pleno da cidadania, e, consequentemente, dos direitos e garantias individuais, intrínseca ao Estado Democrático de Direito 13 , a CF impôs, no art. 5º, LXXIV, a obrigatoriedade da prestação de assistência jurídica integral e gratuita pelo Estado àqueles que comprovarem a insuficiência de recursos. Cabe ressaltar que o referido inciso LXXIV solucionou não somente o problema relativo ao custo do processo como também assegurou ao litigante hipossuficiente a consultoria extrajudicial e a representação em juízo gratuita. No entanto, não trouxe uma especificação de como deveria ser prestada essa assistência, delegando à legislação infraconstitucional a sua regulamentação. Entre as leis que trazem dispositivos acerca do assunto podem ser destacadas as constituições estatais, a lei n. 1060/50 (lei da assistência judiciária), o CPC de 1973 (lei n. 5869/73) e o novo CPC (lei n. 13105/15), a lei n. 9099/95 (lei dos juizados especiais), que prevê a gratuidade judiciária em todos os seus processos, e alguns tratados internacionais relacionados à cooperação jurídica internacional. Apesar de a CF falar em assistência jurídica integral e gratuita, a legislação relacionada à proteção do hipossuficiente que queira litigar traz mais dois termos: a gratuidade judiciária e a assistência judiciária gratuita. Vários doutrinadores divergem com relação a estas expressões, havendo quem as considere sinônimas, como Humberto Theodoro Júnior, Antônio José de Souza Levenhagem, Pedro Batista Martins, Alcides de Mendonça Lima e Eliézer Rosa, enquanto outros veem nelas institutos distintos, como Pontes de Miranda, Hélio Márcio Campo, José Maria Rosa Teisheiner, José Cretella Júnior, Luís Alberto Thompson Flores Lenz, Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, Eduardo Bezerra de Medeiros Pinheiro 14 e Araken de Assis 15 . Quanto ao emprego dos termos pelo judiciário, nota-se o dissenso novamente: predomina o entendimento de que ambas consistem na mesma figura, sendo confundidas, inclusive, com a assistência jurídica gratuita 16 , mas também há 13 CAMPO, Hélio Márcio. Assistência Jurídica Gratuita: assistência judiciária e gratuidade judiciária. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 53. 14 Ibidem, p. 54 e 119-120. 15 ASSIS, op. cit., p. 163. 16 Neste sentido: RE 205.746/RS, AI 649.283/SP–AgR, RE 550.202-AgR/DF e REsp 1.082.376/RN. 12 quem entenda o contrário 17 , sendo que, para estes, os dois institutos são englobados pela assistência jurídica gratuita, mas não se confundem com ela. As próprias leis deixam espaço para dúvidas nesta questão, pois diversas vezes a assistência judiciária foi mencionada em situações em que, na verdade, seria cabível a gratuidade judiciária, como se observa no art. 13 da lei n. 11636/07 18 , que dispõe sobre as custas devidas no âmbito do STF, e em toda a lei n. 1060/50. Com relação a esta última, é interessante notar que teve alguns artigos revogados pelo novo CPC, cabendo aqui destacar a revogação do art. 3º, que continha as hipóteses de isenção compreendidas pela assistência judiciária. O novo CPC tratou destas hipóteses no art. 98, §1º, atualizando-as às necessidades contemporâneas, como situações compreendidas pela gratuidade da justiça. Esta alteração pode simplesmente decorrer de uma tentativa de manter a expressão parecida com aquela utilizada no CPC de 1973, a justiça gratuita (arts.19 e 687, §1º), como pode ser também uma sutil indicação de que gratuidade e assistência judiciária não são sinônimos. Em manual elaborado pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) da Secretaria Nacional de Justiça, afirma-se que a assistência jurídica gratuita abrange a isenção de despesas inerentes à demanda circunscritas ao processo, atividade consultiva e auxílio extrajudicial e, por fim, a representação em juízo 19 . Embora o manual não indique seu posicionamento com relação à distinção entre assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita, é possível entender que, de certa maneira, admitiu a sua existência. Isto porque afirmou que as três situações juntas constituem a assistência jurídica, mas não excluiu a possibilidade do hipossuficiente requerê-las separadamente 17 Hélio Márcio Campo, em sua supracitada obra, traz alguns julgados da época em que a lei n. 1060/50 entrou em vigor (p. 119-120). Apesar de seu texto trazer expressamente a intenção de estabelecer as normas para concessão da assistência judiciária, suas disposições se adequam mais à noção de gratuidade judiciária, razão pela qual alguns dos primeiros juízes a interpretarem a lei trataram desde já estabelecer a diferença entre as expressões. Neste sentido também há julgado do TJRS: “APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. O fato de as partes constituírem advogado particular não significa que detenham condições para arcar com os encargos processuais sem prejuízo da própria mantença, não servindo tal fato, por si só, para contrariar a alegação de pobreza juntada aos autos, que goza de presunção relativa de veracidade, que somente cede ante prova em contrário. Ao constituir advogado, as partes não abriram mão da gratuidade, visto que assistência judiciária e benefício da Justiça gratuita são coisas distintas. PROVERAM. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70010316669, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 22/12/2004)”. 18 “Art. 13. A assistência judiciária, perante o Superior Tribunal de Justiça, será requerida ao presidente antes da distribuição, e, nos demais casos, ao relator. Parágrafo único. Prevalecerá no Superior Tribunal de Justiça a assistência judiciária já concedida em outra instância”. 19 BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria civil / Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). – 3. ed. Brasília : Ministério da Justiça, 2012. p. 57. 13 conforme sua necessidade. Ao tratar da isenção de despesas, indicou a necessidade de pleitear-se a gratuidade judiciária e, apesar de não explicitar que a representação em juízo é objeto da assistência judiciária, distinguiu-a da atividade consultiva e auxílio extrajudicial, os quais seriam elementos privativos da assistência jurídica. Assim, pode-se dizer que o manual corrobora, mesmo que indiretamente, a ideia de que a gratuidade e a assistência judiciária são espécies, enquanto a assistência jurídica é o gênero. Apesar daquele a quem a assistência jurídica gratuita é concedida ser chamado de beneficiário, deve ficar claro que este instituto é mais que um benefício. Segundo Hélio Márcio Campo, trata-se de pretensão irrenunciável, imprescritível e renovável, cabendo demanda contra o Estado, caso indeferida a assistência 20 . Irrenunciável ou não, o fato é que este é um direito assegurado constitucionalmente, previsto no rol dos direitos e garantias fundamentais e qualquer obstáculo à sua concessão consiste em uma afronta ao direito de ação do hipossuficiente. São legitimados a requerer a assistência jurídica gratuita os brasileiros e estrangeiros residentes no país, conforme se depreende da leitura do caput do art. 5º da CF. Note-se que a CF não faz distinção entre nacionais e estrangeiros com relação à garantia dos direitos fundamentais, exigindo apenas que residam no Brasil; assim, entendendo-se que, nesta situação, os direitos dos estrangeiros são equiparados aos dos brasileiros com base no critério residência, a garantia também deve se estender, portanto, aos apátridas 21 que preencherem este requisito. Em decorrência de parceria firmada entre o Ministério das Relações Exteriores e a Defensoria Pública da União, é possível ao brasileiro residente no exterior a concessão de assistência jurídica gratuita quando este pretender litigar no Brasil ou precisar resolver qualquer outra pendência jurídica no país, podendo, ainda, contar com o auxílio consular para a formulação do pedido de assistência, fornecimento de informações referentes aos seus serviços que tenham alguma relação com a demanda e encaminhamento do pedido à Defensoria Pública da União. Assim como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas têm legitimidade ativa, a qual está prevista na súmula 481 do STJ, que dispõe que: “Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais”. No caput de seu art. 98, o novo CPC previu a gratuidade judiciária 20 CAMPO, op. cit., p. 63-64. 21 Ibidem, p. 58. 14 para pessoas físicas e jurídicas, tanto brasileiras como estrangeiras, quando houver insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios. Embora não haja menção, levando-se em conta a exigência com relação à residência das pessoas físicas, é possível inferir que estas pessoas jurídicas devem estar sediadas no Brasil. A assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes estrangeiros sem residência no país não é vedada. Seria, inclusive, absurdo estabelecer tal vedação, visto que a própria CF, em seu art. 3º, IV, estabelece como um dos princípios da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Portanto, seria incabível a denegação 22 de um instrumento necessário para o exercício do direito fundamental do acesso à justiça a um indivíduo pelo simples fatos deste ostentar o status de estrangeiro e não residir no país. No intuito de coibir esta prática, diversos países, entre eles o Brasil, têm firmado tratados que estabelecem a igualdade de condições de acesso à justiça, inclusa aí a assistência jurídica gratuita, entre os nacionais, residentes ou domiciliados em algum dos Estados signatários. A concessão da assistência prevista em tais acordos se faz cumprir por meio da cooperação jurídica internacional, conforme será estudado adiante. Ademais, nota-se que estes tratados são uma via de mão dupla, sendo estas disposições aplicadas também ao brasileiro que queira litigar no exterior, uma vez que o órgão encarregado da assistência jurídica aos necessitados no Brasil é a Defensoria Pública e esta não pode atuar perante a Justiça estrangeira, cabendo aos órgãos do Estado contratante ao qual foi endereçado o pedido de cooperação fazê-lo. Com relação à legitimidade passiva, a prestação da assistência jurídica gratuita pela Defensoria Pública está prevista no art. 134 da CF, segundo o qual, a esta instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbe a “orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”, o que deve ser feito na forma do art. 5º, inciso LXXIV. Tal comprometimento com a função atribuída constitucionalmente se expressa em um dos princípios da instituição: a unidade; como ensina Hélio Márcio Campo, “por unidade há que se entender que a proposta da Defensoria Pública é 22 Cf. POLIDO, op. cit, p. 43-44, na qual o autor estabelece conexão entre o princípio do acesso à justiça ao princípio da proibição da denegação de justiça, indicando a existência de duas vertentes de aplicação deste último: a primeira se refere ao conflito negativo de jurisdição, no qual dois ou mais órgãos de prestação jurisdicional declinam da competência para apreciar o litígio; enquanto a segunda diz respeito à “violação de direitos fundamentais no contexto da adjudicação das controvérsias” (p. 43). 15 uma só, dirigida para um único fim, qual seja, proteger os interesses dos necessitados”23. A atual redação do referido art. 134 se deve à Emenda Constitucional 80/2014, igualando-a à definição trazida pelo art. 1º da Lei Complementar n. 80/94, responsável por organizar a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescrever normas gerais para sua atuação nos estados. O art. 4º desta mesma lei reforça a vocação da Defensoria para a proteção dos hipossuficientes, principalmente nos incisos I, VII, X e XIX 24 ; além de trazer expressamente no §5º que “a assistência jurídica integral e gratuita custeada ou fornecida pelo Estado será exercida pela Defensoria Pública”. No que tange às despesas com o processo, o defensor público conta com a facilidade de poder requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos, entre outras providências, sem precisar recolher qualquer espécie de taxa. Excepcionalmente, pode haver legitimidade passiva por parte do Ministério Público 25 , o qual pode prestaresta assistência nas localidades em que não houver unidade da Defensoria Pública ou no âmbito da Justiça Federal, nesta última somente quando for cabível sua atuação. Ademais, a legitimidade para prestação de assistência jurídica gratuita não está adstrita a órgãos públicos, podendo se dar por advogado indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou escolhido pelo juiz ou pelo próprio litigante, na forma do art. 5º da lei n. 1060/50. Assim como ocorre com o Ministério Público, estas situações só são cabíveis quando não houver unidade da Defensoria Pública próxima ao local em que tramita a demanda; entretanto, diferentemente das hipóteses anteriores, esta forma de assistência pode ser requisitada apenas no curso do processo. Só poderá o advogado ser indicado pelo juiz ou pelo demandante, dando-se preferência à escolha deste, se não existir subseção da OAB no 23 CAMPO, op. cit., p. 113. 24 “Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus; VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; XIX – atuar nos Juizados Especiais; Quanto ao inciso XIX, cabe destacar a atuação do defensor público nos Juizados Especiais Cíveis, que consiste na postulação em nome do autor hipossuficiente na forma do art. 14 da lei n. 9099/95, na defesa do réu hipossuficiente e na defesa de uma das partes quando a outra estiver acompanhada de advogado ou trouxer defesa escrita assinada por advogado”. 25 Pode-se dizer que esta possibilidade remonta ao surgimento da figura do defensor público que, originariamente, integrava o quadro funcional do Ministério Público do Distrito Federal (localizado no Rio de Janeiro nesta época), constituindo o degrau inicial do referido órgão, conforme disposto na lei n. 216/48. 16 município. Além da designação, o advogado se torna responsável pelo encargo da defesa somente se declarar aceitá-lo. Pode motivar a recusa por parte do advogado qualquer um dos itens previstos no art. 15 da lei mencionada. Hélio Márcio Campo entende que estes motivos elencados no art. 15 podem ser alegados não só pelo advogado indicado, como também pelo litigante que será assistido, com vistas a afastá-lo; defende ainda a aplicação analógica das proibições aos juízes constantes nos arts. 134, I, II e IV (hipóteses de impedimento) e 135, I, II e III (hipóteses de suspeição) do CPC/73 26 aos advogados, tomando-as como casos que igualmente justificam a recusa 27 . Os motivos alegados são analisados pelo juiz, estando o advogado sujeito à multa do art. 14 da lei n. 1060/50 caso a recusa seja tida como injusta e à sanção disciplinar consistente em censura por parte da OAB, prevista no art. 36, I da lei n. 8906/94 (Estatuto da OAB). Segundo o supracitado estatuto, o Estado está incumbido de pagar os honorários advocatícios do patrono indicado, sendo esta disposição, no entendimento de Araken de Assis, uma forma de punir sua omissão na organização da Defensoria Pública 28 . Em contraste com o âmbito civil, a Justiça Trabalhista reserva a primazia na prestação da assistência jurídica gratuita ao sindicato da categoria profissional do trabalhador que a pleiteia, conforme preceitua o art. 14 da lei n. 5584/70. Nesta seara, a legitimidade do Ministério Público e da Defensoria Pública está condicionada à inexistência do referido sindicato na localidade. O próprio trabalhador pode optar por apresentar sua Reclamação Trabalhista sem assistência de qualquer profissional em razão do jus postulandi estabelecido pelo art. 791 da CLT e confirmado pela súmula 425 do TST, podendo neste caso, se preenchidos os requisitos, ser-lhe deferida uma das facetas da assistência jurídica gratuita: a gratuidade judiciária. Também é adotado o jus postulandi nos Juizados Especiais Cíveis. A lei n. 9099/95, responsável por instituir os juizados mencionados, é um importante instrumento para o acesso à justiça, visto que se preocupou tanto com a rapidez do processo, adotando o procedimento 26 “Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário: I – de que for parte; II – em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha; IV – quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau;” “Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: I – amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; II – alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau; III – herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;”. 27 CAMPO, op. cit., p. 86 e 87. 28 ASSIS, op. cit., p. 192. 17 sumaríssimo, como com o seu custo, isentando o litigante - necessitado ou não- do pagamento de qualquer despesa processual e facultando a representação por advogado nas causas cujo valor seja de até vinte salários mínimos. No entanto, não é pelo fato de a atuação do advogado ser dispensável que há qualquer incompatibilidade da lei com o instituto da assistência jurídica gratuita nem com as disposições da lei n. 1060/50. Assim, o litigante que atender aos requisitos estabelecidos pela Defensoria Pública poderá contar com a assistência de defensor público para apresentação do pedido nos termos do art. 14 da lei n. 9099/95; apresentação da defesa; auxílio em audiência quando a parte contrária comparecer acompanhada de advogado, trouxer contestação assinada por advogado, for pessoa jurídica ou firma individual; quando o magistrado alertar as partes da conveniência da representação por advogado ou quando a causa o recomendar (art. 9º, §2º). O defensor público não precisa de procuração para exercer estas funções, conta com a vantagem de ter seus prazos contados em dobro e deve ser citado e intimado por meio de correspondência com aviso de recebimento em mão própria, na forma dos arts. 18 e 19 da lei em questão. Com relação aos recursos, diferentemente do litigante comum, que depende do pagamento das custas judiciais referentes à primeira instância e ao próprio recurso para que sua pretensão seja conhecida, aquele que estiver assistido por defensor público fica isento de qualquer despesa, com exceção de possível multa por litigância de má-fé. É possível, ainda, que o pedido de assistência seja feito em sede de recurso. 1.2 Benesses da Assistência Jurídica Gratuita Feitas algumas considerações acerca das disposições gerais, passa-se a um breve comentário acerca do alcance objetivo da assistência jurídica gratuita, explicando os efeitos da sua concessão sobre os gastos com o processo. Antes, porém, cabe informar que as benesses tratadas adiante são todas personalíssimas e somente se extinguem com a revogação da assistência jurídica ou com a morte do beneficiário (o que não impede novo requerimento do benefício dentro do mesmo processo no caso de os sucessores do litigante se encontraremem situação de hipossuficiência). Embora, em regra, a concessão abranja todos os atos processuais, inclusive os que se referem a ações incidentais 29 , é possível o deferimento parcial do benefício, devendo o juiz arbitrar a porcentagem do valor das despesas a ser paga pelo litigante necessitado. 29 Cf. DEMO, Roberto Luis Luchi. Assistência Judiciária Gratuita. Revista Jurídica Virtual/ Presidência da República, Brasília, v. 3, n. 31, dez 2001. Disponível em: <https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/896/882>. Acesso em: 11. mar. 2016. 18 1.2.1 Taxa Judiciária Taxa judiciária é “uma contribuição calculada sobre o valor da demanda que deve ser paga, à Fazenda Pública, logo na propositura da ação ou no encerramento do feito”30. Conforme o art. 98, §1º, I do novo CPC, é compreendida pela gratuidade judiciária. 1.2.2 Emolumentos Segundo Donaldo J. Felippe, emolumento é a “remuneração especial por ato praticado no exercício de ofício ou função pública, ou judicial”31. Compreende dois tipos de gastos: as custas e as despesas processuais. O art. 98 do novo CPC prevê a gratuidade de ambos. Todavia, da leitura dos incisos deste mesmo artigo, é possível notar que o legislador se confundiu com relação ao significado de custas, tratando-as como sinônimo de taxa judiciária no inciso I. Hélio Márcio Campo conceitua custas como “as remunerações pagas aos serventuários da Justiça e aos Cofres Públicos, pela prática de ato processual, conforme dispuser a tabela constante no respectivo regimento”32. Fica claro, portanto, que, apesar de ambas possuírem natureza tributária, referem-se a objetos diferentes, sendo a taxa calculada sobre a demanda inteira e as custas sobre cada ato processual. Assim, apenas o inciso VIII, que garante a gratuidade para “os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório”, refere-se verdadeiramente às custas. Já as despesas processuais são todos os gastos decorrentes da prática de ato processual não compreendidos pelas custas. Estas despesas podem ser judiciais ou extrajudiciais. As primeiras são elencadas pelo novo CPC no art. 98, incisos II a VII. O inciso II trata dos selos postais 33 , embora, com o avanço do processo eletrônico, a tendência seja que esta despesa caia no desuso. Em seguida, está prevista a gratuidade das publicações na imprensa oficial, estando o beneficiário, inclusive, dispensado da publicação em outros meios. O inciso IV versa sobre a indenização devida às testemunhas que, para Hélio Márcio Campo, não só não 30 CAMPO, op. cit., p. 79. 31 FELIPPE, Donaldo J. Dicionário Jurídico de Bolso. 12. ed. Campinas: Bookseller, 1997. p. 152. 32 CAMPO, op. cit., p. 80. 33 Cabe observar que a atual cobrança da despesa com selos postais não guarda relação com o antigo imposto do selo, revogado pelo art. 15 da lei n. 5143/66. Enquanto o selo postal se destina à comprovação do pagamento da prestação de um serviço postal (art. 47, lei n. 6538/78), imposto do selo se referia à tributação sobre algumas operações de crédito e de câmbio; seguro e capitalização; transferência de bens, créditos e direitos; arrendamento ou locação; empreitada; constituição de sociedades; obrigações diversas e serviços públicos. 19 se trata de despesa processual, como consiste em uma disposição superada, visto que o depoimento testemunhal é considerado serviço público e, portanto, não pode acarretar prejuízo de ordem trabalhista para quem o presta 34 . Também há previsão de gratuidade para os exames de DNA e outros exames considerados essenciais 35 . No inciso VI são mencionados os honorários advocatícios e periciais e as remunerações de intérprete e de tradutor, que serão abordados de forma mais completa em tópico posterior. Por fim, há o custo com a elaboração de memória de cálculo, dispositivo este que consiste na maior inovação com relação à lei n. 1060/50. Apesar de não haver previsão legal, diversos tribunais, em especial tribunais superiores, incluem a dispensa do pagamento da taxa de porte de remessa e retorno entre os direitos do beneficiário da assistência jurídica gratuita 36 . Ainda em se tratando de despesas judiciais, interessa mencionar as multas. No novo CPC esta figura é a exceção à gratuidade das despesas processuais, pois devem ser pagas ao final do processo independentemente do deferimento do benefício, conforme dispõe o art. 98, §4º. Tal medida visa desencorajar a propositura de lides temerárias, algo que fica claro com a reprovação da litigância de má-fé expressa no parágrafo único art. 100. As despesas extrajudiciais se referem aos gastos em cartório e registros públicos efetuados na forma do art. 98, §1º, IX. Mesmo que estas despesas são se deem no âmbito judicial, são englobadas pela assistência jurídica gratuita por serem essenciais para o andamento do processo. 1.2.3 Honorários Embora previstos no mesmo inciso, o honorários advocatícios são disciplinados de forma diversa dos honorários devidos a peritos, intérpretes e tradutores. Honorário advocatício é um pagamento que a parte sucumbente deve ao advogado da parte contrária. Distingue-se das demais despesas devido a sua natureza alimentar. Não se confunde com a remuneração paga pelo litigante ao seu próprio advogado, pois esta é estabelecida em contrato em momento prévio à ajuização da demanda. Os honorários 34 CAMPO, op. cit., p. 81 e 82. 35 Nas ações que tramitam em âmbito federal, a Resolução n. 305/2014 do Conselho da Justiça Federal (CJF) prevê o encaminhamento do litigante para o Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização de exames laboratoriais ou radiológicos (art.5º, parágrafo único). 36 Neste sentido: Resp 245.663/MG, Resp 429.216/RS, Resp 445.904/PI, AG 351.360-STF. 20 advocatícios são arbitrados pelo juiz segundo os parâmetros estabelecidos pelo art. 85, §§2º e 3º do novo CPC. Mesmo quando deferida a justiça gratuita, não está isento o litigante hipossuficiente do pagamento desta verba, há apenas sua inexigibilidade, a qual cessa com eventual melhora na situação econômica do sucumbente. Os honorários periciais e a remuneração do intérprete e do tradutor são disciplinados com maiores detalhes em portarias expedidas pelos tribunais. Diferentemente dos honorários advocatícios, estas remunerações possuem um teto definido por cada tribunal, cuja fixação independe do valor da causa. O recebimento dos honorários se dá por meio de precatório ou, conforme o caso, requisição de pequeno valor. Só há pagamento de honorários advocatícios desta maneira quando se tratar de advogado dativo. 1.2.4 Caução A questão da caução na assistência jurídica gratuita é controversa. Hélio Márcio Campo argumenta a seu favor, afirmando que a ausência da necessidade de prestação de garantia seria um estímulo a atos temerários e conduta de má-fé 37 . Em contrapartida, muitos autores veem na imposição da caução uma forma de dificultar o acesso à justiça 38 . Embora a legislação tenha sido omissa nesse ponto, a segunda corrente se mostra mais próxima do que preceitua a CF. Aliás, a própria omissão se revela desfavorável à primeira tese, pois, caso o legislador tivesse a intenção de estabelecer a obrigatoriedade da caução, teria feito expressamente. No judiciário persiste a controvérsia. O único ponto em que as decisões judiciais entram em consenso é com relação à inexigibilidade de cauçãodos brasileiros e estrangeiros residentes no exterior quando existir tratado neste sentido 39 ; todavia, nestes casos não há a necessidade de se tratar de litigante hipossuficiente. 1.2.5 Ônus de Sucumbência Restando vencedor na demanda o hipossuficiente, é imposto à parte contrária o ônus da sucumbência, passando-se à fase do cumprimento de sentença. Caso seja vencido, também há a condenação, mas sua exigibilidade fica suspensa enquanto persistir a hipossuficiência do 37 CAMPO, op. cit., p. 90. 38 Cf. ASSIS, op. cit., p. 167 e DEMO, Roberto Luis Luchi, op. cit. 39 Neste sentido: AI 1.093.446-6/PR, AI 28.582-83/RJ, AI 70.047.903.018/RS 21 sucumbente. Além do critério material, a exigibilidade do ônus da sucumbência se encerra com o prazo prescricional de cinco anos, conforme prevê o art. 98, §3º do novo CPC. As redações do CPC de 1973 e do art. 3º da lei n. 1060/50, ambas revogadas pelo novo CPC, eram dúbias no tocante aos efeitos das benesses da assistência jurídica gratuita quanto às despesas processuais, podendo-se discutir se as regras dos dispositivos significavam a isenção das despesas ou apenas a desnecessidade de adiantá-las. Hélio Márcio Campo aponta a si mesmo, além de Francesco Carnelutti, João Bonumá, Moacyr Amaral Santos e Pontes de Miranda como defensores da segunda hipótese 40 , embora na prática seja pouco provável que a parte reverta sua situação econômica em tão pouco tempo. O novo CPC, por sua vez, dirimiu a dúvida e ratificou o entendimento destes autores no seu art. 98, §§2º e 3º, prevendo a responsabilidade do beneficiário tanto pelas despesas processuais quanto pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência, ficando estes créditos sob condição suspensiva de exigibilidade. Outra questão, levantada pela Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, refere-se à dificuldade que a parte vencedora tem em acompanhar a situação econômica do sucumbente, entendendo “recomendável outorgar-se ao interessado os meios legais para averiguar a situação patrimonial daquele”41. 1.3 Requisitos A legislação brasileira estabelece como principal requisito para a concessão da assistência jurídica gratuita a comprovação da condição de necessitado, conforme o art. 5º, LXXIV da CF. Ressalte-se que esta etapa ocorre em momento prévio à demanda judicial, situando-se em âmbito administrativo, pois a análise das provas apresentadas cabe à Defensoria Pública. A Deliberação do Conselho Superior da Defensoria Pública (CSDP) nº 89, em seu art. 2º, traz os parâmetros adotados pelo órgão para a aferição da hipossuficiência, os quais consistem no auferimento de renda mensal não superior a três salários mínimos federais por parte da entidade familiar do postulante, exceto quando verificados fatores que evidenciem exclusão social (entidade familiar composta: por mais de cinco membros; por pessoa com deficiência ou transtorno global do desenvolvimento; por pessoa idosa ou egressa do sistema prisional, desde que a entidade seja constituída por quatro ou mais membros; bem como gastos mensais com tratamento médico por doença grave ou aquisição de medicamentos, conforme o §4º deste mesmo artigo), casos em que o limite é de quatro 40 CAMPO, op. cit., p. 78. 41 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Novo Código de Processo Civil Anotado. Porto Alegre: OAB RS, 2015, p. 125. 22 salários mínimos federais; não ser proprietário, titular de aquisição, herdeiro, legatário ou usufrutuário de bens ou direitos cujo valor ultrapasse cinco mil Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESPs); nem possuir aplicações ou investimentos financeiros de valor superior a doze salários mínimos federais. A Defensoria Pública também presta assistência jurídica gratuita às entidades civis sem fins lucrativos cujo objeto social seja a tutela do interesse dos necessitados, desde que estas não tenham como custear a contratação de advogados. Enquanto a finalidade da entidade é comprovada através do contrato social, a carência é presumida quando cumpridas as condições do art. 3º da Deliberação CSDP nº 89, as quais são: a não remuneração de empregado, prestador de serviços autônomo, sócio ou administrador com valor bruto mensal superior a três salários mínimos federais; não ser proprietária, titular de aquisição, herdeira, legatária ou usufrutuária de bens ou direitos cujo valor ultrapasse cinco mil UFESPs; e não possuir aplicações ou investimentos financeiros de valor superior a doze salários mínimos federais. Em ambas as hipóteses, a Defensoria Pública exige a assinatura da declaração de necessitado e o preenchimento da avaliação da situação econômico-financeira do pleiteante, além da carteira de trabalho, comprovante de rendimentos ou declaração do empregador ou tomador de serviços em caso de pessoa física, e balanço patrimonial e demonstração de resultados em caso de entidade civil, na forma do art. 6º da CSDP nº 89. Entretanto, se não for possível a exibição destes documentos, bastam as informações alegadas na avaliação da situação econômico-financeira, as quais devem ser presumidas verdadeiras segundo o §4º deste mesmo artigo. Concedida a assistência jurídica, não há a necessidade de ser comprovada a hipossuficiência em juízo, bastando que esta seja alegada na petição inicial, como dispunha o art. 4º da lei n. 1060/50 e está previsto atualmente no art. 99, §3º do novo CPC. É importante ressaltar que a prova da necessidade exigida constitucionalmente só se aplica aos casos em que se busca representação em juízo e/ou consultoria jurídica. Quando a parte requer somente a gratuidade, sem procurar o auxílio da Defensoria Pública, a mera alegação de que não possui recursos para arcar com as custas, despesas processuais e honorários advocatícios sem prejuízo próprio e de sua família é suficiente (art. 98, novo CPC e art. 4º, lei n. 1060/50). Note-se que para a concessão da gratuidade não é requerida situação tão grave quanto aquela exigida pela Defensoria Pública dos que aspiram à assistência jurídica 23 gratuita, sendo permitido, inclusive, que a parte seja assistida por advogado particular. Hélio Márcio Campo afirma que a comprovação de carência não deve estar endereçada ao processo, mas sim à Defensoria Pública, pelo fato de que é esta que possui verdadeiro interesse nestas informações, uma vez que é a encarregada da postulação do pedido de gratuidade judiciária aos necessitados 42 . Araken de Assis, por sua vez, apresenta uma leitura ainda mais literal da CF, entendendo que: A par de outros elementos dignos de registro, inexiste dúvida maior de que a distinção entre o benefício da justiça gratuita e o da assistência jurídica, contemplada no art. 5º, LXXIV, da Constituição, se baseará na desnecessidade de qualquer prova para fazer jus àquele. O texto constitucional apresenta sentido unívoco: o Estado prestará assistência jurídica somente àqueles que comprovarem a necessidade deste serviço. 43 Todavia, cabe registrar que a presunção de veracidade da alegação de pobreza é relativa, sendo que o magistrado pode indeferir o pedido se houver evidências nos autos de que não foram preenchidos todos os pressupostos para a concessão da gratuidade, desde que, conforme dispõe o art. 99, §2º do novo CPC, tenha dado à parte a oportunidade de comprovar seu preenchimento 44 . Também vale pontuar que a desnecessidade de prova se aplica somente às pessoas físicas 45 . Com relação às pessoas jurídicas, a súmula 481 do STJ estabelece que, com ou sem fins lucrativos, a concessão da gratuidade depende da demonstração deimpossibilidade de 42 CAMPO, op. cit., p. 67. 43 ASSIS, op. cit., p. 176. 44 Mesmo antes do novo CPC prever expressamente a relatividade da presunção da declaração de insuficiência de recursos, a jurisprudência já apontava para este caminho. Neste sentido: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO REVISIONAL. GRATUIDADE JUDICIÁRIA. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL REFORÇOU E NÃO REVOGOU A PRESUNÇÃO DE POBREZA DA LEI DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. PRESUNÇÃO, CONTUDO, DE NATUREZA RELATIVA. INDEFERIMENTO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. O Supremo Tribunal Federal tem decidido que a regra do art. 5º, LXXIV da CRFB - assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos - não revogou, antes reforçou, a norma da LAJ de que, para o convencimento do juízo, pode bastar a declaração pelo próprio interessado, de que a sua situação econômica não permite vir a juízo sem prejuízo da sua manutenção ou de sua família, presunção legal, contudo, que ostenta caráter relativo, e não absoluto, em razão do que não se afasta a possibilidade de o Magistrado, quando considerar necessário, determinar à parte que demonstre que efetivamente necessita do benefício. Caso dos autos em que a determinação de juntada de comprovante de pagamento de imposto de renda não restou atendido, inexistindo demonstração da necessidade do beneplácito perseguido ao juízo de origem. Manutenção da decisão de indeferimento do benefício que se impõe, a qual pode - e deve - ser revista a qualquer tempo, alteradas as premissas fáticas que ora impedem a sua não concessão, uma vez demonstrada, pela parte autora, a sua alegada necessidade. AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. (Agravo de Instrumento Nº 70066188863, Vigésima Terceira Câmara... Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Paula Dalbosco, Julgado em 25/08/2015) (TJ- RS - AI: 70066188863 RS, Relator: Ana Paula Dalbosco, Data de Julgamento: 25/08/2015, Vigésima Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/08/2015)”. 45 Cf. RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: teoria e prática. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 365. 24 arcar com os encargos processuais. Entretanto, há julgados que contrariam esta disposição no que tange às pessoas jurídicas sem fins lucrativos, sob o argumento de que, em razão de seu caráter filantrópico, presume-se que não têm condições arcar com as custas do processo 46 . Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que visa instituir novos requisitos para a concessão da gratuidade judiciária. O PL 717/2011, de autoria do deputado Vicente Cândido, entende como necessária a revogação da lei n. 1060/50, objetivando critérios mais rigorosos para a obtenção das isenções compreendidas pelo instituto da gratuidade e restringindo-as às pessoas físicas, pessoas jurídicas sem fins lucrativos e microempresas. Caso o projeto se torne lei, a pessoa física pleiteante deverá comprovar possuir no mínimo dois dos seguintes requisitos: ter renda familiar de até dois salários mínimos, pertencer a programa de assistência social governamental ou ser isento da apresentação da declaração de ajuste anual do imposto de renda (art. 5º, §2º). Também será estendida a isenção aos assistidos pela Defensoria Pública. Notadamente contrário à jurisprudência majoritária, o projeto busca reduzir a abrangência da gratuidade judiciária, dificultando o acesso à justiça em favor de uma maior arrecadação de receita por parte do Judiciário. Outro ponto do documento que merece destaque é a proposta do parcelamento das custas, que ameniza as restrições impostas pelas disposições anteriores, mas não é suficiente para compensar o retrocesso que estas representam. Diferentemente do Brasil, juntamente à necessidade de prova da hipossuficiência, algumas legislações estrangeiras adotam o critério da perspectiva de êxito da demanda. Um exemplo é o § 114 do Título 7 do ZPO, o Código de Processo Civil alemão, que atrela a concessão da assistência jurídica gratuita à prova de que a causa possui perspectiva razoável de sucesso e que não constitui lide temerária, além de que a parte é submetida a uma avaliação, que pode incluir peritos e a oitiva de testemunhas e do próprio pleiteante se o juiz entender necessário, para a constatação da veracidade da situação alegada, sendo deferido o benefício somente depois de ouvida a parte contrária (§ 118). Apesar de este critério possuir seus defensores no país, os quais o consideram necessário em razão dos altos custos processo 47 , jamais poderia ser adotado pela legislação pátria, visto que restringiria o direito de ação e representaria uma afronta aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 46 Neste sentido: AI 70054740832/RS; AI 70041287202/RS 47 ASSIS, op. cit., p. 163. 25 Ao estrangeiro residente no exterior são acrescentados ainda mais requisitos conforme dispuser o tratado de cooperação jurídica internacional que este utilizar para requerer o benefício no Brasil. Já com relação ao brasileiro residente no país que pretende litigar no exterior, não se aplicam os requisitos aqui apresentados, mas sim os que estiverem elencados no tratado de cooperação e os requisitos que a própria Justiça do país estrangeiro estabelecer. O capítulo a seguir analisará estas situações e os referidos tratados de cooperação jurídica internacional com mais detalhes. 26 CAPÍTULO 2 DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL 2.1 Relevância do Estudo da Cooperação Jurídica Internacional Como já mencionado anteriormente, o Estado tomou para si a responsabilidade de prestar a tutela jurisdicional aos cidadãos. Esta atividade é limitada internamente pelo próprio Estado de várias maneiras, seja através de princípios, como a inércia, que vincula sua atuação à provocação por uma das partes, ou através da separação dos poderes, instituída pelo art. 2º da CF, segundo a qual Judiciário, Executivo e Legislativo não podem interferir nas funções uns dos outros, trabalhando de forma harmônica e independente entre si. Há algumas situações, no entanto, em que estes limites podem ser relativizados. Um exemplo é a possibilidade de revisão judicial dos atos dos demais poderes, uma forma de controle de constitucionalidade repressivo 48 . Neste caso, a invasão da competência dos poderes se justifica pela própria configuração da República Federativa do Brasil, que, como definido no preâmbulo constitucional, é um Estado democrático, destinado a assegurar um extenso rol de direitos, sendo a revisão judicial uma forma de garantir este constitucionalismo democrático 49 . Do mesmo modo, as limitações externas, concernentes à abrangência da jurisdição, devem ser relativizadas. Isto porque, como afirma Caio Gonzalez de Babo, a jurisdição é emanação da soberania estatal 50 , soberania esta que é una, significando que: internamente, caracteriza-se por esse por esse poder único e supremo sobre os indivíduos que habitam seu território; externamente, caracteriza-se pela ausência de subordinação e dependência entre os Estados, colocando-os numa posição de igualdade. 51 Assim, teoricamente, o único limite ao alcance da jurisdição seria o seu caráter territorial. Todavia, em um mundo globalizado, marcado pela movimentação de pessoas e bens entre diferentes países, é frequente que o sucesso da prestação jurisdicional dependa da prática de atos em outro Estado. Por esta razão, tornou-se necessária a criação de um48 Cf. AGUIRRE, Lissandra Espinosa de Mello; KOZICKI, Katya. O Amparo da Revisão Judicial na Constituição Brasileira. In: XXII Encontro Nacional do CONPEDI, 22., 2013, Curitiba. Teoria do Estado e da Constituição (recurso eletrônico online). Florianópolis: FUNJAB, 2013, p. 514-529. p. 516, segundo as quais as formas de controle de constitucionalidade podem ser preventivas, como o veto presidencial e a atuação das Comissões de Constituição e Justiça e Cidadania do Congresso Nacional, realizados, respectivamente, pelos poderes Executivo e Legislativo; ou repressivas, realizadas pelo poder Judiciário. 49 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 26. 50 BABO, Caio Gonzalez de. As Cartas Rogatórias como Meio de Efetividade da Cooperação Jurídica Internacional. 2010. 75f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em Direito)- Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2010. p. 11. 51 Ibidem, p. 12. 27 mecanismo que permitisse a prática destes atos de maneira a ofender o mínimo possível a soberania dos países. Neste contexto, a discussão acerca de dois institutos ganhou extrema importância: a jurisdição internacional e a competência internacional. Para Beat Walter Rechsteiner o Estado não é totalmente livre na sua decisão de exercer jurisdição no seu território. A lide em relação à qual reivindica jurisdição tem de ter pelo menos uma certa analogia com ele, embora os limites da extensão de jurisdição estatal, prescritos no direito internacional público, não sejam ainda claramente delineados pela doutrina internacional. 52 Com esta conceituação da jurisdição internacional, são estabelecidos novos limites ao alcance da jurisdição. Além dos limites gerais, relacionados ao território, há os específicos, ditados pelo Direito Internacional Público, exemplificados pelo autor com a imunidade de jurisdição 53 . Já a competência internacional tem o seu fundamento no direito interno. Por consequência disso, determina apenas em que medida um Estado pretenda exercer o seu poder de jurisdição em consonância com o direito internacional público no seu território quando existe uma conexão internacional de uma lide submetida ao julgamento de um juízo nacional. 54 Esta não se confunde com a competência interna, que consiste em uma delimitação da prestação jurisdicional conforme critérios de matéria, foro, valor, função ou território, instituída pela lei processual 55 . Isto não quer dizer, porém, que a competência internacional não possui suas próprias classificações. Assim, pode ser direta, quando se tratar de processo instaurado no país, ou indireta, quando a causa já tiver sido apreciada anteriormente por juízo estrangeiro (geralmente, trata-se de homologação de sentença estrangeira); concorrente/relativa/alternativa/cumulativa, quando mais de um Estado for competente para apreciação da demanda, ou exclusiva/absoluta, quando apenas um Estado for competente; com relação ao foro, pode ser geral, estabelecido por cada Estado, sendo que no Brasil é o domicílio do réu, conforme dispõe o art. 46 do novo CPC, ou especial, quando houver disposição legal neste sentido ou quando for admitida eleição de foro 56 . 52 RECHSTEINER, op. cit., p. 271. 53 Ibidem. 54 Ibidem. 55 O novo CPC dispõe sobre competência interna nos arts. 42 a 69. 56 Cf. RECHSTEINER, op. cit, p. 277-278, segundo o qual, além destas classificações, há que se falar em foros exorbitantes “quando é suficiente, para fixar a competência internacional, uma conexão mínima dos fatos com a lex fori”, e em perpetuatio fori, quando “uma vez determinada a competência, as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente são irrelevantes”. 28 Também não se confunde com a competência legislativa, visto que atua no plano jurisdicional, embora ambas advenham do Direito interno e sejam formas de expressão da soberania do Estado. Sinteticamente, nas palavras de Jacob Dolinger, a questão do conflito de jurisdições “gira em torno da competência do Judiciário na solução de situações que envolvem pessoas, coisas ou interesses que extravasam os limites de uma soberania”57. Estas situações surgem quando nem todos os elementos de um caso levado à apreciação judicial estão ligados diretamente ao Estado julgador, verificando-se elemento de estraneidade e, portanto, uma relação jurídica com conexão internacional 58 . Os Estados encontraram duas soluções para estes conflitos: a uniformização das normas de competência internacional e a criação de acordos de cooperação jurídica internacional. As normas de competência internacional, em regra, emanam de leis processuais internas. No Brasil, a questão está disciplinada, principalmente, no novo CPC e na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), a lei n. 4657/42 59 . Entretanto, há uma crescente busca da sociedade internacional 60 pela uniformização do Direito Processual Internacional, o qual engloba a questão da competência internacional. Esta uniformização é promovida por organizações internacionais e pode ter como alvo um grupo específico de países, como ocorre com o MERCOSUL, a União Europeia e a OEA (por meio das CIDIP), ou pode visar o maior número possível de países, como ocorre com a Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, a UNCITRAL e a UNIDROIT. Segundo Jacob Dolinger, a uniformização do Direito pode se dar de quatro formas 61 : por meio do Direito Uniforme (ou uniformizado) 62 , consistente em normas internas que, espontânea ou intencionalmente, recebem o mesmo tratamento por sistemas jurídicos 57 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 20. 58 BABO, op. cit., p. 16. 59 O novo CPC dispõe sobre a questão nos arts. 21 a 25. No antigo CPC, a questão estava disciplinada no livro IV, capítulo II, intitulado “Da Competência Internacional”, que compreendia os arts. 88 a 90. Já a LINDB trata do assunto no art. 12. Outros diplomas também dispõem sobre a competência, só que de modo mais específico, como, por exemplo, a CLT, que traz no seu art. 651 sua delimitação no âmbito do Direito do Trabalho. 60 Cf. BEVILAQUA, Clovis. Princípios Elementares de Direito Internacional Privado. Campinas: RED Livros, 2002, p. 56, para quem a sociedade internacional “não é formada por um agrupamento de Estados e sim pela aproximação de indivíduos que se vinculam por interesses privados, sejam econômicos, familiares ou espirituaes”. Para o autor, esta sociedade surgiria de forma espontânea e se realizaria pela adoção de um sistema harmônico de soluções de conflitos entre as legislações. Vide também DOLINGER, op. cit., p. 30, segundo o qual a sociedade internacional é composta pelo encontro de elementos de várias sociedades nacionais. 61 DOLINGER, op. cit., p. 171. 62 O autor critica o uso pelas doutrinas da expressão Direito Uniforme para as situações em que as regras são uniformizadas intencionalmente, afirmando que a expressão correta seria Direito Uniformizado. Vide DOLINGER, op. cit., p. 164. 29 diferentes; do Direito Internacional Uniformizado, que cria leis uniformes visando uniformizar regras jurídicas disciplinadoras de matérias específicas; do Direito Internacional Privado, no qual cada país determina a lei aplicável ou a jurisdição ou tribunal competente para apreciação da demanda a partir de regras de conexão; ou do DireitoInternacional Privado Uniforme, no qual são criados tratados estabelecendo as regras de conexão a serem utilizadas pelos países. As normas estabelecidas pelas organizações internacionais mencionadas se concentram no âmbito do Direito Internacional Uniformizado e do Direito Internacional Privado Uniforme. Enquanto as duas primeiras formas fazem parte do sistema uniformizador, que visa eliminar o conflito, as demais integram o sistema harmonizador, que tem por objetivo resolver o conflito através da indicação da lei aplicável. Apesar de existirem esforços internacionais para a concretização de todas estas formas, Jacob Dolinger atenta para o fato de que o funcionamento do sistema uniformizador sozinho é utópico, tendo em vista as diferentes tradições e necessidades de cada país; portanto, defende a adoção supletiva de ambos os sistemas, aplicando-se regras harmonizadoras quando a operacionalização do sistema unificador for impossível 63 . A cooperação jurídica internacional, por sua vez, diz respeito a situações em que não há problemas com a competência internacional. Ocorre, no entanto, que, devido aos elementos de conexão internacional existentes na demanda, faz-se necessária a prática de diligência ou de ato não executório em território estrangeiro. Os acordos de cooperação jurídica internacional são firmados com o intuito de permitir a prática destes atos sem que seja desrespeitada a soberania do Estado estrangeiro, regulando a forma pela qual isto deve ocorrer. Outras situações que também podem ser objetos destes acordos são os pedidos de reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras e os pedidos de informação acerca do direito estrangeiro. O crescimento da importância destes institutos é tamanho, que pode ser afirmado que, contradizendo importantes autores tradicionais como Haroldo Valladão e Pimenta Bueno 64 , constituem o novo foco do Direito Internacional Privado. Segundo Haroldo Valladão, o Direito Internacional Privado “é o ramo da ciência jurídica que resolve os conflitos de leis no espaço, disciplinando os fatos em conexão no espaço com leis divergentes e autônomas”65. O Supremo Tribunal Federal (STF) também possui julgados antigos que se posicionam neste 63 DOLINGER, op. cit., p. 166-169. 64 VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1970. p. 41. 65 Ibidem, p. 38. 30 sentido, como se vê no voto do Ministro Costa Manso no Conflito de Jurisdição 1128/1936, segundo o qual: “A função do direito internacional privado é, dada a diversidade de legislações, apontar qual o estatuto que deva reger a espécie em exame. Depois disto, a missão do juiz é aplicar o direito privado, como nos casos normais”. Também neste sentido, podem ser apontados o Recurso Extraordinário 113/1895 e o Conflito de Jurisdição 1118/1936. Nota-se que os posicionamentos tradicionais apresentados gravitam em torno do fato de que se trata de um Direito que lida com conflitos de leis; todavia, em decorrência, principalmente, da atual dinâmica de mobilidade entre países, alguns dos estudiosos mais recentes deste ramo jurídico têm entendido que seu objeto compreende mais do que a questão da lei aplicável a casos que apresentem conexão internacional. Enquanto para Haroldo Valladão, adepto da escola alemã, o objeto do Direito Internacional Privado abrange somente “os conflitos de leis no espaço, ou as relações jurídicas conectadas espacialmente com leis autônomas e divergentes”66, podendo estas leis serem de qualquer natureza, para a corrente francesa, a concepção é muito mais ampla, envolvendo, além do conflito de leis, as questões de nacionalidade, condição jurídica do estrangeiro e o conflito de jurisdições 67 . À vertente francesa, Antoine Pillet adiciona um quinto objeto: os direitos adquiridos na dimensão internacional, os quais se referem a relações jurídicas surgidas em uma jurisdição e cujos efeitos repercutem em outra, a qual apresenta legislação diversa 68 . Já Jacob Dolinger acrescenta o reconhecimento das sentenças proferidas no exterior 69 . Oscar Tenório, baseando-se nas ideias do francês Etienne Adolphe Bartin, afirma que o objeto do Direito Internacional Privado compreende, “independentemente do estudo preliminar da nacionalidade e da condição civil dos estrangeiros, os conflitos de legislação e os conflitos de jurisdição, no espaço e no tempo”70, concentrando-se no campo das leis civis. Outra corrente de destaque é a anglo-saxônica, endossada por Nadia de Araujo, segundo a qual o entendimento do Direito Internacional Privado está ligado à resposta de três perguntas nucleares: em que local acionar (relacionada à competência internacional), qual a lei aplicável e como executar atos e decisões estrangeiras (relacionada à cooperação jurídica 66 VALLADÃO, op. cit., p. 42. 67 DOLINGER, op. cit., p. 19. 68 Ibidem, p. 20. 69 Ibidem. 70 TENÓRIO, Oscar. Direito Internacional Privado. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1976. p. 16. 31 internacional) 71 . Beat Walter Rechsteiner, por sua vez, sem se filiar especificamente a nenhuma corrente, defende a existência de um Direito Internacional Privado stricto e lato sensu 72 . Stricto sensu, este ramo jurídico se refere apenas ao conflito de leis. Lato sensu, trata- se do Direito Processual Internacional. Mesmo entre os autores tradicionais há quem se oponha em parte à concepção do conflito de leis como objeto único, como Clovis Bevilaqua, para quem os fundamentos lógicos e sociais deste ramo do Direito são a diversidade de leis e o comércio internacional. Quanto a este último, afirma que é função do Direito Internacional Privado a criação de normas especiais que regulem o comércio entre os países, formuladas de comum acordo entre as nações 73 . Assim, à dimensão da resolução dos conflitos de leis, é adicionada a uniformização desta área do Direito. Entretanto, apesar da visão avançada para a época, ao discorrer sobre o objeto do Direito Internacional Privado o autor se mostrou pouco inovador, afirmando, com base na teoria de Antoine Pillet, que consistia na condição jurídica dos estrangeiros, no conflito de leis e no exercício em um país de direitos legitimamente adquiridos em outro 74 . Várias são as razões que motivam a mudança do foco do Direito Internacional Privado. Caio Gonzalez de Babo, baseando-se nas ideias de Diego P. Fernández Arroyo, afirma que isto ocorre pelo fato de que a questão da lei aplicável deixou de ser a maior preocupação, uma vez que a escolha dos elementos de conexão relacionados ao assunto apresenta certa uniformização, além de que já há grande número de tratados resolvendo os conflitos através de normas materiais, dispensando o uso das normas indiretas deste ramo do Direito 75 . Com a quantidade de demandas relacionadas à competência e à cooperação jurídica internacional, é natural que este ramo jurídico tenha voltado sua atenção para esta direção. Também deve ser observado que estes institutos estão ligados ao acesso à justiça, um direito fundamental de extrema relevância tanto para o Direito interno como para o internacional. Ademais, é visível o esforço da sociedade internacional para a uniformização do Direito Internacional Privado, sendo que Nadia de Araujo atenta especialmente para a importância que tem sido atribuída à cooperação jurídica internacional 76 . 71 ARAUJO, op. cit., p. 36. 72 RECHSTEINER, op. cit., p. 29. 73 BEVILAQUA, op. cit., p. 10. 74
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