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“O Ofício do Etnólogo ou como Ter ‘Anthropological Blues’” - Roberto da Matta* Introdução O presente artigo faz parte de uma coletânea de textos e crônicas que relatam a experiência de diversos pesquisadores brasileiros de diferentes regiões e das mais variadas formações e interesses nas ciências sociais, reunidos no livro A Aventura Sociológica organizado por Edson de Oliveira Nunes. Em 1976 o organizador começou a perceber a discrepância entre o trabalho diário do pesquisador e as prescrições dos manuais de técnicas de pesquisa. Junto com esta dúvida surgiram também questões sobre os problemas relativos à organização e administração da pesquisa a nível institucional. Ele pensou nesta coletânea de textos com o objetivo de mostrar o processo de elaboração das pesquisas sociais sem seguir os aspectos normativos da metodologia de pesquisa e com o intuito de apreender “a lógica da descoberta” de cada pesquisador desvendando o processo de reflexão e estratégias utilizadas no cotidiano das pesquisas para resgatar aspectos atípicos e pessoais de cada autor no desenrolar de sua investigação. Como justificativa, o organizador do livro, menciona o fato de existir uma variada bibliografia e inúmeras revistas e cursos para que o estudante tenha acesso às normas metodológicas da investigação e epistemologia sociológicas. No entanto, há um vazio quanto à prática dos pesquisadores como objeto de estudo, pois se sabe muito sobre os métodos mas pouco se sabe sobre “o método” utilizado para a realização de estudos específicos. Os manuais de metodologia estão mais voltados para um exame lógico dos métodos de pesquisa do que para a própria lógica ou contexto da descoberta. Nesse sentido, o estudante internaliza o corpo de referência normativo do método científico, no qual a produção de ciência implicaria numa série de passos (hipotetização, observação, testagem e confirmação), que, por serem procedimentos consensuais na comunidade ciéntifica, estariam garantindo a racionalidade que caracteriza a pesquisa científica e afastando as possíveis intereferências advindas dos sentimentos pessoais do pesquisador. O organizador da coletânea, Oliveira Nunes, não descarta a importância da utilização de tais arcabouços lógicos e normativos para o processo de investigação e para a comunicação dos resultados desse processo, pois estes são de extrema utilidade quanto aos padrões de julgamento e validação dos estudos pela comunicade científica. No entanto, “o estudo das práticas dos pesquisadores em seu cotidiano de investigação pode, […] oferecer estimulantes subsídios ao estudante voltado para o aprendizado do corpo normativo da metodologia de * Resenha escrita por Gisele Fernanda Alves Lopes e Maria Gabriela Guillén Cárias no 1º semestre de 2008 para a disciplina “Métodos em Ciências Sociais”. pesquisa”. Tomar como objeto de estudo o sociólogo na sua prática cotidiana de investigação pode enriquecer o acervo metodológico das disciplinas em ciências sociais e mostrar como as preferências e estilos pessoais influenciam as soluções que os pesquisadores encontram para os problemas postos no processo de investigação. O estudo destas soluções dadas por cada pesquisador é importante na medida em que estas podem ser agregadas ao corpo metodológico pré-existente. Assim, os artigos reunidos no livro Aventura Sociológica são particularizantes e não generalizantes e se referem mais à prática dos autores da pesquisa do que ao arcabouço normativo-metodológico. O organizador aponta para o fato de que deveria ser dada mais atenção à descrição da pesquisa: elaboração do projeto, grau de especificação do projeto e do desenho inicial, modificações ocorridas, problemas, falhas, erros, relação com o objeto estudado, com patrocinadores, etc. para deixar claros os pontos de desvio, soluções e achados. Este livro não tenta ensinar como pesquisar e sim descrever o processo de realização, sem se preocupar no processo de como pesquisar, num esforço de desformalizar a narrativa para expôr a experiência vivida pelo pesquisador. Há em Etnologia três fases fundamentais na pesquisa a partir do cotidiano: 1. Fase teórico-intelectual: quando não se tem nenhum contato com o objeto do estudo, onde há um divórcio entre o futuro pesquisador e a tribo, classe social, mito, etc. que fazem parte daquilo que se procura ver, encarar, enxergar, explicar, etc. Divórcio que não é pela ignorância do estudante. Ele é um excesso de conhecimento teórico, universal e mediatizado não pelo concreto específico, mas pelo abstrato e nào vivenciado: livros, artigos, ensaios dos outros. Nesta fase, as aldeias são diagramas, os matrimônios são desenhos geométricos simetricos e equilibrados. Muito pouco se pensa em coisas específicas que dizem a respeito da própria experiência quando o conhecimento é permeabilizado por cheiros, cores, dores e amores. Perdas, ansiedades e medos que os manuais não recolhem. 2. Fase de período prático: ocorre na antevéspera de pesquisa e se dá em circunstâncias que acarretam mudanças dramáticas, e se passa de teorias universais para os problemas mais banalmente concretos, e tem a ver com questões de logística da pesquisa: quanto arroz levarei, que tipo de remédios, onde vou dormir, comer, etc. quando for ao campo. Coisas que não são nada agradáveis, mas quando o nosso treinamento é excesivamente teórico, já não se trata de citar algum herói-civilizador mas de colocar a especificidade e relatividade de sua própria experiência. 3. Fase pessoal ou existêncial: não há mais divisões nítidas entre as etapas da nossa formação científica ou acadêmica, mas uma certa visão de conjunto. Enquanto o plano teórico-intelectual é medido pela competência acadêmica e o plano prático pela perturbação de uma realidade que se torna mais mediata, o plano existencial é trata das lições a serem extraidas do próprio caso de pesquisador. Por isso, ela é globalizadora e integradora: deve sintetizar a biografia com a teoria, e a prática do mundo com a do ofício. Nesta dimensão se dialoga com pessoas de verdade, não com simples diagramas simétricos, a realidade se sente em todos os âmbitos: pessoas de todos os tipos, as dificuldades do lugar, o clima, as doenças, etc. O pesquisador se dá conta que está entre dois fogos: a sua cultura e uma outra, o seu mundo e um outro e se coloca como tradutor de um outro sistema para a linguagem dele mesmo. Mas da Matta tenta trazer um “outro lado” dessa tradição oficial: os aspectos anedóticos que aperecem nas conversas de congressos, coquetéis e momentos não formais (situações tragicômicas, diarréias, dificuldades em conseguir comida etc). Os chamados aspectos “românticos” da disciplina, quando o etnólogo tem que executar toda sorte de personagens: médico, cozinheiro, mediador, etc. É curioso ver que estes eventos sejam chamados anedóticos sendo que a Antropologiatem um carater de comutação e de mediação, pois ela estabelece uma ponte entre dois universos com um mínimo de aparato institucional ou instrumentos de mediação. Estas histórias, talvez as mais importantes e significativas, são deixadas de lado, não se assumindo o lado humano e fenomenológico da disciplina com um temor de revelar a carga subjetiva da pesquisa de campo e não assumir o ofício de etnólogo integralmente: é o medo de sentir o Anthropological Blues. Por Anthropological Blues se quer cobrir e descobrir de modo sistemático os aspectos interpretativos do ofício de etnólogo. Trata-se de incoporar nas rotinas oficiais os aspectos extraordinários de todo relacionamento humano. Só se tem Antropologia Social quando se tem o exótico, que depende da distância social, que tem como componente a marginalidade (relativa ou absoluta), que se alimenta de um sentimento de segregação e implica em estar só, promovendo o sentimento de estranhamento. De acordo com o autor, o ofício do etnólogo exige, primordialmente, uma dupla tarefa: transformar o exótico em familiar, e, inversamente, transformar aquilo que nos é familiar em exótico. Em ambos os casos se necesita de dois termos (dois universos de significação) e uma vivência dos dois domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los. Isso segue a própria história da disciplina: a primeira transformação do exótico no familiar corresponde a quando os etnólogos se esforçam na busca deliberada dos enigmas sociais situados em universos de significação incompreendidos pelos meios sociais do seu tempo. Ex.: o Kula dos melanesios se reduziu num sistema comprensível de trocas alimentadas por práticas rituais, politicas, juridicas, economicas, religiosas, noção que permitiu a Mauss desenvolver a noção de “Fato Social Total” a partir das pesquisas de Malinowski. A segunda transformação corresponde ao momento presente em que a disciplina se volta para a nossa própria sociedade: um auto-exorcismo, pois se trata não de descobrir no africano, ou outros povos aquilo que parece estranho e ilógico, e sim em nós, nossas situações cotidianas, politicas etc. Assim, o etnólogo deve aprender a estranhar alguma regra social familiar e descobrir o exótico que está petrificado dentro de nós pela reificação e mecanismos de legitimação. Essas duas tranformações têm uma relação de homologia que conduzem a um encontro: a primeira transformação leva ao encontro daquilo que o pesquisador chama de bizarro: ele sai da sua sociedade, encontra os outros e finalmente retorna triunfalmente ao seu grupo com seus troféus. Na segunda tranformação a viagem é como a do xamã, um movimento onde não se sai do paradoxal: viagem vertical: para dentro ou para cima, muito mais do que horizontais. Todos aqueles que realizam estas viagems são xamãs, curadores, profetas, santos e loucos: os que se dispusseram chegar no fundo do poço da sua própria cultura. Esta transformação conduz a um encontro com o outro e ao estranhamento. Ambas transformações estão em estreita relação e não são perfeitas ou completas, implicando num ponto de chegada (quando o pesquisador se familiariza com a cultura em estudo) e um ponto de partida. No primeiro processo a aprensão é realizada pela via intelectual, e, no segundo caso, é necessário um desligamento emocional, já que a familiaridade de costume não foi adquirida via intelecto, mas via coerção socializadora. A mediação se dá pelas teorias antropológicas que funcionam como corpo de princípios guias e conduzida por um labirinto de conflitos dramáticos que são o pano de fundo das anedotas antropológicas para acentuar o toque romântico da disciplina. Então, é no processo de transformação que se deve buscar a definição do Anthropological Blues, cuja area básica é o elemento que se insinua na prática etnológica, mas que não estava sendo esperado: é aflorar de sentimentos e emoções. A tristeza e a saudade vão se insinuando no processo do trabalho de campo, e causam surpresa no etnólogo, suscitando perguntas do tipo: o que vim fazer aqui? Com que esperança? Com que fim? A afetividade e carga sentimental se intrometem sistematicamente na rotina intelectualizada da pesquisa antropológica. Entre a chegada e a partida há um momento destacável: o momento da descoberta etnográfica: o etnólogo consegue descobrir o funcionamento de uma dada instituição, compreende o sentido de uma regra que lhe parecia obscura. No momento mesmo em que o intelecto avança, as emoções estão igualmente presentes, pois é preciso compartilhar o gosto pela vitória, e, nesse momento, se depara com um novo paradoxo: o etnólogo volta para o seu mundo e se isola novamente. Porém, a Antropologia compreende um componente de alteridade: só acontece quando há um informante, e só há dados quando há um processo de empatia de ambos lados. São os informantes que salvam o etnólogo do marasmo do cotidiano nas aldeias. O Antropólogo nunca está só, no meio de um sistema exótico e que ela esta tentando familiarizar, ele está mais ligado a sua própria cultura. Quando o familiar começa a aparecer, o quando o trabalho termina, ele retorna com aqueles pedaços de imagens e pessoas que ele conheceu. O autor conlcui que é necessário recuperar o lado extraordinário das relações pesquisador/nativo, que se constitui no aspecto mais humano da rotina e é o que permite produzir uma boa etnografia. Para poder fazer uma descrição densa e não simplesmente mecânica, é preciso sentir a marginalidade, a solidão e a saudade.
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