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Povos indígenas, escolas e histórias: uma abertura para a interculturalidade Juliana Schneider Medeiros (UFRGS)∗ Claudia Pereira Antunes (UFRGS)∗∗ Resumo O texto discute a Lei 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígenas, como uma possibilidade de interculturalidade nas escolas não indígenas. Os povos indígenas vivem entre dois mundos, e a escola ocupa um espaço particular nessas relações interculturais. Apresentamos experiências de uma escola Kaingang, principalmente, a partir dos conflitos relativos ao ensino de histórias Kaingang dentro da escola. Essas experiências podem servir de inspiração para que a escola não indígena estabeleça relações de diálogo com os povos indígenas, de modo a incluir conteúdos relativos a essa temática na sala de aula. Palavras-chave: Povos indígenas. Interculturalidade. Lei 11.645/2008. Abstract This paper discusses the Law 11,645/2008, which established the study of indigenous culture and history as mandatory in teaching institutions, opening up the possibility of interculturality in non-indigenous schools. Indigenous peoples live between two worlds, and the school occupies a particular place in these intercultural relations. We present experiences from a Kain- gang school, focusing on the conflicts related to teaching Kaingang narrati- ves in school. These experiences can serve as inspiration for non-indigenous schools to establish a dialogue with the indigenous peoples, leading them to include contents related to this issue in the classroom. Keywords: Indigenous peoples. Interculturality. Law 11,645/2008. * Licenciada em História e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Atua como professora de História nas redes estadual e privada de ensino e professora do Curso de Especialização em Educação para Diversidade – Modalidade Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 226 [...] podemos decir que los indígenas siempre fueron interculturales y no es necessário que les enseñe sobre la interculturalidad. En este sentido, nos preguntamos: ¿es posible que la sociedade hegemónica sea intercultural? Ibañez Caselli, 2009, 143). 1. Introdução Aprovada em 2008 após cinco anos de tramitação no Congresso Nacional, a Lei 11.645 deu nova redação ao Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade dos conteúdos de história e cultura indígena nos currículos das escolas de educação básica do país. O mesmo artigo havia sido criado em 2003 por ocasião da aprovação da Lei 10.639, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira na sala de aula. O próprio texto de apresentação do Projeto de Lei (PL) Nº433/2003 argumenta que a Lei proposta viria a preencher uma lacuna diante da aprovação da Lei 10.639, que segundo o PL foi criticada pelos povos indígenas que não foram contemplados na mesma. Conforme a epígrafe que abre o texto, entendemos que o cuidado dos povos indígenas com os conteúdos que estão sendo ensinados nas escolas do país está relacionado com uma sabedoria daqueles que já praticam a interculturalidade, que vivem entre dois mundos e sabem que, para que isto seja possível, é necessário aprender e negociar com as diferenças. Também compartilhamos com García Canclini o entendimento de que os povos indígenas possuem um patrimônio de interculturalidade: “[...] têm a vantagem de conhecer pelo menos duas línguas, articular recursos tradicionais e modernos, combinar o trabalho pago com o comunitário, a Distância (UFRGS). Pesquisadora vinculada ao Projeto de Pesquisa “Educação Ameríndia e Interculturalidade”, coordenado pela professora Dra. Maria Aparecida Bergamaschi, Faculdade de Educação/UFRGS (jusmedeiros@yahoo.com.br). ** Licenciada em Ciências Sociais e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Atua como Técnica em Assuntos Educacionais na mesma Universidade. Pesquisadora vinculada ao Projeto de Pesquisa “Educação Ameríndia e Interculturalidade” coordenado pela professora Dra. Maria Aparecida Bergamaschi, Faculdade de Educação/UFRGS (claudia.antunes.poa@gmail.com). Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 227 a reciprocidade com a concorrência mercantil” (2007, p. 69). E, neste sentido consideramos importante destacar possíveis contribuições dessa experiência de interculturalidade vivenciada pelos povos originários para a reconstrução dos currículos na abordagem da história e cultura indígenas, empreendendo reflexões a partir da realidade vivenciada por professores e comunidades na construção da escola diferenciada nas aldeias. Desse modo, nossa análise inicia com uma breve apresentação da noção de interculturalidade e da educação escolar indígena no Brasil em seu desenvolvimento, potencialidades e conflitos. Em seguida, discutimos como a interculturalidade é praticada dentro da escola indígena e apresentamos como isso vem acontecendo em uma escola Kaingang, principalmente sob a perspectiva do ensino das histórias desse povo. 2. Educação escolar indígena e interculturalidade García Canclini afirma que os povos indígenas possuem um patrimônio de interculturalidade e que aí reside uma das suas maiores contribuições que podem ajudar “a imaginar uma América em que a pluralidade não se empobreça” (2007, p. 69). O autor destaca o fato de que os povos nativos já vivem em condição de interculturalidade: falam pelo menos dois idiomas, articulam recursos tradicionais e modernos, modos de sociabilidade comunitária e mercantil. Uma compreensão semelhante pode ser notada na fala de uma docente da etnia Toba durante uma entrevista com o Ministro de Educação da Argentina, em 2003. Essa fala foi relatada por Ibañez Caselli (2009, p. 143): [...] deja expresado que los pueblos indígenas siempre han cedido, aprendiendo e incorporando elementos, saberes, lengua nueva, pero “sin dejar de ser”. Y esto es “lo que ofrecem: la interculturalidad” como el diálogo entre diferentes, de igual a igual, para un fin común. De outro lado, García Canclini (2007, p. 69) também observa que não se deve “superestimar a importância desta contribuição diante da Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 228 força desigual das empresas e poderes políticos que os ignoram [os povos indígenas] ou promovem outras vias de desenvolvimento”. É preciso estar atento ao problema da desigualdade e aos movimentos que tencionam as relações sociais e econômicas em outros sentidos. Desta forma, falar em interculturalidade não é o mesmo que falar em aceitação do heterogêneo, mas de grupos em relações em que “os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos” (2007, p. 17). O termo, diz o autor: “remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas” (2007, p. 17). Daí decorre que o exercício e o aprendizado na/da interculturalidade não envolvem apenas reciprocidades e entendimentos mútuos, mas também conflitos e negociações. Neste sentido entendemos que a educação intercultural que vem sendo construída com o protagonismo dos povos indígenas constitui um movimento inspirador para pensarmos as relações sociais e a educação escolar em contextos de interculturalidade. Dessa forma, diferentemente dos países europeus, onde as propostas de educação intercultural surgem a partir da problemática do estrangeiro imigrante, na América Latina o discurso da interculturalidade como fundamento para uma educação que promova o reconhecimento, a valorização e o respeito a diferentes pertencimentos étnico-sociais está fortemente relacionado ao desenvolvimento de políticas de educação escolarindígena que surgiram a partir da década de 1980 como alternativa às políticas de escolarização que visavam à assimilação dos povos originários (IBAÑEZ CASELLI, 2009). No Brasil, a construção da educação intercultural é fruto de um longo processo de resistência e apropriação dos povos indígenas sobre a instituição escolar que até recentemente esteve orientada para a desconstrução dos modos de vida autóctones e a nacionalização desse segmento da população. E esse processo remonta à década de 1970, quando começam a tomar corpo movimentos impulsionados por organizações indígenas e indigenistas na busca pelo reconhecimento dos direitos desses povos. Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 229 Em 1974, conforme Silva (2005), realizou-se a primeira Assembleia Indígena do país, em Diamantino, estado do Mato Grosso, e, a partir desta, dezenas de outras se realizaram até o final da década de 1990, dando origem a diferentes movimentos indígenas1. A pesquisadora observa que a preocupação com a educação escolar e o desejo de construir uma escola voltada para os interesses indígenas apareceram com frequência em muitas reuniões, dando margem para o surgimento das primeiras tentativas de construção de uma educação escolar diferenciada, protagonizada pelos próprios povos indígenas. A Constituição Federal de 1988 rompeu oficialmente com a política de tutela e integração das comunidades indígenas ao reconhecer, nos Artigos 210 e 231, seus direitos às formas de organização social, costumes línguas, crenças e tradições e o direito à utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem2, promovendo maior respaldo na construção da escola intercultural. Essa mudança foi conduzida com a participação dos movimentos indígenas e entidades de apoio articulados no processo Constituinte, 1987-1988. Os direitos assegurados na nova Constituição também abriram caminho para outros documentos legais que orientam a construção de um novo referencial de escola indígena: intercultural, bilíngue, específica e diferenciada3. Dados de educação escolar indígena no país demonstram que a escola diferenciada está em plena expansão. Enquanto em 1997 a FUNAI informava a existência de 1.348 escolas de ensino fundamental em terras indígenas, 1 No ano de 1995 foram contabilizadas 112 organizações indígenas e, em 1999, 293 associações e organizações indígenas no país (SILVA, 2005). 2 Embora a educação bilíngue já figurasse no Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), esta era considerada apenas como um meio para a assimilação dos povos indígenas à sociedade nacional. 3 Entre esses referenciais podemos citar as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, de 1993, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, de 1998, a Resolução CNE/CEB Nº 03/1999, atualizada pela Resolução CNE/CEB Nº 05/2012, que define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, e o Decreto Nº 6.861/2009, que estabelece a organização da educação escolar indígena em territórios etnoeducacionais, independentemente das divisões político-administrativas do território nacional. Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 230 em 2011 dados do INEP apontaram que esse número mais que dobrou, passando para 2.819 escolas. Já o número de estudantes matriculados nessas escolas triplicou, entre 1997 e 2010, passando de 70.659 para 246.793, respectivamente, representando mais de um quarto da população indígena do país4. Os professores indígenas também vêm conquistando cada vez mais espaço nesse cenário; em 2005 o Ministério da Educação estimava que 90% dos professores que estavam atuando nas escolas indígenas naquele momento eram indígenas (ANTUNES, 2012). Diferentemente do que historicamente aconteceu na escolarização indígena e mesmo na ocidental, que sempre buscou homogeneizar as pessoas, a escola indígena específica e diferenciada surge com uma proposta inovadora de respeito às diferenças. “A escola indígena deve ser pensada a partir das concepções indígenas do mundo, do homem e das formas de organização social, política, cultural econômica e religiosa desses povos” (BRASIL, 1998, p. 22). Segundo a definição de escola indígena proposta pelo Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, ela deve ser comunitária, intercultural, bilíngue, específica e diferenciada (BRASIL, 1998). Comunitária, porque a participação da comunidade em todo o processo pedagógico é fundamental para a construção da escola: na definição dos objetivos, dos conteúdos curriculares, do calendário escolar, da pedagogia, dos espaços e momentos da educação escolar. Intercultural, pois a escola deve reconhecer e manter a diversidade cultural e linguística de sua comunidade, além de promover uma situação de comunicação entre experiências socioculturais, linguísticas e históricas diferentes. Bilíngue, visto que deve ensinar o português, para possibilitar o diálogo com o mundo não indígena que os rodeia, mas, principalmente, a língua materna da comunidade indígena – para garantir a sua manutenção e, sobretudo, porque a língua originária é um dos meios de expressão e continuidade da cultura. Específica e diferenciada, porque deve 4 Dados do IBGE relativos ao Censo Demográfico de 2010 informam um contingente de 896 mil pessoas que se autodeclararam ou se consideraram indígenas e revelam a existência de 305 etnias e 274 línguas indígenas em todo o país (ANTUNES, 2012). Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 231 ser concebida e planejada como reflexo das aspirações particulares de cada povo indígena e com autonomia em relação à construção de sua escola. Se em uma perspectiva de contraste em relação ao período anterior à Constituição de 1988 são inegáveis os avanços na educação escolar indígena em favor de uma escola diferenciada, tanto no plano legal quanto em relação à apropriação da instituição escolar pelos povos indígenas, na prática a efetivação dessa conquista segue sendo um desafio permanente para os povos indígenas que lidam com uma instituição exógena, culturalmente orientada para a homogeneização de indivíduos e universalização de conhecimentos historicamente sistematizados na e pela sociedade ocidental. Em que pesem todas as proteções legais ao exercício de uma prática pedagógica diferenciada e ao desenvolvimento de conteúdos próprios das culturas nativas, a instituição escolar nas aldeias é constantemente tensionada por um modelo de escolarização universalizado. Bergamaschi (2005, p. 234) afirma que essa escola “está legalmente organizada para ser diferenciada, para respeitar o modo de vida de cada etnia, mas está amarrada a concepções ocidentais de tempo e espaço que não ousa questionar”. A escola entrou e entra nas aldeias trazendo muitos elementos cristalizados: o currículo, o controle do tempo, a disciplinarização dos corpos, a contagem da frequência, os materiais didáticos, os métodos de ensino e a avaliação de aprendizagem, a equipe diretiva, o prédio escolar etc. De outro lado, as comunidades trazem ou reivindicam modificações para a escola e para a burocracia que as cerca, ao propor o saber tradicional e novas práticas, como a atuação dos velhos indígenas na educação escolar, entre outros elementos. Desta forma, convém ponderar que muitas situações aqui colocadas, assim como evidenciam a resistência de um modelo de instituição escolar cristalizado, também evidenciam os movimentos de apropriação dos professores e comunidades que buscam introduzir inovações/tradições5 na instituição escolar, não sem negociações e conflitos, é claro. Aliás, esses conflitos somente são possíveis e visíveis porque as comunidades adquiriram 5 Queremos sugeriraqui que as tradições culturais dos povos nativos podem representar inovações para a cultura escolar. Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 232 força com a atuação de professores indígenas nas aldeias, que passaram a propor mudanças nas escolas. Desta forma, justamente por se colocar em situação de ruptura com outra experiência escolar ainda muito recente que não atendia os interesses das comunidades, a escola indígena de hoje não tem referenciais pedagógicos e curriculares diferenciados consolidados. Cabe ao professor grande responsabilidade na sua construção, pois a escola diferenciada ocupa um lugar estratégico na mediação entre os conhecimentos historicamente sistematizados na e pela sociedade ocidental e os conhecimentos tradicionais de seu povo. Isso coloca o professor indígena numa condição de mediador entre duas culturas, dois modos de pensar, exercendo um papel central na educação intercultural. Rodolfo Kusch (2009) afirma que o povo americano vive entre duas linhas de pensamento, a saber: uma tributária da forma de pensar europeia (fundada em uma cultura racionalista e cientificista, com tendência a desvalorizar outros modos de pensar diferentes do europeu) e outra derivada de uma forma de pensar autóctone (que não se divide entre razão e emoção, que não separa sabedoria e afeto). Nesse conflito entre duas formas de pensar, podemos compreender a ambiguidade que a instituição escolar assume nas aldeias: ao mesmo tempo em que é espaço de aprendizado, instrumentalização para interação com a sociedade hegemônica, é espaço de afirmação étnica, de valorização dos saberes e modos de vida indígenas. Concordando com Bergamaschi (2010), entendemos que esse contexto escolar vivido pelos indígenas traz também para os não indígenas a responsabilidade de construir um patrimônio de interculturalidade, de se preparar para reconhecer, conviver, negociar e aprender com as diferenças. Desta forma, compreendemos que a Lei 11.645 constitui um movimento de abertura que permite uma aproximação respeitosa com outras cosmologias e modos de vida que conformam a complexa realidade sociocultural brasileira. Ou seja, constitui uma abertura para a interculturalidade, para que, assim como os povos indígenas, os não indígenas também incorporem saberes e práticas que permitam um convívio mais equilibrado entre os diferentes. Essa Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 233 abertura para a interculturalidade deve se dar dos dois lados, como diz Ibañez Caselli (2009, p. 140), ao analisar usos e significados da interculturalidade na educação escolar indígena na Argentina: No obstante, no podemos considerar que ésta sea una práctica intercultural cuando es sólo el docente y los niños indígenas quienes están insertos em esta modalidade. Es decir, la sociedad hegemónica – a la que los niños deben enfrentar – no recibe una educación intercultural. Em este sentido, los textos escolares ofrecem escasa información de la historia de los pueblos originarios y de su dinámica sociocultural y, al limitar esta dinámica a tales simplificaciones, terminan sosteniendo uma serie de prejuicios y actitudes discriminatorias y finalmente racistas hacia este otro sector de la población. Reconhecemos que a aplicação da Lei é um grande desafio para as escolas e os professores não indígenas, que assim como os indígenas não contam com referenciais pedagógicos consolidados para a abordagem dessa temática em sala de aula e por isso também têm a responsabilidade de desenvolver pesquisas e elaborar materiais didáticos para utilizar em sala de aula. O desafio se torna maior quando lembramos que a maior parte dos professores da educação básica no país não teve formação relativa à temática indígena, uma vez que a Lei 11.645 é recente (e nem sequer menciona a obrigatoriedade no ensino superior) e muitas universidades ainda não incluem esses conteúdos em seus cursos de licenciatura. A partir dos resultados da pesquisa de mestrado de uma das autoras que teve como objeto de estudo uma escola Kaingang6, a próxima seção dedica-se a apresentar uma experiência de educação escolar intercultural com suas conquistas e desafios, sua potência e seus conflitos, inovações e contradições. Entendemos que essa mirada para a construção da educação intercultural em uma escola indígena pode ser inspiradora para pensarmos possibilidades para a reconstrução dos currículos das escolas não indígenas em bases interculturais. 6 MEDEIROS, Juliana Schneider. Escola indígena e ensino de história: um estudo em uma escola kaingang da Terra Indígena Guarita/RS. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 234 3. A escola Toldo Campinas: um lugar de interculturalidade Conforme mencionamos, os povos indígenas possuem um grande patrimônio de interculturalidade (GARCÍA CANCLINI, 2007), que já vem sendo praticado há séculos. A escola indígena é um espaço onde a interculturalidade ocorre com grande potência, principalmente no projeto atual de escola, que se propõe intercultural e bilíngue e visa a uma relação mais igualitária entre os saberes indígenas e não indígenas. O trecho seguinte ilustra um pouco dessa realidade: Agosto, manhã de segunda-feira. Acompanho a aula de artesanato da professora Clair. Em língua Kaingang, ela explica a atividade. Em seguida, faz o mesmo em português – alguns alunos não falam o idioma indígena. A proposta do dia é trabalhar com taquaras para confeccionar materiais para o grupo de dança e para a exposição de artesanato que será feita na ExpoRedentora. A turma do 7o ano se desloca para o pátio da escola e começa a manusear longas taquaras. Com dois facões, a primeira coisa que os alunos fazem é parti-las em pedaços menores. Em seguida, revezando-se com a faca, começam a raspar as taquaras, removendo a película verde que as cobre. Troca de períodos e a turma do 6o ano vem trabalhar com a professora Clair. Agora os alunos cortam as taquaras em tiras finas. A professora trabalha junto, limpando e afinando as tiras, que serão posteriormente utilizadas para trançar (Diário de Campo, 08/08/11, MEDEIROS, 2012).7 O cenário descrito é muito diferente do que é possível observar em qualquer escola não indígena. A começar pelo lugar onde está localizada a escola, uma Terra Indígena. Os alunos e a professora são Kaingang. A língua falada em aula é indígena. A matéria se chama “Artesanato”, não “Artes”. A atividade de aula é o uso da taquara. Situações de aula como essa são características da escola indígena Toldo Campinas. A escola Toldo Campinas está localizada na Terra Indígena (TI) Guarita, no norte do estado do Rio Grande do Sul, nos municípios de Tenente 7 ExpoRedentora é um evento organizado pelo município de Redentora (RS), que mobiliza a indústria, a agricultura, o agronegócio, o comércio e as comunidades indígenas da região. As escolas indígenas costumam organizar apresentações e confeccionar artesanato para expor no evento. Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 235 Portela, Redentora e Erval Seco, distante cerca de 500 km de Porto Alegre. A TI está organizada em 12 setores que se distribuem ao longo de mais de 23 mil hectares de terra. Nela vivem 5.397 pessoas (ISA, 2013), sendo uma parte minoritária Guarani. Os Kaingang dessa região estabeleceram contato permanente com os não indígenas em meados do século XIX, quando uma frente de expansão invadiu seus territórios tradicionais. A partir daí, sua história foi marcada por constantes tentativas de dominação, exploração e ocidentalização. Depois de séculos de uma política indigenista integracionistae de uma escola que tinha por objetivo destruir os modos de vida indígena e torná-los civilizados, partícipes de um projeto ora colonial, ora imperial, ora nacional, os Kaingang buscam construir uma escola diferente, que valorize sua cultura, sua língua, seu modo de vida e sua história. A escola a que os alunos Kaingang se dirigem todos os dias vista de fora e desabitada aparenta ser uma típica escola estadual não indígena. Um prédio de alvenaria, pintado de branco e cinza, cercado por uma grade. Na frente, escrito em letras grandes, se lê: E. E. I. Ens. Fundamental Toldo Campinas. Logo abaixo: Estiva. Em seu horário de funcionamento, a escola também se assemelha muito a uma escola não indígena. Ela funciona regularmente de segunda a sexta-feira nos dois turnos. No entanto, há certa flexibilidade em relação aos horários conforme o funcionamento da comunidade, como, por exemplo, no começo das aulas da manhã: em função da hora do ônibus utilizado pelos professores para se deslocarem até a escola, o sinal tende a bater dez minutos mais tarde. Antes mesmo do início da aula, esse espaço escolar começa a tomar ares indígenas com a chegada dos alunos. Ela recebe todos os dias em torno de 150 alunos e alunas do 1o ao 9o ano e ainda uma turma de pré-escola (gerida pelo Município de Redentora). A escola atende, em sua grande maioria, alunos residentes na comunidade, que vivem a uma distância que se faz a pé em poucos minutos. Professores e funcionários indígenas também compõem o cenário. Dos 13 professores da escola, oito são Kaingang, sendo quatro deles moradores da comunidade. Os demais moram em outros setores da TI, assim como alguns dos funcionários. A maioria possui apenas magistério Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 236 não indígena; somente três possuem formação específica em cursos para professor indígena. O restante dos professores não é indígena e se desloca das cidades da região. Os cargos de gestão da escola são exercidos por não indígenas: direção, vice-direção, supervisão e secretaria. Apenas o cargo de coordenador pedagógico é exercido por um professor indígena. As ausências em função de atividades relacionadas ao modo de ser Kaingang, como as viagens para venda de artesanato, em que muitas crianças acompanham os pais, não são computadas como falta. Assim como a flexibilidade em relação aos horários, há tolerância quanto às faltas justificadas. Essas características da escola estão ligadas à garantia de um calendário específico e diferenciado que se adapte às necessidades da comunidade. Em certos aspectos, como nos mencionados, a escola possui um calendário próprio, mas, em geral, ele está pensado nos padrões da escola não indígena. O currículo da escola possui ensino fundamental completo de 1o a 9o ano. As cinco turmas dos anos iniciais possuem professores Kaingang, exceto o 5o ano. Nos anos finais, além das matérias convencionais (Matemática, Português, Ciências, Geografia, História e Educação Física), o currículo possui algumas disciplinas diferenciadas: Técnicas Agrícolas, Valores Culturais, Kaingang e Artesanato. Todas essas são ministradas por professores indígenas. A Lei 11.645 tenciona a escola não indígena a incluir a história e a cultura indígena em seu currículo, mas a escola indígena já vem realizando esse movimento antes mesmo da Lei. De acordo com o Regimento Coletivo das Escolas Estaduais Indígenas Kaingang (RIO GRANDE DO SUL, 2003) a escola indígena deve realizar um “resgate histórico-cultural das comunidades”, valorizando as tradições e as histórias Kaingang, com o intuito de afirmar sua identidade étnica. Esse documento não menciona diretamente a matéria de História como responsável por esse “resgate histórico-cultural”. Os planos de estudos de História da escola Toldo Campinas, no entanto, apresentam temas Kaingang em seus conteúdos. Alguns exemplos são as relações dos Kaingang com o poder público nos séculos XVIII-XIX; a ocupação do território Kaingang pela sociedade luso-brasileira; as demarcações e retomadas de terras das comunidades Kaingang; guerra da coroa Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 237 portuguesa contra os Kaingang e os Xokleng; rota para as missões: penetração paulista no Alto Uruguai no século XIX. O acompanhamento das aulas de História do professor indígena Lairton Melo, principalmente das exposições e das atividades propostas por ele, permitiram constatar a dificuldade de se trabalhar com as histórias Kaingang que, na maior parte das vezes, são apenas tangenciadas na escola, assim como os demais temas relacionados diretamente aos Kaingang previstos nos planos de estudos. De modo geral, o que se ensina nas aulas de História é o conteúdo do livro didático. Ao ser questionado sobre o que se ensina na matéria de história em uma entrevista, o professor indígena Bruno Ferreira, coordenador pedagógico da escola Toldo Campinas e professor de História em uma escola de outro setor, respondeu: “No jeito que está só ensinam o que tem no livro didático; não se ensina além disso”. Ao ser indagado sobre a presença dos Kaingang na matéria de história, respondeu: “Não se trata dos Kaingang! [...] Os professores não estão preparados para fazer isso, eles não conhecem isso, na verdade” (MEDEIROS, 2012). Em primeiro lugar, é preciso ponderar que os temas Kaingang, em geral, não constituem conteúdos curriculares das escolas não indígenas e, por isso, não figuram nos livros didáticos que comumente são disponibilizados para as escolas indígenas (os mesmos utilizados pelas escolas não indígenas). Esses livros geralmente apresentam uma única versão da história e desconhecem as histórias dos diferentes povos indígenas do Brasil. Apesar dos avanços nas pesquisas historiográficas nos últimos 20 anos e da incorporação de muitos deles aos livros escolares, a apresentação de uma versão escrita oficial da história nacional se mantém, desconsiderando as diferentes formas de memória e de transmitir histórias. Em consequência disto, raros são os materiais em que os professores possam se basear para planejar suas aulas. Isso significa que recai sobre o professor grande responsabilidade na elaboração de materiais para a abordagem de temas da história Kaingang e, diante disto, a sua formação adquire importância ampliada. Ou seja, se ele não possui formação específica para professor indígena, possivelmente irá reproduzir o modelo de aula que ele próprio vivenciou enquanto Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 238 estudante de escolas/universidades não indígenas, onde aprendeu os “legítimos conhecimentos escolares”. Cursos específicos para professores indígenas, além de apresentarem uma historiografia mais atualizada sobre os Kaingang – em geral não trabalhada em cursos para não indígenas –, procuram instrumentalizar esses professores a pensarem a história de uma forma diferenciada e a perceberem a importância dos conhecimentos e das memórias tradicionais na sala de aula. Esses cursos visam estimular que os professores busquem o diálogo com a comunidade para que ela lhes ensine a história que não está nos livros. Sem o contato com essa bibliografia diferenciada, mas, principalmente, com as histórias e as tradições contadas pelos velhos, as aulas tendem a reproduzir a história do livro didático, embora o professor seja indígena. Ou seja, assim como os professores não indígenas, os professores indígenas também enfrentam o desafio de realizar pesquisas e construir materiais didáticos para a abordagem de uma história diferente daquela que sempre foi ensinada nas escolas. A pesquisa demonstrou, no entanto, que há uma vontade e uma disposição do professor Lairton em abordar a história dos povos indígenas e em especial dos Kaingang e que, por vezes, eleencontra frestas por onde insere elementos dessas histórias. Um exemplo disso é a clara predominância do estudo do período colonial, abordado no 6o, 7o e 8o ano. Esse pode ser um indício da preocupação do professor em trabalhar a ruptura que ocorreu no modo de vida tradicional dos povos nativos quando da chegada dos europeus à América – embora o contato dos Kaingang com os não indígenas de forma mais permanente tenha se dado somente a partir da metade do século XIX. É recorrente o uso de quadros comparativos entre o antes e o depois do contato e de expressões como “a chegada dos brancos”, “o descobrimento”, “os 500 anos”. O professor Lairton possui conhecimento da tradição e de histórias Kaingang – provavelmente por ter aprendido de seus pais e avós – porém tem dificuldade em transformá-las em conteúdo escolar. Ele relatou que, quando consegue inserir elementos da história dos Kaingang em suas aulas, ele os traz, principalmente, de relatos que escutou: “Na verdade, quando eu faço Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 239 alguns relatos em relação aos Kaingang, principalmente algumas análises que a gente vê, normalmente é por ouvir [...] Do mesmo jeito que se faz uma pesquisa”. Mas faz questão de salientar que muitos deles são confirmados por bibliografia – o que demonstra sua preocupação em ensinar algo referendado como conhecimento escolar. “Mas há relatos também em livros de historiadores [...] Esse relato de universidades, de historiadores vem a confrontar e garantir mais que é verdade que isso existiu” (MEDEIROS, 2012). As palavras de Lairton demonstram a preocupação em mediar a oralidade e a escrita. A ciência costuma levar em conta apenas a verdade registrada no papel, e a força disso é sentida na fala do professor, que faz questão de afirmar que se pode comprovar os relatos orais a partir de bibliografia. Mas ele também fala das histórias orais, dizendo que ouvi-las é como realizar uma pesquisa – o que nos leva a pensar na relação da escola com os velhos e as suas histórias. Se o professor ouve histórias, é porque elas estão vivas, porém os momentos destinados aos relatos já são raros. Luís Emílio, velho sábio que mora em São João do Irapuá, outro setor da TI Guarita, explica que “muito poucos ainda contam histórias sentados ao redor do fogo” (MEDEIROS, 2012). O espaço para os velhos contarem histórias, assim como faziam no passado, está bastante reduzido e modificado. Levando em conta essa realidade e o fato de que são eles os principais detentores dos saberes tradicionais, é que os documentos referentes à escola Kaingang já previam uma relação dos velhos com a escola. Segundo o Regimento Coletivo das Escolas Estaduais Indígenas Kaingang, a metodologia de ensino-aprendizagem proposta para a escola Kaingang “embasa-se no respeito à tradição oral das comunidades, valorizando o saber dos mais velhos e incentivando a que eles participem da escola relatando as histórias de seus antepassados – como era viver na terra indígena antigamente – para que, no decorrer do tempo, essas histórias sejam transmitidas de geração para geração, preservando a cultura Kaingang” (RIO GRANDE DO SUL, 2003, p. 5, grifos das autoras). O professor Lairton confirmou essa ideia: “Acho que aí a escola tem que dar o espaço e oferecer essa oportunidade para que aquela pessoa Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 240 que tem o conhecimento adquirido no viver de sua existência tenha a oportunidade de estar aqui. Ou tenha a oportunidade da escola estar lá”. Bruno Ferreira expressou-se no mesmo sentido, ao afirmar que a escola indígena tem o papel de estimular que a criança busque os saberes Kaingang com a comunidade. Disse que a função da escola “é ensinar você a buscar isso. E um velho, quando ele te conta, ele está te ensinando direto ali; a fonte é ele. E a escola está ensinando você a buscar essa fonte para que você saiba a partir dele” (MEDEIROS, 2012). De acordo com Bruno, do mesmo modo pode ser feito nas aulas de História: o professor pode encorajar seus alunos a buscarem as histórias Kaingang com a comunidade. A escola precisa de apossar um pouco dessas histórias para contar. Senão ela vai ficar sem memória, a comunidade, o povo aqui vai ficar sem memória. Se os velhos não contarem como surgiu essa vila aqui, as crianças não vão saber. E hoje você não consegue reunir as crianças na casa de um velho para contar. [...] Ela [a escola] poderia incentivar isso nas crianças, ou para que as crianças procurassem as pessoas, quisessem saber (Entrevista com Bruno Ferreira, 03/10/11. MEDEIROS, 2012). Apesar das dificuldades em ensinar as histórias Kaingang, seja na escola ou fora dela, a pesquisa de Medeiros permitiu revelar que essas narrativas estão vivas. Mas qual a concepção de história para os Kaingang? Nesse sentido, as palavras do professor Lairton são reveladoras: Eu acho que história é tudo aquilo que vive, mas história não está ali fixada em determinado lugar. Eu acho que ela se renova com o tempo. Acho que tudo é história, na verdade. [...] História, na verdade, é a vida da sociedade, é o que a sociedade é, é a história dela. [...] História do Kaingang é tudo aquilo que relata o Kaingang. São os contos, são as lendas. Ninguém fala história, por específico história, “História é isso do povo Kaingang”. História para o povo Kaingang são os territórios, são as demarcações, são as ervas, são os medicamentos, é o casamento, tudo isso é história para o povo. São as lendas, os acontecimentos que houveram, as guerras. Tudo isso é história (Entrevista com Lairton Melo, 04/10/11. MEDEIROS, 2012). Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 241 A descrição de Lairton do que seria história vai ao encontro do conceito de grande história de Rodolfo Kusch. Segundo o autor, a grande história é a história da humanidade, da sobrevivência da espécie humana desde o seu surgimento. Ela está em oposição à pequena história, que é a história que começa a ser construída na Europa a partir da modernidade e que conta os feitos humanos. Nas palavras do autor (2009, p. 153, grifos no original), Una forma más profunda de ver la historia sería dividirla en cambio entre la gran historia, que palpita detrás de los primeros ustensilios hasta ahora y que dura lo que dura la especie, que simplemente está ahí, y la pequeña historia que relata sólo el acontecer puramente humano ocurrido en los últimos cuatrocientos años europeos, y es la de los que quieren ser alguien. Para Kusch, a pequena história é a história tal como se configurou no século XIX, sob a perspectiva do positivismo. É esta história que se inicia na Europa nos princípios da modernidade, que tem suas origens na cidade e que considera relevante só aquilo que favoreceu a cultura dinâmica e urbana, ou seja, remonta à Antiguidade Clássica, por reconhecer a herança cultural desses povos deixada para a civilização ocidental, e trata a Idade Média como um período de trevas a ser esquecido. A história que se crê ciência classifica de Pré-História tudo aquilo que antecede o início das cidades, da escrita, do comércio. A história como disciplina escolar conta a evolução das elites que representam o ser no mundo, essa forma de viver que busca transformar e modificar o meio e a natureza. No caso da América, é a história que se inicia a partir da conquista europeia do continente e ignora o passado indígena milenar. Já a grande história é a história da humanidade. Traça o itinerário real do homem porque não tem indivíduos (figuras de líderes e heróis), senão comunidades. Pensa o acontecer humano no plano da espécie e reduz os descobrimentos técnicos, as expansões e o poderio do homem a episódios menores. Responde à simples e muitoprofunda vivência humana em seu estar. É a história dos povos indígenas, dos povos tradicionais, dos operários, das massas. A grande história é a história do viver em comunidade, da Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 242 conexão entre vida e natureza e de toda uma série de conceitos vitais que o Ocidente concretiza em termos demasiado limitados ou, inclusive, exclui de sua perspectiva. Ela supõe muito mais elementos, porque representa o estar aqui indígena, que vive conectado com o meio e suas adversidades e por isso possui uma margem de possibilidades muito maior que a elite que, por sua vez, está conectada a sua cidade e a suas técnicas. Para tentar pensar um ensino de História intercultural na escola Kaingang, o conceito de grande história revela-se muito potente, já que a história que é atualmente ensinada na escola, a do livro didático, é a história dita “científica” e ela se resume à pequena história e, por isso, exclui as narrativas do povo Kaingang. Para que essas narrativas possam adentrar a escola ou serem valorizadas por ela a ponto de serem buscadas pelos alunos junto aos velhos, a escola precisa modificar sua concepção de história. Não só a escola indígena, mas a escola ocidental, na sua busca por interculturalidade também deve expandir sua concepção de história. Em suas narrativas, os velhos Kaingang entrevistados na pesquisa apresentaram a pontinha de um mundo rico em histórias. Histórias da participação do seu povo na Guerra do Paraguai, na Revolução Federalista, na Revolução de 1923; de lideranças tradicionais; da criação do aldeamento Guarita; das guerras com os Kanhgág ju8; da chegada dos padres; da criação da primeira escola em São João do Irapuá. Relatos do tempo em que os bichos falavam; do costume de enterrar o umbigo no lugar onde se nasce e depois voltar para morrer no mesmo local; do uso de remédios do mato pelo pai e pela mãe no nascimento dos filhos; de métodos anticoncepcionais tradicionais. Narrativas que poucos velhos ainda sabem e quase não se contam mais, nem em casa, nem na escola. De modo geral, há pouco espaço destinado à transmissão das narrativas Kaingang, seja na escola ou fora dela. Na escola Toldo Campinas predomina a pequena história e a narrativa do livro didático. O professor de História, no entanto, encontra algumas brechas onde consegue inserir algo do que 8 Kanhgág ju é o termo em kaingang para designar o povo Xokleng, inimigos históricos dos Kaingang. Povos indígenas, escolas e histórias... História Social, n. 25, segundo semestre de 2013 243 já ouviu/viveu e mostrar que existe outra história, a Kaingang, embora não se sinta plenamente autorizado para ensiná-la. Fora da escola, em casa, há pouco espaço para a transmissão das histórias Kaingang, o que faz com que o saber dos velhos não encontre continuidade em muitos casos. Entretanto, a pesquisa constatou que as histórias estão vivas. Mas os velhos não vão até a escola e a escola não vai até os velhos; no momento existe um impasse. Contudo, os professores, os velhos e a comunidade Kaingang juntos vêm buscando as soluções. A escola indígena está em construção, e os povos indígenas estão buscando modos de torná-la de fato indígena, específica, diferenciada, bilíngue e intercultural. 4. Conclusão A lei 11.645 está aí desde 2008. Ela é resultado da demanda dos povos indígenas por respeito e valorização de seus modos de vida e pelo reconhecimento de seu papel na formação do Brasil. A lei estabelece uma norma a ser cumprida – o estudo da cultura e da história indígena na escola – porém, mais do que isso, entendemos que ela representa uma oportunidade para os não indígenas de reconhecer, conviver e aprender com os povos indígenas. Os povos indígenas já vivem em interculturalidade, e a escola na aldeia, da maneira como vem sendo construída, faz parte desse patrimônio. Ela constitui um espaço de aprendizagem dos conhecimentos do mundo ocidental e de instrumentalização para a interação com a sociedade que a rodeia, ao mesmo tempo em que é um lugar de afirmação étnica, onde os conhecimentos tradicionais são acionados de modo a valorizar esses saberes e garantir a continuidade da sua cultura, não sem conflitos, é claro. Esse movimento precisa acontecer para os dois lados e, nesse sentido, as experiências de interculturalidade das escolas indígenas podem servir de inspiração para as escolas fora das aldeias. Assim como a escola indígena está numa constante construção, a escola não indígena também precisa se repensar e se reconstruir. Por isso, entendemos que a Lei 11.645 constitui Juliana Schneider Medeiros e Cláudia Pereira Antunes 244 uma abertura para a interculturalidade, um impulso às escolas não indígenas para se prepararem para o encontro e o convívio com o diferente, assim como os povos indígenas vêm fazendo há séculos. 5. Bibliografia ANTUNES, Cláudia Pereira. Experiências de formação de professores Kaingang no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos Indígenas e Ensino de História: a Lei Nº 11.645/2008 como caminho para a interculturalidade. In: BARROSO, Vera Lucia Maciel et al. (org.). Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: Est: Exclamação: ANPUH, 2010, p. 151- 166. BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nembo’e: Enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. Porto Alegre: UFRGS. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. BRASIL. Lei Nº 6001, de 19 de dezembro de 1973. BRASIL. Lei Nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. BRASIL. Lei Nº 11.645, de 10 de março de 2008. BRASIL. 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