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175 O PAPEL DA PERÍCIA PSICOLÓGICA NA EXECUÇÃO PENAL1 Saio de Carvalho Introdução A investigação objetiva analisar o papel dos técnicos na execução da pena criminal, sobretudo da pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado (carcerário). Ao longo dos 25 anos de vigência da Lei de Execução Penal (LEP), consolidou-se determinada forma de atuar dos peritos-crimi- nólogos voltada quase exclusivamente à satisfação das demandas do Poder Judiciário através da elaboração de laudos e pareceres. No entanto, alteração produzida com o advento da Lei 10.792/03 possibilitou reavaliar o papel dos atores da execução, dentre eles o do corpo criminológico formado por profissionais das áreas da psicologia, medicina (psiquiatria) e serviço social. A hipótese que orienta essa pesquisa é a de que, na atualidade, existem condições legais de superação do antigo modelo, com a incorporação, por parte dos criminólogos que atuam nas instituições carcerárias, de práticas voltadas à redução dos danos causados pelo processo de prisionalização. Os laudos e as perícias criminológicas na Lei de Execução Penal Em 1984, com a edição da LEP, instituiu-se a avaliação criminológica como requisito para que o condenado atingisse a última fase da individu- 1 Os resultados apresentados neste artigo são fruto de pesquisa financiada pela Pontifícia Univer- sidade Católica do Rio Grande do Sul, desenvolvida junto ao seu Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais. Saio de Carvalho 176 alização da pena (individualização executiva). Após a aplicação da sanção (individualização judicial), caberia aos técnicos do sistema carcerário classi- ficar os condenados com intuito de definir programa ressocializador e avaliar seu comportamento durante a execução, de forma a orientar a decisão do magistrado. Conforme determina a LEP, “os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal” (art. 5o). Os condenados à pena privativa de liberdade, principalmente aqueles a quem foram determinadas penas com modalidade de cumprimento em regime fechado, seriam submetidos ao diagnóstico para obtenção de elementos necessários à adequada classificação, objetivando estabelecer os parâmetros do tratamento penal. A Comissão Técnica de Classificação (CTC),para obtenção dos dados reveladores da personalidade, deveria realizar inúmeros procedimentos de prova, dentre os quais requisitar de repartições ou de estabelecimentos privados informações do condenado e entrevistar pessoas, ou seja, realizar todas as diligências que considerasse necessárias (art. 92, LEP). Determi- nação legal aditiva à CTC, conforme a redação original da LEP, era a de acompanhar a execução das penas privativas de liberdade (art. 6-, LEP)2, propondo à autoridade competente as progressões (art. 112, LEP) e regres- sões (art. 118, LEP) dos regimes, bem como as conversões de penas (art. 180, LEP). Presidido pelo Diretor da instituição carcerária, sua estrutura era composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social (art. 7o, LEP). Diferiam da CTC, cujo labor tinha como escopo avaliar o cotidiano do condenado, os afazeres dos técnicos do Centro de Observação Criminológica (COC). Este local autônomo da instituição carcerária realizaria exames periciais e pesquisas criminológicas que retratariam o perfil do preso, fornecendo instrumentos de auxílio nas decisões judiciais dos incidentes da execução, nota- damente nos casos de livramento condicional e de progressão de regime. Desta forma, enquanto a CTC atuaria no local da execução, como observatório do cotidiano do apenado, o COC teria por função realizar exames criminológicos mais sofisticados, com intuito de 2 "Art 6o. A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o programa individuali- zador e acompanhará a execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, devendo propor, à autoridade competente, as progressões e regressões dos regimes, bem como as conversões."(Redação Original). Saio de Carvalho 177 auxiliar os órgãos judiciais da execução. 178 Não obstante os dispositivos da LEP, o Código Penal determinava funções ao corpo criminológico (COC), mormente realizar prognósticos de não delinquência, requisito subjetivo obri- gatório para concessão do livramento condicional - “para o condenado por crime dolosó' cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordi- nada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir” (art. 83, parágrafo único, CP). E, segundo o Código, nos casos em que o apenado havia praticado delitos considerados graves, eram estabelecidas condições especialíssimas para concessão do direito ao livramento condicional - última etapa do sistema progressivo da pena. Conforme a doutrina, A ESTRUTURA DA EXECUÇÃO da pena no Brasil é moldada pelo sistema progressivo (art. 33 do Código Penal); ou seja, após cumprimento de um determinado período de tempo, dependendo do'mérito'e da'avaliação da personalidade' (laudos e pareceres), o apenado será transferido a um regime menos gravoso (p. ex„ progressão do regime fechado ao semiaberto e deste ao aberto). O livramento condicional, apesar de ser considerado a última etapa deste sistema, no qual o condenado readquire sua liberdade submetendo-se a um controle por parte das agências judiciais e penitenciárias, a legislação prevê a possibilidade de alcance do direito sem a passagem pelas instâncias intermediárias (art. 83 do Código Penal). No entanto, da mesma forma que o sistema permite a transferência para regime menos severo, em face de prática de faltas graves (p. ex„ participação em fuga, rebelião ou motim - art. 50, incisos I e II da Lei de Execução), o condenado pode regredir seu reime (art. 118 da Lei de Execução). ...o dispositivo se inspira na reclamada defesa social e tem por objetivo a prevenção geral. Se após o exame criminológico (ou resultar da convicção do juiz) ainda revelar o condenado sinais de desajustamento aos valores jurídico-criminais, deverá continuar a sofrer imposição daquela pena até o seu limite final se a tanto for necessária em nome da prevenção especial. (FRANCO, 1993: 535) O exame pericial que se estabeleceu na prática forense, após a Reforma Penal de 1984, como idôneo para a prognose das condições do detento, foi o de cessação de periculosidade, em avaliação análoga àquela realizada pelo inimputável sujeito à aplicação de medida de segurança quando do incidente de insanidade mental (art. 175, LEP3). Caso 3 À guisa de ilustração: "a verificação dos requisitos inseridos no art. 83 e seus incisos, impondo-se também a realização da perícia, para verificar a superação das condições e circunstâncias que levaram o condenado a delinqüir, consoante o conteúdo do parágrafo único do mesmo dispositivo, e ressalva, ainda, que a norma, destinada ao sentenciado por crime violento, caracteriza exigência necessária 179 diante da extinção da medida de segurança para os imputáveis"(TA/RS, HC 285039624, Rei.Talai Selistre). Saio de Carvalho 180 contrário, na ausência do exame, o juízo seria absolutamente hipotético, cabendo com exclusividade ao julgador atribuir o grau de periculosidade do condenado (COSTAJR., 1999: 206).4 Conclui Alvino Augusto de Sá, ao discutir a natureza dos exames criminológicos e as formas de prognose, que ...o parecer da CTC deveria voltar-se eminentemente para a execução, para a terapêutica penal e seu aproveitamento por parte do sentenciado. Já o exame criminológico é peça pericial, analisa o binômio delito-delinquente e o foco central para o qual devem convergir todas as avaliações é a motivação criminal, a dinâmica criminal, isto é, o conjunto dos fatores que nos ajudam a compreender a origem e desenvolvimento da conduta criminal do examinado. Ao se estabelecerem as relações compreensivas entre essa conduta e esses fatores, se estará fazendo um diagnóstico criminológico. Na discussão, devem ser sopesados todos os elementos desse diagnóstico e contrabalance- ados com os dados referentes à evolução terapêutico-penal, de forma a se convergir o trabalho para um prognóstico criminológico, do qual resultará a conclusão final. (SÀ, 1993: 43) Em outras palavras, a decisão sobre a periculosidade depende exclu- sivamente da análise do juiz, que utiliza, como instrumento de prova, o parecer da CTC e o exame do COC. A atuação pericial e o controle da identidade do preso A hipótese que fundamentou inúmeras análises críticas sobre os exames e os prognósticos criminológicos foi acerca da definição de matriz inquisitiva de processo na execução penal. Neste quadro, a LEP estabelecia rito e conteúdo de provas que violavam direitos fundamentais do cidadão preso, notadamente os procedimentos relativos à reconstrução e à valoração de sua personalidade que se encontram em oposição aos direitos de livre 4 Nesse sentido, "a verificação das condições pessoais e subjetivas do sentenciado não se faz só e necessariamente por exame similar ao antigo exame de verificação de cessação de periculosidade. Por outros meios, inclusive sem qualquer tipo de verificação pericial, pode concluir-se de tal ausência de perigosidade na devolução do sentenciado à comunidade"(TJ-RS, RA, Rei. Gilberto Niederauer Corrêa - RTJE 36/364). 181 manifestação do pensamento de preservação da intimidade e da vida privada, e que reforçam, no âmbito social, o estigma delinquente. A afirmativa adquire consistência na análise metodológica empregada pelos técnicos do sistema penitenciário (psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras). Percebe Hoenisch que o trabalho do perito, principalmente do psicólogo, era fundado na técnica de reconstituição de vida pregressa, que “via de regra vem a confirmar o rótulo de criminoso” (HOENISCH, 2002: 110). Desta forma, “a elaboração dos exames psiquiátricos obedece a um determinismo causal, onde o nosólogo‟ não só descreve a doença/ delito do paciente/preso, mas também prescreve a sua conduta futura” (IBRAHIM, 1995: 52-53). O sistema penalógico adotado pela LEP psiquiatrizava a decisão do magistrado. A constante delegação, por parte dos magistrados, da motivação do ato decisório ao perito, que o realiza a partir de julgamentos morais sobre as opções e as condições de vida do condenado, estabelecia mecanismo de (auto)reprodução da violência pelo reforço da identidade criminosa (self- fullfillingprofecy). Lembra Vera Malaguti Batista, ao estudar a atuação dos operadores secundários do sistema, dentre eles os técnicos que atuam na execução penal, que “estes quadros técnicos, que entraram no sistema para „humanizá-lo‟, revelam em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as sentenças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social” (BATISTA, 1997: 77). Sabe-se que os mais perversos modelos de controle social punitivo são aqueles que fundem o discurso do direito com o discurso da psiquiatria, ou seja, que regridem aos modelos positivistas de coalizão conceituai do jurídico com a criminologia naturalista. O sonho da medição da peri- culosidade, forjado no interior do paradigma criminológico positivista (etiológico), encontra guarida nesse sistema. Assim, retomando conceitos como propensão ao delito, causas da delinquência e personalidade voltada para o crime, o discurso etiológico se reproduzia, condicionando o ato judicial ao exame clínico-criminológico - “psicólogos, psiquiatras, pedagogos, médicos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos de caso e diag- nósticos, da maneira mais acrítica, com as mesmas categorias utilizadas na Saio de Carvalho 182 introdução das idéias de Lombroso no Brasil”(BATISTA, 1997: 86). 183 A TEORIA ESTRUTURAL-FUNCIONAUSTA da anomia e da criminalidade constitui a primeira alternativa clássica à concepção dos caracteres diferenciais biopsicopatológicos do delinquente e, por consequência, à variante positivista do princípio do bem e do mal. A teoria estrutural- funcionalista da anomia e da criminalidade, segundo a leitura de Baratta, afirmaria que: (1) as causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioantropológicos e naturais (clima, raça), nem em uma situação patológica da estrutura social; (2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social; (3) somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno do desvio é negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social. Segundo Durkheim, o fenômeno criminal é encontrado em todo tipo de sociedade, ou seja, não existiria nenhuma na qual não exista uma criminalidade. O delito faz parte da sociedade como elemento funcional, da fisiologia e não de sua patologia (BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penai, p. 59-61). Eugênio Raúl Zaffaroni sustenta que o ideal de medição da pericu- losidade representa as pretensões mais ambiciosas desta criminologia etiológico-individualista equivocada (ZAFFARONI, 1988: 244). O peri- culosômetro, como ironiza o pensador porteno, cientificamente denominado de prognósticos estatísticos, consiste em estudar quantidade mais ou menos numerosa de reincidentes, quantificar suas causas e projetar seu futuro. Maria Palma Wolff lembra que ...esta discricionaridade dos profissionais embasada em critérios, que não são tão neutros e científicos como pretendem ser, faz com que, muitas vezes, o parecer técnico afigure-se quase como um exercício de suposições, de futurologia. Isto, a partir de um discurso que já está dado como única verdade, bastando ajustá-lo a cada caso avaliado. (WOLFF, 2003: 93) A despatologização do delito ocorreu com a TEORIA ESTRUTURAL- FUNCIONALISTA de Durkheim, no início do século passado, incrementando verdadeiro giro copernicano na criminologia contemporânea, que culminou com a consolidação (acadêmica) do paradigma da reação social e, posteriormente, com a criminologia crítica. O reducionismo sociobio- lógico, modelo em voga no Brasil, revelava-se, portanto, obsoleto. No entanto, mesmo desqualificado epistemologicamente, acabava por seguir ditando as regras na execução da pena, sobretudo em decorrência de sua adesão pelos técnicos do sistema penitenciário. Apesar de a instrução probatória na primeira fase do processo penal (processo de conhecimento) ser sustentada por premissas acusatórias Saio de Carvaiho 184 vinculadas ao direito penal do fato, todo processo de execução das penas e os procedimentos que demandavam avaliação pericial eram balizados por juízos inquisitórios sobre a identidade do sujeito. Estas avaliações mora- lizadorassobre a personalidade do encarcerado conformam modelo de direito penal de autor e práticas criminológicas etiológicas refutadas pelo sistema constitucional de garantias, visto a notória oposição às garantias da inviolabilidade da intimidade, do respeito à vida privada e à liberdade de consciência e de opção. Roberto Lyra, na vigência do Código de 40, chamava atenção para a estrutura antissecular deste tipo de prova: ...virão laudos que são piores do que devassas a pretexto de anam- neses, com diagnósticos arbitrários e prognósticos fatalistas. A vida do réu e também a da vítima são vasculhadas. O anátema atinge a família por uma conjectura atávica. O labéu ultrapassa gerações. Remotos e ridículos preconceitos distribuem estigmas. O processo penal, além de todas as ocupações e preocupações, será atado ao torvelinho dos habituais e tendenciosos falsários bem pagos, com humilhações e vexames para o acusado e sua família, para a vítima e sua família, com base em „quadrinhos‟ e formulários. (LYRA, 1977: 132)5 Outrossim, além de violar os direitos fundamentais da pessoa presa pelo conteúdo moral do juízo, em relação à forma o laudo atuava como substitutivo da fundamentação judicial. O papel de sustentação (e de legitimação) das decisões assumido pela criminologia oficial foi percebido com precisão por Michel Foucault. Ao responder indagação sobre o porquê de sua crítica à criminologia ser tão rude, Foucault afirma que os textos criminológicos “não têm pé nem cabeça (...). Tem-se a impressão de que o discurso da criminologia possui uma tal utilidade, de que é tão fortemente exigido e tornado necessário pelo funcionamento do sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente, ou mesmo simplesmente ter uma coerência ou uma 5 Foucault, em Os Anormais, lembra que “(...) o exame psiquiátrico permite constituir um duplo psicoló- gico-ético do delito. Isto é, deslegalizar a infração tal como formulada pelo código, para fazeraparecer por trás dela seu duplo, que com ela se parece como um irmão, ou uma irmã, não sei, e que faz dela não mais, justamente, uma infração no sentido legal do termo, mas uma irregularidade em relação a certo número de regras que podem ser fisiológicas, psicológicas, morais, etc." (FOUCAULT, 2002:20- 21). 185 estrutura. Ele é inteiramente utilitário” (FOUCAULT, 1986: 138). A utilidade ressaltada seria a de fornecer argumentos ao julgamento, permitindo aos magistrados boa-consciência, caracterizando sua isenção de responsabilidade pelo ato6. O juiz da execução penal, de acordo com esta hipótese, desde a instituição dos postulados da criminologia clínico-administrativa, deixou de decidir, passando apenas a homologar laudos técnicos. Seu julgamento passa a ser informado por um conjunto de microdecisões (micropo- deres) que sustentarão cientificamente‟ o ato decisório. Assim, perdida no emaranhado burocrático, a decisão torna-se impessoal, sendo inominável o sujeito prolator. Lembra Foucault que ...o juiz de nossos dias - magistrado ou jurado - faz outra coisa, bem diferente de „julgar‟. Ele não julga mais sozinho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juizes paralelos se multiplicam em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos e psicólogos, magistrados da aplicação da pena, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar; que uns, depois das sentenças, só têm o direito de fazer executar a pena fixada pelo tribunal, e principalmente que outros — os peritos - não intervêm antes da sentença para fazer um julgamento, mas para esclarecer a decisão dos juizes. (FOUCAULT, 1991: 24) Ferrajoli afirma que estes modelos correcionalistas de reeducação - “qualquer coisa que se entenda com esta palavra”7 - acabam se tornando aflição aditiva à pena privativa de liberdade e, sobretudo, prática profunda- mente autoritária. “Esta comporta uma diminuição da liberdade interior do detento, que viola o primeiro princípio do liberalismo: o direito de cada um 6 Afirma Foucault: "a partir do momento em que se suprime a idéia de vingança, que outrora era atributo do soberano, lesado em sua soberania pelo crime, a punição só pode ter significação numa tecnologia de reforma. E os juizes, eles mesmos, sem saber e sem se dar conta, passaram, pouco a pouco, de um veredito que tinha ainda conotações punitivas, a um veredito que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser na condição de que seja transformador do indivíduo. Mas os instrumentos que lhes foram dados, a pena de morte, outrora o campo de trabalhos forçados, atualmente a reclusão ou a detenção, sabe-se muito bem que não transformam. Daí a necessidade de passar a tarefa para pessoas que vão formular, sobre o crime e sobre os criminosos, um discurso que poderá justificar as medidas em questão" (FOUCAULT, 1986:139). 7 FERRAJOLI, Quattro PropostedlRiforma dellePene, p. 46. Saio de Carvaiho 186 ser e permanecer ele mesmo; e, portanto, a negação ao Estado de indagar sobre a personalidade psíquica do cidadão e de transformá-lo moralmente através de medidas de premiação ou de punição por aquilo que ele é e não por aquilo que ele fez”8. Converge, nesta perspectiva, Fabrizio Ramacci, ao criticar as teorias da emenda que sustentam a Lei Penitenciária italiana. Leciona que ...a exasperação da idéia de correção, ínsita na doutrina de emenda, é bloqueada pela proibição constitucional de tratamento contrário ao senso de humanidade, tanto nas formas de violência à pessoa, quanto nas de violência à personalidade (v.g. lavagem cerebral) porque contrastante com a dignidade humana (art. 3 da Constituição) e com a liberdade de desenvolver e inclusive manter a própria personalidade (art. 2 da Constituição). (RAMACCI, 1991:133) A importância probatória dos pareceres e dos laudos periciais na reforma penal de 1984 O sistema progressivo, baseado na ideia de mérito do condenado, foi eleito em 1984 como o instrumento hábil para atingir a finalidade de rein- serção social. Típico dos modelos estatais intervencionistas, o escopo resso- cializador legitimou a ação dos aparelhos punitivos para avaliação e forma- tação da identidade do preso. Assim, o condenado ressocializado, no discurso da LEP, era aquele adequado às regras do estabelecimento carcerário e ao programa individualizador, ou seja, o sujeito disciplinado e ordeiro que se submetia e respondia satisfatoriamente ao tratamento penal. Segundo o nível de ressocialização, o condenado atingiria índices positivos ou negativos, condições para o desencarceramento progressivo (progressão de regime). Assim, para alcançar o gozo dos direitos de progressão previstos na LEP, o apenado deveria cumprir requisitos de ordem objetiva e subjetiva, segundo o art. 112. O critério objetivo foi vinculado ao tempo de cumpri- mento da sanção: um sexto da pena no regime anterior ou, no caso de prática de crime hediondo, dois quintos (primário) e um quinto (reincidente)9. O pressuposto subjetivo foi determinado pelo mérito do albid., p. 46. 9 Redação conforme o art. 2o, § 2°, da Lei dos Crimes Hediondos: "a progressão de regime, no caso dos 0 papei da perícia psicológica na execução penal 187 condenado (art. 112, parágrafo único), ao ser instituída a necessidade de o preso ser submetido à Comissão Técnica de Classificação (CTC), para elaboração de parecer, ou ao Centro deObservação Criminológico (COC), para fins de exame pericial - prognósticos de não reincidência e/ou medição do grau de adaptabilidade e arrependimento. Em relação ao livramento condicional (art. 83 do Código Penal), a duplicidade de requisitos igualmente se impunha: (a) requisito objetivo, vinculado ao tempo - cumprimento de um terço (condenado primário), metade (reincidente), ou dois terços (crimes hediondos)10 da pena - e à reparação do dano; e (b) requisito subjetivo, relacionado com o comprovado comportamento satisfatório. E, em caso de condenação por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, o parágrafo único do art. 83 do Código Penal remetia o condenado à avaliação técnica, concretizada em laudo criminológico. O comportamento carcerário satisfatório, apesar de ser requisito subjetivo, sempre esteve vinculado à comprovação processual, de forma que foram estabelecidas condições de objetivação do critério. Doutrina e a jurisprudência fixaram como elemento a indicar o bom comportamento carcerário a ausência de registro, no prontuário do preso, de sanção por falta grave devidamente homologada pelo juiz competente. Ao magistrado caberia avaliar se o procedimento de apuração seguiu os requisitos formais e materiais do devido processo legal (ampla defesa, contraditório, recurso, assistência de advogado etc). A estrutura meritocrática da LEP, porém, era potencializada pela presença dos demais requisitos subjetivos, sobretudo nos casos de crimes graves. Se a ausência de falta grave comprovava comportamento satisfatório no que diz respeito à adequação do condenado às regras prisionais e à sua boa relação de convivência, os exames criminológicos atestariam o grau de ressocialização do preso a partir da ausência de conflitos internos. O mérito representaria, pois, (a) o bom convívio com as pessoas com as quais deveria relacionar-se (bom comportamento) e (b) a sadia relação do apenado consigo mesmo (adaptabilidade), sobretudo com a internali- zação dos limites estabelecidos pela lei (prognóstico de não reincidência) e a condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente." (Redação dada pela Lei n° 11.464, de 2007). 10 Requisito incluído pela Lei n° 8.072/90. Saio de Carvalho 188 demonstração de arrependimento (consciência do delito). Definidos os critérios, são estabelecidas as provas processuais que os validariam: (a) ausência de sanção em Processo Administrativo Disciplinar (bom compor- tamento); e (b) parecer técnico (CTC) e/ou laudo criminológico (COC) favorável (atestado grau de ressocialização). Os laudos e pareceres criminológicos que ingressavam no processo de execução penal como prova pericial adquiriram, no passar dos anos, tamanha importância que acabaram (re) criando sistema de prova tarifada11. O sistema de tarifas legais (prova tarifada), apesar de estar superado na legislação processual atual por força da adoção do sistema do livre convencimento judicial motivado (art. 157 e art. 182 do CPP), institui verdadeira armadilha, mormente nos casos de pareceres desfavoráveis: em face da linguagem técnica, o parecer aprisiona a decisão do juiz, sem deixar alternativas ao intérprete. E exatamente por expor juízo probabi- lístico, empiricamente indemonstrável (possibilidade de vir a cometer delito no futuro), as perícias impediam o direito ao contraditório, obstaculizando os direitos ao devido processo legal e à presunção de não culpabilidade em relação a fatos futuros. Em que pese a deturpação material gerada no sistema de prova e a consequente revivificação da prova tarifada com a adoção de valores irre- futáveis, a crítica aos laudos foi historicamente direcionada à ilegitimidade de os técnicos realizarem julgamentos morais dos presos. A categoria ressocialização, encarada como índice de valoração da vida do periciando, invariavelmente cedeu espaço à violação da intimidade, em decorrência da possibilidade da avaliação e do julgamento morais da história pessoal e das opções de vida do objeto de análise. Veja-se, ^, ex., que, se eventualmente o preso houvesse silenciado ou negado o delito durante a primeira fase do processo (processo de conhecimento), fato absolutamente possível e do qual não pode haver qualquer prejuízo, tais posturas perante os técnicos revela- riam a incapacidade de arrependimento e/ou torpeza moral, contraindicando o direito postulado. " A Constituição de 1988, ao adotar sistema de prova baseado no princípio do iivre convencimento motivado, refuta a ideia de prova tarifada. No sistema da prova tarifada, o Magistrado está vinculado à graduação prévia e hierarquizada de provas, não podendo, como ocorre na estrutura do livre convencimento, deixar de apreciar determinados elementos em detrimento de outros, mesmo que fundamente sua decisão. De acordo com a Constituição (art. 93, IX), o Código de Processo Penal permite, no caso de laudo pericial, que o juiz rejeite a opinião dos técnicos, desde que demonstre o's rpotivos:"o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte" (art. 182,'CPP). 0 papei da perícia psicológica na execução penal 189 As perícias técnicas, fundamentadas no discurso correcionalista, instrumentalizaram práticas em absoluta ofensa ao princípio ilustrado da secularização. Sua funcionalidade à teoria da prevenção especial positiva (ressocialização), segundo a crítica criminológica, segue processo de inversão ideológica do discurso dos direitos humanos, pois de forma apenas superficial orientaram política penitenciária de humanização das penas. A função disciplinadora do agir criminológico, oculta no ideal ressocializador, expõe a programação da sanção criminal no século passado: não mais inti- midar ou reprimir, mas criar condições ótimas de controle e de formatação da identidade do preso de forma a impor o arrependimento e a dosar os níveis de probabilidade de delinquência futura. Não por outro motivo o positivismo criminológico deixou os direitos dos apenados reféns de discurso dúbio que pendia entre as noções, sempre abertas e isentas de significado, porém altamente funcionais, de disciplina e ressocialização. Outrossim, no aspecto processual, agregava sistema admi- nistrativo altamente burocratizado que substancialmente se sobrepunha à jurisdicionalização da execução da pena. A exclusão dos laudos e pareceres criminológicos pela lei 10.792/03 e a sua manutenção pela jurisprudência Não obstante a Lei 10.792/03 ter institucionalizado o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) - espécie absolutamente autoritária e desumana de execução da pena12 -, a nova Lei pretendeu modificar a estru- tura da individualização científica do sistema progressivo, fato que merece atenção. A alteração projetada pela Lei 10.792/03 ocorre em relação aos requisitos e ao procedimento para que o condenado alcance os direitos públicos subjetivos instrumentalizados pelos incidentes da execução penal, notadamente a progressão de regime e o livramento condicional. No que tange ao procedimento, a nova redação do art. 112 da LEP reforça o devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e do contraditório, recapacitando o princípio da jurisdicionalização, norteador formal da redação do código penitenciário13. O antigo parágrafo único do art. 112, que previa decisão judicial precedida de parecer da CTC ou exame 12 No que tange às críticas ao Regime Disciplinar Diferenciado(RDD), conferir Carvalho, Tântalo no Divã, p. 91-118. 13 A jurisdicionalização da pena (sistema jurisdicionalizado) submete todos os atos de execução ao juiz, limitando os poderes do administrador, absolutos no sistema oposto (sistema administrativizado). Saio de Carvalho 190 do COC, é substituído por dois importantes parágrafos, os quais remodelam a forma dos atos processuais. 0 papei da perícia psicológica na execução penal 191 O parágrafo primeiro do art. 112 define que a decisão sobre progressão de regime deve ser fundamentada pelo juiz e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor14; o parágrafo segundo projeta procedimento idêntico à concessão de livramento condicional, indulto e comutação das penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes15. Assim, à exceção da remição16, comutação17 e unificação18, os princi- pais incidentes em execução penal serão orientados pela estrutura do devido processo legal constitucional baseado no sistema acusatório, no qual juiz, agente do ministério público, defesa, membros do conselho penitenciário e técnicos possuem papéis claros e determinados, sem sobreposições ou apro- priações. O contraditório pleno entre as partes (acusação e defesa) pretende derrogar os procedimentos inquisitoriais que tendiam a diminuir os direitos e garantias dos condenados na execução. Desta forma, entendeu-se na reforma scr necessário reestruturar o sistema executivo, aproximando-o da estrutura acusatória que rege o processo de conhecimento, ou seja, aquele que inicia com o recebimento da denúncia e termina com a decisão judicial (no caso condenatória) transitada em julgado. Não obstante a alteração do procedimento (forma dos atos do processo de execução), em relação aos requisitos (conteúdo) para concessão dos direitos na execução há significativa alteração. A substituição do texto anterior19 e a exclusão da referência aos laudos e aos pareceres criminológicos produzem dois efeitos distintos: (Io) retira o caráter vinculativo que as perícias e os pareceres criminológicos 14 "Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão."(Redação dada pela Lei 10.792/03). '§ 1o. A decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor." (Redação dada pela Lei 10.792/03). 15"ldêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes."(Art. 112, § 2o, LEP, incluído pela Lei 10.792/03) 16 Redução proporcional da pena pelos dias de trabalho ou de estudo na instituição prisional, na razão de um dia de pena por três de trabalho/estudo. 17 O indulto é causa de extinção de punibilidade no qual o Poder Executivo, através da Presidência da República, extingue (indulto) ou diminui (indulto parcial ou comutação) pena para determinados condenados que cumprem as condições estabelecidas no Decreto de Indulto. Os Decretos de Indulto são publicados anualmente, antes do natal, e os requisitos são constantemente alterados. ,s5oma de penas em caso de nova condenação. 19 "A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário." (Art. 112, parágrafo único, redação original da Lei 7.210/84). Saio de Carvalho 192 tinham sobre a decisão judicial, notadamente porque deixam de ser peça processual a informar o incidente executivo', ou (2o) vedam a possibilidade de CTCs e COC‟s produzir material opinativo (pareceres) destinado à instrução do incidente executivo (prova técnico-pericial), seja progressão de regime, livra- mento condicional, indulto ou comutação. Parece não haver dúvida de que a redação da Lei 10.792/03 deixa clara a opção legislativa em retirar do cenário jurídico a obrigatoriedade dos laudos e pareceres criminológicos. As justificativas apresentadas para exclusão deste requisito subjetivo foram as inúmeras falhas, distorções e/ ou impossibilidades técnicas e materiais de realização da prova pericial ou do parecer técnico. Entende-se, portanto, que, se a reforma penitenciária optou pela remoção do requisito, não caberia ao julgador revivificar o antigo modelo, sujeitando o apenado ao laudo ou ao parecer. Sustenta-se, inclusive, que eventuais entraves ao alcance dos direitos previstos na LEP em face de perícias ou de pareceres desfavoráveis caracterizam ofensa à legalidade penal, em virtude de se vedar efeito retroativo à lei penal anterior mais favorável. Apesar de a Lei 10.792/03 institucionalizar regime bárbaro de execução de pena (RDD) - fundamentalmente por isolar o condenado em regime gótico de execução da pena -, o texto normativo inovou na retirada dos laudos e dos pareceres técnicos, peças processuais cuja eficácia histórica foi a de manter absoluta sobreposição do discurso da criminologia adminis- trativa e psiquiatrizada sobre o sistema jurisdicional de garantias. No entanto, após meia década de vigência da Lei 10.792/03, é possível diagnosticar a eficácia da modificação legislativa pela posição dos Tribunais Superiores em relação ao tema da investigação. Recentes acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) refletem o entendimento consolidado sobre a matéria: “HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. REQUISITOS SUBJETIVOS. PROGRESSÃO DEFERIDA PELO JUÍZO DE EXECUÇÕES CRIMINAIS E CASSADA PELO TRIBUNAL ESTADUAL. ACÓRDÃO CARENTE DE FUNDAMENTAÇÃO VÃLIDA. INCISO IX DO ART. 93 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a aferição do pressuposto subjetivo para a progressão de regime prisional admite balizamento pelo exame O papel da perícia psicológica n 193 criminológico, desde que o juiz demonstre a necessidade de realização deste. 2. Na concreta situação dos autos, de posse do laudo técnico psicológico e demais elementos de convicção, o Juízo da Execução Penal entendeu satisfeito o requisito subjetivo e deferiu a progressão de regime. Decisão que, desmotivadamente,foi reformada pelo Tribunal de Justiça. Ofensa ao inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal. Precedentes. 3. Ordem concedida.” (STF — Ia Turma — HC 9511 l/RS - Relator Min. Carlos Britto,j. 03/02/2009) “HABEAS CORPUS. AGRAVO EM EXECUÇÃO: DEVOLUTIVI- DADE. ELABORAÇÃO DE EXAME CRIMINOLÓGICO PARA FINS DE PROGRESSÃO: POSSIBILIDADE, MESMO COM A SUPERVENIÊNCIA DA LEIN. 10.792/03. NECESSIDADE, CONTUDO, DE DECISÃO FUNDA- MENTADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O Agravo em Execução previsto no art. 197 da Lei de Execução Penal devolve toda a matéria objeto da decisão recorrida ao Tribunal ad quem, nada impedindo, em tese, que, ao julgar o recurso, se proceda à nova análise quanto ao preenchimento dos requisitos de ordem objetiva e subjetiva para progressão de regime. 2. Conforme entendimento firmado neste Supremo Tribunal, a superveniência da Lei n. 10.792/2003 não dispensou, mas apenas tornou facultativa a realização de exames criminolágicos, que se realiza para a aferição da personalidade e do grau depericulosidade do sentenciado (v.g, Habeas Corpus n. 85.963, Rei. Ministro Celso de Mello, DJ27.10.2006). 3. As avaliações psicossociais estão compreendidas no gênero “exame criminológico” epodem servir de subsídio técnico para aformação da livreconvicção do magistrado. 4. Ao analisar os requisitos de ordem subjetiva, o Tribunal ad quem pode se amparar - de acordo com a sua livre convicção — em laudos psicossociais elaborados em atendimento à requisição do Juízo das Execuções, e a par dos quais a decisão recorrida foiprolatada (Código de Processo Penal, art. 157 e 182). 5. Não se presta o procedimento sumário e documental do Habeas Corpus ao reexame de prova pericial em que se traduz o exame criminológico. 6. Na linha dos precedentes deste Supremo Tribunal posteriores à Lei n. 10.792/03, o exame criminológico, embora facultativo, deve ser feito por decisão devidamente fundamentada, com a indicação dos motivos pelos quais, conside- rando-se as circunstâncias do caso concreto, ele seria necessário. 7. Ordem concedida para restabelecer a decisão proferida pelo Juízo das Execuções.” (STF - Ia Turma - HC 94503/RS - Relatora Min. Cármen Lúcia, j. 28/10/2008) No mesmo sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ): "HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. LIVRAMENTO CONDICIONAL. REQUISITO SUBJETIVO NÃO PREENCHIDO. Saio de Carvalho 194 DECISÃO FUNDAMENTADA COM BASE NOS LAUDOS TÉCNICOS. POSSIBILIDADE. 1. Para aferição do requisito subjetivo para a concessão do benefício de livramento condicional, não mais se exige, de plano, a realização de exame criminológico, contudo uma vez realizado, observadas as peculiaridades do caso concreto, este deve ser considerado parafins de concessão ou negativa do benefício. 2. Na hipótese, foi devidamente negado pelo Juízo das Execuções Criminais e Tribunal a quo o pedido de livramento condicional, ante a ausência de atendimento do requisito subjetivo, com fundamento nos laudos técnicos e sua conclusão desfavorável ao Reeducando. 3. Ordem denegada.” {ST] - Habeas Corpus 118.379/RS - Rei. Ministra Laurita Vaz, DJe 09/02/2009) “HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. PROGRESSÃO DE REGIME. LAUDOS TÉCNICOS DESFAVORÁVEIS. CONSIDERAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA, COM RECOMENDAÇÃO. 1. O exame criminológico e os laudos técnicos, anteriormente indispensáveis para se aferir o preenchimento do requisito subjetivo exigido para a concessão de benefícios, após o advento da nova legislação tornaram-se recursos excepcionais, mas, se realizados e desfavoráveis, nada obsta que sejam considerados na análise do pedido de progressão. 2. Ordem denegada.” (STJ - Habeas Corpus 52.560/PR - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 19/12/2008) A interpretação dos Tribunais Superiores acerca do laudo criminoló- gico, que tende a ser universalizada aos Tribunais locais, é a de sua facultati- vidade. Diferentemente do que é sustentado no presente artigo, o entendi- mento majoritário é o de que a Lei 10.792/03, ao retirar do parágrafo único do art. 112 da LEP a necessidade do laudo ou do parecer, não excluiu do julgador a possibilidade de requisição e posterior valoração. Assim, caberá às partes, no caso concreto, se entenderem necessário, requisitar a perícia técnica ao juiz. Em casos episódicos, segundo o novo regramento, poderia o magistrado designar de ofício. A modificação legislativa, porém, possibilitou aos Tribunais fixar o entendimento de que a negativa da progressão de regime ou do livramento 0 papei da perícia psicológica na execução penal 195 condicional com base exclusiva no laudo é incabível, sendo dever do magis- trado fundamentar adequadamente sua decisão, contrária ou aderente à manifestação dos experts. O posicionamento dos Tribunais frente à Lei 10.792/03 renova a atualidade do debate acerca do papel dos técnicos, especialmente o dos psicólogos, na execução das penas privativas de liberdade. Considerações finais: a função dos psicólogos no sistema penitenciário: o atuar criminológico O discurso psiquiátrico-disciplinar da reforma de 1984 que originou a LEP, baseado nos princípios moralizadores da Nova Defesa Social, propunha legitimar o discurso jurídico, atuando como seu suporte. Neste quadro, produzia dois efeitos em áreas distintas: (a) no plano epistemológico, reforçava o narcisismo da ciência do direito penal que historicamente entendeu os demais saberes como meramente auxiliares, funcionais ou instrumentais aos seus objetivos (CARVALHO, 2004: 79-98); (b) no plano processual, ao impregnar a decisão judicial com elementos alienígenas, criava terceiro discurso, não jurídico e não psiquiátrico, autoproclamado criminológico que, apesar da absoluta carência epistemológica, era altamente funcional20. Foucault entendeu este duplo efeito como derivado de técnica de normalização do poder, a qual não é apenas resultado do encontro entre o saber médico e o poder judiciário, mas da composição de certo tipo de poder, para além da psiquiatria e do direito, que colonizou e repeliu ambos (FOUCAULT, 2002: 31-32). Cria-se, pois, discurso absolutamente independente, que resolve de forma autônoma os problemas da execução da pena (e das medidas de segu- rança), sem quaisquer referências aos limites impostos pelo direito ou pela ciência médico-psiquiátrica. A técnica criminológica, ao se autoproclamar como o‟ discurso da verdade no processo de execução penal, acabou por reeditar, conforme destacado, um sistema de prova tarifada típico dos modelos jurídicos inqui- sitivos pré-modernos, incapacitando as normas de garantia ao obstruir 20 Neste sentido sustenta Cristina Rauter que "a 'colonização' do judiciário pelas ciências humanas, pela via da Criminologia, corresponde a um processo de implantação de uma tecnologia disciplinar, com efeitos ao nível do discurso e também das práticas sociais"(RAUTER, 1982:80). 196 qualquer espécie de contraprova ou de contra-argumento, configurando o que se denomina como situação de irrefutabilidade de hipóteses. Assim, não apenas no plano processual, mas igualmente no plano material, o discurso correcionalista de matriz psiquiátrica alterou a face do direito penal. Enquanto o objeto de discussão do direito é (deveria ser) o fato concreto, impossibilitando avaliações morais sobre a história de vida do sujeito, no discurso criminológico oficial (burocrático) houve a prevalência da valorização da identidade da pessoa como fator decisório, como fonte de verdade. Não por outro motivo “os diagnósticos [laudos e pareceres criminológicos] são repletos de conteúdo moral e com duvidosas doses de cientificidade” (BATISTA, 1997: 84). A sobreposição dos discursos científicos e a criação de terceiro parâ- metro para decisão sobre os incidentes de execução parecem ter sido um dos principais problemas processuais do modelo de execução penal insti- tuído em 1984. Este nó‟ teórico derivado da incorporação dos ideais do movimento da Nova Defesa Social, na consolidação do que Garland deno- mina de welfarismo penalm, resulta em situação jurídica na qual as garantias do cidadão preso são abandonadas em detrimento de juízos técnicos moralizadores e normalizadores em seu conteúdo, e, em sua forma, contrá- rios aos parâmetros definidos pelo estatuto jurídico - p. ex., direitos deri- vados das garantias individuais, como o direito à imunização da valoração de sua intimidade, de sua vida privada e de sua vida familiar, agregados aos tradicionais direitos individuais ao silêncio, à não autoincriminação, à presunção de inocência, ao contraditório, entre outros previstos no art. 5o da Constituição da República. Não obstante, conclui Vera Malaguti Batista que, apesar de aparentemente científicos, os laudos criminológicos não são em nada neutros, pois se destacam pela construção e consolidação de estereótipos (BATISTA,1997: 77). Com o advento da Lei 10.792/03 e com a consolidação jurispruden- cial sobre a não obrigatoriedade do laudo, restaria indagar qual a função dos criminólogos, dentre eles os profissionais da psicologia, para além das avalia- ções e das perícias que eventualmente sejam determinadas judicialmente? A questão colocada tem o intuito de criticar a antiga postura que reduzia o técnico à exclusiva função de redigir laudos criminológicos. Apesar da postura conservadora do Poder Judiciário em manter a possibi- 0 papei da perícia psicológica na execução penal 197 lidade de o juiz requisitar o laudo, entende-se que o papel dos profissionais da psicologia, da psiquiatria e do serviço social, que atuam na execução, seja outro, de maior relevância, para além do mero auxílio técnico probatório à decisão judicial. Correta, neste sentido, a análise de Miriam Guindani, ao concluir que, ao longo da vigência da LEP, ...os profissionais do serviço social [da psicologia e da psiquiatria, inclui-se] foram relegados à função de tarefeiros, para simplesmente atender às demandas de avaliação e perícia para fins de -j individualização, progressão de regime ou livramento condicional. Assim, perdeu sua identidade como categoria, ficando relegado, muitas vezes, a um papel de executor de laudos‟. As ações passaram a ocorrer através das equipes de CTC, enquanto o tratamento penal previsto em lei tornou-se, com algumas exceções, secundário. (GUINDANE, 2002: 35) A conclusão em relação ao profissional da psicologia é idêntica, pois, conforme enunciam Hoenisch e Pacheco, “a despeito das diversas possibili- dades de trabalho do psicólogo, observa-se uma restrita atuação à confecção de laudos técnicos” (HOENISCH, PACHECO, 2002:191-204). Para além do posicionamento dos operadores do direito que atuam nos Tribunais Superiores, é possível sustentar que a reforma disposta na Lei 10.792/03 redesenha a pesada e burocrática máquina executivo-penitenci- ária, alterando substancialmente o papel dos atores da execução (psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais). Segundo a nova redação do art. 6° da LEP21, parece ser esperado do técnico trabalho no sentido da criação de condições que reduzam os danos produzidos pela execução da pena, de construção de mecanismos que mini- mizem os efeitos perversos da sanção penal. Caberia, portanto, às CTCs, a missão de efetiva elaboração de programas individualizadores, seguido do imprescindível trabalho de acompanhamento do preso durante a execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direito. Em relação aos COCs, caberia à perícia técnica o auxílio na obtenção de elementos precisos àquela individualização, sobretudo no caso de condenado à pena privativa 21 "Art. 6o. A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o programa indi- vidualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório."(Redação dada pela Lei n° 10.792, de 1.12.2003) 198 de liberdade em regime fechado. Em síntese, a reforma legislativa permite entender o trabalho do técnico comopropositivo (não impositivo), no sentido de elaborar programa de tratamento penal objetivando a redução dos danos causados pelo processo de prisionalização. Embora entendendo inadequada a categoria, fundamen- talmente pelo conteúdo ideológico que historicamente representou, utiliza- se o termo tratamento penal'. ...entendendo-o não como uma finalidade em si do cumprimento da pena, mas como um conjunto de práticas educativas e terapêuticas que podem ter significados e funções diferenciadas no processo de cumprimento da pena, dependendo dos diferentes fatores teóricos, políticos e institucionais, que o envolvem. (WOLFF, 2003: 96) Atividade pautada em princípios de redução de danos possibilitaria construir com o apenado técnicas que possibilitassem minimizar os efeitos deletérios do encarceramento, sobretudo o da estigmatização, gestando espécie de clínica de vulnerabilidade. Se constatados problemas de ordem pessoal ou familiar, caberia ao técnico, em comunhão e com a anuência do apenado, colocar em prática instrumentos de manejo do problema, forne- cendo elementos para superação da crise. A elaboração conjunta do programa de redução de danos, com a prévia anuência do cidadão preso, é condição fundamental para que haja mútuo comprometimento. A imposição de programas de ressocialização, não obstante ferir a mais elementar premissa do tratamento (voluntariedade), somente é admissível em sistemas nos quais o encarcerado é percebido como objeto de execução da pena, como ente coisificado entregue ao laboratório criminológico do cárcere ou, nas palavras de Foucault, “objeto de uma tecnologia e de um saber de reparação, de readaptação, de reinserção, de correção” (FOUCAULT, 2002: 26-27). Neste momento de rediscussão do papel dos técnicos da execução penal em face das alterações determinadas pela Lei 10.792/03, importante lembrar as recomendações do Relatório Final da investigação desenvolvida pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) no final da década de 80. ; papei «ia pefteta psicológica na execução penal 199 Diagnostica o relatório que inexiste nos ordenamentos jurídicos latino-americanos qualquer tipo de intervenção participativa do apenado na eleição do programa de reinserção ao qual estará subordinado. Em regra, segundo informa o documento, os relatórios sobre condenados tendem a ser estigmatizantes, agregando expedientes com sentido infamante altamente negativo que: ...al par de resultar una agresión a la personalidad, totalmente contraria a los fines que se propone formalmente el sistema, importa en una seria violación a la esfera íntima de la persona, que no se encuentra afectada por la pena privativa de liberdad más que en la estricta medida de lo que, conforme a la naturaleza de las cosas, se desprende dei mero hecho de la privación de libertad. (ZAFFARONI, 1988: 209) Ademais, acrescenta o informe que a pena privativa de liberdade não pode ter, sob nenhuma justificativa, o efeito de comprometer a personali- dade e a intimidade do condenado, de tal sorte que os técnicos que atuam na execução não estão isentos do segredo profissional inerente aos seus cargos. Assim, enumera propostas que parecem poder ser incorporadas pelas aberturas fornecidas com a nova Lei: (Ia) que a observação e a classificação dos condenados ocorra em período de tempo razoavelmente breve, com a participação de equipe multidisciplinar controlada pelo juiz da execução penal, possibilitando a intervenção do apenado na estruturação do programa ao qual será submetido; (2a) que os informes das comissões de classificação se abstenham de penetrar em aspectos concernentes à esfera íntima da pessoa, baseando-se em modelos adequados às características culturais de cada comunidade; (3a) que os profissionais e funcionários intervenientes fiquem submetidos às regras do segredo profissional ou funcional e que seus informes não sejam agregados indiscriminadamente aos autos do processo (ZAFFARONI, 1988: 209-210). Para finalizar, importante lembrar Anabela Miranda Rodrigues quando sustenta que ...o „tratamento‟, quer seja realizado em liberdade, quer em caso de sua privação, é sempre um direito do indivíduo e não um dever que lhe possa ser imposto coativamente, caso em que sempre se abre a via de uma qualquer manipulação da pessoa humana, redobrada quando Saio de Carvalho 200 esse tratamento afeta a sua consciência ou a sua escala de valores. O direito de não sertratado‟ é parte integrante do direito de ser diferente‟ que deve ser assegurado em toda sociedade verdadeiramente pluralista e democrática, (apud FRANCO, 1986:106) Bibliografia BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 1999. BATISTA, Vera Malagutti. O proclamado e o escondido: a violência da neutralidade técnica. In: Discursos sediciosos (03). Rio de Janeiro: ICC/Revan, 1997, p. 77-86. CARVALHO, Saio. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. . Tântalo no divã. 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Buenos Aires: Depalma, 1986. 21 Segundo Garland, a estrutura penal-welfare passa a ser o resultado híbrido que combina o legalismo liberal do processo e seu castigo proporcional com compromissos correcionalistas baseados na reabili- tação, no bem-estar e no conhecimento criminológico (GARLAND, 2001:27).
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