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370 Diretrizes SBD 2014-2015 Transplante de células-tronco no diabetes mellitus Estamos vivendo um período de descobertas na medicina como um todo. O transplante de células-tronco e a terapia celular têm deixado de ser vistos como tema de ficção científica e estão passando a fazer parte do noticiário da mídia leiga e das revistas científicas de primeira linha. Como a maioria dos médicos não frequentou disciplinas formais de tera- pia celular na sua formação, uma grande lacuna ainda existe neste campo de conhecimento. Com isso, o objetivo deste capítulo será fazer uma atualização geral sobre células-tronco e mostrar o que há de estudos clínicos até o momento rela- cionados com o diabetes mellitus. ENTENDENDo MELHoR AS CÉLULAS-TRoNCo Células-tronco são um tipo especial de células, relativamente pouco frequen- tes em adultos e que têm duas carac- terísticas básicas e principais (Figura 1): Auto-renovação, ou seja, ser capaz de se dividir e se autoperpetuar (divi- são simétrica). Formação de células mais maduras ou mais diferenciadas (divisão assimétrica).1 DIFERENTES TIPoS DE CÉLULAS-TRoNCo Cada tipo de célula-tronco tem poten- cial diferente de promover o fenômeno Divisão simétrica Divisão assimétrica Figura 1 Processo de divisão simétrica (autorrenovação) e assimétrica (diferenciação em células mais maduras) das células-tronco. de diferenciação celular, ou seja, “trans- formar-se” em uma célula mais madura. Sem dúvida, a célula com maior capacidade de diferenciação é a célula- tronco totipotente. Esta célula é o resultado das primeiras divisões celu- lares ocorridas a partir do zigoto. Ela tem capacidade de se diferenciar em todos os tecidos do embrião e tam- bém nos anexos embrionários, como placenta. Essa célula não tem sido uti- lizada como potencial ferramenta tera- pêutica em doenças humanas. Após vários ciclos de divisão celu- lar a partir do zigoto, as células-tronco perdem a capacidade de formar teci- dos placentários, mas mantêm a capa- cidade de formar todos os tecidos das três principais camadas do embrião (endoderma, mesoderma e ectoderma). A essa célula damos o nome de célula- tronco embrionária, que é considerada uma célula-tronco pluripotente.1 As células-tronco embrionárias (CTE) se localizam na massa interna do blasto- cisto em torno do 15o dia de fertilização. A cultura de CTE de animais ocorreu na década de 1960, porém somente em 1998 James Thomson cultivou a primeira linhagem humana de CTE. Em 2008, o Brasil desenvolveu sua primeira linha- gem de CTE humanas para pesquisas. Em cultivo de laboratório, as CTE apresentam uma capacidade muito característica que as distinguem de outras células-tronco: a capacidade de gerar teratomas. Por isso é que no seu uso terapêutico as CTE nunca 371 2014-2015 Diretrizes SBD podem ser injetadas diretamente em um paciente, pois gerariam teratomas. Classicamente, a forma de se driblar este inconveniente é diferenciando esta CTE in vitro em células mais especializa- das de interesse e, em seguida, infundi -las no paciente em questão. Esta dife- renciação in vitro é feita cultivando as CTE juntamente com fatores de cresci- mento e diferenciação já conhecidos e numa sequência predeterminada, Em 2010, a empresa privada ame- ricana Geron Corporation obteve a pri- meira aprovação pelo FDA para dar início ao uso de pesquisa em huma- nos com CTE. Foram incluídos quatro pacientes com lesão total em medula espinhal e foram infundidos oligoden- trócitos derivados de CTE nestes pacien- tes. O estudo ainda não foi publicado e, infelizmente, por motivos financei- ros as pesquisas com CTE deste grupo foram paralisadas no final de 2011. Em janeiro de 2012, porém, foi publicado o primeiro estudo que avaliou o efeito da infusão de células da retina diferencia- das a partir de CTE. Dois pacientes com amaurose devido à degeneração macu- lar foram incluídos e os resultados ini- ciais parecem promissores.2 Um dos grandes obstáculos ao uso de CTE é o fato de o material genético delas ser diferente do receptor destas células, sendo obrigatório o uso con- comitante de imunomoduladores para evitar a rejeição destas células. Na tentativa de driblar o entrave da rejeição na terapia com CTE, em 2007, o grupo japonês Shinya Yamanaka desenvolvou as chamadas iPS - induced plutipotent stem cells. A partir de células adultas, como por exemplo fibroblas- tos da pele do paciente, pesquisadores introduzem um vírus que carreia genes capazes de induzir esta célula madura a retornar ao estágio de CTE. Com isso, se consegue driblar dois pontos cru- ciais da terapia com CTE: a rejeição e questões religiosas concernentes ao uso de embriões. Até o momento, não há pesquisas em humanos com as iPS.1 No Quadro 1 encontra-se a íntegra da lei de biossegurança que regula- menta as pesquisas com CTE no Brasil. As células-tronco multipotentes são células com capacidade de se dife- renciar em um grupo menor de célu- las, como, por exemplo, a célula-tronco hematopoética presente na medula óssea ou também as células-tronco de sangue de cordão umbilical, que são capazes de se diferenciar em grupos limitados de células, como as células sanguíneas e do sistema imunológico.1 Muitas vezes se acha que as célu- las-tronco de sangue de cordão umbili- cal sejam embrionárias, mas na realidade são consideradas células-tronco adul- tas, maduras. Classicamente, as células- tronco de sangue de cordão também são capazes de promover hematopoese. Outro exemplo importante de célu- las-tronco multipotentes são as célu- las-tronco mesenquimais. Elas estão presentes em quases todos os tecidos adultos (inclusive tecido adiposo) e têm a função de reparo tissular na maio- ria deles. Está presente também na camada média dos vasos sanguíneos. Classicamente, estas células se caracte- rizam por se diferenciar in vitro em con- drócitos, osteócitos e adipócitos. Muitos estudos porém têm demonstrado sua capacidade de se diferenciar em outras células das 3 camadas, como, por exem- plo, células beta pancreáticas, miócitos, oligodentrócitos etc.1 Uma grande van- tagem do uso terapêutico dessas célu- las é que elas não expressam molécu- las de HLA classe II, ou seja, podem ser coletadas de um indivíduo e infundidas em outro sem haver rejeição. Um bom exemplo de células-tronco unipotentes é a célula-tronco endote- lial. Esta célula tem a capacidade de se diferenciar apenas em células endote- liais e vasculogênese.1 Em suma, como pôde ser visto, as células-troco têm potencialidades variadas de acordo com o tipo de célula e podemos ver que as células-tronco não são exclusividade dos embriões. DIABETES TIPo 1: USANDo TERAPIA CELULAR PARA DRIBLAR A AUToIMUNIDADE E PRESERVAR A MASSA DE CÉLULAS BETA RESIDUAL De maneira geral, o diabetes tipo 1 (DM1) é considerado uma doença mediada por células T. O linfócito T QUADRo 1 Lei de biossegurança sobre o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas LEI DE BIoSSEGURANçA (LEI N.11.105 DE 24/03/2005) Art. 5: É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: Sejam embriões inviáves • Congelados há 3 anos ou mais • Consentimento dos genitores • Pesquisas que utilizam essas células deverão submeter seus projetos a comissões de ética em pesquisa 372 Diretrizes SBD 2014-2015 tem papel fundamental na gênese do DM1, pois quando este linfócito é ativado por meio de seu receptor ele pode orquestrar tanto imunidade contra infecções quantogerar fenô- meno de autoimunidade, depen- dendo do alvo. Células T secretam grande quantidade de citocinas em resposta à ativação desencadeada por cada tipo de antígeno que lhe é apresentado. Baseado no perfil de secreção de citocinas, os linfócitos T são designados TH1, TH2 e TH17 frente à exposição a diferentes antígenos em diferentes situações.3 Para a ativação dos linfócitos T são necessários três passos. No iní- cio do processo fisiopatológico do diabetes tipo 1 ocorre um enlace entre a célula apresentadora de antígenos (CAA) e o linfócito T. O primeiro passo é a ligação mediada pelo HLA classe II expresso pela CAA e o receptor do linfócito T. Para o processo de ativação dos linfócitos T continuar é necessário um segundo passo, que pode ser medido pela expansão clonal dos linfócitos. Este segundo passo, ou coestimulador, é feito, por exemplo, pela ligação da molécula CD28 do linfócito T com a CD80 da CAA. Estes dois passos são necessários para se tentar evi- tar respostas imunes inespecíficas ou autoimunes. A CAA é que deter- mina a progressão ou não para o ter- ceiro passo, que é a migração do lin- fócito T para os tecidos linfóides, e regulam sobremaneira o desenvolvi- mento do perfil de secreção de cito- cinas que, em última análise, favore- ceram o surgimento da autoimuni- dade celular.3 Os linfócitos Th1 com sua produ- ção de interferon-γ parecem ser um dos mais importantes mediadores do processo de autoimunidade no DM1. Isto pode ser avaliado em camundon- gos diabéticos não-obesos (NOD), pois quando se infunde fator indutor de interferon-γ e interleucina-12 (poten- tes indutores de interferon-γ), o pro- cesso de insulite aumenta em para- lelo.13 Outros linfócitos, porém, pare- cem ter um importante papel na fisio- patologia do DM1: são os Th17, pro- dutores de interleucina-17, e também os Th2, produtores de interleucina-4, 5, 10 e 13. Anteriormente, avaliava- se que os linfócitos TH2 tivessem um papel “protetor” no DM1, atualmente se observa que também podem apre- sentar propriedades indutoras do pro- cesso autoimune e de insulite no DM1.3 Desde a década de 1970, quando se demonstrou o papel crucial da autoimunidade na destruição da massa de células beta, diversos aspectos foram especulados como sendo os passos iniciais ou gatilhos para o início de todo o processo. Independente dos gatilhos, ao con- trário do que se pensava anterior- mente, o processo de autoimunidade se inicia meses a anos antes do diag- nóstico clínico de DM1, quando o paciente apresenta sinais e sintomas agudos de hiperglicemia. Diversos estudos foram realizados em pacien- tes com diagnóstico recente de DM1 utilizando terapias imunossupreso- ras ou imunomoduladoras, como por exemplo prednisona, azatioprina, ciclosporina, proteína de choque térmico, rituximab, abatacept, vita- mina D etc. Entretanto, a maioria dos pacientes permaneceu em uso de insulina em quantidade semelhante ao grupo controle e os níveis de pep- tídio-C permaneceram em queda ou estáveis ao longo de um seguimento máximo de 1 ano.3 Com base na ideia de preserva- ção da massa de células beta resi- dual, em 2003 de forma pioneira mun- dialmente, nosso grupo de pesqui- sadores do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto - USP iniciou os estu- dos com terapia celular na tenta- tiva de bloqueio da autoimunidade. A imunossupressão intensa seguida por transplante autólogo de células- tronco hematopoéticas tem o intuito de realizar um “reset imunológico”, ou seja, “desligar” o sistema imunológico quase totalmente e “religá-lo” com células-tronco hematopoéticas autó- logas. Vale à pena ressaltar que o obje- tivo do uso das células-tronco hemato- poéticas é regenerar um novo sistema imunológico, não havendo evidências de sua diferenciação em células beta. Com isto o resultado final é preservar a massa residual de células beta ainda não destruída. Diferentemente dos outros estudos prévios que utilizaram outras terapias imunomoduladoras, esta pesquisa conseguiu promover elevação estatisticamente significante dos níveis de peptídio-C por mais de 3 anos em pacientes com DM1 e a maio- ria dos pacientes conseguiu ficar livre da insulinoterapia exógena por perío- dos que variaram de 6 meses a 9 anos. Estudos independentes realizados na tentativa de replicar este protocolo mostraram resultados semelhantes na Polônia e na China. Outra técnica de terapia celular utili- zada pioneiramente nos anos 2000 pelo grupo da Universidade de Gainesville – Flórida, foi a imunomodulação indu- zida por transplante autólogo de célu- las de sangue de cordão umbilical. O objetivo do estudo foi avaliar o poten- cial destas células-tronco isoladamente, sem esquema imunossupressor adju- vante em modificar a história natural da doença. Neste estudo foram incluí- dos pacientes DM1 há menos de 1 ano e com idade média de 5 anos que tinham estocado sangue do próprio cordão umbilical coletados quando no seu nas- cimento em clínicas privadas. Todavia, não houve diferença na manutenção dos níveis de peptídio-C ao longo de 1 373 2014-2015 Diretrizes SBD ano de estudo nenhum paciente se viu livre de insulina exógena.6 Em 2008, o grupo de Transplante de células-tronco do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto – USP deu início ao uso de transplante alogênico de células-tronco mesenquimais em pacientes adultos e pediátricos com DM1 recém-diagnosticado e os resul- tados estão sendo aguardados. Os estudos anteriormente cita- dos devem ser realizados em pacien- tes recém-diagnosticados pois ainda apresenta reserva funcional de célu- las beta. Na nossa opinião, protoco- los de pesquisa em pacientes com DM1 de longa duração devem incluir não somente a terapia imunomodu- ladora, mas também uma fonte ativa de células beta.7 DIABETES TIPo 2: TERAPIA CELULAR CoM o INTUITo DE RECoNSTITUIR A MASSA DE CÉLULAS BETA E DIMINUIR o PRoCESSo INFLAMATÓRIo Atualmente, sabemos que a fisio- patologia do DM2 não se restringe somente ao binômio resistência insulínica e disfunção de células beta, por isso inúmeros defeitos paralelos ocorrem simultaneamente. Um deles é o processo inflamatório subclí- nico subjacente que permeia esta intrigante doença e pode ser alvo de diversas terapias. Recentemente, um importante estudo em humanos avaliou o papel de um medicamento anti-inflamatório bloqueador do receptor da IL-1, e o resultado foi uma redução da A1C e elevação dos níveis de peptídio-C no período de 14 semanas.6 Outros medicamentos atualmente estão em estudo, como o anticorpo específico contra o receptor da IL-1β e IKKβ-NF-κB, e os resultados parecem promissores.8 QUADRo 2 Ações potencialmente benéficas das células-tronco mesenquimais em pacientes com DM2 ALGUNS DEFEIToS Do DM2 RELACIoNADoS À INFLAMAção BENEFÍCIoS Do USo DE CÉLULAS-TRoNCo MESENQUIMAIS • Obesidade • Resistência insulínica • Aterosclerose • Colonização por agentes infecciosos • Insulite e disfunção de células-beta • Quimiotaxia para tecidos inflamados • Possível diferenciação em células-beta • Efeito anti-inflamatório via: – ↓ proliferação células NK – ↓ ativação de linfócitos citotóxicos – ↑ linfócitos reguladores – ↓ proliferação de linfócitos-beta Neste sentido, as células-tronco também podem ser úteis para reduzir o processo inflamatório do DM2, espe- cialmente as células-tronco mesenqui- mais. No Quadro 2 estão as caracte- rísticas que tornam as células-tronco mesenquimais uma excelente e pro- missora arma contra o DM2. Pequenos estudos foram reali- zados em humanos por grupos dife- rentes que avaliaram o papel da terapia celular no DM2. O primeiro foi realizado pelo grupo argen- tino de Estrada et al. que testaram o efeito da infusãointrapancreática via cateterismo arterial de células autólogas de medula óssea do pró- prio paciente associado a sessões de oxigênio hiperbárico. O material coletado da medula óssea contém basicamente linfócitos adultos e sangue, mas também contém célu- las-tronco mesenquimais, hemato- poéticas e endoteliais. Já o oxigênio hiperbárico está recentemente asso- ciado a uma possível maior mobili- zação de células-tronco endoteliais capazes de reparar os vasos sanguí- neos. Neste estudo não controlado de 25 pacientes em insulinotera- pia observou-se redução da A1C e da proteína C-reativa e elevação do peptídio-C em 1 ano. A dose média de insulina se reduziu de 34 para 2,5 unidades ao dia.9 Estudo semelhante foi realizado pelo grupo indiano de Bhansali et al., sem entretanto usar oxigênio hiperbárico. Após segui- mento de seis meses, sete dos dez pacientes incluídos apresentaram redução de até 75% na dose diária de insulina.10 Em 2011, um estudo chinês incluiu dez pacientes diabéticos de longa duração tipo 2 seguidos por seis meses. A diferença é que neste proto- colo foi usado especificamente célu- las-tronco mesenquimais de placenta humana infundidas pela veia periférica três vezes, com intervalo mensal. Neste protocolo houve grande redução dos parâmetros de inflamação, e metade dos pacientes teve redução de mais de 50% na dose diária de insulina.11 O maior estudo com células-tronco em pacientes com diabetes tipo 2 foi publicado em 2012 por Hu e colabo- radores12. Trata-se de um estudo pros- pectivo, randomizado, aberto envol- vendo 118 pacientes em insulinotera- pia e seguidos por 3 anos. Os pacientes receberam material da medula óssea via cateterismo até a artéria pancreática e ao final 32% dos pacientes suspende- ram o uso de insulina e 33% tiveram a dose reduzida em mais de 50%. 374 Diretrizes SBD 2014-2015 REFERÊNCIAS 1. Zago MA, Covas DT. Células-tronco: A nova fronteira da medicina. São Paulo. Atheneu. 2006. 2. Schwartz SD et al. Embryonic stem cell trials for macular degeneration: a preliminary report. Lancet Jan. 2012 [Epub ahead of print]. 3. Couri CEB. Patogênese do dia- betes tipo 1. In: Sociedade Brasileira de Endocrinologia (Org.). Proendocrino – módulo 3 do ciclo 1. São Paulo, Artmed. 2010. 4. Voltarelli JC, Couri CEB, Stracieri ABPL et al. Autologous nonmye- loablative hematopoietic stem cell transplantation in newly dia gnosed type 1 diabetes mellitus. JAMA 2007;297:1568-76. 5. Couri CE, Oliveira MC, Stracieri AB et al. 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