Pro-Posiçães,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 A históriae os modelosdo corpo GeorgesVigarello. Resumo:O corpo,pensadoemquadrosprecisosdeintercâmbiosespecíficoserelacionais, torna-seumobjetosuscetíveldeeIucidarépocasesociedades,podendo,assim,esclarecer ummundo.A diversidadedeseusterritórioséabundantenoseiodecadaculturaedecada época.O investimentona elaboraçãodeumahistóriado corpoconsiste,portanto,em recenseare explorarosmuitose múltiplosterritórioscorporais,complexificandonossas representaçõesedesconfiandodenossasensibilidadedopresente. Palavras-chave:Históriadocorpo,históriadasqualidadesfísicas,corpo. Abstract:Thebodyconceivedasprecisepicturesofspecif1candrelationa!exchanges,becomes anobjectcapableof eIucidatingtimesandsocieties,thereforecapableof enlighteninga world.The diversiryofits territoriesisabundantin theheartofeachcultureandeachera. Thus, theeffortof eIaboratinga historyof thebodyconsistsin surveyingandexploring themanyandmultiplebodilyterritories,entanglingour representationsandmistrusting oursensibiliryof thepresent. Key-words:Historyof thebody,historyof physicalqualities,body. As referênciasdadasàforma,àseficáciasefuncionamentosdocorpo,mudam nodecorrerdotempo.Suasrepresentaçõessedeslocamdetalmaneiraque,algu- masvezes,vêem-secompletamentetransformadas:o controledo pesocorporal, porexemplo,oscuidadoscomaconstituiçãoorgânica,ahierarquiaconcedidaao aspectofísico,osíndicesdealertaaosmales;ospadrõesestéticosatuaisnãosão aquelesdo passado.Uma imagem,ao mesmotempoplural e global, foi reconstitUída;"imagem"nosentidodadoporDeniseJodeletquandoserefereao conceitoderepresentação:"atividadementalorientadaparaaprática,ou seja,o princípioqueservedeguiadaaçãoconcretasobreoshomenseascoisasvisandoa sistematizaçãodesaberespragmáticose,atravésdacomunicação,agentedacria- çãodeum universomentalconsensual"(JODELET, 1984,p.30-31)1.A repre- sentação(social,nocasopresente)seriaumamaneiradeorganizarinternamenteo real,deacordocomasreferênciascoletivasqueagemsobreelecomoumaforma · Universidadede ParisV e ÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales.http://www.ehess.fr RevisãoTécnica:CarmenLúciaSoares I . VertambémJodelet(1988). 21 Pro-Posiçães,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 depensamento,cujaprimeiracaracterísticaéadeserfuncional,imediatamente pragmática.Estudadanos"conteúdosconcretosnosquaiselaestáencarnadà', detectadacomo"pensamentoprático"(JODELET, 1984,p. 30-31),essarepre- sentaçãopoderevelarindíciosimportantessobreo universocorporaldeumacul- turaedeumaépoca. Seriaprecisoaindamediradiversidadedosregistrosculturaiseeruditosaosquais o corpovemsendoconfrontado,apontodeperder,rapidamente,umaspectode "unidadeoriginal"edesetornarumdesafioparaaquelesquequeremestudá-lo. I .Astrêsfacesdocorpo Inúmerassãoasmaneirasdesereferiraocorpoedehabitá-Io;inúmerassãoas maneirasderepresentá-Ioedelhedarforma;éadispersãodessesindíciospossí- veisqueimpressionainicialmente.Um olharmaisprofundorevelacomoadiver- sidadedosterritóriosdo corpoé abundanteno seiodecadaculturae decada época:a competênciado ortopedistanãoécomparávelà do artista,do mesmo modoqueapráticadoesportistanãoéadomímicooudoator.Mecânica,ener- gia,expressãoesensibilidadeserepartemnumamultiplicidadedecorpos,cada qualemsuasingularidade,comseussaberes,seusimaginários,seusdomínios,até mesmoseusobjetos.É necessáriomediressaabundânciadereferênciascorporais, essavariedadequeproíbeagrupá-Iasemumamesmadisciplinacientíficaou,mes- mo,dar-Ihesumacoerênciaeumaunidadeapriori. Podem-sedistinguirpelomenostrêsgrandesfacesdaexistênciacorporal:to- daspossuemseusprópriosinvestimentosesingularidades,e,éclaro,suaprópria história.A primeiraé a do princípiodaeficácia:recursostécnicosqueo corpo retirada mecânicae dossistemasorgânicos,ou seja,a suacapacidadedeação sobreosobjetos.Pode-sepensaraquinashabilidadesdostrabalhadoresmanuaise nosprocedimentosfísicosquotidianos,comotambémnossaberesenaspráticas colocadasemjogoparaamanutençãodocorpo,o aumentodesuaresistênciaou deseupoder,saúde,higieneoumesmotreinamentoscorporaisvariados.A segun- dadestasfaceséadoprincípiodepropriedade:posse,pelocorpo,deumespaçoe, nele,de um territóriototalmentepessoal,ou seja,apropriaçãodo serno mais íntimodesi, noslimitesdesuadimensãobiológica.Imaginem-se,portanto,as representaçõesdasfronteirascorporais,daquilo que recobreo corpo - as"mura- lhasdaintimidade"- ou, ainda,oslugaresapartirdosquaissedefinemasviolên- ciase os atentadosfísicos.Estafacemostra-sedesumaimportância,poissuas varianteshistóricasrevelamdeslocamentosdesensibilidade,quesereferemnão somenteà relaçãocomo outro,mas,também,paraconsigomesmo.A terceira faceéadoprincípiodeidentidade:manifestação,pelocorpo,deumainteriorização oudeumpertencimentoquedesignaosujeito,ouseja,o recursodemensagense detrocasapartirdesinaisedeexpressõesdenaturezafísica.Pode-sepensaraqui, 22 Pro-Posições,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 os recutsosexpressivos,a emissãodemensagens,a emergênciade um sentido voluntárioou involuntário.Nestaterceirafacepode-sepensar,ainda,asmanifes- taçõesdeprazerededorreforçandoaancoragemdosujeito. 2.A históriae o objeto Estastrêsfacesdemonstramoquantoahistóriadocorpopoderevelar-sehete- rogênea,mobilizarobjetosmuitasvezesdiferentes,atémesmoinconciliáveis.É maisemdireçãoàprudênciaepistemológicaemetodológicaqueeladeveria,en- tão,conduzir. Estahistória,porém,poderiatornar-semaislegítimaaocaptarumobjetocom precisão:objetoqueoutrasabordagenstiveramdificuldadeemapreender,objeto querevelaaquiloquenãoexistiria,a nãoserno momentoe no lugaremqueé captado.Mostrar,porexemplo,comLe Goff (1967,p. 440),quea "civilização medievalé a civilizaçãodo gesto",é abrirum campode reflexãosemlimitesa respeitodosmodosdesociabilidadeemviadesolidificaçãoe dediferenciação, assinalandoaomesmotempoosobstáculoseasinovaçõesqueimplicamo lugar aindamuitomarginaldaescrita;édarumadensidadeinéditaàsmodalidadesintei- ramentecorporaisdosjuramentosedoscontratos,dassolenidadesremarcáveis2ou dosusosmuitoquotidianos;é lerestatentativaantigadeinscreverno corpoum códigoaindaà procuradassuastransposiçõesemsignosescritos.A partirdeste únicoenunciado,umespaçodifusodepráticasedegestualidadesanódinastorna- sebruscamenterelevanteparaacentuaraoriginalidadedasociedadedaqualsur- gem.No limite,aIdadeMédiaexiste"diferentemente",quandoselevaemconsi- deraçãoestasinscriçõescorporaisqueaimportância-logo maiscentral-daescrita permitirádeslocar.O corpo,dentrodestequadroprecisodeumintercâmbioespe- cíficoerelacional,tornou-se,assim,umobjetosuscetíveldeesclarecerummundo. Abundantessãoosexemplosdessesobjetoscorporaisqueforam-setornando objetos"elucidativos"deumaépocaedeumasociedade.O investimentonacons- truçãodeumahistóriadocorpoconsistetantoemrecenseá-losquantoemexplorá- los.Contudo,é necessário,àsvezes,sabertornarcomplexasasrepresentaçõese desconfiarde nossosprópriosesquemasrepresentativos,aquelesde homense mulheresquepertencemàsociedadedehoje. 3. O exemplodasqualidades"físicas"docorpo O simplesexemplodasqualidadesfísicasatribuídasaocorponahistóriade- monstraatéquepontoestasqualidadesdevemserdiferenciadasdasnossas.Vou 2. NotadaRevisaraTécnica(NRT). Porexemplo.assolenidadescomoanomeaçãoe ostorneios doscavalheirosmedievais,asfestasdaprimaveraetc,etc. 23 Pro-Posiçães,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 usareste.únicoexemploparapreconizaradesconfiançaa respeitodenossaspró- priasreferências:aqualidadeda"velocidade",maisprecisamenteainda,queevo- careiaqui,aparentementeeternaeinventadacomacorrida,serevela,naverdade, rapidamentemaiscomplexa,confusaedissimuladaparaquemdesejaestudá-Ia. Duasnoçõesdominamatradiçãomaisantiga,nomomentoemquesãoevocadas asqualidadesfísicasdocorpo:aforçaeadestreza.Elassão,aliás,poucoexplicitadas, furtivamentecitadas.Aparecem,porexemplo,nojogodepélano finaldoséculo XV, jogoemquesãoesperadoslancesaplicadoscom"muitahabilidade,muita forçaemuitamalícià'(D'ALLEMAGNE, 1882,p. 170).Nenhumaalusão,ain- da,aqui,àvelocidade,à respiraçãoemesmoaosmúsculos,nestesraríssimosco-