Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Pro-Posiçães,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 A históriae os modelosdo corpo GeorgesVigarello. Resumo:O corpo,pensadoemquadrosprecisosdeintercâmbiosespecíficoserelacionais, torna-seumobjetosuscetíveldeeIucidarépocasesociedades,podendo,assim,esclarecer ummundo.A diversidadedeseusterritórioséabundantenoseiodecadaculturaedecada época.O investimentona elaboraçãodeumahistóriado corpoconsiste,portanto,em recenseare explorarosmuitose múltiplosterritórioscorporais,complexificandonossas representaçõesedesconfiandodenossasensibilidadedopresente. Palavras-chave:Históriadocorpo,históriadasqualidadesfísicas,corpo. Abstract:Thebodyconceivedasprecisepicturesofspecif1candrelationa!exchanges,becomes anobjectcapableof eIucidatingtimesandsocieties,thereforecapableof enlighteninga world.The diversiryofits territoriesisabundantin theheartofeachcultureandeachera. Thus, theeffortof eIaboratinga historyof thebodyconsistsin surveyingandexploring themanyandmultiplebodilyterritories,entanglingour representationsandmistrusting oursensibiliryof thepresent. Key-words:Historyof thebody,historyof physicalqualities,body. As referênciasdadasàforma,àseficáciasefuncionamentosdocorpo,mudam nodecorrerdotempo.Suasrepresentaçõessedeslocamdetalmaneiraque,algu- masvezes,vêem-secompletamentetransformadas:o controledo pesocorporal, porexemplo,oscuidadoscomaconstituiçãoorgânica,ahierarquiaconcedidaao aspectofísico,osíndicesdealertaaosmales;ospadrõesestéticosatuaisnãosão aquelesdo passado.Uma imagem,ao mesmotempoplural e global, foi reconstitUída;"imagem"nosentidodadoporDeniseJodeletquandoserefereao conceitoderepresentação:"atividadementalorientadaparaaprática,ou seja,o princípioqueservedeguiadaaçãoconcretasobreoshomenseascoisasvisandoa sistematizaçãodesaberespragmáticose,atravésdacomunicação,agentedacria- çãodeum universomentalconsensual"(JODELET, 1984,p.30-31)1.A repre- sentação(social,nocasopresente)seriaumamaneiradeorganizarinternamenteo real,deacordocomasreferênciascoletivasqueagemsobreelecomoumaforma · Universidadede ParisV e ÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales.http://www.ehess.fr RevisãoTécnica:CarmenLúciaSoares I . VertambémJodelet(1988). 21 Pro-Posiçães,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 depensamento,cujaprimeiracaracterísticaéadeserfuncional,imediatamente pragmática.Estudadanos"conteúdosconcretosnosquaiselaestáencarnadà', detectadacomo"pensamentoprático"(JODELET, 1984,p. 30-31),essarepre- sentaçãopoderevelarindíciosimportantessobreo universocorporaldeumacul- turaedeumaépoca. Seriaprecisoaindamediradiversidadedosregistrosculturaiseeruditosaosquais o corpovemsendoconfrontado,apontodeperder,rapidamente,umaspectode "unidadeoriginal"edesetornarumdesafioparaaquelesquequeremestudá-lo. I .Astrêsfacesdocorpo Inúmerassãoasmaneirasdesereferiraocorpoedehabitá-Io;inúmerassãoas maneirasderepresentá-Ioedelhedarforma;éadispersãodessesindíciospossí- veisqueimpressionainicialmente.Um olharmaisprofundorevelacomoadiver- sidadedosterritóriosdo corpoé abundanteno seiodecadaculturae decada época:a competênciado ortopedistanãoécomparávelà do artista,do mesmo modoqueapráticadoesportistanãoéadomímicooudoator.Mecânica,ener- gia,expressãoesensibilidadeserepartemnumamultiplicidadedecorpos,cada qualemsuasingularidade,comseussaberes,seusimaginários,seusdomínios,até mesmoseusobjetos.É necessáriomediressaabundânciadereferênciascorporais, essavariedadequeproíbeagrupá-Iasemumamesmadisciplinacientíficaou,mes- mo,dar-Ihesumacoerênciaeumaunidadeapriori. Podem-sedistinguirpelomenostrêsgrandesfacesdaexistênciacorporal:to- daspossuemseusprópriosinvestimentosesingularidades,e,éclaro,suaprópria história.A primeiraé a do princípiodaeficácia:recursostécnicosqueo corpo retirada mecânicae dossistemasorgânicos,ou seja,a suacapacidadedeação sobreosobjetos.Pode-sepensaraquinashabilidadesdostrabalhadoresmanuaise nosprocedimentosfísicosquotidianos,comotambémnossaberesenaspráticas colocadasemjogoparaamanutençãodocorpo,o aumentodesuaresistênciaou deseupoder,saúde,higieneoumesmotreinamentoscorporaisvariados.A segun- dadestasfaceséadoprincípiodepropriedade:posse,pelocorpo,deumespaçoe, nele,de um territóriototalmentepessoal,ou seja,apropriaçãodo serno mais íntimodesi, noslimitesdesuadimensãobiológica.Imaginem-se,portanto,as representaçõesdasfronteirascorporais,daquilo que recobreo corpo - as"mura- lhasdaintimidade"- ou, ainda,oslugaresapartirdosquaissedefinemasviolên- ciase os atentadosfísicos.Estafacemostra-sedesumaimportância,poissuas varianteshistóricasrevelamdeslocamentosdesensibilidade,quesereferemnão somenteà relaçãocomo outro,mas,também,paraconsigomesmo.A terceira faceéadoprincípiodeidentidade:manifestação,pelocorpo,deumainteriorização oudeumpertencimentoquedesignaosujeito,ouseja,o recursodemensagense detrocasapartirdesinaisedeexpressõesdenaturezafísica.Pode-sepensaraqui, 22 Pro-Posições,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 os recutsosexpressivos,a emissãodemensagens,a emergênciade um sentido voluntárioou involuntário.Nestaterceirafacepode-sepensar,ainda,asmanifes- taçõesdeprazerededorreforçandoaancoragemdosujeito. 2.A históriae o objeto Estastrêsfacesdemonstramoquantoahistóriadocorpopoderevelar-sehete- rogênea,mobilizarobjetosmuitasvezesdiferentes,atémesmoinconciliáveis.É maisemdireçãoàprudênciaepistemológicaemetodológicaqueeladeveria,en- tão,conduzir. Estahistória,porém,poderiatornar-semaislegítimaaocaptarumobjetocom precisão:objetoqueoutrasabordagenstiveramdificuldadeemapreender,objeto querevelaaquiloquenãoexistiria,a nãoserno momentoe no lugaremqueé captado.Mostrar,porexemplo,comLe Goff (1967,p. 440),quea "civilização medievalé a civilizaçãodo gesto",é abrirum campode reflexãosemlimitesa respeitodosmodosdesociabilidadeemviadesolidificaçãoe dediferenciação, assinalandoaomesmotempoosobstáculoseasinovaçõesqueimplicamo lugar aindamuitomarginaldaescrita;édarumadensidadeinéditaàsmodalidadesintei- ramentecorporaisdosjuramentosedoscontratos,dassolenidadesremarcáveis2ou dosusosmuitoquotidianos;é lerestatentativaantigadeinscreverno corpoum códigoaindaà procuradassuastransposiçõesemsignosescritos.A partirdeste únicoenunciado,umespaçodifusodepráticasedegestualidadesanódinastorna- sebruscamenterelevanteparaacentuaraoriginalidadedasociedadedaqualsur- gem.No limite,aIdadeMédiaexiste"diferentemente",quandoselevaemconsi- deraçãoestasinscriçõescorporaisqueaimportância-logo maiscentral-daescrita permitirádeslocar.O corpo,dentrodestequadroprecisodeumintercâmbioespe- cíficoerelacional,tornou-se,assim,umobjetosuscetíveldeesclarecerummundo. Abundantessãoosexemplosdessesobjetoscorporaisqueforam-setornando objetos"elucidativos"deumaépocaedeumasociedade.O investimentonacons- truçãodeumahistóriadocorpoconsistetantoemrecenseá-losquantoemexplorá- los.Contudo,é necessário,àsvezes,sabertornarcomplexasasrepresentaçõese desconfiarde nossosprópriosesquemasrepresentativos,aquelesde homense mulheresquepertencemàsociedadedehoje. 3. O exemplodasqualidades"físicas"docorpo O simplesexemplodasqualidadesfísicasatribuídasaocorponahistóriade- monstraatéquepontoestasqualidadesdevemserdiferenciadasdasnossas.Vou 2. NotadaRevisaraTécnica(NRT). Porexemplo.assolenidadescomoanomeaçãoe ostorneios doscavalheirosmedievais,asfestasdaprimaveraetc,etc. 23 Pro-Posiçães,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 usareste.únicoexemploparapreconizaradesconfiançaa respeitodenossaspró- priasreferências:aqualidadeda"velocidade",maisprecisamenteainda,queevo- careiaqui,aparentementeeternaeinventadacomacorrida,serevela,naverdade, rapidamentemaiscomplexa,confusaedissimuladaparaquemdesejaestudá-Ia. Duasnoçõesdominamatradiçãomaisantiga,nomomentoemquesãoevocadas asqualidadesfísicasdocorpo:aforçaeadestreza.Elassão,aliás,poucoexplicitadas, furtivamentecitadas.Aparecem,porexemplo,nojogodepélano finaldoséculo XV, jogoemquesãoesperadoslancesaplicadoscom"muitahabilidade,muita forçaemuitamalícià'(D'ALLEMAGNE, 1882,p. 170).Nenhumaalusão,ain- da,aqui,àvelocidade,à respiraçãoemesmoaosmúsculos,nestesraríssimosco-mentáriosquelimitamosnotáveisrecursosdocorpoàsmaisgenéricasreferências: Aliás,poucassãoasalusõesàsqualidadesabstratas,comomostrao textodeRabelais, no iníciodoséculoXVI, que,descrevendoosexercíciosdeGargantua,nãocons- tróiumquadrodasaptidõesoudosvaloresaseremaperfeiçoados.Eleevoca,antes detudo,aspráticaseoslugares.Consideraapenasgestosmaterialmentesituados, aquelesqueservema determinadascircunstânciassociaise aoscostumesmais cotidianos.Defineo corpoporaquiloqueelerealiza.Daí decorreessavariedade desituações,essecultomuitoparticulardasséries,essavontadedeevocarmovi- mentosecontextos,coisaselugares;essainsistênciasobreadiversidadedoscava- los,por exemplo,paradefiniro domíniosobreestesanimais:"Monstoitsusun coursier,susunroussin,susungenet,susunchevalbarbe,chevallégier,etluydonnait centquarieres"(D'ALLEMAGNE, 1882,p. 93-94)3;ou, ainda,essainsistência sobreadiversidadedosinstrumentosparadefinirodomíniodasarmas:"sacquoit del'épéeà deuxmains,del'éspéebastarde,del'espagnole,deIadague,dupoignard, armé,nonarmé,auboucler,à Iacappe,à Ia rondelle"(D'ALLEMAGNE, 1882,p. 93-94)4.Porém,aqui,jamaisumaalusãoaqualquersubstantivorelativoàsquali- dadescorporais.Aprenderémuitomaisenumerarpráticaseencadearaçõesque lapidardisposiçõesecapacidadescorporais. Umatentativadedesignarclaramentequalidadesevocadasporumsubstanti- vo seinicia,entretanto,no séculoXVI, quandoa figurado cortesãosubstitui definitivamenteadocavalheiro,momentoemquesedifundemmaneirasespecí- ficaseinéditas,quepermitemàquelequeaspossui"setornardignodedialogare recebertodoequalquerfavordeumgrandesenhor"(CASTIGLIONE, 1585,p. 28),segundoaexpressãodeCastiglioneem 1528.A renovaçãodasvirtudes,a interrogaçãoexplícitasobreos comportamentosquedistinguemos indivíduos, renovatambémaspesquisaseaspalavrassobreaquiloqueserefereaocorpo.A 3. NRT "Montarnumcavalode batalha,numcavalodecarga,numcavaloespanhol,numcavalo árabeou numcavalolevee fazê-Iocorrercemléguas."Fraseoriginalemfrancêsarcaico. 4. NRT" Sacarda espadacomasduasmãos:daespadabastarde,daespanhola,da adaga,do punhal,estandoemguardaou não,executandoasdiversasparadas".Fraseoriginalemfrancês arcaico. 24 Pro-Posiçães,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 insistênciadosmestresdearmasemrelação"à cortesia,à civilidadeeaosbons costUmes"5acrescenta,aosvalorestradicionaisdoscavalheiros,aquelesdo corte- são,julgadosmaissutis.BalthazarCastiglione,no livroCourtisan,lidoemtodaa Europa,sugereclaramenteasqualidadesdocorpo,aoenumerarseulongoenun- ciadode exercícios:o volteioa cavalo,vistocomocapazde tornar"o homem muitoleveehabilidoso"5;ojogodapéla,vistocomocapazdeaumentar"aveloci- dadeeadestrezadosmembros"5eacorridaeossaltos,vistoscomocapazesdedar "aagilidade"5.LaNoue(1588,p.145),noseulivroDiscourspo/itiquesetmi/itaires, recenseandono finaldo séculoXVI "aquiloquedeveserensinado",assinalaos exercíciosquetornam"apessoamaisrobustaeágil".Peacham(1634,p.207),no seulivroCompleatGentleman,correspondênciainglesadocortesãoitaliano,insis- tesobre"adestreza,aforçaeovigor",qualidadesfísicasquesepresumiaresulta- remdeexercíciospropostos. Surgemnovaspalavrasparadesignaravelocidade,semprecisá-Ia,nemobjetivá- Ia,comoapalavraagilidade;ouapalavralevezaparadesignardeformaobscuraa graçaeadescontração,domesmomodo,semobjetivá-Ias.A verdadeirainsistên- ciaédadaàagilidadeassociadaàforça.Apenasestasduasqualidadessãocomen- tadasesublinhadas.Apenaselastriunfam,quandoasdescriçõessãodesenvolvidas e ashierarquiasdesignadas:Hentique11é qualificadocomo "forte e ágil" (BOURDEILLE, 1822,Tomo11I,p.277)6,Felipe11mostra"forçaeagilidade"? (BOURDEILLE, 1822,Tomo11,p.91),La Chateigneraie(emseuduelocontra Jarnac)possui"alémdasuaforçaumagrandeagilidade"(BOURDEILLE, 1822, TomoIV, p. 273)8.HentiqueIV é "robustoeágil",assimcomoosbascoscom quem,quandocriança,elebrincava(PALMA-CAYET, 1838,1.série,TomoXII, p. 174)9.Aliás,asduasqualidadessecompletam,podendo,parcialmente,secom- pensar:evidenteno casodeBrissac1o,classificadocomo"fraco"naluta,mastão habilidosoque"derrubavaosmaioreseosmaisrobustos"(BOURDEILLE, Tomo VI, p. 140). A designaçãodequalidadesfísicascomanda,pelaprimeiravez,"oquedeveser aprendido":asvirtudes"corporais"claramenterepertoriadasacompanhamo per- 5. Pluvinelcitadopor5tegmam,A, no livroLana;ssancede/'artéquestreemFranceà IafinduXVle siecle:Àries;Margolin(1982). 6. NRT.Henrique1Ifoi Reide Françano períodode 1547a 1559. 7. NRT.Felipe11foiReideEspanhano períodode 1556a 1598e Reide Portugalno períodode 1580a 1598. 8. NRT.Jamacviveuentre1509e I572e foivencedorde umduelocomo 5enhorFrançoisde Vivonne,SenhordeLaChateigneraieem 1547,porumgolpeinesperado,"porémleal",desferido naparteposteriordo joelho,denominandoestegolpepelaexpressão"coupdeJamac". 9. NRT.HenriqueIVfoiReideFrançanoperíodode 1562a 1610efoiconhecidoporsuaforçae robustez. 10. NRT.CharlesdeCossé,CondedeBrissac,viveuentre1550e 1621.Foinegociadordaentrada deHenriqueIVemParisque,porserprotestante,nãoerareconhecidocomoreipelosparisienses. 25 Pro-Posições,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 fil dasvi'rtudesmorais.Diversasqualidadesseopõem,associam-se,compensam- separacomporo queseentendepor um modelonovo:modeloquerevelaesta figuramaiscontroladadohomemdecorte,queagrega,àforçadoantigocavalhei- ro,algumaagilidadecadavezmaiscalculadaeacentuada.A artedocortesãofixou edefiniu,assim,asqualidadesfísicasdocorpo. Durantemuitotempo,énecessáriorepetir,aqualidadedavelocidadefoidefi- nidasimplesmenteporaqueladaleveza:asasasdasquaisMercúrioésimplesmen- tedotado.É necessárioultrapassaralongaduração,énecessáriaalentaconstrução de umafisiologiamusculare nervosa,é necessáriaa elaboraçãodosprimeiros cálculosdavelocidadedepropagação"daforçanervosamotriz",paraqueseco- mecea especificara qualidadefísicada "velocidade".Construçãolenta,já que Longetreconhecia,aindaem1850:"Oscálculos(davelocidadenervosa)quefo- ramfeitosnãoestãoestabelecidossobrenenhumabasesólidacomocomprovam asenormesdessemelhançasqueapresentam.Tudoo quesepodeafirmaréque estavelocidadeémuitograndee,aliás,muitovariávelconformeosindivíduoseas espéciesanimais"(LONGET, 1850,Tomo11,p.46).Textomaior,narealidade,já quesão,efetivamente,asdiferençasindividuais,aquicitadas,quevãodirecionar parao temadeumaqualidadefisiológicatotalmenteparticular.Logosurgiriam cifrasmaisprecisassobrea"transmissãodoagentenervoso",medidopelaprimeira vezporHelmholtz,em1863,a27m.porsegundo(verTAYLOR, 1877,p. 112e 123),assimcomo,nasegundametadedoséculoXIXII, dadosmaisprecisossobre asformasdecontraçãomuscularobjetivam,cadavezmais,aparticularidadepos- síveldeumaqualidadebemprecisa:aqueladavelocidademuscular.É determinante, porexemplo,aobjetivaçãodaduraçãodacontraçãodosmúsculos,menosde10 centésimosdesegundosparaalgunsdentreeles,comojá o mostraHelmhotzem suadissertaçãode1845sobreaaçãomuscular(VON HELMHOLTZ, 1845)12.É determinante,ainda,aobjetivaçãofeitaportamborregistradordasdiferençasentre asdiversasbatidasdeasas:"Assegurou-sedequeasasasdeumamoscaexecutavam 300batidasporsegundo,asdeumpardal13,asdeumapomba8",comopude- ramafirmarosfisiologistasdosanos1870(LE BOM, 1874,p.474).O quesuge- re,emambosos casos,nãosomenteumaqualidadedevelocidadedistinta,de acordocomasespéciese,maisamplamente,deacordocomosindivíduos,mas tambémseupossívelcultivo,seuexercícioesuamelhoria.Daí estetrabalhotão peculiarporcultivaravelocidade,descritaporLagrange,paraquem,"apassagem alternativaé freqüentementerepetidapelosmúsculos,doestadoderelaxamento I I. Ver,entreoutros,Wrtkowski(1877,p. 112e 123). 12. NRT.HermannLudwigFerdinandvonHelmholtz,fisicoe fisiologistaalemão,viveuentre1821 e 1894.Enunciaem todasuageneralidadeo princípioda energia,em 1847,afirmandoa conservaçãodaenergia,interpretandoosfenômenosfisicoscomomudançadeformadeenergia e definindoa energiapotencial. 26 Pro-Posições,v. 14,n. 2 (41)- maio/ago.2003 parao estadodecontração"(LAGRANGE, 1888,p.222).Daí estaconstatação, tãoempíricaquantoteórica,dosprimeirossportsmendofimdoséculoXIX: "um corredordevelocidadeserá,raramente,umbom corredorde fundo"(ÉOLE; RICHEL; MAZZUCHELLI, 1895,p.73-74).O exercícioquecultivaumaqua- lidadeconfirmabemaexistênciaeaobjetivaçãodamesma.O exercíciodaveloci- dadetorna-seumtemaclássicoentreoshigienistasdo finaldoséculoXIX, com suasrepresentaçõesimplícitasdosistemanervoso,suasrepresentaçõesderecursos precisos,asrepresentaçõesde umacertafadigamuscular,específicatambém,e provenientedoabaloorgânicorepetidoqueelaprovoca:"Osexercíciosdeveloci- dadelevama umgastoexcessivodo influxonervoso,poiso efeitodo esforçoda forçadevontadenecessáriaparafazercontrairrapidamentea fibramuscular,é tantomaisintensoquantoosmovimentossãomaisrápidos"(ROCHARD, 1898, p. 838).Com estetextodeRochard,escritono fim doséculoXIX, avelocidade torna-seumaqualidadefísicae,aomesmotempo,ummododefuncionamento orgânicopeculiar. Porém,éimpossívelignoraraindamudançasmaisprofundas,aquelasquetor- namfamiliaro temadavelocidadenasociedadedoséculoXIX. A culturadesse séculoapresentaumaprofundamudançarelativaàcontagemdo tempo,comoo demonstramaspublicidadesquesecentramno"relógiocronômetro".Estastor- nam-semuitomaisnumerosasecircunstanciaisnofinaldoséculoXIX, impondo, a cadaindivíduo,avigilância,por minuto,do tempocotidiano,comoestapor exemplo:"AorecorreraocronógrafoJust13,vocêsaberácomoviver,o tempoque vocêgastaparaosnegócios,parasuasrefeições,seusprazeres,seurepouso...Gra- çasaelevocêjulgaráseestádandoacadaatodesuavidao tempoquelhecabe"14. Constata-se,portanto,umalentapenetraçãodotempocifradoecalculadonos gestosdodia-a-dia:aquelesdotrabalho,aquelesdolazer,aquelesdosdeslocamen- toseaquelesdostransportes.É, aliás,aavaliaçãodasdistânciasquemudacomo fimdaexistênciados"terroirs"15naFrança,comareferênciarepetidaàsmaquinas, àslocomotivas,bicicletase,logomais,aosautomóveis;umamaneiramaissiste- máticadecalculara relaçãoentreadistânciaeo tempo;umamaneiramaissiste- máticadeassociaressetempoàdiferençaentreosengenhos.Surge,assim,uma 13. NRT.A palavrajust em inglês,significaexato; a marca do cronômetro faz, assim, um jogo de palavras. 14. Publicidadepara o cronógrafoJust, Lo petiterepublique,12de abril de 1903. 15. NRT. Terroirs:até a revolução de 1789, a Françaera divididaem regiões ou territórios vistos, cadaum deles, como Pátriapor seushabitantes,que falavamlínguasou dialetosdiferentese não a "línguafrancesa".O adventoda máquina(trens,vapores,automóveisetc)encurtou asdistâncias entre asregiões,unificando-as,e foi um dos fatoresque contribuiuparatransformaros habitantes destesterroirsem habitantesda França.Outro fatordeterminantefoi aobrigatoriedadeda "língua francesa"como únicaa ser ensinadae faladaem todas as escolasda França,com a ascensãode jules Ferry como Ministro da InstruçãoPúblicae das BelasArtes no ano de I 879. 27 Pro-Posições.v. 14.n. 2 (41)- maio/ago.2003 novamaneiradelidarcomacompreensãodavelocidadeedo tempo:porexem- plo,osguiasferroviáriosdametadedo século(JOANNE, 1857,p.XII) distin- guema "pequenà'e a "grandevelocidade"paradiferenciaros trens;ou seja,a maneiranovadeexprimiravelocidadeemkm/hora,medidaquesetornarápa- drãoparaauferiravelocidadedeumveículono fim do século.É estaexpressão ciffada,"km/horà',quepermite,aliás,a condenaçãodo motoristaconsiderado perigoso,comoodemonstraaprimeiraprisão- efetuadanosbou/evardsparisienses, em 19deabrilde 1899- deum motoristadirigindoseuveículoà velocidade "extremà'de60 quilômetrospor horal6.É estaexpressãocifradaquepermite, também,apreciarasqualidadesdeumveículo,comopôdeservistopelojulga- mentoa respeitodosengenhosdaSociétél'Energie,consideradosexcepcionaisno começodoséculoXX: a revistaIa vieaugrandair (6dejulhode1901)exaltaa velocidadedessesengenhos,apresentandoapenasumúnicoresultado:os51qui- lômetrosporhoraalcançadosemumaencostade10%deinclinação.A noçãode velocidade,quesetornouumainevitávelreferênciamaterialeumaindispensável ferramentamental,só poderiaterconseqüências,inevitáveistambém,sobrea maneiraderepresentaro corpoedediferenciarassuasqualidades. Semdúvidaépossível,portanto,falarsobre"modelosdecorpo",mascoma condiçãodefalaremváriosregistrosdemodelos,comacondiçãodeestudá-Ios emcamposbemcircunscritose,sobretudo,comacondiçãodesaberdesconfiarde nossaprópriasensibilidadecontemporânea. Referênciasbibliográficas ARIES, P.;MARGOLIN, ].c. (org.).Lesjeuxà IaRenaissance.Paris:Vrin, 1982. BOURDEILLE, P.de.(diroBrantôme).Oeuvres.Paris,1822(mssdoséculoXVI). CASTIGLIONE, B. Le Courtisan.Paris:1585(1.ed.italiana,1528). D'ALLEMAGNE, H. Lesjeuxdeforceetd'adresse.Paris,1882. ÉOLE, RICHEL, E; MAZZUCHELLI, L. Lessportsathlétiques.Paris,1895. ]OANNE, A. DeParisà IaMéditerranée.Paris,1857. ]ODELET, D. Lesreprésentations,Paris:PUF, 1988. ]ODELET, D. Reflexionssur le traitementde Ia notionde représentationsocialeen psychologiesociale.Lesreprésentations.(TexrosreunidosporSCHIELE, B.;BÉLISE, C.). CommunicationInformation,volumeVI, n. 2-3,1984. ]ODELET, D. Lesreprésentations.Paris:PUF, 1988. 16. LoGozettedeFrance.20deabrilde 1899. 28 Pro-Posições,v. 14,n.2 (41)- maio/ago.2003 LA NOtJE, E de.DiscoursPolitiquesetMilitaires.Paris,1588. LAGRANGE, E Physiologiedesexercicesducorps.Paris,1888. LE BOM, G. Ia vie,physiologiehumaine.Paris,1874. LE GOFF, J. Ia CivilisationduMoyenAge.Paris:Arthaud,1967. LONGET, EA. Traitédephysiologie.Paris,1850. PALMA-CAYET, P.Y.Mémoires(séculoXVII), Nouvellescollectiondemdmoirespourservir à l'historiedeFrance.Paris,1838. PEACHAM, H. TheCompleatGentleman.Londres,1634. ROCHARD, J. Traitéd'hygienepubliqueetprivée.Paris,1898. TAYLOR, G. Rattray.Histoireilustréedeia biologie,Paris,1877. VON HELMHOLTZ, H. L. UberdieSto./fverbriiuchein derMuskeiation.Berlin,1845. WITKOWSKI, G. Structureetfonctiondecorpshumain.Paris,1877. 29
Compartilhar