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COMPLEMENTO DE LIVRO-TEXTO DA DISCIPLINA: “METOLOGIA E PRÁTICA DO ENSINO DA MATEMÁTICA E CIÊNCIAS” Números naturais e geometria: o que as crianças pensam a respeito dos números, do espaço e das formas geométricas? A ideia advinda da didática da matemática de que é possível definir hipóteses e níveis no processo de aprendizagem nunca se fez tão presente na investigação de “como se dá” a construção do conhecimento matemático pelas crianças. Nessa perspectiva, podemos citar as contribuições das argentinas Délia Lerner e Patrícia Sadovsky (1996) e das experiências de Pires (2013), na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que abordam as hipóteses numéricas; de Castrogiovanni (2000), que trata da psicogênese das relações espaciais; e de Clements e Sarama (2000), que destacam três níveis de conhecimento na aquisição e compreensão das figuras geométricas. Por envolver a investigação sobre o processo de aprendizagem, o conhecimento didático do conteúdo, ou seja, a compreensão de como o aluno aprende os conteúdos matemáticos, é de suma importância, pois se torna essencial para que a prática pedagógica do professor atenda plenamente às diferentes necessidades de aprendizagem dos alunos. Afinal, a sala de aula é constituída por um grupo heterogêneo, permeado de diversidades sociais, intelectuais e psicológicas, que, porventura, podem influenciar no processo de construção do conhecimento. Sendo assim, nosso principal intuito é apresentar e compreender o que as crianças pensam a respeito dos números naturais, do espaço e das formas que compõem o bloco de conteúdo da Geometria. O que as crianças pensam sobre os números? Os números estão por toda a parte, eles estão presentes em nossos documentos, na numeração das casas, nos códigos de telefone, nos jornais, nas revistas, nas páginas dos livros, nas cédulas e moedas e, até mesmo, nos diferentes recursos tecnológicos de que dispomos, como calculadoras, computadores e celulares. De acordo com os estudos de Lerner e Sadovsky (1996), devido ao uso dos números naturais no contexto social, as crianças constroem hipóteses numéricas muito antes do ingresso na escola. A partir de seu contato com números familiares e frequentes em seu cotidiano, as crianças passam a observar algumas das regularidades do sistema de numeração decimal, formulando uma maneira peculiar de ler e escrever números de diferentes ordens de grandeza (unidade, dezena, centena etc.). Pires (2013) define como números familiares aqueles que são significativos à criança, como: o número que representa a sua idade, a data do seu aniversário, a numeração da sua casa, do seu calçado, entre outros. Já os números frequentes, referem-se àqueles que comumente são utilizados no cotidiano, ou seja, os canais de televisão, as datas comemorativas, o dia do mês ou ano podem ser considerados números de uso frequente. Diariamente, encontramos e utilizamos os números em suas diferentes funções, mas, como estamos acostumados com a sua prática diária, muitas vezes não paramos para pensar sobre as suas diferentes finalidades. Os números servem para quantificar, codificar, medir e ordenar. Diante desse contexto social, em que o uso dos números naturais se faz necessário, a criança enquanto sujeito biopsicossocial – biológico, psicológico, social – elabora uma lógica infantil quando se requer a habilidade de ler e escrever números. Os estudos realizados por Délia Lerner e Patrícia Sadovsky (1996) trouxeram importantes contribuições a respeito das hipóteses numéricas que as crianças constroem e que podem ser caracterizadas por alguns elementos que descreveremos adiante. Para tanto, tais hipóteses são analisadas considerando duas situações distintas: situação que envolve a escrita de números e situações que envolvem a leitura, especificamente, a comparação entre números. Hipótese que envolve a escrita de números Escrita associada à fala Em situações que exigem o registro escrito do número, de maneira autônoma, as crianças, em sua maioria, afirmam escrever do “jeito” que falam. Nesta hipótese de escrita numérica, recorrem à justaposição, ou seja, à decomposição do número ajustada à fala, organizando o registro numérico de acordo com as pronuncias dos valores de cada algarismo que compõe o número. Nessa lógica, ao representarem o número 483, podem escrever: 400803 – 40083 – 4803 Para Lerner e Sadovsky (1996), as representações por justaposição são justificadas a partir das próprias características do nosso sistema de numeração decimal, pois falamos os nomes dos números aditivamente (de forma decomposta), no entanto, registramos posicionalmente, ou seja, respeitando o valor que cada algarismo ocupa no número. De acordo com Pires (2013), quando a criança escreve os números em correspondência com a numeração falada, acaba registrando números de forma não convencional, pois o valor posicional do algarismo não é “respeitado”. Sendo assim, a criança, sem ter consciência, escreve outros números, de outras ordens de grandeza, e não aquele que tinha a intenção de registrar. Hipóteses que envolvem a comparação de números O primeiro é quem manda Conforme a pesquisa de Lerner e Sadovsky (1996), ao comparar qual é o maior ou o menor número entre dois números compostos com a mesma quantidade de algarismos, como 87 e 78, as crianças observam a posição que os algarismos ocupam no número. Nesta hipótese, afirmam que 87 é maior, porque o 8 vem primeiro, ou seja, “o primeiro é quem manda”. Segundo Pires (2013), apesar das crianças afirmarem que “o maior é aquele que começa com o número maior, pois o primeiro é quem manda” elas ainda não compreendem que o “primeiro é quem manda” porque representa agrupamentos de dez se o número tiver dois algarismos; de cem se o número for composto por três algarismos e assim por diante. A autora ainda ressalta que, embora não percebam essa regularidade de agrupamento, as crianças identificam uma característica importante: que a posição do algarismo no número cumpre um papel significativo no nosso sistema de numeração decimal. A magnitude do número (quantidade de algarismos) Quando convidadas a compararem números compostos com quantidades de algarismos diferentes, as crianças, mesmo sem conhecerem as regras do sistema de numeração decimal, são capazes de indicar qual é o maior número. Afirmam, por exemplo, que 999 é maior que 88, porque tem mais números. Para Pires (2013), nessa hipótese, as crianças são capazes de indicar qual é o maior número de uma listagem, mesmo sem conhecer as características do sistema de numeração decimal. Portanto, afirmam que “quanto maior é a quantidade de algarismos de um número, maior o número”. Para a autora, este critério funciona mesmo que a criança não conheça “o nome” dos números que está comparando, portanto, envolve aspectos visuais “da escrita maior” e não da compreensão da grandeza numérica. Sendo assim, embora essa hipótese “funcione” mesmo que a criança não conheça convencionalmente os nomes dos números, em algumas situações esse critério estabelecido não é mantido. Por exemplo: ao compararem 333 com 88, algumas crianças afirmam que 88 é maior, porque 8 é maior que 3. Portanto, a magnitude do número pode variar de acordo com dois critérios: a quantidade de algarismos no número e o valor absoluto do algarismo, que independe da sua posição no número. Contradições presentes nas hipóteses numéricas das crianças Apesar das hipóteses numéricas do universo infantil sustentarem justificativas pertinentes, de acordo com Pires (2013), podem levá-las a conclusões contraditórias. Segundo Pires (2013), se em um determinado momento as crianças escrevem os números relacionando-os à numeração falada, em outro momento, elas consideram quea quantidade de algarismos está relacionada “ao tamanho” e à magnitude do número. Por exemplo: se a criança escreve 4000 200 10 2 para 4.212, ela utiliza mais algarismos do que para escrever 5.000. Logo, conclui que o número que representou (4000 200 10 2) é maior que 5.000, pois “quanto mais algarismos, maior é o número”. Entretanto, em outro momento, ao comparar 4.000 com 5.000, diz que 5.000 é maior que 4.000, pois o “primeiro é quem manda”. Nesse caso, como a criança pode conciliar as duas hipóteses, se aceita que 4000 200 10 2, que se escreve com mais algarismos, seja menor que 5.000, já que o “primeiro é quem manda”? Os estudos exploratórios de Pires (2013) auxiliam na conclusão de que a escrita numérica por justaposição – relação com a numeração falada – torna-se inaceitável se comparada às hipóteses que envolvem a comparação e leitura dos números, ou seja, as escritas correspondentes à numeração falada entram em contradição com as hipóteses relacionadas à quantidade de algarismos das notações numéricas. Pode-se dizer que esses conflitos são benéficos para o processo de aprendizagem, pois, quando as crianças comparam os números que escrevem, realizam uma autoavaliação do seu próprio conhecimento. Portanto, cabe ao professor conhecer e identificar quais são as hipóteses numéricas apresentadas pelas crianças para realizar intervenções pontuais, contribuindo para o alcance do seu principal objetivo: a aprendizagem. A criança, o espaço e as formas De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), o trabalho com a geometria é de suma importância, pois permite ao aluno desenvolver um tipo especial de pensamento para que se possa compreender, descrever e representar, de forma organizada, o mundo em que vive. Dessa forma, as crianças, mesmo sem frequentar a escola, estabelecem relações com o espaço, observam e exploram diferentes formas geométricas. A geometria enquanto conteúdo particular da matemática abrange duas áreas fundamentais: o espaço e as formas. Sendo assim, comumente, os currículos oficiais definem a geometria como o bloco de conteúdo Espaço e Forma. Considerando esses dois vieses, analisaremos adiante os estudos de Castrogiovanni (2000), que tratam da evolução da relação que as crianças estabelecem com o espaço; e as pesquisas de Clements e Sarama (2000), que destacam três níveis de conhecimento acerca da aquisição das formas geométricas. O espaço vivido, percebido e concebido As crianças, ao vivenciarem uma série de experiências referentes ao espaço que lhe é familiar, constroem, quase que de forma natural, noções de distância e buscam formas de localização. Isso porque a estruturação espacial da criança se inicia pela constituição de um sistema de coordenadas relativo ao seu próprio corpo e por noções adquiridas no convívio social, como a identificação de termos como à direita, à esquerda, à frente, atrás etc. Entretanto, essas aprendizagens exploratórias não são suficientes para que a criança se localize, represente e utilize adequadamente o vocabulário para a sua localização ou movimentação no espaço. É preciso ter conhecimento de como a criança estabelece e constrói a relação com o espaço. Para Castrogiovanni (2000), a apreensão do espaço pela criança segue três etapas denominadas pelo autor como: o espaço vivido; o espaço percebido; e o espaço concebido. É a partir dessas diferentes etapas que a criança passa a identificar o espaço por meio da exploração e da vivência; em um segundo momento, passa a percebê-lo e apreendê-lo em função do movimento e da observação; e, por fim, mais adiante, por intermédio da abstração. Segundo Castrogiovanni (2000), o espaço vivido se refere ao reconhecimento do meio físico a partir do movimento e do deslocamento da criança num espaço em que lhe é familiar. Nesse contexto, a criança explora, observa e reconhece o espaço a partir do próprio corpo. Por se tratar de uma fase egocêntrica, em que o corpo é o ponto de referência para a localização espacial, o sujeito desconsidera outros elementos e objetos que compõem o espaço e que são importantes para se localizar. Quando a criança se encontra no espaço vivido, ela dificilmente observará os objetos sem considerar o próprio corpo, incorporando à sua observação aspectos generalistas, sem maiores detalhamentos quanto à sua localização em relação aos demais elementos e objetos que constituem o espaço. De acordo com os estudos de Castrogiovanni (2000), o espaço percebido é aquele que é familiar à criança. Uma vez percebido, é possível executar uma ação no espaço explorado, sem ter que vivenciá-lo ou abstraí-lo. Por exemplo, quando a mãe pede para a criança pegar uma toalha que está em seu quarto, no guarda- roupa, dentro da primeira gaveta, a criança não precisa vivenciar o espaço com antecedência para localizar a toalha, pois já tem em mente o trajeto de ida e volta a ser percorrido, bem como a localização do objeto a ser encontrado. Por fim, o espaço concebido, que, de acordo com Castrogiovanni (2000), é o espaço abstrato, ou seja, nunca vivenciado, onde a criança passa de um conhecimento espacial corporal, o qual era experimentado pelos sentidos, para um saber espacial construído pela reflexão, ou seja, abstração. Nessa etapa, contrariamente à fase egocêntrica, há o estabelecimento de relações espaciais entre diferentes objetos que constituem o espaço, concebendo não só o corpo como referencial, mas também outros elementos. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (BRASIL, 1997), nos primeiros anos do Ensino Fundamental deve haver um predomínio de atividades orais em que as crianças possam identificar pontos de referência, que não seja somente a partir do seu próprio corpo, de modo que supere o egocentrismo, rumo à ampliação de diferentes vivências, percepções e concepções sobre o espaço. A partir das etapas apresentadas por Castrogiovanni (2000) é possível propor aos alunos uma diversidade de situações cuja resolução possibilite que sistematizem e ampliem esses conhecimentos. Ao explorar o espaço, a localização dos alunos precisa de pontos de referência que podem ser objetos que são fixos ou não. Isso permite o avanço progressivo no domínio de um vocabulário específico que permita chegar a uma localização mais precisa. No entanto, para que os alunos avancem nesses conhecimentos, é necessário desenvolver a capacidade de deslocar-se mentalmente e de pensar o espaço a partir de diferentes pontos de vista, ou seja, é preciso incluir diferentes tipos de representações, tanto orais quanto gráficas (desenhos e esquemas). Os níveis de conhecimento das figuras geométricas É comum, no discurso dos professores que atuam na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que o ensino de Geometria consiste, basicamente, no trabalho com as figuras geométricas tais como círculo, quadrado, triângulo e retângulo. Entretanto, se a criança estabelece uma relação espacial a partir da sua vivência, percepção e concepção sobre o espaço, é contraditório iniciar o ensino das formas geométricas a partir das figuras planas. Afinal, o espaço é rodeado e composto por formas tridimensionais. Atualmente os currículos escolares orientam que o trabalho com as figuras geométricas inicie a partir das formas tridimensionais e que, gradativamente, seja ampliado para as formas bidimensionais. As formas tridimensionais, como o nome indica, têm três dimensões: comprimento, altura e largura. As formas bidimensionais, também como o nome indica, têm duas dimensões: comprimento e largura. Podemos considerar que as formas tridimensionais (cubo, paralelepípedo, cilindro, cone etc.), são compostas pelas formas bidimensionais (quadrado, retângulo, círculo e triângulo). A pesquisa realizada pelos estudiososClements e Sarama (2010) revela que as crianças constroem ideias sobre formas comuns – como círculos, quadrados, triângulos e retângulos – mesmo antes de entrar na escola, por meio da exploração de brinquedos, livros e programas de televisão com os quais entram em contato no cotidiano. No entanto, afirmam que isso não é suficiente, que é preciso que o professor as ajude a ampliar os seus conhecimentos. Na mesma pesquisa, os autores americanos Clements e Sarama (2010) definem três níveis de conhecimento geométrico para as crianças de seis a dez anos: o nível de pré-reconhecimento, visual e descritivo. Nível de pré-reconhecimento: concentra-se, exclusivamente, aos aspectos perceptíveis. Nesta etapa, as crianças percebem formas, mas não são capazes de identificar e distinguir umas das outras. Ou seja, muitas vezes desenham uma mesma representação para círculos, quadrados ou triângulos. Nível visual: neste nível as crianças identificam formas de acordo com o seu aspecto e acabam relacionando a forma a um objeto conhecido, por exemplo, uma esfera se parece com uma bola de futebol, um dado se assemelha ao cubo. Nível descritivo: é somente neste nível que as crianças reconhecem e podem caracterizar as formas pelas suas propriedades, ou seja, as crianças identificam que um cubo tem seis faces quadradas; oito vértices e doze arestas. Exemplo: Face Vértice Aresta Para Clements e Sarama (2010) o progresso dos níveis de pensamento depende de experiências pessoais e do ensino. Por isso, em alguns casos, os níveis de conhecimento das figuras geométricas podem ser tardios ou antecipados. Enquanto o nível descritivo pode vir a se desenvolver mais cedo em crianças, algumas pessoas adultas podem permanecer no nível visual para o resto da vida. O aspecto experimental, nesse sentido, é colocado em evidência e afirma a importância de se iniciar o ensino das formas geométricas pelas figuras tridimensionais, pois o ensino simplista, em que a criança aprende apenas a observar e identificar um quadrado, por exemplo, pouco contribui para o avanço do nível descritivo que, porventura, trata-se de um conhecimento mais elaborado. REFERÊNCIAS BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: matemática. Brasília: MEC, 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro03.pdf>. Acesso em: 11 set. 2015. CASTROGIOVANNI, A. C. (Org.). Ensino de Geografia: práticas e textualizações no cotidiano. Porto Alegre: Mediação, 2000. Formatado: Inglês (EUA) CLEMENTS, D.; SARAMA, J. Young Children’s Ideas about Geometric Shapes. Teaching Children Mathematics, Reston, v. 6, n. 8, abr. 2000. LERNER, D.; SADOVSKY, P. O sistema de numeração: um problema didático. In: PARRA, C.; SAIZ, I. et al. (Org.). Didática da Matemática. Porto Alegre: Artmed. 1996. p. 73-155. PIRES, C. M. C. Números naturais e operações. São Paulo: Melhoramentos, 2013. (Coleção Como eu ensino). Formatado: Inglês (EUA)
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