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Transferência É consenso que a transferência é uma das mais importantes descobertas de Freud. E é um ingrediente crucial em qualquer forma de terapia. Também sabe-se que o psicanalista a utiliza e a interpreta como meio de promover mudanças psíquicas permanentes no paciente. Há menos concordância, contudo, sobre como reconhecê-la, como diferenciar suas formas e como interpretá-la. O presente texto apresenta uma estrutura para se entender e utilizar a transferência, e como manejá-la. Está subentendido que a psicanálise faz uso sistematizado da análise da transferência. A transferência é um fenômeno universal e é a parte mais difícil de um tratamento psicanalítico. Em sentido amplo, afeta todas as relações. Em sentido mais restrito, aparece no consultório, na medida em que a relação entre analista e paciente é influenciada inconscientemente por experiências passadas. Ou seja, tanto paciente quanto analista evidenciam manifestações transferenciais. As manifestações do analista são chamadas de contratransferência. O setting facilita tanto a manifestação quanto à observação da transferência. A observação é um tema complexo, muitas vezes o analista pode não perceber quando ela surge pela primeira vez. Quando percebe, ela já estava ativa há algum tempo. Às vezes, uma visão mais clara é alcançada retrospectivamente. Aos fenômenos transferenciais vividos na análise, Freud dava nome de Neurose de transferência. Que nada mais é do que a reedição dos conflitos neuróticos na relação com analista. De acordo com os autores, numa visão contemporânea, a neurose de transferência refere-se a uma de varias manifestações da transferência. Os autores propõem chamar de neurose de transferência quando o relacionamento do paciente com o analista atinge um certo grau de evolução e elaboração da interação entre transferência e contratransferência. Nesse ponto a quantidade de temas na análise diminui e o foco do trabalho se centra na relação do paciente com o analista. Os problemas são menos relatados e mais vivenciados na transferência. O relacionamento entre analista e paciente fica “doente”, e os conflitos externos do paciente diminuem. A interpretação se foca na relação, buscando-se um novo desfecho. Nem sempre uma neurose de transferência ocorre. A instalação da neurose de transferência não deve ser medida de sucesso do tratamento, e também não é o seu surgimento que define o tratamento como sendo uma psicanálise. Entender características de forma e conteúdo da transferência pode ajudar o analista. O autor propõe descrever cinco tipos de transferência. Elas nunca aparecem de forma pura, mas geralmente uma predomina em relação à outra. São elas: 1) formas habituais de relacionamento, 2) transferência predominantemente de relacionamentos presentes, 3) transferência predominantemente de experiências passadas, 4)neurose de transferência e 5) representação de fantasias inconscientes. Formas habituais de relacionamento. São formas particulares de estabelecer vínculos. Tornam-se aparentes no inicio do tratamento. Fazem parte do caráter da pessoa, e são consideradas transferência apenas no sentido mais amplo e não como modificações especificas que aparecem no relacionamento do paciente com o analista. Por exemplo: o paciente pode iniciar o tratamento com respeito e sendo submisso ao analista, e idealizando-o. Essa pode ser a forma habitual de relacionamento com uma figura de autoridade. Por exemplo: paciente que inicia o tratamento criticando todos analistas que teve até então e que se sente aliviado agora que encontrou alguém tão gabaritado para tratá-lo. Paciente tem dificuldades em manter um vínculo amoroso, acaba sempre se frustrando e sentindo que a parceira não o valorizou o suficiente. É claro que em breve sentirá que a análise não o atende o suficiente. Nesse ponto o analista está sendo usado em um ciclo vicioso do relacionamento do paciente com suas namoradas e amigos. Ou seja não eram transferências positivas ou negativas que estavam se manifestando. Na verdade, este funcionamento seria como resistência ao estabelecimento de um vinculo analítico mais real e inclusive de uma transferência que pudesse ser analisada. O tratamento só pode progredir se estes padrões repetidos forem interpretados e a resistência também. Outro exemplo é do paciente que conta tudo timtim por timtim. O medo de não ser escutado ou entendido, faz com que ele não consiga deixar nenhum detalhe de fora. Outro exemplo é do paciente que não deixa o analista falar. Transferência predominantemente de relacionamentos presentes O paciente pode estar profundamente envolvido em um conflito presente e isso pode respingar no analista, por meio de um deslocamento inconsciente. Nesse caso o analista é usado não porque se tornou a pessoa mais importante para o paciente, mas pelo contrario, por não ser a mais importe. Exemplo da mulher que tem uma briga feia com o marido e em vez de contar sobre a briga ao analista, começa a dizer a ele que sente-se ressentida pela forma como o analista está tratando-a, que ele está sendo indiferente, exigindo muito dela, etc. Se o terapeuta não se sente muito ofendido e em vez de entrar na briga começa a checar junto com a paciente a diferença entre suas acusações e os fatos; ele abre espaço para que ela acabe devolvendo estas projeções ao devido lugar (o marido) e conte ao analista sobre a briga. Depois de ela contar, o analista terá uma compreensão da situação. Esse tipo de transferência, sobre relacionamentos presentes, frequentemente ativa conflitos antigos. Neste caso podem aparecer evidências também de experiências passadas e a transferência de relacionamentos presentes pode dar lugar a transferência de experiências passadas revividas. Transferência predominante de experiências passadas revividas São experiências passadas revividas no decorrer do tratamento e que agora dizem respeito à pessoa do terapeuta. Há uma nova vivencia de experiências passadas associadas a um novo arranjo. Neste novo arranjo o terapeuta desempenha um papel especial para o paciente. O paciente não percebe que há elementos primitivos determinando seus sentimentos. Na verdade este é o papel das interpretações, ou seja, revelar as distorções. Exemplo de paciente de 35 anos que tinha casos amorosos extraconjugais quando o marido viajava, o que acontecia com frequência. Em certo momento após um ano e meio de analise, a paciente conta ao analista que presenciou uma cena de abuso entre o marido e a filha de 3 anos. Imediatamente após narrar este fato o analista encerra a consulta, que havia chegado ao fim. A paciente, que também tinha sido abusada e tinha de certa forma sido abandonada pela mãe, em vez de se lembrar destes fatos, sente-se abandonada pelo terapeuta, pelo mesmo ter encerrado a consulta em um momento tão importante. Desesperada para sentir-se melhor, pensou em ter outro caso extraconjugal, o que já não acontecia há um ano. Demorou um pouco para analista e paciente perceberem que ela sentiu que o terapeuta havia abandonado ela com “suas historias de abuso” como a mãe havia a abandonado na mão de pensionistas que dela haviam abusado. A memória reprimida dos abusos e do abandono foi revivida na transferência. Conforme foi possível rastrear os acontecimentos e interpretar a transferência, foi também possível entender as traições quando o marido estava ausente. Exemplo de atraso do analista ligado a atrasos e esquecimentos da mãe no passado. Neurose de Transferência Na neurose de transferência há a fusão de vários elementos transferenciais, como por exemplo, a união de conflitos presentes e de experiências passadas revividas; formando uma espécie de “estrutura transferencial” robusta. Ou seja, há uma fusão de manifestações de transferência episódicas em uma estrutura completa de manifestações relacionadas, entrelaçadas e sobrepostas. A duração varia de algumas sessões ou até por meses. Muitas vezes muito esforço é necessário para superá-la e interpretá-la. Os conflitos externosda paciente diminuem, e seu único problema serio é com o terapeuta. Parece até que a interrupção da analise curaria o paciente. Representação de Fantasias Inconscientes Esse tipo de transferência é resultado das observações de Melanie Klein e seus seguidores. As crianças representavam, no brincar, sua vida de fantasia. Nesses casos sua visão do mundo, seus medos, ansiedades, é que são projetados. O paciente, por meio de projeção, pode tentar comunicar ao analista como se sente. Pode tentar colocar o analista numa determinada posição, como forma de comunicar como se sente. Não são: formas habituais de relacionamento; relacionamentos presentes; experiências passadas; neurose de transferência. Exemplo do paciente que projeta no analista seu medo, fazendo o analista sentir medo; ou seu desamparo, fazendo o analista sentir sono. É a representação de experiências de fantasias presentes. Comentários sobre técnica Há algumas diferenças importantes entre a psicanálise mais clássica e a psicoterapia de orientação psicanalítica. Entre elas esta o numero de sessões semanais. A maior frequência de consultas tende a facilitar o surgimento e a análise da transferência. O trabalho mais psicoterápico limita um pouco a analise de transferência. Mas isso não impede que seja realizado. Existe um mito de que a transferência deve ser totalmente resolvida a fim de que o tratamento seja efetivo. Isso, naturalmente, não é verdade. Uma transferência positiva pode estar encobrindo uma negativa, e vice-versa. Serve assim como defesa para sentimentos negativos. É muito comum que existem fortes defesas contra a manifestação da transferência e sua conscientização. Nesses casos o paciente pode estar com medo que o analista não sobreviva aos seus sentimentos negativos. Uma preocupação excessiva com a transferência pode levar a uma distorção do trabalho analítico. O terapeuta não deve exagerar nem fugir a transferência. Esses são os dois maiores perigos. Progressivamente o analista se sentirá mais seguro no uso desta ferramenta. Trabalhar com a transferência é uma questão complexa, mas é o principal recurso disponível ao analista. Os fatores de resistência do paciente e de contratransferência do terapeuta podem impedir o desenvolvimento, o aparecimento e o reconhecimento de manifestações da transferência.
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