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Introdução à Bioética

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA
CÁTEDRA UNESCO DE BIOÉTICA
Introdução à Bioética
Apostila Didática
Cláudio Lorenzo � e Vera Formigli �
Introdução
Definir Ética não é das tarefas mais fáceis. Em geral, nas áreas de saúde, a palavra nos leva a pensar em Ética Médica, associando o conceito ao conjunto de normas presentes nos códigos deontológicos. Mas, Ética tem, na verdade, sentidos muito mais amplos. 
Se recorremos à sua origem etimológica, encontraremos no grego a palavra Ethos que lhe deu origem �. Ela significa costume, no sentido de regras de conduta de uma determinada sociedade e também caráter no sentido de um conjunto de atributos psíquicos que faz os sujeitos possuírem tais e quais vícios ou virtudes. Esta palavra tem uma correspondente em latim, a palavra Mores, significando os comportamentos tradicionais de uma determinada sociedade o qual está mais próximo do primeiro entre os dois sentidos da palavra grega ethos. Essa correspondência de significados gerou confusão em relação aos conceitos de Ética e Moral. Na verdade, alguns autores chegam mesmo a considerar Ética e Moral como sinônimos, e, a depender do seu contexto de utilização, elas podem ser realmente ser tomadas de maneira indistinta. Por exemplo, na afirmação: “a crise ética do país é maior que sua crise política” a palavra ética poderia ser substituída pela palavra moral sem nenhum prejuízo do sentido. Mas, nem sempre Ética e Moral terão o mesmo sentido, donde a necessidade de distinguirmos, mais claramente, esses conceitos. 
Ética e Moral nos reportam tanto à nossa participação na vida social, quanto à nossa capacidade íntima de discernir sobre o que é certo e o que é errado em nossas tomadas de decisão particulares. Ambos os sentidos estão, portanto, relacionados com os valores a partir dos quais nós julgamos os atos alheios e os nossos próprios atos. Valores esses que são inseparáveis de nossa vida cultural, pois é a cultura que os definirá como positivos ou negativos. Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por elas como bons. Nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são influenciados pelas condições em que vivemos (família, classe social, escola, religião, circunstâncias políticas). Aí está a chave para diferenciar Moral de Ética. Moral toma principalmente o sentido do conjunto de valores vigentes e Ética o da investigação desses valores ou da sua ausência, ora para reafirmá-los, ora para combatê-los, ora para propor novas leis morais. 
Podemos dar dois exemplos, um histórico e um atual, para sustentar esta distinção. Quando lembramos, por exemplo, que até a primeira metade do século XX, adolescentes entre 12 e 18 anos das classes altas eram entregues como esposas a homens, que muitas vezes nem conheciam, apenas para atender aos interesses patrimoniais da família, estávamos diante de uma situação moralmente aceita e até desejada, mas eticamente condenável. E, foi através dessa condenação ética que as mulheres se mobilizaram para mudar as regras morais vigentes. Hoje em dia, a interdição da união civil entre pessoas do mesmo sexo tem sido também eticamente questionada, pois, já é bem conhecido que a sexualidade humana não atende apenas aos impulsos biológicos de procriação, mais a toda uma extensa e complexa rede de estímulos sócio-culturais e psicológicos, presentes em todas as sociedades, desde o início das civilizações. Assim o conhecimento de que o homossexualismo é uma variante comportamental da sexualidade humana e não um desvio de caráter ou uma enfermidade deveria impor direitos civis iguais.
O nosso conceito de Ética é, então, o de problematização, discussão e interpretação dos valores morais vigentes, seja para reafirmá-los, seja para negá-los. 
 A reflexão intelectual sobre os valores morais vigentes constituiu-se também como um campo de saber, que passou a ser denominado Ética fundamental ou Filosofia moral. Desde a antiguidade esse campo vem gerando uma inumerável quantidade de teorias que pretendem fornecer aos seres humanos o caminho para o bem, para o belo ou para o justo e nos parece desnecessário explicar porque nenhuma destas foi completamente aceita. Para que compreendamos como esse campo de saber que a ética se constituiu, veio a se distanciar da vida prática e qual a influência deste distanciamento no surgimento do movimento das éticas aplicadas, entre as quais se encontra a Bioética, precisaremos conhecer um pouco mais da visão ética do mundo nos grandes períodos da história. 
Da Ética fundamental às Éticas Aplicadas
O nascimento da filosofia na antiguidade grega propõe, em certa medida, uma ruptura com o mito. Não era mais diretamente aos deuses do Olimpo a quem os homens deveriam pedir orientação para suas condutas. Era à razão humana, a qual, investigando o mundo em torno de si passava a investigar também a melhor maneira de estar nesse mundo. A razão humana passa a ser vista como um produto da natureza e, portanto, a perfeição natural do universo deveria ser o modelo para a perfeição moral dos seres humanos. A ética na antiguidade é uma ética naturalista.
Aristóteles� fez uma distinção muito importante, ainda para os nossos dias, quando pela primeira vez definiu a ética como um campo do saber. Ele dividiu os saberes humanos entre os teóricos e os práticos. Os saberes que são extraídos diretamente da natureza, que os homens apenas descobrem e descrevem constituem o campo da Teoria. Estes saberes podem ser aprendidos simplesmente através da leitura ou da transmissão oral. Já no campo da Práxis estariam os saberes que sofrem a intervenção direta do homem para sua existência e estes só poderiam ser aprendidos a partir do hábito de praticá-los. Entre os saberes da Práxis estariam a Técnica, a Política, e a Ética. Assim, se tomarmos o exemplo da técnica, podemos afirmar que ninguém seria capaz de aprender a realizar uma cirurgia apenas através da leitura de livros sobre técnica cirúrgica. É necessário praticar a cirurgia para adestrar os movimentos ao uso dos instrumentos, à consistência dos diversos tecidos e etc. Da mesma forma, o conhecimento da teoria, mesmo que de teoria ética, não significava para Aristóteles qualquer garantia de comportamento ético. A Ética para Aristóteles implicaria, pois, na prática em controlar e moderar em si mesmo as paixões e fraquezas que poderiam interpor-se no caminho entre a consciência do que é o bem e realização do ato bom. Por isso, ele acreditava também que a política era fundamental para criar nas sociedades um ambiente onde a ética fosse praticada. A ética vinha do homem e retornava ao homem enquanto produto de uma razão natural. 
 
O ideal de harmonia humana com a natureza, sustentada pela ética da antiguidade, só é quebrado com o advento e predomínio do pensamento judaico-cristão nas civilizações ocidentais. O modelo de concepção ética da era medieval passa a entender os valores morais como algo que foi ditado por um único e verdadeiro Deus, onisciente, onipresente e onipotente que criou o universo inteiro. A natureza deixa de ser um mistério a ser explorado e passa a ser vista como uma dádiva de Deus, sobre a qual, todas as informações relevantes estão contidas nas escrituras. A noção de equilíbrio cósmico é substituída pela noção de ordem divina. A interioridade dos seres humanos, representada por sua alma, passa a ser privilegiada em relação à naturalidade representada por seu corpo. Instaura-se a noção de culpa, pecado e temor a Deus como o sustentáculo maior do cumprimento dos valores morais. A vida terrena torna-se apenas o caminho que o espírito deve percorrer para alcançar uma outra vida, perfeita e eterna. A ética passa a estar em relação mais íntima com o divino que com o humano. Um sujeito poderia assim causar aos seus semelhantes todas as sortes de crueldades e injustiças, mas, se na hora de sua morteele sinceramente se arrependia e pedia perdão a Deus, ele teria a felicidade eterna ao lado do senhor. A venda de indulgências que garantia aos ricos um lugar no céu através de contribuições substanciais a igreja é uma mostra clara dos desvios éticos da igreja medieval na interpretação e uso da mensagem cristã. Essas concepções da ética medieval, entre outras, transformadas em práticas sociais seriam mais tarde, extremamente úteis ao desenvolvimento do capitalismo.
A espiritualidade e a relação com a divindade enquanto orientadores éticos da condição humana persistiu por toda a Idade Média e por pelo menos dois séculos após o período renascentista, só sofrendo modificações significantes a partir do século XVIII através da obra dos iluministas entre os quais se destaca Emanuel Kant. Kant pode ser considerado o fundador da ética moderna. Ele a concebe como um saber independente de conteúdos ou de saberes específicos como a ciência ou a religião. A razão, autônoma e livre deveria outra vez buscar a base da ética. Kant formulou o célebre Imperativo Categórico: “Age somente segundo uma máxima tal, que possas querer, ao mesmo tempo, que esta se torne lei universal”, o que transposto para uma linguagem coloquial quer dizer, mais ou menos, o seguinte: Quando for agir diante de uma situação onde você tem uma dúvida ética, aja como se o seu modo de agir e a justificativa para sua ação pudessem se tornar uma lei para todos os seres humanos. Ou seja, se você resolve ficar com o troco que te deram a mais no supermercado significa que você considera a possibilidade da existência de uma lei garantindo às pessoas a apropriação de valores monetários excedentes repassados por equívoco. O imperativo categórico afirma assim a autonomia como princípio de todas as regras de conduta. A ética deve formular leis autoimpostas para qual acreditamos que os outros seres humanos também deveriam seguir. Daí o seu segundo imperativo categórico: Age de forma que o homem seja sempre um fim e jamais um meio. Para Kant, a lei moral sendo autoimposta, ela não feriria a liberdade individual, ao contrário, ela se tornaria indispensável à existência de todas as liberdades em conjunto. 
A ética kantiana é especialmente importante por que tornou-se a base de praticamente todos os códigos de ética profissionais. No entanto, a evolução de outras áreas do conhecimento como a história, a psicanálise e a sociologia acabou lançando dúvidas sobre essa incondicionalidade do ato moral kantiano. Como ignorar que fatores históricos, culturais e psicológicos, por exemplo, exercem claras influências na decisão ética e que sendo assim o que é válido para um indíviduo pode não ser válido para todos os seres humanos? Como deixar de considerar o papel das motivações e dos desejos inconscientes na formulação das leis autoimpostas? De certa maneira, o debate em filosofia moral que se seguiu a Kant até nossos dias, tomando em conta todos esses questionamentos, tem sido polarizado entre universalistas que acreditam na possibilidade de leis morais universais e relativistas que não acreditam nesta possibilidade. 
O século XX trouxe, no entanto, questões absolutamente inéditas para ética. Pelaprimeira vez a técnica desenvolveu-se de uma maneira a tornar-se capaz de ameaçar a própria existência do planeta e a integridade genética das gerações futuras. A tecnologia e a ciência aliadas ao capital se integraram numa relação de interdependência definitiva para tornarem-se juntas o principal instrumento de poder da modernidade� enquanto isso a Ética mergulhava em um universo de reflexão cada vez mais teórico, hermeticamente fechada em teorias complexas exibidas em livros e artigos e cada vez mais distante das práticas humanas cotidianas. Tudo isso acontece em meio à crise radical que sofreram as instituições tradicionais no século XX.
 
As instituições no século XX passaram por uma crise talvez sem precedentes. As igrejas estavam sob suspeita. A ciência parecia se distanciar cada vez mais do objetivo de controlar a natureza para gerar felicidade ao homem, como sonhou Francis Bacon no século XVI. Prova disso é que a descoberta da cura de inúmeras doenças continuou coexistindo com milhões de mortes causadas por elas e o desenvolvimento científico da agricultura com índices de fome jamais vistos. O estado hiper-burocratizado passa a se mostrar distante das aspirações dos cidadãos. O direito mostrava-se, muitas vezes, comprometido com os poderes instituídos e, na prática, inacessível a maioria dos cidadãos. Revelam-se publicamente as violentas discriminações raciais e sexistas que existam em sociedades que se autointitulavam democráticas e inicia-se em todo o ocidente os movimentos sociais por liberdades civis das minorias. O ser humano conclui definitivamente no século XX que seu poder de gerar novos conhecimentos era muito maior que seu poder de refletir sobre seu uso e de usá-los na direção do bem comum. 
É a crise gerada a partir desta realidade, o que acabou por estimular o aparecimento, na segunda metade do século XX do que viria se chamar de Movimento das Éticas Aplicadas, entre as quais se encontra a Bioética. O movimento significou uma tentativa de resgate da ética para uma reflexão que implicasse diretamente nas tomadas de decisão envolvidas em questões de interesse social e onde a análise das conseqüências e do contexto tivessem importância fundamental para o estatuto ético desta decisão. Ela significou também uma retomada da participação mais ativa da sociedade civil nas decisões políticas relacionadas com os negócios ou com uso de tecnologias que implicassem riscos para a sociedade ou para o ambiente. Desta maneira o movimento se propunha também como uma forma alternativa ao direito para o exercício da regulação social das ações políticas e institucionais. 
Bioética enquanto ética aplicada e alguns de seus campos de ação 
Segundo Parizeau � três campos de interesse concernentes a três preocupações maiores das nossas sociedades foram os primeiros a se distinguir em ética aplicada: os avanços da biomedicina; as relações socioeconômicas entre os Estados de direito; e o futuro do equilíbrio ambiental do planeta. A Bioética pode ser definida como uma Ética Aplicada às Ciências da Vida. Ela abrange desde os temas considerados de fronteira como a genética avançada e tecnologia ambiental, até os seculares problemas da humanidade relacionados à vida, como abandono social, subnutrição e ausência de assistência à saúde. Giovanni Berlinguer, importante sanitarista e bioeticista italiano, conceituou estes campos temáticos como Bioética de Fronteira e Bioética do Cotidiano, muito que utilizados por algumas correntes européias e, sobretudo, latino-americanas. 
Mas, ética aplicada não significa simplesmente a transposição de teorias éticas para uma reflexão sobre a atualidade de uma prática social qualquer. Ela implica também e a criação de mecanismos de regulação e controle social das práticas sociais através de espaços democráticos de discussão, onde o exercício do diálogo multicultural seja a base da tomada da decisão ética. Os comitês hospitalares, os comitês de ética da pesquisa, os conselhos de saúde e as comissões governamentais de Bioética são alguns dos melhores exemplos dos resultados práticos desse movimento.
 
A palavra bioética apareceu como conceito definido, pela primeira vez, em janeiro de 1971 nos Estados Unidos da América do Norte, no artigo do Doutor em bioquímica, biólogo e oncologista Van Rensselaer Potter, da Universidade de Winsconsin, Madison, intitulado Bioethics: bridge to the future�. Para Potter a ciência deveria caminhar na direção de resolver os quatro grandes bioproblemas da humanidade: alimentação, saúde, degradação ambiental e crescimento demográfico. Os bioeticistas deveriam ser condutores e arautos de uma forma mais eticamente correta de vida. Existe, no entanto referência ao surgimento bem anterior da palavra, em um artigo alemão de 1927�, sobre as relações dos seres humanos com os animais, masesta origem ainda não está reconhecida pelas enciclopédias e outras publicações oficiais em Bioética. 	
Seis meses após a publicação do artigo de Potter, o obstetra André Hellegers�, usa a palavra bioética em sentido dissociado daquele, restringindo-a a um novo campo de pesquisa: o da ética aplicada às ciências biológicas ao nível do humano, e cria o The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reprodution and Bioethics. Foi no sentido utilizado por Hellegers que a Bioética permaneceu e cresceu, movida pelos novos questionamentos éticos que se apresentavam com o avanço das tecnologias biomédicas, sobretudo em relação a reprodução humana e manutenção “artificial” da vida. Em 28 de junho de 1991 a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa na sua recomendação no 1160 declara: “Os problemas universais ocasionados pela aplicação da biologia, bioquímica e medicina exigem soluções que propiciaram a nova disciplina denominada Bioética. Com as expectativas suscitadas pelo progresso nessas ciências, entremeiam-se, por vezes, as inquietudes referentes aos direitos mais importantes da pessoa humana”.
Drane� relata que as questões originais da Bioética se expandiram para os problemas relacionados com os valores morais em todas as áreas da saúde: “ um grande número de temas sociais estão agora incluídos sob o termo Bioética: saúde pública, saúde ocupacional, saúde internacional, controle de populações, problemas de saúde da mulher, etc. A Bioética inclui o bem-estar dos animais de experimentação e a preocupação pelo meio ambiente (...) Devido à sua transcendência na sociedade contemporânea, a Bioética experimentou um desenvolvimento meteórico nas últimas três décadas (...) A conexão entre as preocupações da Bioética e as da sociedade contemporânea é óbvia. Com razão a Bioética tem sido considerada como uma disciplina arquetípica em nossa era.”
Campos de Ação da Bioética
Poderíamos separar três campos de ação fundamentais da Bioética para o objetivo desta apostila. 1- Superação da tradição hipocrática na relação médico-paciente. 2 – Controle ético do uso de novas biotecnologias e das pesquisas com seres humanos. 3 - A Ética na distribuição de recursos e nas políticas de saúde
Superação da tradição hipocrática na Ética da relação entre profissionais de saúde e paciente 
Apesar da atual e necessária independência das diversas práticas de assistência à saúde em relação à medicina, como historicamente elas foram desenvolvidas em torno dessa ciência primordial no cuidado à saúde. As relações entre os prestadores de assistência à saúde de outras áreas de saber e seus pacientes desenvolveram-se tendo como base a relação médico paciente. Por isso mesmo, os primeiros movimentos de transformação deram-se também no contexto desta relação. Quando voltamos os olhos para a história da relação médico-paciente no ocidente, observamos que a partir da idade média, com a instauração da força religiosa judaico-cristã, os princípios hipocráticos de beneficência e de não-maleficência passaram a estar revestidos também de autoridade. O saber sobre a saúde era uma dádiva de Deus, os médicos seus escolhidos para dominar este saber�. Assim a medicina teria atravessado os séculos, como extensão do poder clerical e monárquico, oscilando entre ações paternalistas e escravistas. A relação médico-paciente vinha sendo estabelecida, portanto, a partir desta autoridade instituída que era o médico. Era o médico aquele que sabia o melhor para o paciente. 
Mesmo depois das grandes revoluções democráticas do século XVIII, que concretizaram para a classe burguesa os ideais de autonomia e liberdade, a relação médico-paciente permaneceu submetida à antiga autoridade. Michel Foucault, no seu famoso ensaio O Nascimento da Clínica�, procura explicar esse fenômeno. Ele afirma que apesar de suas conquistas libertárias no campo político e religioso o homem permanecia subordinado à sua finitude. Foi a evolução científica da clínica neste mesmo século, que passou a oferecer ao indivíduo a possibilidade de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto do seu próprio conhecimento. A saúde do corpo passa a substituir a “salvação da alma”. E se por um lado a nova ciência clínica reafirmava ao homem a sua finitude, por outro, lhe oferecia esse novo mundo técnico que será sua nova forma de lutar contra este que é seu mais temido e inévitável adversário, sua morte. Daí a importância da medicina entre as demais ciências humanas, sua autoridade e sua imensa força de influência social. 
A crise de confiança que se estabelece entre os cidadãos e as autoridades estabelecidas nas sociedades modernas a partir da segunda metade do século XX, associada ao crescimento do nível educacional das populações nos países desenvolvidos e aos resultados da lutas de emancipação social das minorias, trouxeram uma nova consciência ao individuo e às coletividades. Quando paciente, este novo cidadão queria agora o direito de decidir sobre o seu corpo e essa reivindicação esbarrava no conservadorismo da relação médico paciente, que até a década de 70 do século passado, mantinha-se ligada à tradição hipocrática, onde sobrepujava-se o caráter de uma beneficência determinada unilateralmente pelo médico. Assim, coube aos teóricos da Bioética trazer a autonomia e a liberdade, valores agora sedimentados nas sociedades pluralistas, para o universo ético da relação médico-paciente, ou de forma mais abrangente, para a relação prestador de cuidado-paciente, englobando os demais profissionais da área de sáude. 
Tendo a bioética nascido nos Estados Unidos, os novos modelos para resolução de conflitos éticos nascidos da relação médico-paciente desenvolveram-se a partir das tradições filosóficas deste país e das influências das formas de vida da sociedade americana. O modelo americano principialista de Beauchamp e Childress�, apresentado no livro “ Principles of Biomedical Ethics”, tornou-se, na opinião de muitos autores, o melhor modelo. É ele o que tem sido mais utilizado pelos comitês hospitalares de Ética em grande parte do mundo, e também no Brasil é o mais citado em artigos e cursos ministrados no país. 
Os autores definem o modelo, como baseado em quatro princípios universalmente aceitos pela moralidade comum americana. São eles o respeito à autonomia; a beneficência; a não-maleficência e a justiça. É o atendimento a esses princípios o que deve ser buscado na resolução dos conflitos. Estes princípios estão postos entre si em uma relação Prima facie o que significa dizer que nenhum desses princípios é superior ao outro e que o atendimento a eles é irrecusável. Quando, no entanto, o atendimento a um princípio negar outro, a escolha do princípio a seguir deve ser analisada no contexto de cada caso, invariavelmente como reflexão particularizada, em um balanço de compromisso, mediação e negociação. Assim, por exemplo, em um caso de um paciente que recusa um tratamento que oferece uma possibilidade de melhora ou cura de seu quadro, estão em jogo os princípios de respeito à autonomia e beneficência. A solução, no entanto, só poderá se dar conhecendo maiores detalhes sobre o caso, como o grau de autonomia do sujeito, as circunstâncias que podem influenciar sua decisão, a qualidade da melhora de saúde oferecida e suas conseqüências, etc. 
O princípio da autonomia é discutido pelos autores, após uma diferenciação entre pessoa autônoma e decisão ou ato autônomo. Dizem eles que seu foco principal está no segundo. Desta forma autonomia não seria entendida em termos absolutos. Um indivíduo poderia ser considerado autônomo para uma determinada ação ou escolha e não para outra. Os critérios utilizados para considerar uma escolha ou ação como autônomas seriam três: (1) Intencionalidade; (2) Entendimento; (3) Ausência de influências coercivas. O respeito a autonomia se refletiria na relação médico-paciente em condutas práticas, entre as quais se destacariam: “Dizer a verdade”; “Respeitar a privacidade do outro”; “Proteger a informação confidencial”;“Obter consentimento para intervenções”; “Quando solicitado, ajudar o outro na tomada de decisão”. Estas regras de conduta também não seriam absolutas e sim prima facie. Em termos de política de cuidado à saúde o “paradigma da autonomia é o consentimento informado e expresso”. Outras formas como o consentimento tácito, obtido pela omissão do paciente diante de uma informação para uma determinada ação médica, ou o consentimento presumido, considerando a certeza de uma determinada escolha do paciente, seriam passíveis de erro por não apresentarem uma referência clara de uma ação ou inação própria do indivíduo, na certeza da expressão de sua autonomia. Os autores enumeram ainda as situações que demonstrariam uma incompetência para o exercício da escolha autônoma. Seriam elas: (1) Inabilidade para expressar uma escolha; (2) Inabilidade para entender uma situação e suas consequências; (3) Inabilidade para entender uma informação relevante; (4) Inabilidade para fornecer um motivo; (5) Inabilidade para fornecer um motivo racional (alguns autores considerariam apenas o motivo, sem qualificação); (6)Inabilidade para medir racionalmente riscos/benefícios; (7) Inabilidade para tomar uma decisão razoavél. Finalmente defendem o desenvolvimento de testes que possam ser aplicados para que se possa medir o nível de autonomia de uma determinada pessoa ou sua escolha.
O princípio da não-maleficência é apresentado por Beauchamp e Childress como aquele que implica na obrigação de não infligir intencionalmente nenhum dano. Afirmam que ele tem sido relacionado a uma máxima freqüentemente atribuída a Hipócrates, onde está dito: “Ao menos não prejudique” Os autores no entanto indicam uma passagem do juramento hipocrático, onde tanto o princípio da beneficência como o da não-maleficência estariam anunciados: “ Eu usarei o tratamento para ajudar o doente de acordo com minha habilidade e julgamento, mas nunca o usarei para prejudicar ou ofender”. Colocando-o na dimensão prima facie Beauchamp e Childress, discutem-no na prática clínica, e o consideram diante de questões como eutanásia, interrupções de gravidez, situações duplo-efeito, suicídio assistido, entre outros.
O princípio da beneficência é entendido como “todas as formas de ação direcionadas ao benefício de outras pessoas”. No entanto, as ações para produzirem beneficência além de conferir benefícios, precisariam prevenir ou remover danos e pesar possíveis bens contra possíveis injúrias ou contra os custos de algumas ações. Como o princípio da beneficência não é amplo o bastante para abarcar todos esses outros princípios e porque a vida prática não pode prover sempre oportunidade de produzir benefícios ou remover danos, sem criar riscos ou gerar custos, o princípio da utilidade teria que ser posto como uma extensão essencial do princípio de beneficência positiva. Beauchamp e Childress não conseguem critérios objetivos para diferenciar atos de beneficência obrigatórios dos eletivos, mas oferecem exemplos considerados importantes de regras de beneficência: (1) Proteger e defender o direito dos outros; (2) Prevenir danos que possam ocorrer a outros; (3) Remover condições que possam causar danos a outros; (4) Ajudar pessoas com deficiências; (5) Socorrer pessoas em perigo.
A Justiça é o quarto e último princípio apresentado como obrigação Prima Facie. Na discussão introdutória os autores afirmam que as inigualdades no acesso aos cuidados de saúde em relação aos seguros privados, combinado com o dramático aumento nos custos desses cuidados, tem provocado muitas discussões sobre justiça social nos Estados Unidos e em muitos outros países. Eles começam levantando alguns questionamentos: a inigualdade de acesso é um sério problema moral? Devem todos os grupos etários ter igual acesso aos cuidados de saúde?. A tentativa de responder a essas perguntas nos colocaria em frente a muitas incertezas envolvendo a escolha de planos, acesso igualitário, promoção de saúde, economia de livre-mercado, eficiência social, estado beneficente, etc. Uma injustiça básica considerada pelos autores é aquela que diferencia os homens no momento do nascimento e que eles chamam “loteria social”. Os autores discutem as várias teorias correntes de justiça, que serão posteriormente tratados nesta dissertação em capítulo específico. Comum a todas as teorias, seria segundo eles, um requerimento mínimo Aristotélico: “Iguais devem ser tratados igualmente”. Uma das formas de entender essa igualdade seriam os princípios materiais de justiça, que considera como critério para identificar os iguais o da necessidade. Justiça aí seria entendida como distributiva. Outros critérios para a distribuição seriam: interesse, esforço, contribuição, mérito e competência no livre-mercado. Os autores não se definem claramente favoráveis a qualquer teoria, apesar de notar-se uma maior influência da obra de Ralws, Uma Teoria de Justiça e não vêem problema em que se utilize dois ou mais dos critérios apresentados para uma ação justa. O próprio critério utilizado poderá variar de acordo com as situações e com as obrigações prima facie
Críticas ao modelo principialista
O modelo principialista, que representou, sem dúvida, um avanço em relação ao autoritarismo paternalista da tradição hipocrática, vem, no entanto, sofrendo severas críticas nos últimos anos. Em primeiro lugar ele desconhece todo o conhecimento trazido pelo desenvolvimento da filosofia da linguagem do século XX. Por muitas vias diferentes, foi demonstrado que o significado das palavras não é exatamente o mesmo para todas as culturas e para todos os sujeitos e que muitas das querelas em filosofia eram antes causadas pela variedade de sentidos que podiam conter as palavras. O contexto de utilização das palavras influenciam seu sentido. Assim, mesmo que em um primeiro momento todos concordem que autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça são princípios pertinentes e significativos em uma decisão ética, ninguém garante que eles estão sendo compreendidos da mesma forma. 
Logo, é muito difícil que um modelo baseado na moralidade comum de um povo, possa ser diretamente transferido para o universo cultural de outro. A proposta de utilização de um modelo baseado em uma moralidade comum de uma em outra sociedade pressupõe a existência de um homem universal e desconsidera o fato de que o senso de moralidade de uma determinada sociedade está firmemente arraigada ao seu desenvolvimento histórico e às heranças culturais do povo que a constituiu. O modelo principialista foi construído para funcionar dentro das tradições morais da forma de vida americana e para um sistema privatista-assistencialista de política de saúde. Por isso, talvez ele funcione razoavelmente no Brasil no momento em que estamos diante de conflitos gerados em um contexto social que se assemelhe ao daquele país, como, por exemplo, uma recusa de tratamento por um paciente de classe alta portador de seguro de saúde privado, mas será muito difícil que funcione bem no caso de um lavrador analfabeto que passou a vida sob situação de exclusão de atenção à saúde. 
No modelo principialista a definição dos princípios é herdada da filosofia política liberal. A autonomia é vista como um atributo individualista da razão e não como uma capacidade que se atinge através das relações com a coletividade, onde fatores educacionais e de posição social influenciam diretamente no seu grau. Um respeito à autonomia entendido de forma individualista, pode servir claramente como instrumento para os interesses de terceiros. A leitura simples e direta de um documento de consentimento informado por um pesquisador para que um sujeito analfabeto decida sobre sua participação em uma pesquisa médica é um dos exemplos de como a autonomia pode ser instrumentalizada. Além disso, beneficência, não-maleficência e justiça são entendidos pelo modelo, dentro de uma lógica de racionalidade econômica, ou seja, dentro de um balanço custo-benefício que de certa forma visa adapta-lo ao sistema de saúde vigente�. 
Se tomarmos o exemplo do Brasil veremos que a grande maioria dos conflitos éticos envolvendo o médico e paciente são gerados pela realidade de exclusão social e carência de serviços de saúde �. Situações, como por exemplo, a de pacientes que precisam de um equipamento ou medicação salvadores de suas vidas e não os dispõe é muito mais freqüente que as situações geralmente relatadas no modelo principialista, em que os pacientes querem exercer sua autonomia em recusar um tratamento. As peculiaridades históricas e culturais dos diversos povos apontam para a impossibilidade de trabalharmos como modelos baseados em princípios propostos como receitas para resolução de conflitos, importando-os de centros produtores, da mesma forma como se importa tecnologia de última geração. 
As propostas alternativas mais interessantes para se atingir um raciocínio ético com possibilidades mais universais tem implicado em modelos baseados na linguagem e na comunicação. Se os valores das diversas sociedades ou dos diversos grupos sociais não são os mesmos, se os contextos diferem e com eles diferem o sentido das palavras e dos princípios, tudo o que podemos fazer para chegar a uma resolução ética é dialogar. Buscar o consenso a partir da discussão livre. As únicas regras pré-estabelecidas são as regras de argumentação que visam determinar o mesmo direito a palavra para todos e a validade dos argumentos expostos. Ao fim desta sessão iremos expor em maiores detalhes o modelo de ética comunicativa. 
2 – Controle ético do uso de novas biotecnologias e regulação social das pesquisas com seres humanos.
Este campo de ação da Bioética foi aquele que na verdade deu origem a seu surgimento e que trata de conflitos éticos inéditos trazidos para a humanidade pelas novas possibilidades tecnológicas e pela globalização das pesquisas envolvendo seres humanos. O poder destrutivo do equilíbrio vital do planeta e de suas gerações futuras é o que há de mais inédito entre todas as possibilidades da ação humana e a Bioética pretende interpor-se também neste lugar. Entre outros, o desafio da Bioética é a formulação de um controle social da ciência. 
Para Hans Jonas�, todas as formulações teóricas anteriores sobre a Ética tinham em comum as premissas de que a condição humana, determinada pela natureza do homem e das coisas, era um dado atemporal. O âmbito da ação humana era limitado por essa natureza e dava-se apenas no tempo presente. Tudo o que tivesse a ver com o mundo não-humano, a ação sobre a natureza e o reino da técnica, eram considerados eticamente neutros. O universo ético era composto por contemporâneos e o futuro limitava-se à duração previsível das suas vidas. Desta forma, a moralidade circulava neste raio próximo de ação.
Tomemos agora como modelo para a discussão, a técnica de engenharia genética, que provavelmente dominará este novo século e sob a qual a própria atenção da mídia, já demonstra o interesse que essa técnica desperta na sociedade em geral. A tecnologia de manipulação gênica caminha vertiginosamente para o controle das diversas espécies, inclusive o homem. Essa tecnologia gera o poder de alterar a natureza mesma da organização das espécies e faz a ação humana atingir, além de seu espaço contemporâneo, as gerações futuras. A biologia tem agora a intenção de entregar nas mãos do homem a evolução das espécies e a sua própria, não só para que ele a preserve, mas também para que possa operar as transformações que julgue procedente. Os alimentos transgênicos que já se encontram nas prateleiras de nossos supermercados são claramente um exemplo destas alterações. O problema não está em saber se temos poder para realizar essa transformações, e sim, se considerando o poder de previsão limitado sobre os efeitos futuros dessas manipulações e os impactos sociais destas transformações, seria ético permiti-las. 
Muitos países tem criado Comissões Nacionais de Bioética, formados por especialistas em diversas áreas do saber, representantes da sociedade civil, das religiões e etc, para discutir e aconselhar os governos quanto à regulamentação do uso de novas tecnologias implicadas em riscos para a sociedade ou para o ambiente. O projeto de criação desta comissão pelo governo brasileiro está sendo discutido neste momento.
Por outra via, as pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos tomou nas últimas três décadas o caminho da globalização. A pandemia da SIDA e a supremacia dos investimentos privados em pesquisa de medicamentos levou à participação massiva das populações de países subdesenvolvidos em ensaios clínicos para novas drogas e equipamentos. Aqui o esforço tem sido feito no sentido de encontrar um meio capaz de evitar, no plano internacional, a exploração de populações socialmente vulneráveis. Ou seja, de evitar que elas sejam expostas a riscos eticamente inaceitáveis ou a pesquisas onde não há benefícios reais posteriores por se encontrarem em situação de exclusão social. Os documentos nacionais e internacionais de ética da pesquisa, a formação de comitês institucionais ou de comissões nacionais de ética da pesquisa como a que dispõe o Ministério da Saúde do governo brasileiro, são exemplos de mecanismos de regulação social que, em certo sentido, derivam do movimento das éticas aplicadas. 
A Bioética na distribuição de recursos e nas políticas de saúde
O ingresso da Bioética nos domínios das políticas de saúde teve início alguns anos depois de sua ação nos conflitos éticos entre médicos e pacientes nas relações de assistência e pesquisa. Ainda, ligada ao uso de novas tecnologias, o caminho da Bioética começa a ser trilhado, em política de saúde, pela evidente implicação ética que surgia quando era preciso determinar que grupo da população deveria beneficiar-se com uma nova possibilidade tecnológica que surgia. A partir daí, em torno do final dos anos 70, teóricos de Medicina Social nos Estados Unidos e na Europa, começaram a traçar um debate sobre as implicações éticas da distribuição dos antigos benefícios que não envolviam necessariamente tecnologia de ponta. Esse debate foi muito bem acolhido entre os sanitaristas dos países em desenvolvimento e o debate ganhou proporções planetárias já nos finais dos anos 80. 
Como as formulações das políticas de saúde são diretamente derivadas das teorias de justiça, o debate vem transcorrendo em grande parte a partir destas teorias. Para Gracia�, seriam quatro as principais correntes teóricas de justiça na atualidade: A Liberal; A Igualitarista; A Igualitarista/Liberal; e A Socialista. A Liberal defende que o mercado livre é capaz de por si só garantir a justiça social em política de saúde. Isso significa dizer que cada indivíduo ou empresa deve comprar a atenção a saúde que melhor se adapte às sua possibilidades econômicas. As igualitaristas acreditam que em saúde eqüidade é o princípio fundamental e a saúde é uma responsabilidade do Estado. Todas as ações políticas e recursos se devem dirigir para reduzir as diferenças de acesso, não sendo permitido o livre mercado em saúde (um exemplo atual seria a Holanda); as igualitaristas-liberais são sistemas híbridos, a exemplo do Brasil e do Canadá, onde existe uma política governamental definindo-se como promotora de um sistema que busque eqüidade, sendo que no Brasil são permitidas todas as formas de livre concorrência com sistemas privados de saúde e no Canadá os sistemas privados são permitidos, mas em muito menor número e sofrendo um controle bem maior do Estado; e finalmente, a Socialista, com semelhanças estreitas com a igualitarista, mas apenas sendo possível de realizar-se plenamente em um sistema políticos socialistas (os exemplos atuais são Cuba e China).
As diferentes concepções de justiça deram sustentação a diferentes modelos de sistemas de atenção à saúde, muitas vezes combinando alguns elementos de cada uma delas, conformando diferentes tipos de sistemas, principalmente de acordo com a maior ou menor responsabilidade estatal na sua regulação, gestão, financiamentoe prestação, que corresponde à noção mais abrangente ou restrita de direito à saúde presente em cada um deles.
O constante crescimento das necessidades e dos custos da atenção à saúde, em relação ao suposto limite de disponibilidade de recursos para sua manutenção remete, necessariamente, à questão da justiça na alocação desses recursos, que se constitui numa questão econômica, política e ética. Entretanto, a questão econômica tem sido predominante nas propostas atuais de redefinição dos sistemas de saúde em crise no mundo, inclusive no nosso país, numa perspectiva predominantemente utilitarista, menos vinculada ao princípio da justiça e mais preocupada com a otimização dos recursos aplicados em relação aos benefícios alcançados.
Na realidade brasileira, a transição epidemiológica vem se configurando de modo atípico, onde os problemas de saúde da modernidade se somaram às doenças do atraso e da pobreza, as quais, mesmo tendo sido reduzidas ao longo do tempo, são ainda altamente prevalentes, principalmente nas áreas mais pobres do país. Do mesmo modo, a tecnologia na área biomédica tem sua face mais modesta, sobreposta a práticas obsoletas ou superadas, e, em muitos casos, à falta de acesso das pessoas a qualquer tipo de prática. Assim é que, por exemplo, enquanto algumas clínicas brasileiras já desenvolvem as técnicas mais avançadas de reprodução humana, um grande número de mulheres morre anualmente por falta de atendimento pré-natal, ao parto e ao puerpério.
O Brasil é portador de uma as piores distribuições de renda do mundo. Estas profundas desigualdades implicam na diferenciação de acesso da população aos bens e serviços determinantes da qualidade de vida e estão diretamente relacionadas com a produção de doenças. A distribuição de recursos, equipamentos e ações de saúde é bastante desigual, mesmo internamente ao sub-setor público, entre regiões, entre áreas urbanas e rurais, zonas ricas e pobres, acentuando o quadro de desigualdades, de modo que a parcela da população que tem piores condições de vida e conseqüentemente maiores riscos de adoecer e morrer é também aquela que tem menor acesso e menos qualidade na atenção à saúde. 
Olhar todo este quadro pelo prisma da (bio)ética vai remeter, necessariamente, à questão da justiça. Em primeiro lugar, há que se perguntar se há justiça nas exclusões econômicas, políticas e sociais impingidas a grande parte da população brasileira, que determinam o quadro desigual de saúde da nossa população. Em seguida poderíamos questionar em qual sistema de valores pode ser considerada justa a desigualdade no acesso e na qualidade da atenção à saúde que predomina no país, e a morte frequente sem assistência médica, quando existem conhecimentos e tecnologias disponíveis para enfrentar a maioria dos problemas de saúde? É ainda possível conceber justiça no quadro de desnutrição que afeta crianças de diversas regiões do país, quando está disponível um desenvolvimento tecnológico de produção de alimentos capaz de suprir toda a população brasileira? É nesse terreno que identificamos uma das principais aproximações da Bioética com a Saúde Pública. 
A insuficiência na quantidade de recursos alocados ao setor saúde é ainda agravada por fatores como desvio das verbas da saúde para outras funções, sonegação de recursos importantes como fontes de receita (imposto de renda, previdência social), ineficiência de grande parcela da gestão pública nos Estados e Municípios com desperdícios, clientelismo, má-utilização, além de fraudes no setor privado conveniado, com produção superfaturada para compensar os baixos valores da tabela do SUS. As próprias condições das instituições públicas de saúde do Distrito Federal é um exemplo bem próximo dessa realidade.
No interior do setor privado autônomo, por sua vez, as medidas de fiscalização e controle dos procedimentos exercidas sobre os médicos, bem como as restrições de atendimentos impostas aos pacientes para reduzir custos, verificam-se em empresas de medicina de grupo e seguradoras de saúde, seguindo o que já ocorre nos Estados Unidos. Estes processos levam à redução da autonomia do médico nas decisões sobre condutas diagnósticas e terapêuticas, atingindo diretamente a ética na prática médica, quando são substituídos os critérios técnico-científicos nas decisões sobre procedimentos diagnósticos e terapêuticos por critérios eficientistas e economicistas, questões estas largamente denunciadas pelas entidades da categoria.
A evocação da Bioética e do princípio da justiça para justificar a necessidade legítima de racionalizar e evitar desperdícios num contexto de escassez, não pode ser utilizada paradoxalmente para justificar o aprofundamento das desigualdades de acesso ou para reduzir a qualidade da atenção à saúde. Um posicionamento ( bio)ético em relação à questão da igualdade e no sistema de atenção à saúde passa necessariamente pela resposta a uma questão básica que norteia todo o desenvolvimento dos diferentes enfoques da saúde nas diversas sociedades, conformando os seus diferentes sistemas e práticas.
É, portanto, na perspectiva da promoção da equidade nas condições de saúde e de assistência que deve ser recolocada a questão bioética da alocação de recursos em saúde. Isto significa, em primeiro lugar, compreender condições de saúde e assistência como dimensões plenas, que não admitem graus diferenciados de acordo com a inserção dos indivíduos na escala social. Ambas integram um direito social dos cidadãos, o qual exige uma ação positiva do Estado para assegurá-lo. Uma abordagem ética da questão da alocação de recursos deve destacar os resultados das mesmas na elevação das condições de saúde e da qualidade de vida dos cidadãos, ao tempo em que rechaça a consideração exclusiva dos custos na escolha das ações. Trata-se, portanto, do compromisso com o resgate de um direito legítimo, que implica na redução das desigualdades em saúde. Isto pode, inclusive, significar a necessidade de, diante da escassez de recursos, praticar uma discriminação positiva, estabelecendo prioridades temporárias para grupos ou áreas mais carentes, visando acelerar esse processo.
Tais pressupostos encontram respaldo no plano da Bioética internacional. O Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas reuniu 110 representantes de 22 países em Ixtapa, Peru, em 1994, definindo uma Agenda Global para a Bioética, que contemplava a equidade com princípio fundamental para a política de saúde, o reconhecimento do cuidado de saúde eficiente e accessível como direito humano universal, além da participação social ( CIOMS, 1994).
Trazer uma racionalidade ética para o debate sobre a alocação de recursos em saúde significa ainda, necessariamente, incluir no mesmo os sujeitos sociais interessados na questão, ou seja, a população legitimamente representada (Conselhos, Conferências etc), cuja participação no processo de definição de prioridades, de tomada de decisões, formulação e execução das políticas nas diferentes esferas de Governo, amplia as chances de conferir maior grau de equidade na distribuição dos recursos e ações de saúde. Só assim, a nosso ver, estará se praticando uma saúde pública justa e equânime e, portanto, ética.
Em busca de novos modelos de resolução de conflitos em Bioética
Nós havíamos já comentado a pouca pertinência que muitos modelos de raciocínio ético desenvolvidos, pela Bioética, sobretudo estadunidense, tem para a resolução prática de conflitos em contextos socioculturais distintos. O processo de globalização põe a Bioética em contato uma multiplicidade de culturas e de formas de vida, de maneira que, dificilmente modelos apoiados na moralidade comum de um povo poderão ser utilizados de forma eficiente para solucionar conflitos de outro povo. Além disso, a desigualdade social que caracteriza os países em desenvolvimento cria formas de vida muito diferentes entre as diversas classes sociais e comunidades que coabitam, muitas vezes, na mesma cidade. Essas diferenças nas formasde vida se expressam não apenas no cotidiano das condições de moradia, transporte, saúde, lazer e trabalho, mas também nos valores e crenças compartilhados. 
A Bioética Latino-americana tem se destacado, por uma abordagem que se contrapõe aos modelos teóricos de resolução de conflitos baseados na filosofia política neoliberal, como é próprio aos modelos hegemônicos estadunidenses. Dois modelos latino-americanos têm alcançado maior destaque: a Bioética de Proteção do Prof. Fermin Roland Schram da FIOCRUZ – Rio e Miguel Kotow da Universidade do Chile e a Bioética de Intervenção dos pesquisadores da Cátedra UNESCO de Bioética da UnB, Prof. Volnei Garrafa e Profa. Dora Porto. 
Segundo o Prof. Schram� 
“A Bioética da Proteção é um subconjunto da bioética, constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o capacitam para realizar sua vida e quem não os tem. Ao priorizar os "vulnerados" que não dispõem de tais meios, pretende respeitar concretamente o princípio de justiça, já que aplica a eqüidade como condição sine qua non da efetivação do próprio princípio de justiça para atingir a igualdade. Este é o sentido stricto sensu da Bioética da Proteção. Mas existe um sentido lato sensu, que aplica no contexto da globalização e visa proteger todos os seres vivos contra o sofrimento e a destruição evitáveis. O artigo tenta mostrar como o conceito de proteção se situa no âmago da própria ética e como se relaciona com os conceitos de ethos, oikos, zoé, bíos, nomos e oikonómia, implícitos nos debates atuais acerca dos efeitos negativos sobre o ambiente natural, modos de vida e a própria saúde humana. Nesse sentido, a Bioética da Proteção pretende refletir sobre a problemática da sobrevivência do mundo vital e da qualidade de vida de seus integrantes ou hóspedes” 
 Revista Bioética 2008 16 (1): 11 - 23
Já os autores Garrafa e Porto� definem da seguinte maneira o seu modelo: 
“A bioética de intervenção pretende legitimar,no campo de estudo das moralidades e da aplicação dos valores éticos, uma perspectiva ampla, que envolva os aspectos sociais da produção das doenças, contribuindo para a construção de uma bioética crítica que possa ser aplicada nos países periféricos e, especialmente,no Brasil. A bioética de intervenção preconiza como moralmente justificável, no campo público e coletivo, a priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas durante o maior espaço de tempo possível e que resulte nas melhores conseqüências; e no campo privado e individual, a busca de soluções viáveis e práticas para os conflitos localmente identificados, levando em consideração o contexto em que ocorrem e as contradições que os fomentam. Assim, essa nova proposta teórica busca uma aliança concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade, incluindo a re-análise de diferentes dilemas, entre os quais: autonomia versus justiça/eqüidade; benefícios individuais versus benefícios coletivos; individualismo versus solidariedade; omissão versus participação; mudanças superficiais e temporárias versus transformações concretas e permanentes”
 Revista Bioética 2005, 13(1): 111-123
A Bioética de Intervenção faz ainda uma categorização importante do objeto da Bioética distinguindo-o em Situações Emergentes e Situações Persistentes. As primeiras dizem respeito aos conflitos éticos provocados pelos avanços tecnológicos com impacto na saúde humana e no ambiente e as segundas, aqueles conflitos éticos do campo da saúde historicamente relacionados com injustiças e exploração, tais como exclusão social, inacessibilidade a bens de saúde, e etc. Essa categorização corresponde também a duas das três linhas de pesquisa desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética e Saúde Pública da UnB. 
Outros autores contemporâneos, entre os quais se incluem os autores dessa apostila, começaram a pensar em formas de resolver eticamente conflitos que envolvem situações de multiculturalismo seja dentro de um mesmo país, seja nas relações internacionais. Apesar da multiplicidade de abordagens que foram criadas para tentar resolver a questão, esses novos modelos apresentavam ao menos dois pontos em comum: A linguagem deve ser o fundamento, o diálogo deve encontrar a solução. Mas, o que quer dizer exatamente isso? 
Linguagem como fundamento quer dizer que o modelo ético passa a reconhecer que é através da linguagem que nós nos constituímos, que nós adquirimos uma personalidade, que nós organizamos nosso pensamento, que nós nos instruímos, que nós expressamos idéias e sentimentos e que nós desenvolvemos uma identidade de grupo e de sociedade. Ou seja, é a partir da linguagem que nós nos tornamos nós mesmos como sujeitos e como coletividade. A linguagem é como o alicerce da existência humana, logo o fundamento da ética está também na linguagem. 
Diálogo como solução quer dizer, que se nós reconhecemos que cada povo tem seus deuses ou formas diferentes de se relacionar com o mesmo deus; que cada povo tem seus hábitos e seus valores; que as pessoas compreendem princípios de ação de formas diferentes; que formulações ideológicas e científicas são mutáveis pelo tempo e pela prática, a resolução dos conflitos éticos para a dita modernidade não poderá estar jamais nos dogmas religiosos ou ideológicos, nem na ciência, nem na autoridade intelectual das obras de grandes filósofos. A solução para a tomada de uma decisão ética está na construção cotidiana desta decisão através das trocas de idéias intermediadas pela linguagem entre os implicados nos conflitos e livres de toda relação de hierarquia ou autoridade. 
Para ser possível estabelecer um diálogo neste nível é preciso levar em conta duas considerações sobre o sentido das palavras: 1. As palavras não estão no mundo da mesma forma que estão no dicionário, elas se relacionam com os contextos de uso e não significam as mesmas coisas para todas as pessoas, mesmo quando seu sentido nos parece absolutamente óbvio. 2. Existe por trás das palavras um sujeito e uma história de vida que está sempre acompanhado por um universo de valores e crenças particulares por isso é necessário adequar a linguagem a este espaço intersubjetivo que se forma quando dois sujeitos culturalmente distintos estão dialogando. Ou seja, não pode existir decisão ética se não existe comunicação entre os implicados no conflito.
Um desses modelos baseados no diálogo é a chamada ética do discurso ou ética comunicativa, desenvolvido pelo filósofo alemão Jurgüen Habermas �,� nos anos 80, a partir de sua teoria crítica sobre a sociedade moderna. De uma certa maneira, o que o modelo pretende é reformular aquele imperativo categórico de Kant, que busca uma lei moral universal a partir da autonomia dos indivíduos (ver pg 05). A diferença é que a lei moral aqui não é encontrada por um indivíduo apenas, mas através do diálogo entre todos os implicados no conflito. Dessa forma ficam contemplados as variações sócio-culturais e psicológicas que se tornaram os principais limites do ato moral kantiano. 
Os critérios da argumentação
Um bom argumento deve ser sustentado por informações e essas informações se relacionam com os três mundos do saber: o mundo objetivo onde estão as verdades científicas e da natureza, o mundo social onde estão as informações sobre os contextos sociais, sobre os hábitos e normas locais e sobre as interações a serem feitas com essa realidade e o mundo subjetivo que pertence apenas a cada indivíduo, representado por suas motivações e interesses. Para apresentar-se da forma mais completa possível o argumento deve atender a três critérios relacionados com esses três mundos: verdade objetiva, correção normativa e autenticidade subjetiva. 
Verdade objetiva significa dizer que quando o conteúdo de um argumento está relacionado com dados do mundo objetivo,sejam eles resultados de pesquisas científicas ou dados estatísticos e socio-démográficos é necessário que esta verdade, na medida de seus limites, possa ser comprovada. A apresentação de dados de forma insegura, imprecisa ou claramente falsa é incompatível com uma tomada de decisão ética. 
Correção Normativa ou Coerência social que dizer que o argumento deve considerar também as interações que a sua proposição de resolução terá no meio social, tanto em relação aos contextos como em relação ao universo de hábitos, valores e normas (formais ou informais) já existentes naquele meio.
Autenticidade subjetiva se relaciona diretamente com o mundo interior de cada participante na discussão. Esse critério exige que cada sujeito tome parte na discussão de forma aberta à força dos argumentos, de maneira que possa aceitar uma decisão que é diferente da que ele propunha inicialmente. Ele não estará participando de forma autêntica se estiver conduzindo sua argumentação a partir de dogmas religiosos, ideológicos ou disciplinares, se exerce ou se sente atingido por autoridade, se esconde terceiros interesses, ou se utiliza recursos ilegítimos de linguagem como a indução, a coerção e a mentira. 
Atendido esses três critérios é necessário ainda que a decisão ética atenda ao princípio único da universalização, o qual exige que a solução encontrada possa ser aceita por todos os implicados na discussão. A decisão ética não é, portanto, imposição, nem escolha da maioria. Ela deve ser consenso. 
Para entendermos melhor isso, passemos a um exemplo: imaginemos que durante uma reunião para formulação de políticas públicas de saúde para comunidades rurais, um determinado agente da discussão afirmasse que a alta incidência de uma certa doença de pele nestas comunidades é decorrente do tipo de material com o qual é fabricado uma ferramenta de agricultura muito utilizada em várias regiões do país. Em seguida ele propõe duas soluções, uma em curto prazo e outra em médio e longo prazo. A curto prazo a solução está na identificação e tratamento dos portadores da doença e a compra e distribuição pelo governo de uma ferramenta com as mesmas características e funções, mas feita em aço inoxidável. A solução em médio prazo está no acesso facilitado e subsidiado à compra dessa mesma ferramenta por comunidades rurais de todo o país. 
A Verdade objetiva exigiria que agente da discussão apresente os dados comprobatórios da relação da doença com o material da ferramenta, a partir de estudos epidemiológicos de nexo causal. A Coerência social exigiria que ele demonstrasse que a mudança de hábito implicada na troca de ferramentas é capaz de ser absolvida pela cultura e pelas normas de conduta inerentes às formas de vida cotidianas locais. Finalmente, a Autenticidade subjetiva exigiria que o agente tenha a autenticidade de sua argumentação reconhecida pelo grupo. Se algum outro agente de discussão demonstrasse, por exemplo, que ele comprou um grande número de ações da única empresa no país que produz aquela ferramenta em aço inoxidável, a validade de seus argumentos anteriores estariam imediatamente sob forte suspeitas, invalidando a influência de sua argumentação na tomada de decisão e tornando necessária uma investigação muito mais aprofundada sobre a verdade dos dados apresentados. 
A ética comunicativa apresenta-se assim como uma proposta concreta para o encaminhamento das tomadas de decisão nas práticas de saúde. É necessário, no entanto, construir os espaços democráticos de discussão, onde todos os implicados estejam representados e tenham o mesmo direito à palavra. No Brasil, a participação da comunidade passou a ser uma das diretrizes organizacionais do próprio SUS, descrita na própria Constituição, garantida através das Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde nos níveis federal, estadual e municipal. O desafio passa a ser então conferir cada vez maior legitimidade à representação dos usuários e ao trabalho desses conselhos. Entretanto esses espaços formais ligados à formulação das políticas de saúde não são suficientes, é necessário que a implementação das políticas se dê sempre através da formação de espaços democráticos de discussão dentro de cada comunidade visada pelas políticas e que outros espaços democráticos sejam abertos em outros campos de atuação da Bioética como, por exemplo, no encontro entre um médico e seu paciente ou entre um grupo de pesquisa e os potenciais participantes do estudo.
É claro que nem sempre esse espaço democrático de discussão existirá, nem sempre os agentes sociais presentes na discussão conseguirão atender às exigências de validade dos argumentos, mas, ao mesmo tempo, parece difícil crer que existe uma saída para tomadas de decisão nas práticas de saúde que não estejam apoiadas no autoritarismo médico-científico e no etnocentrismo de valores, sem ser através de um diálogo livre entre todos os implicados.
Considerações Finais
Os poderes que estão implicados no uso das tecnologias de saúde seja na prática da clínica privada, seja na pesquisa, seja da formulação de políticas públicas exigem do profissional desta área uma capacidade bem maior em refletir sobre as conseqüências de suas práticas e sobre a responsabilidade social de suas decisões. Isto exige, por conseqüência, um maior grau de informação externo ao domínio específico das técnicas e uma abertura para a participação dos espaços democráticos de decisão, levando sempre em conta que o conhecimento científico de determinados aspectos de um conflito não implica necessariamente em um maior domínio de suas implicações éticas. 
É importante ter-se sempre em mente que não existirá modelo de raciocínio ético perfeito e capaz de responder a todas as demandas. A atitude de despir-se de autoridade, hierarquias e saberes, fazer compreensíveis suas razões e esforçar-se para compreender as razões do outro, tentando assim chegar a uma construção conjunta da conduta a ser realizada representa a verdadeira conquista das decisões éticas conseqüentes. Se a definição dessa atitude parece simples, sua prática é um sério desafio e talvez o maior aprendizado que nós, profissionais de saúde, precisaremos fazer, fora de nossas áreas técnicas. 
fim
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