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Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.20, p.47-49, set. 2006. Suplemento n.5. • 47 XI Congresso Ciências do Desporto e Educação Física dos países de língua portuguesa O atleta aprisionado: reflexão sobre actividade física, adaptação biocultural e evolução humana Jorge ROCHA Instituto de Patologia e Imunologia Molecular, Universidade do Porto, Portugal; Departamento de Zoologia-Antropologia, Faculdade de Ciências, Universidade do Porto, Portugal Introdução M e s a R e d o n d a A n tr o p o lo g ia d o E s p o r te / A ti v id a d e F ís ic a Os temas abrangidos pela Antropologia do Desporto são muito diversos. Na minha perspectiva de leigo, que trabalha em Genética das Populações, cabem no âmbito da disciplina, entre outros, assuntos aparentemente tão díspares como a origem e diversidade étnica de diferentes jogos e modalidades, o impacto sociológico da actividade desportiva, ou mesmo a comparação do desempenho de atletas de diferentes populações humanas. Há, no entanto, um aspecto da relação do Homem com o desporto, e em sentido lato com a actividade física, que gostaria de abordar nesta mesa redonda. Trata- se das consequências evolutivas que as modificações de estilo de vida e economia de subsistência tiveram nos padrões de actividade física, saúde e morbilidade das populações humanas. Parece ser hoje consensual que, tal como sucede em outras espécies, as populações humanas não teriam colonizado a grande variedade de ecossistemas que actualmente ocupam sem possuírem uma marcada capacidade de adaptação. Os processos adaptativos ajustam os organismos a distintas condições ambientais e têm origens e consequências variadas: podem implicar alterações biológicas ou culturais, resultar de mecanismos fisiológicos ou comportamentais, e envolver modificações a nível individual ou populacional (MCELROY & TOWNSEND, 2004). Quando ocorre modificação da composição genética de uma população devido ao aumento da capacidade reprodutiva, ou da sobrevivência, dos portadores de determinadas características hereditárias, dizemos que a adaptação resultou da acção da selecção natural. O termo “natural” significa que a selecção das características mais favoráveis se deve apenas a factores relacionados com as circunstâncias ambientais que rodeiam os indivíduos. No caso da nossa espécie, estas circunstâncias incluem, forçosamente, os comportamentos e realizações habitualmente englobados na cultura. É, assim, de esperar que haja nas sociedades humanas uma forte correlação entre biologia e cultura, na medida em que as características culturais podem alterar variáveis que influenciam os padrões de sobrevivência. Uma das hipóteses mais interessantes sobre a influência da evolução cultural na biologia das populações humanas foi enunciada por James van Neel em 1962 (NEEL, 1962) e ficou conhecida como hipótese do “genótipo poupador” ou “thrifty genotype”. Em sentido lato, esta hipótese postula que as principais doenças das sociedades humanas contemporâneas resultam de um desfasamento entre os níveis de sedentarismo e abundância alimentar, típicos dessas sociedades, e constituições genéticas adaptadas à intensa actividade física e relativa escassez de alimentos que caracterizaram o modo de vida das sociedades primitivas de caçadores-recolectores. Na discussão que se segue, procurar-se-á analisar sumariamente os principais pressupostos e previsões desta hipótese. Discussão Pressupostos 1) O pressuposto fundamental da hipótese de Neel é, obviamente, o de que as condições ambientais nas comunidades de caçadores-recolectores, incluindo a disponibilidade de alimento e actividade física, são fundamentalmente diferentes das encontradas nas populações de agricultores e nas sociedades industrializadas que delas derivaram. Com efeito, há vários aspectos que distinguem estes modos de subsistência e podem estar na origem de diferentes pressões selectivas: as sociedades de caçadores-recolectores tendem a ser demograficamente estáveis e têm baixa densidades populacionais; as populações de agricultores têm densidades populacionais muito mais elevadas e registam crescimentos demográficos explosivos. Em consequência, as doenças infecciosas nos caçadores-recolectores raramente são epidémicas e tendem a ser provocadas por agentes que persistem nos hospedeiros durante muito tempo, mantendo a sua capacidade infecciosa por períodos prolongados (por exemplo, hepatite, herpes e citomegalovírus); pelo contrário, nas comunidades agrícolas e nos centros urbanos as epidemias propagam-se facilmente, mesmo quando causadas por agentes que só são infecciosos na fase aguda (por exemplo, varíola, sarampo, poliomielite e gripe). A dieta dos caçadores-recolectores é variada e equilibrada. O seu principal problema nutricional é a escassez resultante de flutuações na quantidade de alimento disponível. Pelo contrário, as sociedades que produzem alimentos 48 • Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.20, p.47-49, set. 2006. Suplemento n.5. XI Congresso Ciências do Desporto e Educação Física dos países de língua portuguesa dependem, frequentemente, de um número reduzido de espécies domesticadas e dispõem de uma menor diversidade de nutrientes. A alimentação é hiperglicémica, com dietas ricas em gorduras e demasiado sal. Nas sociedades de caçadores-recoletores o nomadismo é a regra e a actividade física está intrinsecamente ligada à obtenção de alimentos; as sociedades agrícolas são maioritariamente sedentárias e têm níveis mais reduzidos de actividade física. Especialmente nas sociedades industriais, a mecanização e a divisão social do trabalho implicam uma drástica redução, ou mesmo eliminação, da necessidade de fazer exercício físico para obter alimentos. 2) A hipótese do “genótipo poupador” implica que uma parte considerável dos factores de risco de muitas doenças contemporâneas tenha sido adaptativa nas condições ambientais das sociedades de caçadores-recolectores. Este pressuposto parece verificar-se pelo menos quanto a alguns factores de risco de doenças como a diabetes tipo 2, as doenças cardiovasculares, as dislipidémias e a obesidade. Por exemplo, a preferência dos seres humanos por alimentos ricos em gordura, bem como os aspectos da regulação da insulina e metabolismo de carbohidratos que estão na base da diabetes tipo 2, podem ter sido importantes para a obtenção das reservas energéticas necessárias para resistir aos tempos de fome e escassez e realizar a actividade física quotidiana. Por outro lado, a apurada capacidade gustativa em relação ao sal, o apetite por alimentos salgados e a propensão para a retenção de sal podem ter contribuído para que as populações ancestrais, que viveram nos trópicos, compensassem as perdas de electrólitos provocadas pela excessiva sudação devida ao calor e à actividade física (BOAZ, 2002; YOUNG et al., 2005). 3) Um outro aspecto essencial da hipótese de Neel, é o de que a selecção natural optimiza as constituições genéticas mais bem ajustadas a condições ambientais que se mantêm estáveis durante um período de tempo considerável. Quando ocorre uma alteração ambiental, as constituições genotípicas anteriormente favorecidas deixam de ser vantajosas e podem ser mesmo prejudiciais. Tendo em conta que a selecção voltará a favorecer constituições genéticas adaptadas às novas circunstâncias, apenas haverá desfasamento entre o genótipo da população ancestral e o seu novo ambiente, se a alteração ambiental for relativamente recente em termos evolutivos. Nestas condições, a hipótese de Neel pressupõe que os padrões de actividade física e disponibilidade alimentar característicos das sociedades de caça e recolha foram predominantes na evolução humana. Este pressuposto parece ser inteiramente verificado: a evidência arqueológica e paleontológica indica que a caça e recolha de alimentosconstituíram as actividades centrais das economias de subsistência das populações humanas desde a origem do homem anatomicamente moderno, há cerca de 100 000 anos, até ao aparecimento da agricultura há 10 000-12 000 anos. Esta diferença implica que as condições ambientais associadas à caça e recolha de alimentos moldaram pelo menos de 90% da nossa história evolutiva. Por outro lado, vários estudos epidemiológicos, mostram que quanto mais súbita é a passagem de um modo de vida ancestral para os padrões de consumo das sociedades urbanas, maior o risco de desfasamento genótipo-ambiente (MCMICHAEL, 2001). 4) Finalmente, um quarto pressuposto é o de que há um componente hereditário apreciável na determinação do risco das doenças das sociedades contemporâneas, dado que sem hereditariedade não há selecção natural. Vários estudos têm demonstrado que, apesar da sua natureza complexa e multifactorial, há aspectos da susceptibilidade à diabetes tipo2, à obesidade e à hipertensão que são geneticamente determinados e podem mesmo justificar diferenças de prevalência entre populações (DI RIENZO & HUDSON, 2005). Nalguns casos, foram mesmo identificados os genes que podem influenciar a manifestação daquelas doenças. Conseqüências 1) Uma das principais conseqüências da aceitação do quadro hipotético que temos vindo a discutir é a subversão do nosso entendimento de doença e normalidade. Com efeito, se tivermos em conta que a susceptibilidade a muitas das actuais doenças é causada pela retenção de aspectos da nossa fisiologia e metabolismo que já estavam presentes nos nossos antepassados e os ajudaram a enfrentar com sucesso as condições em que viviam, dificilmente poderemos considerar essa susceptibilidade como o resultado de uma anomalia recente. Pelo contrário, o que é recente, e previsivelmente mais raro, é a resistência às doenças das sociedades industriais contemporâneas quando os padrões correntes de alimentação e actividade física não são alterados. Nestas condições, por exemplo, os estudos de associação caso-controlo em que se pretendem identificar determinantes genéticos da variação na susceptibilidade deverão ser reorientados no sentido da pesquisa de factores de resistência (mais recentes) e não de factores de susceptibilidade (mais antigos). A própria definição de “caso” e “controlo” poderá ter que ser revista (DI RIENZO & HUDSON, 2005). 2) A segunda conseqüência é talvez mais importante para o âmbito desta mesa redonda e diz respeito ao papel da actividade física na reconquista da nossa normalidade adaptativa. Por normalidade adaptativa entende-se a gama de valores de parâmetros fisiológicos, anatómicos e comportamentais que maximizam a sobrevivência dos indivíduos em determinados contextos ambientais (BOAZ, 2002). Tendo em conta que as profundas mudanças culturais que ocorreram recentemente nas sociedades humanas foram suficientemente rápidas para provocar uma discordância entre a nossa constituição genética e o ambiente em que vivemos, o único meio de recuperar a concordância perdida é a adopção de comportamentos que permitam que a nossa fisiologia e metabolismo tenham, nos dias de hoje, o valor adaptativo que tiveram para os nossos antepassados. Como isto não pode, obviamente, significar um retorno ao passado, a única solução consistente parece ser o aumento significativo dos nossos níveis de actividade física. Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.20, p.47-49, set. 2006. Suplemento n.5. • 49 XI Congresso Ciências do Desporto e Educação Física dos países de língua portuguesa M e s a R e d o n d a A n tr o p o lo g ia d o E s p o r te / A ti v id a d e F ís ic a Conclusão A análise evolutiva dos padrões de saúde e morbilidade contemporâneos indica que a susceptibilidade a doenças características de sociedades com abundância alimentar e baixos níveis de actividade física resulta de atributos metabólicos que podem ter sido adaptativos nas sociedades ancestrais de caçadores-recolectores, onde a escassez era recorrente e a actividade física constante. Tendo em conta a inércia das modificações genéticas e velocidade das transformações culturais, a única via para reconquistar a normalidade adaptativa é a promoção de estilos de vida que reponham no essencial a concordância entre os nossos hábitos e o nosso passado evolutivo. A parte fundamental dessa reconquista pode ser feita com a readopção dos níveis de actividade física dos nossos antepassados, de modo a que o atleta aprisionado por anos de abundância possa voltar a correr livremente. Referências BOAZ, N. Evolving health: the origins of illness and how modern world is making us sick. [S.l.]: John Wiley, 2002. Di RIENZO, A.; HUDSON, R.R. An evolutionary framework for common diseases: the ancestral susceptibility model. Trends Genet, v.21, p.596-601, 2005. McELROY, A.; TOWNSEND, P. Medical anthropology in ecological perspective. [S.l.]: Westview Press, 2004. McMICHAEAL, T. Human frontiers, environments and disease: past patterns, uncertain futures. [S.l.]: Cambridge University Press, 2001. NEEL, J.V. Diabetes mellitus: a “thrifty genotype” rendered detrimental by “progress”. Am .J. Hum. Genet., v.14, p.353-62, 1962. YOUNG, J.H.; CHANG, Y-P. C.; KIM, J.D-O.; CHRETIEN, J-P.; KLAG, M.J.; LEVINE, M.A.; RUFF, C.B.; WANG, N-Y.; CHRAKRAVARTI, A. Differential susceptibility to hypertension is due to selection during the Out-of-Africa expansion. PLoS Genetics, p.82, 2005.